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BISPO MARTIM
BISPO MARTIM
Recebido pela Voz Interna por Jacob Lorber
Traduzido por Yolanda Linau
Revisado por Paulo G. Juergensen
Direitos de tradução reservados
CopyrightbyYolanda Linau
UNIÃO NEOTEOSÓFICA
Edição 2015
ÍNDICE
MARTIM FICA ENCABULADO DIANTE DA CURIOSIDADE DE CHANCHAH .205 100. REPRIMENDA E ORIENTAÇÃO DO SENHOR 206
A INTERESSANTE HISTÓRIA DA FLOR DA MANHÃ E DA FLOR DA NOITE 217
DESPERTAR ESPIRITUAL DOS DEMAIS CHINESES E DOS MONGES. HUMILHAÇÃO DAS FREIRAS CIUMENTAS 241
CONDIÇÕES DO TRANSPORTE RÁPIDO OU LENTO NO REINO DOS ESPÍRITOS 257
DA ONIPRESENÇA E ATIVIDADE MÚLTIPLA DOS PERFEITOS CIDADÃOS CELESTES 258
OS BEM-AVENTURADOS PODERÃO OBSERVAR A TERRA E SEU FUTURO 260
O BISPO MARTIM SE DEFRONTA COM AS TRÊS BELAS VIRGENS DO SOL 262
DESVENDADA DAS FILHAS DO SOL 270
AS DIFÍCEIS CONDIÇÕES PARA A CONQUISTA DA FILIAÇÃO DIVINA NA TERRA 279
DIRETRIZES REFERENTES A PROCESSOS ÍNTIMOS DAS FILHAS DO SOL 285
FÁCIL VITÓRIA DE MARTIM SOBRE O ARROGANTE CHEFE DO TEMPLO SOLAR 299
A LÓGICA DE PEDRO CONVENCE O SÁBIO DA PRESENÇA DO SENHOR 306
A DIFICULDADE DO INTELECTO FRENTE À SABEDORIA DO CORAÇÃO 310
A VIDA DE PROVAÇÃO NA TERRA, CONDIÇÃO PARA A FILIAÇÃO DIVINA 320
A ALEGRIA DOS FILHOS É TAMBÉM A ALEGRIA DO PAI CELESTIAL 343
Obras da Nova Revelação
O Grande Evangelho de João – 11 volumes A Criação de Deus – 3 volumes
A Infância de Jesus
O Menino Jesus no Templo
O Decálogo (Os Dez Mandamentos de Deus) Bispo Martim
Roberto Blum – 2 volumes A Terra e a Lua
A Mosca
Sexta-Feira da Paixão e À Caminho de Emaús Os Sete Sacramentos e Prédicas de Advertência Correspondência entre Jesus e Abgarus Explicações de Textos da Escritura Sagrada Palavras do Verbo
(incluindo: A Redenção e Epístola de Paulo à Comunidade em Laodiceia)
Mensagens do Pai
As Sete Palavras de Jesus na Cruz (incluindo: O Ressurrecto e Judas Iscariotes) Prédicas do Senhor
Evolução de uma alma no Além
DESENLACEDOVELHOBISPOESUACHEGADANO ALÉM
Certo bispo, cônscio de sua dignidade e de seus princípios eclesi- ásticos, adoeceu pela última vez. Ele, submisso presbítero que pintara as alegrias celestes com as cores mais deslumbrantes, que muitas vezes se esgotara na descrição dos êxtases no reino dos anjos, se bem que não esquecera o inferno e o purgatório, ainda não sentia desejo de posse de todas as maravilhas celestes, muito embora contasse cerca de oitenta anos. Preferiria mais mil anos de vida terráquea a um futuro Céu com suas promessas formidáveis.
Por este motivo, tudo fazia para reaver a saúde. Exigia os melhores médicos e missas em todas as igrejas de sua diocese. Suas ovelhas eram convidadas a orarem em benefício da conservação física e fazerem pro- messas em lugar dele, sob compromisso de indulgência plenária. Em seu dormitório fora erigido um altar no qual se celebravam três missas, pela manhã; à tarde, os três mais devotos padres liam constantemente o breviário, com a hóstia consagrada.
Por várias vezes ele exclamava: “Senhor, tem piedade de mim! Ma- ria Santíssima, ajuda-me, tem piedade de minha honra e dignidade de arcebispo que sustenho em honra de ti e de teu filho! Não abandones teu servo fiel, única auxiliadora em toda aflição, único amparo de todos os sofredores!” De nada adiantou, porém, pois caiu em sono profundo do qual não mais despertou na Terra.
Sendo do conhecimento de todos as cerimônias aplicadas ao de- funto de um bispo, vamos acompanhá-lo no mundo espiritual, para vermos sua futura atitude. Ei-lo ainda em seu leito, pois enquanto hou- ver calor no coração, o anjo não separa a alma do corpo. Esse calor é precisamente o centro nervoso que deve ser assimilado pela alma, antes de ser efetuada a separação completa.
Nesse momento, a alma acaba de absorver completamente o siste- ma nervoso, e o anjo a separa do corpo com as seguintes palavras: “Abre a tua visão, alma! E tu, matéria, entrega-te à decomposição e libertação através dos vermes e do mofo! Amém”
O bispo se ergue, tal qual em vida, em seu ornamento episcopal, abre os olhos e se admira porquanto nada vê ao seu redor, nem mesmo o anjo que o despertara. A zona se encontra em fraca luz, semelhante à luz crepuscular e o solo se parece coberto de musgo seco.
Diante deste quadro, o bispo conjectura: “Que vem a ser isto? Onde estou? Estarei ainda vivo, ou morri? Estive gravemente enfermo e talvez me encontre entre os mortos. Maria Santíssima, São José e Santa Ana, minhas colunas mais poderosas, ajudai-me a ingressar no Reino do Céu!”
Ele aguarda a chegada dos três santos, olhando com ansiedade a seu redor. Ninguém aparece. Ele repete a exclamação, por três vezes e com entonação mais forte, sem o menor resultado. Desesperado, o bispo fala de si para consigo: “Senhor, ajuda-me! Estarei eu condenado? Não o creio, pois não vejo fogo nem demônios! Que horror! Estou inteira- mente só, e não disponho de crucifixo para enfrentar um...! E consta que eles sentem especial atração pelos bispos!
Talvez não me reconheçam, se eu tirar minha veste episcopal. Mas em tal caso, teriam maior poder sobre mim! Que coisa horrorosa vem a ser a morte! O pior de tudo é a vida após a morte! Que acontecerá se eu me afastar daqui? Não, não! Eu fico, pois sei ao menos o que existe aqui, enquanto ignoro o resultado de um simples passo à frente. Prefiro ficar, em Nome de Deus e da Virgem Santíssima, até o Dia do Juízo Final!”
TÉDIOETENTATIVADE MODIFICAÇÃO
Após o bispo se ter mantido firme em seu posto durante algumas horas e nada se alterando em sua proximidade, ele recomeça a monolo- gar: “Coisa estranha! Encontro-me aqui no mínimo há uma eternidade, no mesmo ponto, e nada sucede! Nada se mexe, nem o musgo, nem um cabelo meu, nem minhas vestes! Estarei eu condenado a ficar aqui eternamente? Impossível, pois seria o inferno com o relógio horroroso cujo pêndulo diz: Para sempre!, e em seguida: Jamais!
Graças a Deus eu não ver essa prova horrenda da Eternidade! Tal- vez aparecerá somente no Dia Final? Em compensação surgiria o si- nal do Filho do Homem, no Céu? Estranho! Na Terra, nada evidencia a proximidade do Dia Final; aqui, muito menos ainda. Mil anos são idênticos a um momento, e se não fosse tão crente, poderia duvidar do futuro Dia Final, inclusive do próprio Evangelho.
Todos os profetas são unânimes em seus pronunciamentos a res- peito do oráculo de Delfos, que pode ser interpretado ao gosto de cada um. O Espírito Santo que consta estar oculto no Evangelho deve ser um pássaro raro porquanto nunca mais se manifestou desde os tempos dos apóstolos, a não ser no cérebro de um visionário herege.
O poder de Maria, tão louvado pela minha Igreja, parece ser antes uma lenda, do contrário ela de há muito me teria atendido. Desde o momento de minha morte até agora devem ter passado alguns milhões de anos, e não vi um simples vestígio da Mãe de Deus, de Seu Filho, tampouco de qualquer santo. Vou terminar com essa comédia. Na Ter- ra, fui honestamente pago pela minha tolice; se essa questão for ape- nas ilusão, segundo minhas experiências milenares, desistirei de toda idiotice!”
Como os anjos lhe transformassem as poucas horas de permanên- cia no Além, numa sensação quase eterna, ele pretende abandonar o ponto onde se encontra. À procura de um caminho, ele fixa um ponto em direção ao Poente, porquanto tem a impressão de algo que se mo- vimenta. Entretanto hesita, pensando: “Devo arriscar-me? Talvez se- ria minha destruição eterna, quiçá uma final libertação? Que poderia
acontecer de pior a um homem honesto do que ser banido a um ponto, além de milhões de anos?
Aquela ‘coisa’ se mexe cada vez mais qual arbusto tocado pelo ven- to. Será que minhas pernas conseguem movimentar-se de novo? No mundo me falaram que bastava um espírito pensar que ele estaria onde desejasse. Minha espiritualidade parece algo duvidosa, pois tenho pés, mãos, cabeça, olhos, nariz, boca — e estômago, que realmente está num jejum completo, pois se aqui não houvesse bastante musgo com orvalho, eu certamente estaria reduzido ao tamanho de um átomo. Fa- rei uma tentativa para andar, pois não existe estado pior que esse.”
OBISPOMARTIMEMCOMPANHIADEUM COLEGA
Com essas palavras ele põe seus pés em movimento, caminhando cuidadosamente em direção ao objeto cada vez mais agitado. Eis que se encontra a pouca distância diante de outro bispo, quer dizer, aparen- temente um colega, pois na realidade trata-se de um anjo, ou seja, o espírito de Pedro.
Dirigindo-se a este, o ex-bispo diz: “Que satisfação imensa encon- trar alguém, após milhões de anos, e este alguém é um colega, colabo- rador na Seara do Pai! Sê bem-vindo, caro irmão. Como chegaste aqui? Já atingiste minha idade nesse belo mundo espiritual? Encontro-me há cerca de cinco milhões de anos no mesmo lugar; imagina, cinco mi- lhões de anos...”
Diz o anjo, suposto colega de Martim: “Sou teu irmão espiritual e, além disto, antigo operário na Seara do Senhor. Quanto à minha idade, sou mais idoso que tu; na imaginação, porém, muito mais jovem.
Cinco milhões de anos terráqueos representam um período extra- ordinário para um espírito criado, conquanto para Deus nada signifi- quem, por não poder ser contada nem medida Sua Existência Eterna!
Como novato no mundo dos espíritos te encontras em erro, pois se aqui estivesses há cinco milhões de anos, terias outra veste. As mon- tanhas teriam sido niveladas, os vales preenchidos, mares, lagos, rios, cascatas e brejos estariam secos, existindo na Terra uma Criação intei-
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ramente nova, para a qual ainda não foi depositada uma única semente nos sulcos.
A fim de que saibas e sintas que tua suposta idade é apenas cria- ção de tua fantasia, cujo desenvolvimento foi permitido e se origina de teus conceitos de espaço e tempo fortemente temperados com o inferno, volta o teu olhar para trás para descobrires o teu corpo, morto há três horas.”
Virando a cabeça para trás, o bispo Martim vê o seu cadáver de- positado num especial catafalco na Catedral, havendo inúmeros círios acesos, e muitas pessoas curiosas que circundam a essa.
À vista desse espetáculo, o bispo resmunga: “Que tolice mais estú- pida! Os minutos de tédio se tornam eternidades, todavia sou eu a ha- bitar este corpo! Não sei como resolver fome e falta de luz, e esses tolos adoram minha matéria! Não teria eu, como espírito, força suficiente para rasgar aqueles farrapos?”
Obtempera o anjo: “Vira-te para frente e não te aborreças, pois fazias o mesmo quando ainda pertencias ao mundo natural. Deixemos os mortos enterrarem os mortos, e procura seguir-me à vida!”
Diz o bispo: “Para onde devo seguir-te? Porventura és meu homô- nimo, S. Bonifácio, por te interessares tanto pela minha salvação?”
Responde o anjo: “Repito em Nome de Jesus: Segue-me para junto Dele, o verdadeiro Bonifácio de todas as criaturas. Quanto a mim, não sou teu Bonifácio, e sim, alguém bem diferente. Faze o que digo que compreenderás tudo que te sucedeu; além disto, hás de encontrar outro pouso, onde conhecerás o Próprio Senhor e, por Ele, o caminho para os Céus, e finalmente também a mim, teu irmão.”
Diz o bispo: “Fala, fala, quero sair voando desse lugar enfadonho!” Aconselha o anjo: “Tira tua veste ridícula e usa esse simples sobretudo de camponês. Agora, segue-me!”
Ambos seguem caminho em direção ao Sul e chegam a uma simples fazenda, diante da qual se acha um pequeno templo luterano. Quando o bispo avista essa pedra de escândalo, segundo sua compreensão, ele para, faz uma série de cruzes em sua testa calva e em seguida dá pancadas no peito sob constante exclamação de Meaculpa,meamaximaculpa*.
O anjo o interrompe, dizendo: “Que fazes? Algo te incomoda? Por que não continuas?”
Retruca o bispo: “Não vês esse templo luterano, obra do demô- nio? Como pode um cristão aproximar-se de local tão amaldi..., oh, não disse nada! Talvez sejas tu o próprio demô...? Oh, abandona-me, caso o sejas!”
Diz o anjo: “Estás disposto a repetir o trajeto de cinco milhões de anos num local mais trevoso do mundo dos espíritos? Basta dizê-lo, pois tua antiga veste episcopal está à espera. Desta vez terás que aguar- dar dez vezes mais, até que alguém te socorra!
Não me vês de veste eclesiástica? Na Terra afirmais que o demônio é capaz de se ocultar num anjo de luz, todavia lhe é impossível imitar a figura de um bispo penetrada pelo Espírito Santo. Não querendo con- testar tua própria opinião como podes tomar-me por um demônio?
Se condenas tua opinião dogmática que deriva da inexpugnabilida- de da rocha de Pedro pelo inferno, acabas de contestar a própria Igreja, e não compreendo como essa pequena construção te incomoda. Não percebes que em tua atitude atual não existe o menor vestígio de base moral, muito menos religiosa?”
Diz o bispo: “Tens razão, levando em conta tua opinião. Se fores realmente um bispo, deves estar ciente que todo crente é obrigado a ceder sua razão à fé cega e incondicional. Como poderia então surgir, entre nós, coerência no pensar e agir?
Minha culpa, minha máxima culpa
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Nosso dogma diz que o homem deve precaver-se, antes de mais nada, de querer penetrar no espírito da religião; deve crer cega e firme- mente. É mais salutar ao homem ingressar no Céu como ignorante, do que esclarecido entrar no inferno. Deve-se temer a Deus por causa do inferno, e amá-Lo por causa do Céu! Se esta é a base de nossa religião, como podes esperar de mim qualquer coerência?”
Responde o anjo: “Infelizmente conheço o estado da doutrina de Babel, completamente contrária ao Evangelho, que diz: Não condeneis, a fim de que não sejais condenados, e não julgueis para não serdes jul- gados! — No entanto, condenais e julgais a todos que não se submetem ao vosso cetro.
Porventura sois cristãos se não estais de acordo com a suave Dou- trina do Cristo? Não contém ela a máxima ordem e coerência, como em toda Criação? Dela não emana a plenitude do Espírito Santo em cada palavra do Evangelho? Sempre fostes contrários ao Espírito Santo, pela ação contrária à Doutrina pura, transmitida aos apóstolos e discípulos, para todo o sempre.
Daí concluirás em que base te encontras, quer dizer, maduro para o inferno. Mas o Senhor tem Misericórdia contigo e mandou-me para te salvar da antiga prisão babilônica. Eis o motivo por que Ele quer que elimines tua maior trave espiritual, caso pretendas receber algum direito sobre o Céu. Preferindo continuar em tua doutrina de Babel, tu mesmo te atirarás ao inferno, do qual dificilmente um amigo do Senhor te salvará.”
Diz o bispo: “Começa a se fazer alguma noção diferente dentro de mim. Tem paciência comigo, farei tudo que quiseres, contanto que não me fales de inferno e me leves daqui.”
Retruca o anjo: “Por ora estamos no nosso destino. Precisamente com esse camponês e bispo luterano, que sou eu, receberás serviço de pastor de ovelhas, e o fiel cumprimento dessa tarefa dar-te-á pão e su- cessivo progresso. Se agires contrariado e com espírito de crítica, hás de te prejudicar pela redução de pão e sucesso. Como servo fiel, não penses tanto na tua vida terrena e considera que aqui és obrigado a começar desde o início, caso tenciones progredir.
Antes de mais nada, note bem: Progredir aqui, quer dizer renunciar e ser o último e mais simples. Ninguém chega junto do Senhor, antes que se tenha humilhado em tudo. Sabes tudo a respeito de tua situação. Segue-me até aquela casa, de boa vontade.” O bispo aquiesce, vendo que seu guia só tinha boas intenções.
NACABANADOANJO PEDRO
Quando ambos entram na casa muito simples e apenas arruma- da com o necessário, o bispo vê em cima de uma mesinha a Bíblia luterana do Velho e Novo Testamento, fato que o deixa visivelmente embaraçado.
O anjo Pedro, que o percebera, diz: “Que te fez Lutero, a ponto de o desprezares, pela sua fiel tradução da Bíblia, na qual somente se encontra a pura Palavra de Deus? Conquanto não fosse em tudo um homem que fizesse jus ao dito: Foi um homem segundo o Coração de Deus!, ele foi muito melhor que inúmeros servos de tua Igreja, que pretendem ser os únicos justos e perfeitos, enquanto são precisamente o contrário. Foi ele quem teve coragem, em meio à mais densa treva religiosa, de trazer de volta à Humanidade a Palavra pura de Deus e reconduzi-la pelo justo Caminho do Senhor.
Se nesse caminho havia ainda algumas sombras — consequência da proximidade de Roma — foi a Doutrina segundo a Palavra do Se- nhor qual Sol ao meio-dia frente ao fogo da antiga doutrina errônea de Babel. Se isto Lutero alcançou em Nome do Senhor, que motivo terias tu, para menosprezá-lo?”
Responde o bispo: “Não o desprezo realmente. Sabes, quando se foi escravo de um partido, por muito tempo, cria-se um ódio artificial contra quem fora amaldiçoado e condenado em todas as ocasiões pelo referido partido. Foi este o meu caso. Espero que Deus me ajude a re- nunciar a todas as tolices trazidas da Terra. Não te aborreças comigo, que hei de melhorar.”
Diz o anjo Pedro: “Não precisas incitar-me e sim, a ti, à paciência! Desconheces o que te espera. Eu o sei e devo agir contigo de modo a
seres fortalecido na verdade e poderes enfrentar as tentações que se te apresentarão no Caminho para o Senhor.
Observa por esta janela as milhares de ovelhas a pularem e sal- tarem. Aqui está um livro no qual consta o nome delas. Chama-as e, tão logo reconheçam em ti a voz de um justo pastor, acorrerão incon- tinenti. Percebendo em ti a voz de um mercenário, fugirão de ti. Isto acontecendo, não te alteres, mas confessa seres um mercenário. Então virá outro pastor que te ensinará como devem ser cuidados e chamados os rebanhos. Eis a lista. Vai, e faze o que te aconselhei.”
SURPRESAAGRADÁVEL,PORÉM PERIGOSA
O bispo Martim segue, pois, para o ar livre, em trajes camponeses e munido de um livro volumoso, onde lhe fora demonstrado o rebanho que, à distância — em sentido espiritual — tinha aspecto de ovelhas; na proximidade, porém, eram almas femininas. Na Terra viveram bastante piedosas, no entanto, davam mais importância ao sacerdócio católico do que a Mim, porquanto não Me conheciam e ainda desconhecem, razão por que se apresentam espiritualmente, a alguma distância, como animais de índole meiga.
Quando o bispo, animado como quem, após longo tempo, recebe pela primeira vez um emprego remunerado, se vê fora de casa, senta-se em uma pedra coberta de musgo e procura a seu redor o paradeiro do rebanho. Nada descobre desses animais úteis, e sim, inúmeras moças belíssimas e delicadas colhendo flores num gramado extenso, fazendo coroas e pulando cheias de alegria.
Diante disto, o bispo monologa: “Hum, estranho! O lugar é o mes- mo, o mesmo prado onde descobri um grande rebanho que agora su- miu e em seu lugar vejo mil moças maravilhosas, uma mais bela que a outra. Sinceramente, preferiria este rebanho, caso esta questão não seja uma maquinação perigosa.
Ai, ai, ai! Eis que vêm elas, sem que as tivesse chamado! Está bem, assim poderei fitá-las de perto e, talvez, abraçar uma ou outra! Se assim
for, a profissão de pastor não seria de modo algum cansativa, em toda eternidade.
À medida que se aproximam, mais belas se apresentam! Aquela, no centro — caramba! Não me abandones, força de minha moral, do contrário estarei perdido! Ainda bem que aqui nada vale o tolo celibato, pois facilmente se poderia cair em pecado mortal!
Deveria chamá-las pelo nome no livro — mas isto não farei, por- quanto haveriam de fugir! Estão cada vez mais perto, faltam apenas dez passos! Ó meus anjinhos!”
TENTAÇÃODOBISPO MARTIM
Neste instante, as moças já rodeiam o bispo e perguntam o que estava fazendo ali. Ele, completamente atordoado diante de tanta graça e amor, responde com voz trêmula: “Oh, ah, ah, anjinhos celestes! Oh, anjinhos de Deus! Eu... devo... ser... vosso pastor; mas, como vedes, sou muito tolo para tal!”
A mais bela senta-se, confiante, bem ao lado dele, no que é imita- da pelas outras, e diz: “ó querido, és demasiado modesto; pois te acho bastante atraente e caso fosse de teu agrado seria feliz em me tornar tua, para sempre! Porventura não te agrado?”
Perplexo, o bispo só consegue pronunciar um prolongado e trêmu- lo “Oh!”, pois está fortemente enamorado. A cabeça coberta de cachos louros, os grandes olhos azuis, a boca rosada, o busto arquejante, as mãos roliças e os pés de aspecto etéreo, fazem com que ele quase perca os sentidos.
Percebendo a excitação do pastor, o anjinho se debruça e lhe dá um beijo na testa. Até ali, ele se manteve valente; mas agora está perdido! Não mais se contendo, ele abraça a beldade com todas as suas forças, extravasando numa torrente de declarações amorosas.
Prestes a atingir o ápice do atordoamento, de repente a cena muda. Os anjinhos desapareceram, e o anjo Pedro se encontra diante do bispo dizendo: “Meu irmão, de que modo apascentas tuas ovelhas? Foi este o conselho dado por mim? Se fores lidar desta maneira com as ovelhas a
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ti confiadas, levarás muito tempo para atingir a meta da vida. Por que não usaste o livro?”
Retruca o bispo: “Por que não me disseste que aquelas ovelhas eram apenas moças muito lindas, diante das quais somente uma pedra continuaria indiferente? Fui apenas vítima de zombaria e certamente não hás de querer fazer disto um crime?”
Diz o anjo: “Em que situação se acha teu celibato? Não o quebras- te, inclusive a promessa de castidade eterna?”
Responde ele: “Qual o quê! Encontro-me em solo luterano, que revoga ambas as promessas. Por falar nisso, a um tal anjo como esse eu teria feito sacrifício, tornando-me prontamente luterano. Para onde sumiram essas moças adoráveis — mormente aquela? Se fosse possível revê-la...!”
Diz o anjo: “Amigo, dentro em breve a verás com suas companhei- ras; mas então não lhe poderás falar, muito menos te aproximares dela. Caso te perseguir, ergue tua mão e diz: Volta para a ordem justa, em Nome do Senhor, e não me tentes!
Se porventura o rebanho não respeitar tua determinação, abre o livro e lê os nomes que contém, e ele debandará, ou, percebendo em ti o som que provém da Força do Senhor, seguir-te-á. Então levarás o re- banho para aquela montanha em direção ao Sul, onde me encontrarás. Oferece ao Senhor o que acabas de passar, pois Ele permitiu tua queda, pela qual te desfizeste do celibato enraizado.
Evita uma futura queda, que te traria tamanho prejuízo que leva- rias vários séculos para te libertares do mesmo. Sê precavido e prudente. Tão logo fores mais puro, enfrentarás inúmeras beldades, muito mais formosas, no Reino de Deus. Antes disto, terás que despir tuas tolices terrenas com suas raízes. Continua aqui e segue meu conselho que te- rás um caminho agradável, em Nome do Senhor.” Com estas palavras desaparece o anjo Pedro, a fim de evitar que o bispo externasse uma observação chistosa e fizesse oposições.
De novo sozinho no prado, ele começa a conjecturar: “Para onde se dirigiu o meu guia? Quando mais necessito dele, desaparece. Basta eu cometer um erro, surge de pronto, fato que não suporto. Que fique de vez, para me conduzir em veredas incertas como essas no mundo espiritual, ou se afaste definitivamente, caso pretenda aparecer somente quando pequei. Espera um pouco, guia mistificador, hás de perder a paciência comigo! Que me poderá suceder? Sou luterano e segundo a religião católica, perfeitamente maduro para o inferno — ou talvez já me encontre dentro dele?
Deixa que as belas ovelhas se apresentem de novo que não serei o lobo em pele de cordeiro, mas sim, um amante fogoso. Não levantarei minha mão contra elas nem hei de ler os seus nomes, para que não fu- jam de mim. Se nesse instante, meu guia aparecer, verá como fala um bispo da Terra!
Estranho que elas não se apresentam. Já se passou um tempo enor- me desde que ele me deixou, e não descubro viva alma. Tenho a im- pressão de estar a sós há mais de trinta anos, que talvez se estendam para milênios!
Essa vida espiritual se assemelha à vida de sonho, na qual eu sonha- va coisas tolas e com certas metamorfoses. Nada mais eram que imagens produzidas pela força criadora da alma. Assim, também esta existência parece apenas um sonho eterno. O que me causa espanto são: o livro, minha roupa camponesa, a zona com o templo luterano, que não per- deram sua forma.
Talvez eu errasse porque não segui imediatamente o ensino de meu guia? Se fosse um guia justo, poderia ter proferido uma advertência em vez de sumir. Avisou-me de uma possível queda, muito prejudicial. Será que já caí? Em pensamento e vontade, talvez, mas não na realidade, porque as mocinhas nem apareceram. Quiçá não vieram em virtude de minha fraqueza? Se ao menos me pudesse livrar de tais pensamentos! Foram elas as culpadas, e agora tenho que esperar que me liberte de minhas tolices e vontade.
Confesso, se isto for uma prova para minha fraqueza principal, terei uma luta desesperada. Neste ponto, fui no mundo um devasso! Quantas freiras bonitas...! Cala-te sobre aqueles tempos felizes! Como fui severo no confessionário e descuidado comigo mesmo! Isto não foi justo. Mas quem, além de Deus, possui poder para reagir contra a Natureza?
Se não existisse o tolo celibato, conforme exigiu o apóstolo Paulo, e um bispo pudesse casar-se, a luta carnal seria mais fácil. Mas um bispo vive qual Adão, antes de ter sido abençoada a árvore do conhecimento, com a tentadora Eva num certo paraíso, sem poder saborear a maçã oferecida!
Senhor, tem piedade e misericórdia para comigo! Se não me esten- deres Tua Mão, não poderei progredir. Sou um animal, e meu guia, um idiota teimoso, quiçá, o espírito de Lutero. Paciência, não me abando- nes, que me encontro há um milênio no mesmo lugar!” Finalmente ele se cala, à espera das ovelhas.
OUTRAPROVADE PACIÊNCIA
Como ninguém surgisse, ele se levanta e sobe na pedra, a fim de conseguir melhor visão. Começa a chamar, senta-se de novo — nada aparece. Finalmente apanha o livro e se levanta dizendo: “Agora basta! Não mais farei papel de tolo. Camarada honesto que sou, levarei o livro à sua casa luterana e depois caminharei — sei lá para onde! Este mundo deve ter um fim, onde se poderia afirmar: Até aqui e não mais além! Se me aparecesse aquele patife luterano, teria vontade de esganá-lo!
Poderia haver coisa mais enfadonha e desagradável do que espe- rar-se por uma promessa que nunca se realiza? Não vem ao caso se espero na realidade ou apenas na impressão, pois as ovelhas não foram realidades. Se ao menos encontrasse uma criatura da mesma índole que eu, como haveríamos de criticar esse mundo miserável! Mas, avante! Não posso perder tempo, caso não pretenda transformar-me em pedra, nesta pedra.
Onde ficou o incômodo livro? Talvez fosse sozinho para casa, a fim de me poupar a caminhada? Está bem! No íntimo me aborrece, pois agora mesmo estava aqui — e sumiu! Que organização mais estúpida! Um livro se despede quando é apenas criticado como merecia. Muito bem! Talvez tenha que pedir desculpas a essa pedra, porque meu ser indigno nela repousou por tanto tempo — do contrário também se evaporará!
Isto é por demais! Mas não hei de praguejar! Ih..., a casa luterana com o templo também foi passear! Ótimo, no final tudo desaparecerá! Resta apenas a pedra — se for verdadeira. Ainda tem tal aspecto, mas convém analisar de perto! Pronto, a dona pedra também se evaporou! Certamente chegou a hora de eu me despedir! Para onde irei? Seguirei a direção de meu nariz, na hipótese de possuí-lo! Ah, ainda existe, por- tanto seguirei esta seta, nesse mundo espiritual verdadeiramente belo!”
Ele começa a andar, e o anjo Pedro o segue invisivelmente. Andar no mundo espiritual quer dizer mudar de índole e isto significa mu- dança de local.
DESVIODOBISPO MARTIM
Quem de vós tiver conhecimento da evolução espiritual perceberá que o bispo encetou caminho para o Poente, em vez do Oriente. Ele caminha corajoso e lépido, mas nada descobre além de um solo par- camente coberto de musgo e uma iluminação cinza-claro do aparente firmamento, que no fundo se torna cada vez mais escuro.
Como são quase nulos seu conhecimento e fé, a escuridão cresce, causando-lhe desapontamento, sem detê-lo, porém, em sua marcha. O pouco que existe nesse sentido, baseia-se em falsos conceitos a respeito do Evangelho, portanto é puro anticristianismo e ódio sectário, oculto em máscara chistosa.
Por isto, sua caminhada ao Poente cada vez mais escuro; o solo coberto de algum musgo demonstra a secura e a pouca importância que essa alma dá à Minha Palavra; aliás, todos os bispos que se curvam pró-forma diante de Meu Verbo, em vestes escarlates e douradas, não
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o alimentam com o verdadeiro calor da Vida, do qual deveria surgir a eterna Aurora para o espírito.
Tais criaturas têm que chegar ao maior abandono e noite espiri- tuais; só então será possível modificá-las. Se na Terra já se torna difícil levar-se tal bispo ao verdadeiro caminho do apostolado, muito mais o é no mundo espiritual, por não ser inacessível externamente, enquanto em seu íntimo nada mais existe que erro, falsos conceitos e, no fundo, tendência dominadora.
Muitas coisas se tornam possíveis para Minha Graça, quando pelo caminho comum da ordem, não o seriam. Por isto analisaremos esse bispo de modo prático; seu destino, índole e finalmente, quando todas as cordas se rompem, o que Minha Graça pode alcançar sem interferir na liberdade do espírito, porquanto certa vez ele pediu que Eu o ampa- rasse com Minha Mão. A força de Minha Graça só pode agir quando ele tiver expulso de si os farrapos de seus erros e maldade oculta, que se apresentam no estado de treva.
Segui-lo-emos, pois, que devagar e cuidadoso experimenta o solo em que pisa. Seu aspecto é pantanoso, indício de que todos os seus conhecimentos errôneos dentro em breve se lançarão num mar secreto e insondável, de sorte que desde já encontra pequenos brejos em escu- ridão crescente. Tal estado se manifesta em muitas criaturas na Terra que ao relato de um sábio a respeito da vida após a morte, procuram desviá-lo com a alegação de que isto as deixa aborrecidas, tristes e me- lancólicas, e caso fossem pensar muito em tais assuntos, cairiam até mesmo em demência.
Tal receio nada mais é que o pisar da alma em solo pantanoso, onde ninguém mais tem coragem de medir a profundeza com o seu conhecimento sumamente curto, de medo de cair no abismo.
Assim, o solo a sustentar o bispo começa a formar pequenos lagos, cada vez mais numerosos, entre os quais se entrelaçam aparentes línguas de terra, pequenas e estreitas, que correspondem às baboseiras de tal confessor de Deus sem conhecimento algum, cujo coração é puramen- te ateísta.
Em tal solo caminha nosso bispo, caminho esse aliás, escolhido por milhões. As línguas de terra, entre os lagos cada vez mais fundos, se apresentam cheias de desespero insondável para o seu conhecimento. Ele cambaleia como quem atravessa uma viga estreita, por cima de um ribeiro em fúria. No entanto não para, mas continua cambaleando, numa falsa curiosidade de no final encontrar um término do mundo dos espíritos, em parte também com a intenção secreta de procurar as belas ovelhas que não lhe saem da cabeça.
Tudo que pudesse lembrá-las lhe fora tirado: o livro, o prado, a pe- dra (de escândalo), as ovelhas que na Terra lhe trouxeram coisas muito agradáveis e tentadoras, razão por que o anjo Pedro as apresentou, para revelar as fraquezas do bispo e levá-lo ao isolamento.
Sabemos, portanto, quais os motivos que impelem essa alma. Até que chegue ao mar sem limites, onde constará: “Até aqui e não mais além”, seguirá toda a sua cegueira, tolice e loucura tremenda! Deixe- mo-lo cambalear até a mais absurda e distante língua de terra, da qual não está muito longe. Lá o analisaremos com calma, para sentirmos que baboseiras irá ele expelir no mar de sua treva espiritual. Cada um de vós deve analisar suas tendências mundanas, ocultas e tolas, para que não venha a seguir o triste caminho de nosso viandante.
SITUAÇÃOAFLITIVADO BISPO
Eis que ele atingiu o mar, não mais havendo qualquer língua de terra a separar as águas sem limites, resultado da imprudência do bispo e que bem interpreta sua índole. De igual modo demonstra o estado da criatura incapaz de qualquer ideia, tornando-a incompreensiva qual demente, cujas noções convergem num mar de absurdos.
Aborrecido e indignado, ele se encontra à beira do fim, quer dizer, na última ideia, ou seja, diante de si próprio. Conhece apenas a si mes- mo; todo o resto se transformou num mar trevoso, no qual nadam toda sorte de monstros disformes e horrendos, rodeando o bispo como se quisessem tragá-lo. A escuridão é tremenda e o lugar, gelado. Somente
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através do fraco luzir das ondas e do horrendo murmurinho das vagas, ele percebe encontrar-se à beira de um mar imensurável.
Ouçamos suas observações absurdas para sabermos que tal situação se dá não somente com esse bispo, mas sim, com numerosas criaturas que alimentam apenas conceitos cerebrais, enquanto seus corações es- tão vazios. Eis que ele começa a conjecturar: “Oh, vida miserável! Qual pobre alma penada tive que vagar durante dez milhões de anos nesta escuridão tenebrosa, para finalmente atingir um mar que certamente me tragará por toda a eternidade.
É realmente um belo repouso em paz, na luz eterna! Tal hino ma- ravilhoso terão cantado repetidas vezes em minha memória, e a matéria se encontra dentro de um túmulo coberto de mofo fosfórico; mas eu, o próprio indivíduo — que foi feito de mim? Continuo o mesmo — mas onde? À beira de um mar eterno, na mais completa treva!
Ó criaturas na Terra, que ainda possuis a grande Graça do corpo fí- sico, quão felizes e ricas sois comparadas a mim, pois ainda podeis pedir um óbolo, em farrapos miseráveis! Infelizmente vossa sorte é a mesma que a minha, ou talvez ainda pior.
Por isto, salve-se quem puder, ou pelo cumprimento firme das Leis de Deus, ou se tornando estoico de corpo e alma; todo o resto de nada vale. A terrível fome ainda seria um meio para morrer neste tolo mundo dos espíritos, porquanto me castiga há milênios! Não fosse eu uma alma muito etérea, ter-me-ia devorado até o dedinho do pé.
Se este mar dentro em breve me tragar, qual será minha sorte no mundo dos peixes? Baleias e outros monstros hão de me comer, provo- cando as dores mais atrozes, sem conseguirem matar-me. Bela perspec- tiva para o futuro eterno.
Quiçá foram as ovelhas uma espécie de sereias que me atraíram para aqui com a intenção de me estraçalharem. Quase não parece mais verdade que eu as tenha visto há doze milhões de anos. Apenas não compreendo como não sinto medo em minha situação desesperadora. Sinto antes ódio que medo; mas como não tenho com quem expandir o meu ódio, tenho que recalcá-lo.
Até mesmo se Deus viesse, meu ódio haveria de reagir, porque en- feitou o mundo com incontáveis maravilhas, enquanto este foi pessima- mente considerado. Mas Deus não existe, do contrário seria mais sábio que suas criaturas. Qualquer ignorante compreenderá que todo ser e acontecimento deve ter qualquer finalidade, assim como sou um indi- víduo e um acontecimento inculpável. Mas para que existem todos os meus sentidos num mundo que não permite o seu uso? Se Deus existe, que me responda e aprenda de mim, a sabedoria. Meu desafio de nada adianta, porque Ele não existe.”
ONAVIOALMEJADO.OPRÓPRIOSENHORCOMO BARQUEIRO
Após longa pausa, durante a qual aguarda, algo temeroso, a Di- vindade ultrajada e desafiada, ele prossegue em seu monólogo: “Posso desafiar e ultrajar a quem quiser, não há quem me ouça e sou qual exis- tência única no Universo todo.
Entretanto não posso estar sozinho, pois onde estão as inúmeras criaturas que viveram e morreram na Terra? Meu antigo guia e as belas ovelhas provaram a existência de outros seres — mas onde estão? Para além deste mar infinito certamente não há um ser vivo, mas eviden- temente nas minhas costas, a longa distância. Se fosse possível voltar, procurá-lo-ia. Mas infelizmente estou de tal modo cercado de água que é impraticável tal tentativa.
O solo debaixo dos meus pés ainda está seco; se fosse dar um sim- ples passo para a frente ou para trás, me afundaria nesse imenso túmulo aquático. Ah, se existisse um pequeno navio em que eu embarcasse e o conduzisse para onde quisesse — que felicidade seria isto para mim. Mas para um pobre di..., não, este nome não me sairá da boca. Não resta dúvida ser ele tão efêmero como Deus; a ideia em si é, todavia, tão horrível que só pode ser pronunciado com certo arrepio.
Mas que vejo em cima da água, não longe daqui? Será um mons- tro, ou talvez um navio? Está se aproximando cada vez mais — por Deus, é realmente um navio com vela e remo! Se chegasse até aqui,
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eu voltaria a acreditar em Deus, pois seria prova evidente de tudo que disse! Está cada vez mais próximo. Haveria alguém a bordo? Vou gritar por socorro!
Socorro! Socorro! Aqui está um infeliz bispo, há um tempo infin- do! Teve grande projeção na Terra, mas agora, neste mundo espiritual, é muito miserável, sem saber como salvar-se! Meu Deus, se existes, ó Poderoso, ajuda-me!”
Eis que a embarcação, na qual se encontra um barqueiro perito, que Sou Eu Mesmo, encosta na margem e o bispo sobe, em companhia de Pedro, a quem porém não vê, porquanto este anda atrás dele. É fácil compreender-se que ele se encaminha diretamente para Mim, dizendo: “Foi Deus ou um espírito bom que fez com que te perdesses nesta zona, ou talvez guiou-te para aqui, onde me encontro há tanto tempo. Ho- mens como tu devem ser muito raros aqui, pois nunca vi um simples vestígio de um ser humano. Bom amigo, pareces ser de índole melhor que aquele que por força se tornou meu guia neste mundo. Que Deus o perdoe, pois levou-me apenas para situações embaraçosas.
Primeiro fui obrigado a tirar minha veste episcopal, que trouxe não sei como do mundo, para usar essa roupa de camponês, de quali- dade especial, do contrário não duraria tantos séculos. Ainda poderia me conformar com isto, na esperança de uma melhora futura. Mas qual foi sua atitude? Nomeou-me pastor de ovelhas sob sentenças de moralidade.
Aceitei o serviço, conquanto em terreno luterano, e apossei-me do grosso livro, querendo entrar em função. Imagina que aquelas ovelhas eram todas moças belíssimas. Foram muito amáveis e até mesmo me beijaram, e a mais bela me abraçou com tamanho amor que caí em êxtase sublime, jamais sentido na Terra.
A situação não era má, especialmente para um novato neste mun- do, ignorando que tomaria a meu cargo tais moças em vez de ovelhas. Neste momento, porém, meu guia apresentou-se qual raio e me fez um sermão que não faria vergonha ao próprio Lutero, fazendo ameaças e outras advertências tolas; e eu finalmente teria que levar minhas ovelhas a um monte.
Insatisfeito com essa estranha incumbência, vi-me inteiramente isolado de tudo e de todos. Pretendia devolver o livro ao meu suposto patrão; eis que ele sumiu, inclusive toda a zona, deixando-me deses- perado e sem recurso qualquer. Finalmente apareceste qual verdadeiro anjo salvador e me aceitaste em teu barco. Se tivesse alguma posse, com o máximo prazer haveria de recompensar-te. Como vês, sou mais pobre que qualquer mendigo, pois tenho apenas a mim mesmo. Quão sere- no e rápido navega o teu barco sobre as vagas ruidosas e que sensação agradável! Desejava a presença de meu ex-guia para apresentar-te como verdadeiro salvador! Mais uma vez, queira aceitar minha gratidão!”
BÊNÇÃODA SOLIDÃO
Digo Eu, como amável barqueiro: “Realmente deve ser desagradá- vel encontrar-se a criatura sozinha por muito tempo; no entanto, tem tal estado suas vantagens, pois há tempo suficiente para meditar sobre diversas tolices, em seguida detestando-as e delas se desfazendo. Isto vale mais do que a melhor sociedade, na qual sempre aparecem antes tolices do que coisas aproveitáveis.
Pior ainda se torna a situação do abandono quando ameaçada de perigo de vida, ao menos aparente; entretanto, ainda é preferível à mais bela companhia. Em tal isolamento existe apenas uma perdição aparen- te, onde poderia surgir salvação. Na companhia agradável e sedutora, o homem é ameaçado por milhares de perigos verdadeiros, capazes de perverter a alma e espírito, levando-os para o inferno, do qual difi- cilmente há saída. Por isto foi teu estado atual desagradável para teu sentimento, porém benéfico para tua alma.
O Senhor de todos os seres zelou por ti, saciou-te na medida justa e aplicou grande paciência. Bem sei que foste um bispo católico que de- sempenhava seu ofício pagão segundo a letra, muito severamente, con- quanto no íntimo, não lhe davas importância. Pelo teu próprio critério, Deus não podia descobrir algum valor em teu procedimento, pois con- sidera apenas o coração e suas obras. Além disto foste muito orgulhoso,
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dominador e grande apreciador do sexo feminino, não obstante o jura- mento de celibato. Julgas terem sido tais atitudes do Agrado de Deus?
De preferência te ocupavas de conventos de freiras, onde havia no- viças belas, pois te agradava quando se atiravam a teus pés como se fosses um deus e lhes aplicavas provas morais em nada melhores que a prostituição. Teria tal zelo moral provocado algum Agrado para Deus? Qual não foi tua opulência pecando contra o Mandamento do Cristo que recomendava a desistência de dinheiro, calçado e outros objetos de conforto como: mesa farta, carruagem de pompa e as ricas insígnias de bispo! Quantas vezes juraste em falso no púlpito, como transmissor da Verdade, amaldiçoando a ti mesmo se isto ou aquilo não fosse verdade, o que nunca acreditaste em vida! Presumes que o Senhor, para Quem se torna um horror toda a Babilônia católica, ainda que em
sua melhor interpretação, sentisse Agrado com isto?
Porventura disseste algum dia: Deixai vir a mim os pequeninos? Não! Somente os grandes mereciam atenção de tua parte. Acolheste alguma criança pobre para vestir e alimentar? Quantos prisioneiros conseguiste libertar da prisão? Como vejo, nenhum! Em compensação aprisionaste milhares, em espírito, e à pobreza aplicaste não raro as cha- gas mais profundas por tuas maldições, enquanto distribuías indulgên- cias aos importantes e ricos, naturalmente por dinheiro, e a soberanos até mesmo gratuitamente, por uma questão de amizade mundana e orgulhosa. Julgas realmente que tais atitudes tivessem a aprovação de Deus, a ponto de mereceres ingressar diretamente no Céu, após tua morte física?
Eu, teu salvador, não te digo isto para condenar-te e sim, para de- monstrar que o Senhor não foi injusto ao te deixar no abandono apa- rente. Pelo contrário, foi Misericordioso em não permitir que caísses no inferno bem merecido!
Reflete um pouco e não insultes o teu guia. Considera com humil- dade que, perante Deus, não merecias a menor Graça, e assim poderás encontrá-la. Se os servos mais fiéis se devem considerar imprestáveis e maus, quanto mais tu que nunca agiste segundo a Vontade de Deus!”
Diz o bispo: “Meu caro salvador, que merece toda minha gratidão! A esta tua revelação só posso afirmar: Mea culpa, mea maxima culpa! Mas, que posso fazer agora? Sinto o mais profundo arrependimento que, todavia, não apaga minhas ações, de sorte que perduram o pecado e a culpa, semente e raiz da morte. Como entrar na Graça do Senhor, dentro do pecado? A meu ver é inteiramente impossível.
Deste modo sinto estar maduro para o inferno, não havendo ou- tra alternativa senão minha reencarnação, caso Deus a permita, para reparar as minhas faltas. Ou então, o Senhor me colocaria para sempre num cantinho qualquer, como ser mais ínfimo, onde poderia cuidar de meu sustento, qual simples camponês. Além disto renunciaria a qual- quer felicidade, porquanto me acho indigno do menor grau de bem-a- venturança.
Eis o que sinto como expressão mais íntima de minha vida. No mundo pouco se pode alcançar em virtude da situação geral das coisas que tornam quase impossível nadar-se contra a maré. Os Governos fa- zem o que querem, e as religiões são apenas usadas como entorpecente político para as massas, a fim de torná-las mais prestativas.
Que tente o próprio Papa dar outra versão, puramente espiritual à religião, que enfrentará as investidas armadas contra sua declarada in- falibilidade; daí se poderá tirar a conclusão de como é difícil caminhar, como bispo, os justos Caminhos de Deus, porquanto se é fiscalizado por uma legião de inspetores secretos. Isto naturalmente não pode to- lher a vontade livre nem de um bispo no entanto dificulta a ação e até mesmo a torna impraticável, fato que deve ser do conhecimento do Senhor.
Aliás, seria justo e mesmo necessário tornar-se o homem mártir, por causa da Palavra de Deus; mas qual seria o resultado? Basta pronun- ciar-se uma só palavra a respeito do abuso feito à religião mais santa, que imediatamente se é levado à prisão com ordem de silêncio eterno, ou então a criatura desaparece do cenário.
Se as experiências provam que nada se consegue num mundo intei- ramente errado, é quase perdoável trair-se o mesmo. Deus certamente procura transmitir a felicidade ao homem. Mas se este prefere o inferno ao Céu, o Onipotente não o impedirá na queda eterna. De maneira al- guma pretendo amenizar a minha culpa, apenas afirmo que o homem é antes um pecador por obrigação do que por livre e espontânea vontade, e Deus há de considerar isto.
Não me tomes a mal, pois falo segundo meu entendimento. Mas creio que possas elucidar-me, segundo tua sabedoria realmente divina, para evitar meu ingresso no inferno. Além disto te asseguro ter perdoa- do o meu antigo guia. Aborreceu-me porque até então não conseguira descobrir o seu plano para com minha pessoa. Se agora viesse, haveria de beijá-lo como um filho faria ao pai ausente por muito tempo.”
SERMÃOFEITOPELOBARQUEIRO DIVINO
Digo Eu, na pessoa do barqueiro: “Presta atenção às Minhas Pala- vras! Conheço a situação do mundo de todos os tempos. Fosse ele me- nos mau, não teria crucificado o Senhor da Glória. Por isto se lhe aplica o que consta no Evangelho: Nestes dias, quer dizer, nos dias do mundo,
o Reino Celeste necessita de violência e dele se apoderarão somente aqueles que o conquistarem com violência. Tal força moral nunca foi por ti empregada no Reino do Céu, razão por que não deves acusar tanto o mundo, que preferias ao espírito. Neste ponto foste oponente de qualquer esclarecimento espiritual e um inimigo dos protestantes, perseguindo-os com ódio e raiva pela suposta heresia.
Teu lema particular foi o seguinte: ‘O mundo deve ser traído, sem exceção’. No entanto afirmo ser ele, em parte alguma, pior do que em tua esfera e de teus afins. Sempre fostes os piores inimigos da Luz e houve épocas em que erigistes fogueiras aos mais esclarecidos.
Não foram os soberanos do mundo a disseminarem a treva entre os povos, e sim, vós, a excomungá-los quando se atreviam a externar pensamentos mais evoluídos, que não condiziam com vosso despotis-
mo tenebroso e tirânico. Se existem regentes ignorantes, são eles vossa própria obra, porquanto fostes os próprios culpados de sua cegueira.
Se com isto se tornava maior a dificuldade religiosa em um país desconhecedor da Verdade, não havendo meio para introduzir a pura Doutrina de Deus, somente vós fostes os responsáveis. Quem vos man- dou erigir templos e altares pagãos, e o culto em latim? Quem inventou as indulgências, quem baniu a Escritura Sagrada, estabelecendo em seu lugar as mais absurdas lendas dos supostos santos, as relíquias e milhões de santinhos e imagens? Regente algum, senão vós mesmos! Em todos os tempos fostes os obreiros da mais densa treva para conquistar a to- dos, grandes e pequenos.
Os soberanos são geralmente piedosos e obedientes à vossa doutri- na. Mas qual foi tua fé, apesar de versado na Escritura? A quem obede- cias? Quais foram as preces feitas por ti, sem remuneração? Porventura podes aguardar por parte de Deus qualquer consideração, uma vez que não foi o mundo que te criou, mas sim, tu o fizeste pior do que era, dentro de teu âmbito?
Quanto ao martírio enunciado por ti, terias sido capaz de te deixa- res pregar mil vezes à cruz por amor dominador à treva, do que apenas uma vez em benefício da Luz de Deus. Assim, pouco terias que recear por parte dos regentes e muito menos de seus inspetores, caso tivesses revelado a Verdade; pois sei perfeitamente como te opunhas aos sobe- ranos quando reagiam às tuas exigências contrárias a qualquer valor humanitário.
Conheço poucos exemplos em que regentes tivessem aprisionado ou expedido para um mundo melhor, sacerdotes bem orientados e obe- dientes à Lei de Deus. Ao passo que sei de muitos aos quais aplicastes tais medidas tão logo ousavam viver segundo a Palavra de Deus.
Quem fosse precavido qual serpente e meigo qual pomba, palmi- lhando os Caminhos do Senhor, porventura não receberia ajuda de Deus que, segundo tua opinião, estaria mais fraco do que ao tempo dos apóstolos?
Além de Lutero, poderia enumerar muitos irmãos que arriscaram confessar a Palavra de Deus em época de grande ignorância, sem que
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os soberanos os tivesse mandado decapitar. Sofria apenas aquele, de espírito mais esclarecido, que caísse em vossas mãos.
Espero que compreendas que aqui, onde rege apenas a pura Ver- dade em união com o Amor Eterno nada conseguirás com todas as tuas desculpas, senão pela autoacusação. Convirás que Deus conhece o mundo, até as suas mais diminutas fibras, de modo mais perfeito que tu. Portanto seria o maior absurdo quereres descrevê-lo para Ele, de modo a te desculpares, muito embora tenhas afirmado nada alegares para tal fim, apenas deveria o Senhor ter alguma consideração com tua pessoa.
A medida pela qual mereces consideração como prisioneiro do mundo, não te dará vantagem, enquanto tua acusação será bem pesada. O que o mundo te deve perante Deus será liquidado com uma conta pequena; o teu débito não terminará tão breve, a não ser que confesses jamais seres capaz de reparares o mal aplicado — porque sempre foste mau, mas unicamente o Senhor o poderá perdoando-te a culpa.
Se bem que sintas grande pavor diante do inferno, porquanto te julgas merecedor do mesmo, e penses que Deus te atirará ao abismo como se joga uma pedra, não refletes que temes apenas o inferno ima- ginado por ti, enquanto aprecias o verdadeiro, não querendo deixá-lo realmente.
Tudo que até hoje pensaste foi mais ou menos infernal, pois quan- do transpira a menor fagulha de amor-próprio, convencimento e acu- sações, o inferno está em plena atividade, inclusive onde a tendência carnal ainda não foi banida de modo próprio. Tudo isto faz parte de tua índole, portanto ainda te encontras bem dentro do inferno. Vês como é fútil teu temor?
O Senhor, que Se apiada de todos os seres, quer salvar-te, e não condenar-te, segundo tua máxima católica. Não deves, pois, afirmar que Ele abandona a criatura disposta a ingressar no inferno, com as seguintes palavras: ‘Se assim quiseres, assim será!’ Tua afirmação é real- mente injuriosa! Tu mesmo não pretendes renunciar ao inferno; quan- do terias ouvido de Deus tal sentença? Reflete sobre Minhas Palavras e
procura emendar-te; então guiarei esse barquinho de modo a te levar ao Reino da Vida. Amém!”
DECISÃODOBISPO MARTIM
Retruca o bispo: “Bom amigo, sou obrigado a confessar meus gran- des erros, não havendo a menor desculpa para suavizá-los. Sou o úni- co responsável pela minha situação aflitiva. Desejava apenas saber para onde me levarás e qual o meu destino eterno!”
Respondo: “Pergunta ao teu coração, ao teu amor: ‘Qual é o teu desejo?’ Quando teu amor tiver respondido decisivamente, tu mesmo terás determinado a tua sorte, pois todos serão julgados segundo seu sentimento, ou seja, seu amor!”
Obtempera o bispo: “Só mesmo Deus sabe para onde irei se for jul- gado segundo meu amor. No meu íntimo dá-se coisa semelhante a uma mulher vaidosa querendo escolher um tecido diante de um montão de fazendas, sem saber definir-se.
Pelo meu sentimento mais íntimo desejo estar com Deus, meu Criador; a isto se opõem os meus inúmeros e grandes pecados e percebo a impossibilidade de tal realização.
Em seguida lembro-me das ovelhas maravilhosas, pois não seria de modo algum desagradável viver-se com uma delas, para toda a eterni- dade. Neste instante, minha consciência protesta dizendo: Tal ventura não te aproximaria de Deus, mas afastar-te-ia cada vez mais do Pai!, e assim, também este pensamento amoroso cai no fundo deste mar.
Surge então outro pensamento. Desejava viver num cantinho do mundo dos espíritos como camponês pacato e receber a imensa Graça de ver a Jesus, ao menos por alguns instantes! Imediatamente sou ad- vertido pela consciência que afirma a falta de mérito para tanto, e volto ao meu nada crivado de todos os pecados!
Apenas um pensamento parece-me menos difícil realizar, tornan- do-se ideia preferida, isto é, ficar em tua companhia para toda a eter- nidade. Conquanto não suportasse os que me diziam a verdade nua e crua, foi justamente tua atitude suave e meiga a me apontar os meus
pecados qual juiz muito sábio, que me despertou o amor para contigo. Essa ideia principal será por mim alimentada para sempre.”
Digo Eu: “Bem, se este for teu amor principal, do qual precisarás te convencer mais profundamente, poderá ser praticado incontinenti. Estamos nos aproximando da margem próxima de minha cabana. Sabes que sou barqueiro na acepção da palavra. Participarás dessa tarefa e a recompensa do esforço empregado será o pequeno terreno que havere- mos de preparar nas horas vagas. Olha para trás que verás alguém a nos acompanhar fielmente.”
Pela primeira vez durante a viagem marítima, o bispo volta o olhar para trás e descobre o anjo Pedro, ao qual abraça e pede perdão pelas in- júrias cometidas. Pedro retribui a manifestação amorosa e cumprimenta o bispo pela feliz escolha de seu coração. O barco atinge a margem, onde é amarrado, e nós três nos dirigimos à cabana.
NOVATAREFADE MARTIM
Até então havia escuridão pronunciada; dentro da cabana, porém, uma agradável penumbra dissipa gradualmente a treva — naturalmente para os olhos do bispo, porquanto para os Meus e os de Pedro se mani- festa o dia mais radioso e eterno.
O fenômeno crepuscular diante dos olhos do bispo se prende ao nascimento do amor em seu íntimo, após ter expulso grande quan- tidade de detritos materiais, e ainda o faz com Minha Graça. É fácil imaginar-se sua fome do Meu Pão da Vida, jamais saboreado na Terra e durante esses sete dias no mundo espiritual, tempo quase inimaginável para sua impressão. Deixamo-lo saciar-se com vários pedaços de pão, de sorte que diz, emocionado até as lágrimas: “Ó amigo e patrão eterno a partir desse momento, aceita meu agradecimento por este conforto, e transmite-o igualmente ao Senhor, pois minha língua não merece ex- ternar uma prece de gratidão.
Foi Ele Quem permitiu que me salvasses, a ponto de me sentir renascer. Eis que também se faz claridade como num dia primaveril quando surge o Sol. Que maravilha! Como esteja satisfeito, peço a am-
bos que me deem qualquer trabalho para poder expressar o meu grande afeto pelo bem que me fizeram.”
Digo Eu: “Vamos ao ar livre, onde encontraremos trabalho de so- bra. Eis ali as redes de pescador, que devem ser trazidas ao barco, por- quanto o mar está calmo, dando oportunidade para boa pescaria.”
Exclama o bispo, satisfeito: “Ah, que trabalho agradável, deste modo aprecio o mar! Quando esperava meu aniquilamento em sua margem movediça, seu aspecto era horrendo! Porventura existem peixes no mundo espiritual? Nunca poderia imaginar tal coisa!”
Respondo Eu: “E de que espécies! Hás de passar por estranhas sensações enquanto tirares todos os peixes desse mar. Não desanimes, pois tudo será resolvido com paciência, coragem e firmeza positivas. Surgirão vários perigos e sentirás não raro tua perdição. Então é chega- do o momento de olhares para Mim procurando imitar-Me, que tudo será finalizado para nossa vantagem. Solta o barco, que seguiremos para alto-mar.”
Durante o percurso, o bispo exclama: “Caramba! Pelo negrume de suas águas, este mar deve ser horrivelmente profundo! Qual seria nossa situação, caso soçobrássemos?”
A PESCA
Digo Eu: “Amigo, nada temas. Encontramo-nos no mar por um motivo bom e não vem ao caso sua profundidade. Atenção! Naquela onda se oculta um grande peixe! Atirai a rede!”
Pedro e o bispo jogam a rede que, nem bem se estende na água, prende um monstruoso peixe que os arrasta com fúria tremenda, pois não consegue furar o arrastão. Apavorado, o bispo grita: “Por Deus, que será de nós? Nem a metade da cabeça do monstro já enche a rede e o corpo é quase três vezes maior que nosso barco! Ainda que consigamos abatê-lo, onde o deixaremos? Está numa crescente fúria, arrastando nossa embarcação!”
Diz Pedro: “Não sejas pueril! Deixa o peixe nadar à vontade. En- quanto tiver a cabeça na rede, ele não afunda. Tão logo se cansar, será
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fácil levá-lo para a margem. Eis o que acaba de fazer, pois se dirige à margem. Porventura esqueceste o que disse nosso Amado Mestre? En- quanto ele estiver calmo, também o seremos. Quando falar: Segui-Me, mãos à obra!, devemos agir. É Ele o melhor mestre de pescaria. Atenção, nossa ação será exigida daqui a pouco!”
Eis que digo: “Pedro, arremessa o grande gancho para dentro da guelra, e tu, Martim, salta à praia e amarra o cordame ao tronco, e volta à embarcação para tomares o segundo gancho e ajudares a Pedro. O monstro marinho atingiu o cansaço necessário para podermos domi- ná-lo. Rápido!”
Isto feito, o Senhor prossegue: “Perto da cabana se acha uma balroa pesada e pontuda, presa a um grande cordame. Ide apanhá-la, enquanto levarei o peixe para a margem, com a ajuda dos ganchos, quando deveis atirar-lhe a balroa na cabeça. Não te assustes, Martim, quando ele fizer movimentos de reação, que realmente são assustadores. Coragem e per- sistência e tudo correrá bem!”
No momento em que a balroa penetra na carne do monstro, ele começa — somente aos olhos de Martim — a se torcer e empinar, impelindo ondas fortíssimas para a margem, cobrindo o bispo que se aflige, principalmente porque nessa altura, a guelra se aproxima assus- tadoramente querendo abocanhá-lo. Seu pavor é tremendo, mais por Mim do que por sua causa, pois o peixe arremessara o barco acima da água para depois atirá-lo para baixo, com sua cauda poderosa.
Pedro, então, lhe diz: “Segura bem, com todas as tuas forças, do contrário o monstro nos arrastará para o fundo do mar, onde passare- mos bem mal!”
Retruca o bispo: “Se eu estivesse ao menos atrás de ti! Ele quer por força abocanhar-me, e nosso Mestre o impele constantemente para mim! Este trabalho seria pesado até mesmo para escravos de galera! Brrr! Ainda hei de me afogar, se essa fera continuar a me cuspir! A água é tão gelada que tenho a impressão de me encontrar no Polo Norte. Eis que vem de novo para me abocanhar!”
Diz Pedro: “Toma da forquilha e espeta-a na guelra!” Responde ele: “Ótimo! Foi boa a tua ideia, e poderias tê-la externado mais cedo, evitando que eu ficasse tão encharcado!”
Digo Eu, de bordo: “Assim está bem. Amarrai o cordame num tronco e voltai ao barco. Este monstro não nos fugirá. Vamos continuar a tarefa, talvez consigamos outra presa.”
Muito embora estivesse satisfeito com o êxito, o bispo supõe ter feito o bastante. No entanto, sobe ao barco, em companhia de Pedro. Virando-Me para Martim, digo: “Amigo, deves habituar-te a ser in- cansável, pois quem inicia uma tarefa, de má vontade, não será feliz. Paciência, coragem e persistência, que a alegria virá apenas quando ter- minado o trabalho.
No mundo espiritual não predomina o dito: ‘Que repousem em paz!’, e sim, ‘Trabalhai enquanto é dia!’. Basta o repouso noturno no qual ninguém pode trabalhar. Enquanto a noite predominava, não ti- nhas ocupação. Uma vez que surgiu o dia, tens que trabalhar, pois o Reino de Deus é de trabalho e não de preguiçosos a rezarem o breviário. Olhai em direção à meia-noite, onde ainda existe um forte crepúsculo sobre a água, em agitação. Não havendo ventania, tal movimentação deve ser produzida por qualquer peixe. Vamos em frente, que valerá nosso esforço!”
Obtempera o Bispo Martim: “Para que finalidade existem no Rei- no dos espíritos, peixes tão descomunais? Rege aqui o jejum, no qual só se pode comer peixes, ou talvez sejam exportados alhures?”
Retruco: “Não há tempo para conversas. Eis que vem uma hidra de dez cabeças, pois já nos avistou. Cada um de vós deve pegar uma espada. Pedro, sabes como se capturam tais monstros; tu, Martim, faze o que ele fizer. Tão logo o monstro deitar seus tentáculos por cima do barco, deveis cortá-los imediatamente. O resto será feito por Mim.”
Pedro decepa com sua forte espada uma cabeça após outra, do cor- po negro e escamoso, ou melhor, do pescoço; Martim, apavorado, não sabe por onde começar, porque quase nada enxerga, já que mantém os olhos quase fechados.
Neste instante Pedro acaba de cortar a décima cabeça, e torrentes de sangue se precipitam no mar em fúria, por causa da forte reação do monstro que, aos olhos de Martim, mede cento e onze toesas de circun- ferência. Virando-Me para ambos, prossigo: “Pedro, deposita a espada no seu devido lugar e passa-Me a grande forquilha que arremessarei no ventre do monstro, para puxá-lo até aqui. Tu, Martim, toma do leme, mete-o no sétimo grau do Levante, que dentro em pouco estaremos à margem com esta presa importante.”
Quando o barco se aproxima da margem, Martim sonda o terreno para saber da situação do peixe anteriormente pescado. Como não en- contra vestígio dele, o bispo observa: “Que vem a ser isto? Enquanto a hidra quase esgotou nossas energias, o peixe sumiu! Tanto esforço nos custou, em vão. A hidra terá que ser amarrada mais fortemente, do contrário fugirá se formos em busca de outro espécime.”
Diz Pedro: “Não te preocupes, o primeiro monstro já foi cuidado, havendo aqui outros trabalhadores cônscios de sua tarefa tão logo tra- zemos uma presa. Salta do barco e amarra-o; eu e o Mestre levaremos o monstro à praia.”
Algo perplexo, Martim obedece, enquanto fazemos aquilo que fora dito por Pedro. A segunda presa estando segura, digo: “Terminamos a tarefa principal. Nessas águas não mais existem espécimes semelhantes. Vamos ao trabalho mais fácil, isto é, pescaremos os peixes menores, para jogá-los à praia.”
Assim foi. Cada redada vem cheia de vários tipos de peixes que, mal tocam a margem, desaparecem.
EXPLICAÇÃOESPIRITUALDA PESCA
Quanto mais se estende essa pesca peculiar, maior se torna o abor- recimento de Martim, que diz de si para consigo: “Que trabalho mais tolo! Sinto-me exausto de pescar e atirar os peixes à praia, que somem qual manteiga ao Sol. Eis nova redada de meu colega, da qual nada sobra neste reino do ‘imperecível’!
Já me aprontava para saborear um esturjão ou salmão, mas neste ar espiritual fortemente consumidor, que muito se agrada dos peixes, o resultado será nulo. Não sinto propriamente fome, mas um apetite por um peixe cozido, que me dá água na boca.
Aqui, a zona é mil vezes melhor que a antiga, e a pesca vaporosa não será tão desagradável para toda eternidade. Estranha é a luz mati- nal, sem que surja o Sol. Esse mundo é realmente tolo. Somente os dois amigos são sábios nas expressões, tanto quanto esdrúxulos nas ações. Mas que posso fazer, senão aguardar algo melhor!”
Diz Pedro: “Que estás a monologar? Estás cansado?” Responde o outro: “Cansado propriamente, não. Confesso ser tal trabalho algo ridí- culo, muito embora esteja convencido do teu profundo conhecimento e de nosso Mestre. Falta apenas esclarecer-me a finalidade de todo esse trabalho.”
Conjectura Pedro: “Meu amigo, no tempo em que eras bispo na Terra, quanto trabalho inútil fizeste? Porventura alguém teria permissão de indagar da utilidade do batismo, dos sinos, da consagração, do órgão e dos vários paramentos eclesiásticos?
Qual seria a finalidade e força do manto, da estola, da alva, etc.? Que força poderia residir nos diversos hábitos eclesiásticos? Por que seria uma imagem de Maria mais poderosa que outra? Por que consi- deráveis Floriano para o fogo João Nepomuceno para a água, se ambos foram atirados nos rios Danúbio e Moldava?
Por que não Se encontra Jesus entre os quatorze socorristas, e por que se pede primeiro a Misericórdia a Deus, na santa ladainha, se os pe- nitentes insistem em se dirigir aos santos? Talvez pretendam convencer Deus a ouvir os santos?
Por que se clama no rosário, dez vezes por Maria e por Deus uma só vez? Por que se encontra tanta abundância de crucifixos, grandes, pequenos, de madeira e de metal, e o dobro das imagens de Maria? Qual seria a diferença para o espírito entre a missa solene e a comum? Quando teria o Cristo organizado o sacrifício sem sangue, a preço tão elevado? Que constituição teria o Coração de Deus, por sentir Agrado em ver Seu Filho ser crucificado milhões de vezes por dia?
Vê, meu amigo, milhares de tais trabalhos fúteis e sem sentido executavas na Terra, sem fé e curiosidade para indagares pelo porquê. Alegarás que foste pago. Muito bem, aqui também não hás de trabalhar de graça. Que mais queres? Afirmo-te que este trabalho não é tão fútil quanto o teu na Terra. Por isto não deves murmurar em tuas barbas, e sim, expressar abertamente o que te preocupa, que haveremos de fina- lizar nossa pesca.
Enquanto fizeres papel de mercador de segredos católicos, levare- mos muito tempo e o resultado será nulo, como nosso ensinamento em teu coração. Compreende e prossegue na pesca, sem esmorecer.”
CONSTITUIÇÃODA ALMA
O bispo age segundo o conselho de Pedro e diz: “Agora me sinto melhor, pois sei ao menos por alto, a finalidade de minha ação aparen- temente inútil. Segundo deduzo de tuas palavras, os peixes representam minhas tolices, grandes e pequenas. A maneira pela qual minhas patifa- rias se transformaram em peixes, não consigo atinar.
Este mar deve se originar no Dilúvio, cujas águas receberam tam- bém grande quantidade de pecados mortais, onde se achavam igual- mente os meus, antecipadamente. É a única maneira de assimilar essa questão. Mas porque se teriam transformado em peixes, escapa ao meu conhecimento, e somente Deus, que reservou essas águas no mundo espiritual, conhecerá o motivo exato. Por isto não hei de pesquisar mais, e sim, continuarei pescando, a fim de me libertar de minha parte pecaminosa.”
Digo Eu: “Muito bem, meu amigo, sê diligente. Não há árvore que tombe de um só golpe; mas com paciência, tudo será vencido. Não se trata das águas do Dilúvio, tampouco são os peixes teus pecados anteci- pados, e sim, os realmente praticados em vida.
O motivo de se apresentarem em forma de peixes e monstros mari- nhos, pequenos e grandes, se baseia no seguinte: Cada pecado provoca uma incapacidade da alma, que dilacera os inúmeros estados primitivos
originários da água, para se concatenarem em perfeito equilíbrio, à Se- melhança Divina, no fogo do Amor de Deus no coração humano.
Tua alma te foi dada perfeita no corpo infantil. Como não vives- te dentro da Ordem de Deus, mas sim, apenas dentro da tendência animal de onde a alma fora formada no início, muito perdeste de sua constituição, sendo preciso que levantemos essa perda, das correntes de teus pecados, para completarmos tua psique, plasticamente. Isto feito, poderemos cuidar de teu espírito e da união dele contigo. Sê diligente e paciente, que compreenderás a função de um verdadeiro barqueiro.
Esses animais aquáticos representam tuas ações, puramente peca- minosas, que desaparecem tão logo sejam levadas à Luz de Deus, repe- tindo-se o que consta: O Reino de Deus é comparável a um pescador que fez boa redada. Ao puxar a rede das águas, ele conservou apenas os bons, mandando atirar ao mar os imprestáveis.
Fizemos surgir muitas das tuas ações como peixes variados, que não têm subsistência na Luz de Deus, pois foram assimilados por ti, em benefício de tua alma, para alcançar de novo sua forma completa. Quando hão de surgir em tuas águas ações concretas? Trata que teu co- ração comece a vibrar; desperta para o amor! Enquanto não sentires o amor para Deus, haverá muito trabalho inútil para tuas mãos. Lembra-
-te disso e sê cônscio de sua finalidade, que trabalharás com remorso, humildade e paciência justas a fim de atingires a meta verdadeira e, por ela, a percepção clara e o julgamento de ti próprio — assim entrarás na Graça! Amém.”
Enquanto trabalha, o bispo Martim medita; após certo tempo, vi- ra-se de novo para Mim: “Caro Mestre, que consegues vasculhar minha vida terrena: teu trato parece muito amável, mas na reprimenda és mais impiedoso que a verdade nua e crua!
É bem verdade que minhas ações devem ser um horror para Deus porque sempre agi erradamente e até mesmo fui obrigado para tanto, de sorte que nada de bom produzi. Mas, deves convir que o homem, não sendo sua própria obra, é dotado das mais estranhas inclinações e não lhe cabe culpa nos seus defeitos.
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Fosse eu mesmo o meu criador e educador, seria responsável pelas minhas ações, podendo ser chamado à responsabilidade e condenado com justiça. Condenar tudo que fiz e dar às minhas falhas o carim- bo de pecados mortais não me parece propriamente injusto, mas bas- tante cruel.
Se o filho de um salteador imitar o genitor por jamais ter visto outra coisa senão roubo e assassínio, poderia seu modo de agir ser classificado como pecado? Pode o tigre ser condenado em virtude de sua crueldade sanguinária? Quem deu à víbora e à serpente o veneno mortal?
Que culpa tem o antropófago de sua ação voraz? Por que não apa- rece um anjo ou outro espírito do Céu para ensinar-lhe algo melhor? Teria Deus realmente criado bilhões de criaturas apenas para a conde- nação, ação realmente tirânica?”
Digo Eu: “Amigo, és injusto com tua objeção. Não percebes que não deixamos que faças esse trabalho sozinho porque de há muito co- nheço teus princípios estoicos? A responsabilidade de tua educação foi assumida por Pedro; quanto àquilo de que culpas o Criador, Eu o tomei a Mim.
Acreditas realmente seres inocente com referência à tua parte? Por- ventura não aprendeste os Mandamentos de Deus, inclusive as leis ter- renas dentro da ordem comum? Não te lembras das ocasiões em que pretendias cometer um pecado? Conquanto a consciência te advertisse, praticavas o mal. Foram Deus e a educação deficiente culpados disso?
Quando mostravas um coração duro com relação aos pobres, mui- to embora fossem teus genitores verdadeiros exemplos de generosidade, foi a educação responsável por isto?
Se teu orgulho cresceu como condor, conquanto teus pais fossem humildes de coração conforme exige a Palavra de Deus, quem teria a culpa: Deus — o Criador — ou tua educação? Vês como és injusto para com Ele? Reconhece tua culpa e sê humilde; com todas as tuas desculpas nada conseguirás junto a Deus, pois todos os teus cabelos são pesados. Ama-O acima de tudo e a teus irmãos, que hás de encontrar a Justiça verdadeira! Amém!”
Retruca o bispo: “Seria justo amar-se a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo, se ao menos soubesse como agir. Como amá-los com amor puro? De que modo despertá-lo? Conheço a amiza- de e o amor para com o sexo oposto, inclusive o sentimento interesseiro dos filhos. Desconheço o amor paternal. Poderia o Amor de Deus as- semelhar-se a uma dessas qualidades de afeto baseadas em impurezas, porque dirigidas a criaturas?
Afirmo mesmo que o homem não pode amar a Deus, assim como um relógio não poderia amar seu autor. Para tanto seria preciso a mais perfeita liberdade, da qual apenas os arcanjos podem desfrutar a fim de amarem Deus em Sua Glória. Onde se encontra o homem em seu grau de inferioridade e onde a liberdade mais completa?
Deus deveria permitir que O amássemos como filhos a um pai, um jovem à sua eleita, um irmão ao outro irmão, ou um pobre ao seu benfeitor desinteressado. Falta-nos precisamente o objeto visível, até mesmo a capacidade de imaginarmos Tal Objeto sublime que é Deus. Que aspecto tem Ele? Quem teria falado com Ele? Como amar-se uma entidade da qual não se pode fazer a menor ideia, um Ser que não existe ao menos historicamente, mas apenas pelo misticismo poético salpica- do com floreados de moral judaica?”
Retruco: “Com esses absurdos não conseguirás lavar nem um fio de tua roupa imunda. Tinhas objetos de sobra, como sejam: pobres em quantidade, viúvas, órfãos e outros necessitados. Por que não os amaste, embora tivesses amor suficiente para amar-te acima de tudo?
Estimavas os teus pais somente pelos presentes que te davam; se eram reduzidos, desejavas sua morte para poder herdar deles. Se os clé- rigos subordinados ao teu mando enviavam grandes rendas de seu bis- pado, tu os consideravas; não agindo assim, transformavas-te em tirano inclemente.
As ovelhas ricas e generosas eram abençoadas por ti; as pobres eram consideradas com a promessa do inferno. Bem que amavas as viúvas quando jovens, bonitas e ricas, prestando-se para teu prazer; como tam-
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bém apreciavas órfãos entre dezesseis e vinte anos caso fossem atraentes. É realmente impossível chegar-se à percepção espiritual e ao amor mais sublime na consideração de tais objetos.
Possuías o Evangelho, a sublime Doutrina de Jesus Cristo, como norma de vida; por que não procuraste, ao menos uma vez na vida, pôr em prática um só texto para descobrires Quem fora seu Autor? Não consta que: Quem ouve o Meu Verbo e o pratica ama-Me verdadeira- mente, e Eu o visitarei, revelando-Me Pessoalmente?!
Se tivesses feito essa experiência, terias a convicção de ser o Verbo de Deus e, com isto, verias a objetividade do Senhor, como ocorreu a muitos que eram inferiores a ti. Além disso consta: Procurai, que haveis de encontrar; pedi, que recebereis, e batei e abrir-se-vos-á! — Porventu- ra fizeste algo semelhante?
Assim sendo, nunca podias ter chegado a uma percepção espiritual de Deus e se torna irrisório não encontrares amor para com Ele por não Se ter apresentado com objetividade. Pergunto-te sob que imagem poderias ter tomado posse de Deus com teu amor imundo e que tivesse despertado algumas fagulhas de teu coração de pedra para vivificar tal imagem? Calas-te, mas Eu te farei a demonstração.
Deus deveria ser do sexo feminino, conferir-te grande poder e pompa, permitir que saciasses teus instintos sempre com a mesma força viril, em suma, outorgar-te todas as alegrias imagináveis e talvez passar às tuas mãos a Natureza Divina, de sorte que pudesses agir a bel prazer. Sob tal aspecto, a Divindade teria sido de teu agrado; sob a Ima- gem de Jesus crucificado, a ideia da Divindade te era insuportável e re- pugnante. Em tais circunstâncias, és de fato obrigado a perguntar como se deve amar Deus com amor puro. Não querias conhecê-Lo, tampouco amá-Lo; por isto deixavas de agir, com medo que algum espírito bom te induzisse à humildade, ao amor ao próximo e ao verdadeiro conhe- cimento e amor de Deus. Se não consegues amar teus irmãos que vês, como poderias amar Deus a Quem não desejas ver? Eu e Pedro somos teus melhores amigos e irmãos, e tu nos desprezas constantemente em teu coração por querermos ajudar-te, percebendo teu íntimo. Modifica
o teu coração e começa a nos amar como benfeitores, que hás de encon- trar o Caminho para Deus, sem tua filosofia tola. Assim seja!”
Diz o bispo: “Tens razão, eu vos amo e considero em virtude de vossa sabedoria profunda, ligada à força, amor, paciência e persistência. Se ao menos me falasses sem apontar constantemente o meu estado mi- serável, eu estaria deveras inclinado para ti. Tua verbosidade penetrante me enche de pavor, em vez de amor para contigo e teu amigo Pedro. Expressa-te com moderação, que meu amor será mais forte!”
Digo Eu: “Amigo, como podes falar de algo que te concedo na medida plena, sem ser convidado por ti? Julgas que um lisonjeador com receio de falar a verdade seria teu amigo? Em ti não existe um átomo de bondade. Nenhuma caridade verdadeira pode ser creditada em tua conta, e se em vida algo praticavas em tal sentido, agias somente por política, na qual se ocultava um plano de domínio.
Se alguém recebesse uma esmola, todos tinham de ser informados a respeito, e um bom conselho transmitido a um fiel era dado de tal modo que o resultado fosse creditado à tua pessoa. Se te apresentavas afável, visavas apenas o aplauso dos presentes. Quando era meiga a tua voz, teu fito era o mesmo de uma sereia com seu canto sedutor e de uma hiena a chorar no esconderijo. Em todas as épocas eras uma fera voraz. Em suma, te encontravas inteiramente dentro do inferno. Deus,
o Senhor, apiedou-Se de ti querendo libertar-te de todas as algemas infernais. Seria isto possível, sem a demonstração de tua índole?
Nunca viste como o relojoeiro conserta um relógio? Ele desmancha a máquina em suas partículas, examina, limpa e conserta os defeitos, usa a lima para alisar as asperezas, completa as falhas para no final, recompor a máquina para sua finalidade. Julgas que ela poderia voltar a funcionar se o relojoeiro apenas a lustrasse, deixando o maquinismo defeituoso?
Também tu és uma obra na qual nenhuma mola se encontra em ordem. Tratando-se de tua melhora, tens que ser desmembrado em tua natureza pervertida, trazendo à luz da Verdade incorrupta teus defei- tos, para tua própria análise. Só então, após o reconhecimento de teus erros, podem ser usadas lima, lixa e pinça, e finalmente uma escova de
polimento para formar de ti um homem dentro da Ordem de Deus, inteiramente novo. O atual é completamente imprestável! Se este é o trabalho contigo, não deveria Eu merecer teu amor?”
ODESPERTARDO AMOR
Diz o bispo Martim: “Sim, tens plena razão. Agora se me abrem os olhos e sinto verdadeiro amor para contigo; sim, amo-te de todo coração! Deixa que te abrace, pois percebo quão tolo e estúpido fui, enquanto tinhas apenas as melhores intenções para comigo. Perdoa-me, também tu, meu ex-guia, minha tremenda cegueira!
Mas... o que é isto? Onde está o mar, nossa embarcação? Estamos em terreno seco e maravilhoso! Ah, essas campinas verdejantes, o jar- dim estupendo, e lá onde se encontrava a cabana existe um palácio de suntuosidade jamais vista! Como aconteceu isto?”
Respondo: “Foi o efeito de uma pequena fagulha de amor justo a Mim e ao próximo, que secou o mar de teus pecados com todas as más consequências, e transformou o lodo de teu coração em solo fértil, mu- dando a cabana miserável de teus conhecimentos em palácio.
Conquanto tenha aspecto formidável, não se descobre fruto ma- duro e saboroso, pois semelha-se à figueira sem fruto na época em que o Senhor sentia fome. Por isto, urge plena ação e deixar que o amor desperto aja livremente, e essas árvores hão de frutificar. Assim como na Terra tudo cresce e amadurece ao calor do Sol, aqui se repete o fe- nômeno na Luz e no calor do coração humano, que é o Sol espiritual deste mundo.
Dentro em breve se apresentarão muitas oportunidades para ocu- pares teu coração, dilatar e fortificar seu poder nesta esfera nova e mais propícia. Quanto mais oportunidades forem aproveitadas, tanto maior a bênção que se apresentará nesta região. Entremos no palácio, onde estudaremos as minúcias desta criação, e onde igualmente encontrarás ocasiões para agires pelo sentimento. Amém.”
Entramos no palácio, cujo interior nem de longe corresponde ao aspecto deslumbrante do exterior, de sorte que o bispo não se contém e
diz: “Quem isto fez não calculou bem, pois dá a impressão que a cons- trução não está completa, sendo apenas externamente ornamentada. Confesso preferir mil vezes a antiga cabana! Que imundície horrorosa! Quase que não suporto mais! Não seria capaz de um simples pensamen- to bom nesses recintos sujos! Vamos lá fora, pois tenho especial aversão à sujeira em quartos!”
Intervenho: “Vejo não te agradar o interior deste palácio; tampou- co provoca agrado ao Senhor o interior de teu coração, que corresponde a este ambiente imundo! Certamente ouviste falar das doze tarefas pe- sadas de que fora incumbido o herói Hércules, entre as quais se encon- trava a limpeza de uma estrebaria. Que fez ele? Guiou o rio através do imenso estábulo, tornando-o limpo em pouco tempo.
Assim, deves também levar uma torrente de amor para o antigo estábulo de teu coração, que rapidamente acabará com aquelas imundí- cies. Quando ainda nos encontrávamos no mar surgido da própria tor- rente pecaminosa, bastou uma fagulha de verdadeiro amor para secá-lo e transformar o lodo em solo fértil.
Essa fagulha, criada por Minhas Palavras, quer dizer, como recurso externo, tocou apenas o exterior de teu coração, purificando-o exter- namente. O íntimo continuou o mesmo, um verdadeiro estábulo de Aúgias, que só pode ser limpo por ti mesmo, como já disse, por uma torrente de amor para conosco, teus irmãos e amigos, inclusive para aqueles que dentro em breve hão de reclamar o teu coração. Olha por esta janela. Que percebes a certa distância, em direção ao Norte?”
PRIMEIRAOBRADE CARIDADE
Responde o bispo Martim: “Vejo várias pessoas em andrajos, de passos claudicantes. Dão a impressão de desabrigados, esfaimados e tristes! Sinto realmente pena desses pobres andarilhos! Permite que os acolha e trate deles da melhor maneira possível! Muito embora esses quartos estejam imundos, serão mais úteis do que aquelas trilhas ge- ladas e acidentadas que dão para aquela direção, conhecida de mim e cada vez mais perigosa.”
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Digo Eu: “Muito bem, faze o que manda o teu coração! Não te deixes desanimar ao perceberes que tais viandantes são luteranos e não católicos!”
Responde ele: “Isto é realmente antipático; mas agora já não vem ao caso se são adeptos de Lutero, Maomé, Moysés ou Confúcio! São humanos e necessitam de socorro!”
Assim, Martim, de veste camponesa, se despede de nós corre atrás daquele grupo, chamando-o para que esperasse por ele. Os viandantes param a fim de saber a intenção do bispo, pois também eles acabavam de chegar da Terra, sem orientação.
Ele os aborda com amabilidade, dizendo: “Amigos, para onde pre- tendeis marchar? Por amor a Deus, segui-me, pois aquela direção dá para um abismo que vos tragaria para sempre! Moro aqui há algum tempo, com dois amigos, e conheço essa região, podendo avisar-vos.
Olhai em direção ao Sul, onde avistareis um palácio que por fora é mais belo que por dentro. Mas, não importa, havemos de encontrar um teto e um pedaço de pão, perspectiva mais favorável do que esse caminho perigoso. Vinde comigo, que não será para vosso prejuízo!”
Diz um do grupo: “Pois bem, iremos; no entanto, pedimos-te que não nos leves a uma casa católica. Lá não poderíamos ficar, porque não existe coisa que nos desperte tamanha repugnância quanto o ca- tolicismo pestilento, mormente o papa, seus bispos e o sacerdócio da prostituta romana!”
Diz o bispo Martim: “Que valor têm o papa, os bispos, os padres, Lutero, Calvino, Maomé, Moysés, Brama e Zoroastro? Representavam algo no mundo; aqui, no reino das almas e dos espíritos, terminam todas essas diferenciações tolas, porque reina apenas um lema que se chama Amor, único meio para o nosso progresso.
Na Terra fui bispo católico e muito presunçoso. Quando aqui cheguei, percebi a insignificância de nossa posição terrena, pois tudo depende daquilo que se fez no mundo, e quais as circunstâncias. Por isto, não vos deixeis perturbar por Lutero ou Calvino; segue-me apenas. Não vos agradando a estadia em minha casa, sempre podereis voltar a este caminho.”
Responde o guia do grupo: “Bem, pareces ser homem inteligente e estamos dispostos a acompanhar-te, com a condição de não ser ventila- da a questão religiosa, que nos causa verdadeiras náuseas!”
Diz o bispo Martim: “Está certo. Falai o que quiserdes Com o tempo, havemos de nos conhecer melhor e por certo não descobrireis em mim algo que vos ofenda. Vamos, pois, para a minha morada e de meus irmãos e amigos!” Martim toma a dianteira e o grupo de trinta pessoas o segue diretamente para Mim e Pedro. Então ele diz: “Aqui estão eles. Tem a bondade de me indicar em quais aposentos devem ser acomodados, e peço-te algum pão para fortalecê-los.”
Digo Eu: “A porta em direção ao Norte indica um grande aposen- to, onde encontrarão tudo de que necessitam. Não te demores, pois temos que realizar importante tarefa que não pode ser adiada.” O bispo obedece e o grupo se alegra ao entrar no aposento bem arrumado. Uma vez acomodado, Martim volta para junto de nós e pergunta sobre o novo trabalho.
ACOLHIDADE INFELIZES
Digo Eu: “Vês ao Norte aquele incêndio? Temos que apagá-lo, do contrário toda essa região sofreria. O fogo espiritual é mais veloz que o natural! Rápido!” Não demora chegarmos ao local do incêndio, que atacara uma aldeia paupérrima, e várias pessoas inteiramente nuas pro- curavam fugir das choupanas ardentes. No centro da aldeia se achava uma casinha menos pobre, com um terraço, onde estavam cinco ho- mens a gritarem desesperadamente, porquanto as chamas ameaçavam tragá-los.
Ao percebê-lo, Martim exclama: “Pelo amor de Deus, não há algo semelhante a uma escada, para poder salvá-los?” Digo Eu: “Justamente a teus pés se encontra uma, que te dará oportunidade para agires com o coração.” O bispo apanha a escada, corre com ela para a dita casinha, encosta-a ao terraço e sobe. Dois homens, já desacordados, são por ele transportados até o solo, enquanto os três mais fortes o acompanham. Em um minuto, ele conseguiu salvar cinco almas.
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Em seguida, volta para junto de Mim e diz: “Graças a Deus, que pude salvá-los! Tive a impressão de que desta vez, meu zelo seria mal su- cedido. Meus cabelos não estão chamuscados? Não importa, pois aqui estão eles, se bem que esses dois quase morreram. Mas, agora estão se recuperando e isto me dá muito maior satisfação do que se eu tivesse ingressado nos Céus! Permiti que abrigue a todos que lá estão na cerca e se lastimam, inteiramente desnudos!”
Digo Eu: “Foi este o motivo por que aqui viemos. Antes temos que extinguir o fogo, para depois seguirmos com eles para casa.” Diz Martim: “Se ao menos tivesse água, pois sem ela será difícil acabar com as chamas.”
Aconselho: “Lá no solo está uma vara semelhante à de Moysés. Basta cravá-la na terra, com fé, que surgirá água em quantidade, pois esta região é muito pantanosa!” O bispo assim faz e imediatamente jorra uma fonte poderosa, levando-o a pedir um vasilhame. Intervenho, dizendo: “Ela fará o necessário e dentro em pouco o fogo será extinto. Vamos à casa com os salvados, para descansarmos um pouco e nos for- tificarmos para outra tarefa. Vai buscá-los!”
Assim, seguimos com os pobres ao palácio; mas, quando entram no recinto, desnudos, Martim tira seu paletó de camponês e coloca-o no ombro do que lhe parece mais fraco, e o colete ele entrega ao seguin- te, sendo bastante elogiado. Ele, porém, protesta dizendo: “Agradecei não a mim, e sim a Deus e a esses dois amigos. Também eu fui aqui acolhido há pouco, recebendo os maiores benefícios. Sou simples servo desses amigos dos infelizes. A alegria com vossa salvação é meu prêmio mais valioso.”
Digo Eu: “Assim está bem. De um Saulo te tornaste Paulo. Conti- nua no amor ao próximo, que dentro em breve serás digno irmão nosso. Entremos!”
Assim, entramos em um recinto modesto, porém arrumado com muito gosto, levando o bispo a expressar-se da seguinte maneira: “Quem teria limpado e organizado este salão durante nossa curta ausência? An- teriormente tinha aspecto de simples cômodo camponês. Até mesmo as janelas dão impressão de maiores e os móveis estão otimamente coloca- dos. Como foi isto?”
Respondo: “Muito fácil e de modo natural. Se alguém na Terra pretende mobiliar sua residência, faz um esboço e manda vir decorado- res e operários para executarem seu plano. Lá, isto leva mais tempo, por ser a inércia da matéria que deve ser trabalhada, um meio sumamente obstrutivo. Aqui não existe esse impedimento, de sorte que o plano ce- rebral se apresenta qual obra perfeita. O que um espírito perfeito pensa e quer, se realiza instantaneamente.
No mundo eterno dos espíritos o pensar é bem diferente ao do mundo da matéria, onde os pensamentos consistem de ideias e imagens tiradas dos objetos, movimentos e transformações. Aqui resume-se o pensar das capacidades do espírito dadas por Deus, tão logo sejam ins- piradas pelas obras do amor para com Ele e o próximo e iluminadas com a Luz divina.
Este salão consiste somente de obras de amor ao próximo. Por en- quanto está arrumado com simplicidade porque a Luz de Deus ainda não deitou raízes profundas em tua vida. Quando isto acontecer, terás consciência de tudo, podendo responder a ti próprio. Para tanto, ca- reces do justo conhecimento de Deus, que alcançarás à medida que aumentares o teu amor. Vamos à mesa, onde nos espera um conforto.” Conjectura o bispo Martim: “Tudo aqui é realmente milagroso, mas é preciso habituar-se aos milagres, assim como na Terra ninguém se dá conta dos milagres da Natureza, por se ter acostumado a eles. Aliás, não me preocupo muito com a compreensão dos milagres divinos, de sorte que não me perturbam. Se houver sempre uma tarefa para mim e, vez por outra, um descanso e pequeno repasto, conforme nos espera
naquela mesa — e vós, meus amigos, estando em minha companhia — nada mais quero para toda a eternidade.
Até o momento conheço a Divindade como Entidade Una, na Luz impérvia, em Sua Santidade poderosa e infinita; querer penetrar mais profundamente em Sua Natureza intrínseca, julgo pecado mortal. Dei- xemos de lado o que se torna inalcançável para nós, satisfazendo-nos com o que Sua Bondade nos oferece!” Digo Eu: “Muito bem, Meu irmão, sentemo-nos e tu, Pedro, apanha o cálice cheio de vinho!”
MODÉSTIAEHUMILDADEDOBISPO MARTIM
Uma vez à mesa, Pedro traz o vinho e uma toga para o bispo e diz: “Como entregaste paletó e colete aos pobres, podes vestir esta toga para tomares a refeição.”
Ele a fita, de tecido azul claro e debruado de púrpura, e diz: “Ah, isto é belo demais para mim. Eu, pobre pecador, vestir uma roupa como foi usada por Jesus na Terra? Seria ultraje sem par! Não, não, isto não! Se bem que Jesus não fosse Deus, como quiseram os tolos, foi ele o ho- mem mais sábio e bondoso na Terra, tão perfeito que Deus certamente sentiu o máximo agrado com ele.
De maneira alguma hei de vestir esta toga, pois sou o mais imper- feito e cheio de pecados. Preferiria não saborear pão e vinho do que cometer tamanho ultraje. Basta que na Terra tivesse usado as vestes de Melquisedeque, pagando muito caro por essa tolice. No futuro, hei de ser mais prudente, com a Ajuda de Deus!”
Digo Eu: “Como quiseres. Aqui não existe coação, portanto, sa- cia-te sem paletó.” Prossegue Martim: “Ótimo! Não pode haver luxo para nós. Tenho apenas um pedido a fazer. Embora esteja faminto e sedento, nossos pobres tutelados devem sentir as mesmas necessidades. Permite que lhes dê a minha parte, pois essa alegria será a satisfação de meu coração.”
Digo Eu: “Teu desejo Me alegra bastante, mas acontece que eles já foram cuidados. Senta-te a Meu lado e depois da refeição iremos visitá-
-los para lhes proporcionar qualquer tarefa.”
Diz Pedro: “Senhor e Mestre, peço-te que distribuas pão e vinho que têm melhor sabor do que eu mesmo servindo.” Concordo: “Pois não, caso nosso irmão e amigo não se oponha.”
Diz o bispo Martim: “De modo algum! Conheço a seita dos que partem o pão, mas isto não tem o menor valor no mundo dos espíritos. A quem tais recordações beatas produzirem especial agrado, poderá agir à vontade. Quanto a mim, dispenso tudo que tenha odor de cerimônias, que me causam repugnância. Podeis partir ou cortar o pão, que não tem importância. Além disto, concordo que o anfitrião o reparta entre nós dois, seus servos, pois é mais agradável o pão dado que o tomado.”
Assim, Eu parto o pão, abençoo-o e passo-o aos dois amigos. Pedro quase chora de emoção, enquanto o bispo Martim o abraça sorrindo e diz: “Esta cena te faz recordar a lenda beata dos dois discípulos a cami- nho de Emaús e confesso que também me comoveu muitas vezes.
Seu significado é muito elevado e, além disto, sente-se o desejo que essa cena tenha realmente acontecido, pois a criatura fraca e ignorante nada mais deseja ouvir e sonhar do que fatos miraculosos que se pren- dam ao Ser Supremo, em Pessoa, em qualquer ocasião remota. Numa repetição posterior, o assunto haveria de transpirar dúvidas.
Parte sempre o pão, que também eu me alegro com tal ato religio- so. Que pão saboroso, e o vinho não pode ser superado! Porventura é igualmente criação mental, de natureza espiritual? Bem, não vem ao caso, basta seu sabor. Deus seja louvado para sempre por este conforto estupendo, que nos dará forças para outras tarefas pesadas.”
Digo Eu: “Também Me alegro com vosso apetite. Agora vamos procurar os necessitados.”
EXPERIÊNCIAS ESTRANHAS
Dirigimo-nos, pois, ao primeiro grupo de trinta pessoas trazidas pelo bispo Martim. Mal entramos no recinto, todos se atiram ao chão e exclamam: “Senhor, Deus todo Poderoso em Jesus Cristo, não Te apro- ximes de nós, pois Tua Presença é para nós, pecadores, insuportável!”
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O bispo se vira para todos os lados a fim de localizar Jesus. No entanto, ele ainda não Me vê e diz: “Caro amigo, que se passa com eles? Estão loucos ou adormeceram após terem tomado o vinho, sofrendo de uma visão luterana ou católica?”
Respondo: “Não, nada disto, estão Me tomando por Jesus, razão de seu desespero.”
Diz ele: “Não deixa de ser uma certa fraqueza mental, apenas com outro motivo do que eu supunha. Aliás, eles têm razão em louvar-te como seu maior benfeitor, na Imagem do Ser Supremo, pois todo ben- feitor de tua espécie tem grande parte da Divindade, e ele sendo louva- do, tal louvor se dirige também a Deus. Que será feito desses pobres?” Digo Eu: “Deixemo-los continuar em sua opinião e procuremos os outros; pois, não podendo suportar a Minha Presença, não os importu- naremos. Com o tempo, se habituarão.” Quando chegamos à porta do segundo grupo, digo ao bispo Martim: “Entra primeiro e anuncia-Me e a Pedro. Caso o desejem, entrarei. Não havendo tal desejo da parte deles, o que poderás deduzir de suas palavras, volta para iniciarmos
outra tarefa.”
Martim imediatamente cumpre Minhas Ordens, aproxima-se dos salvados do incêndio, expressa feições patéticas e diz: “Caros amigos, o senhor e mestre desta casa deseja visitar-vos, se isto for de vosso agrado. Não o sendo, podeis falar abertamente, que sua visita não será feita. Minha opinião é a seguinte: Sendo anfitrião e senhor muito bondoso e meigo, conviria aceitar sua visita. Todavia, sois livres e se fará o que quiserdes.”
O grupo então indaga: “Porventura sabes quem é o Senhor e Mes- tre desta casa?” Diz Martim: “Não exatamente, o que não se torna tão necessário no mundo dos espíritos. Sei, de experiência própria, que é homem muito bom e sábio. Querer saber mais, seria desvario. Por isto, satisfazei-vos com minha informação e externai vosso desejo.”
Retruca um do grupo: “Por que és tão reservado, querendo pri- var-nos do mais sublime? O Senhor e Mestre desta casa é justamente o Senhor Único, Criador e Mestre eterno do Universo e de todos os seres e anjos, em Jesus Cristo!
Como é possível afirmares não O conhecer? Porventura és cego, não percebendo os estigmas em Mãos e Pés, que descobrimos à pri- meira vista? Observa apenas Seu meigo Rigor, Seu Amor e Sabedoria imensos; deita tuas mãos no lado perfurado — qual Tomás — que hás de perceber mais nitidamente que nós, pobres diabos, Quem Se oculta atrás de teu senhor e mestre.
Longe de nós querermos que Ele — o Altíssimo — aqui viesse, ao recinto de Sua Misericórdia! Somos pecadores que não merecem a Visita do Pai, pois abusamos de Seu Amor e Paciência na Terra. Por isto, transmite-Lhe, tu que és amigo de Deus e Senhor — a Quem não queres conhecer — que nosso coração anseia por Ele, todavia, nossos erros nos fizeram tão horrorosos que preferimos não desejá-Lo. Quase nos consumimos de vergonha por nos encontrarmos nessa casa, onde Ele costuma ficar a fim de proporcionar Sua Misericórdia aos pecado- res. Que acontecerá e onde nos ocultaremos se Ele realmente aqui vier? Pede-Lhe, pois, que nos prive desta Graça; entretanto, se faça apenas a Sua Vontade!”
MARTIMEMAPUROSCOMO RACIONAL
Diz o bispo Martim: “O quê? Que ideia absurda! Deus, o Ser Su- premo, que habita na Luz impérvia e preenche com Sua Onipotência o Universo, haveria de Se apresentar em forma humana e trabalhar co- nosco? Ele emite Sua Luz da Graça sobre criaturas e espíritos, no entan- to perdura um abismo entre Deus e o homem!
Jesus foi, entre todos os homens, pleno da Força divina; no entan- to, foi tão pouco Deus quanto nós, pois em tal caso o nosso planeta Terra deveria ser o ponto central de toda a Criação, suposição que des- pertaria o protesto dos sóis.
Continuemos razoáveis no Reino dos espíritos. Basta que na Terra vivêssemos na maior ignorância, tomando pão, vinho e certas imagens por divindades, enquanto tínhamos no Sol a mais maravilhosa cópia da Divindade. Considerai-me e aos Meus amigos como realmente somos, que não sereis tomados de pavor tão tolo.
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Sei muito bem que o senhor e mestre desta casa é mais podero- so e sábio que todos nós, e talvez seja aquele Jesus que nos forneceu a doutrina mais sábia; de maneira alguma deveis considerá-lo Deus! Sabeis perfeitamente como foi morto pelos homens mais miseráveis. Seria possível admitir-se que Deus — Origem de todo ser e vida — Se deixasse matar? Que aconteceria com uma casa cujos alicerces fossem destruídos? Haveria de ruir!
O que aconteceria com a Criação se Deus fosse morto e destru- ído? Quem poderia viver sem Ele? Não estaria aniquilada a vida to- tal? Por isto, meus amigos, permaneçamos equilibrados no mundo dos espíritos!”
Obtempera um do grupo: “Amigo, falaste inteligentemente para nos consolar; todavia, estás mais longe da meta que nós, conquanto te encontres constantemente em Sua Companhia, ao passo que somos obrigados a temê-Lo.
Como grande pecador, afirmo que ainda não começaste a estu- dar a tabuada em relação à verdadeira sabedoria, e pretendes ajuizar sobre a Sabedoria intrínseca de Deus. Se fores imaginar Deus pelo vo- lume Jesus será realmente muito pequenino. Considerando que Deus não somente criou mundos e sóis, como também as efêmeras, hás de perceber que Ele Se ocupa tanto das coisas mínimas quanto das mais grandiosas; portanto, também Lhe é possível mostrar-Se como Homem aos homens, ensinando-os e guiando-os pelos justos caminhos. Com referência aos sóis, Ele — como Sol — certamente os conduzirá. Nós, humanos, compreendemos apenas um semelhante e, deste modo, com- preenderemos Deus somente em Jesus. Os sóis fogem de nosso conhe- cimento, portanto seriam, sem Jesus, uma Divindade inaproveitável. Eis meu raciocínio! Procura compreender melhor nosso Anfitrião e vol- ta para nos dizer se estou errado!” Perplexo, o bispo Martim se junta novamente a nós.
Prontamente ele se dirige a Mim, dizendo: “Belo resultado da tare- fa que outorgaste à minha ignorância! Realmente não sei se sou maluco, ou se são eles lá dentro que o são! Seu pavor diante de ti é maior que dos outros e te tomam não apenas como antigo fundador de religião, mas como o Próprio Ser Supremo. Esta convicção é expressa numa consequência filosófica à qual dificilmente se contraporá argumentos.
Dize-me tu em que devo acreditar. Qual a razão por que essas po- bres almas ou espíritos têm ideia tão estranha a teu respeito? Acabo de ver realmente os estigmas em ti e quase não duvido de seres o Salvador Jesus. Mas..., Jesus e Deus ao mesmo tempo?! Se isto fosse verdade, não saberia o que fazer, de susto e pavor! Dá-me explicação a respeito!”
Digo Eu: “Se foste bispo e pregavas a Doutrina de Jesus, provan- do Sua Divindade nas pequeninas hóstias, como podes achar irrisório aquilo que ensinavas aos fiéis, pois aquelas almas são ovelhas de teu bis- pado? Se expressam tolices, quem foi seu autor? Falando a verdade, que mérito teria seu ex-professor que combate seu próprio ensinamento? Neste caso, a tolice seria dele!
Sou realmente Jesus, o Crucificado, e neste irmão tenho a honra de apresentar-te o genuíno Pedro, em cuja cadeira se sentam e regem os bispos de Roma — aliás, não na ordem deste verdadeiro Pedro, e sim daquele que inventaram para seus fins materiais. Agora sabes Quem Sou e quem é teu antigo guia. O restante te demonstrarão teus próprios discípulos.
Em outros tempos afirmei serem os filhos do mundo mais inteli- gentes que os da Luz. Se te consideras um filho da Luz — qual soberano da China — procura teus adeptos — filhos do mundo — e aprende deles ao menos a inteligência, já que não te agrada sua sabedoria.”
Diz o bispo Martim: “Ó amigo, és realmente Jesus, que Se dizia Filho do Altíssimo? Mas, onde está o Altíssimo? Onde está o Pai Oni- potente e Eterno? E onde está o Espírito Santo que emana de Ambos, já que temos a intenção de tocar o dogma e afastar a luz do intelecto frio?”
Respondo: “No Evangelho consta: Eu e o Pai somos Um; quem vir a Mim verá o Pai! Se crês, por que perguntas se Me vês? Não acreditan- do, tua indagação é tola. Sê o que tu és, e Eu serei o que Sou, sem que cheguemos a nos desafiar. Lá dentro estão teus fiéis; aprende de novo a Minha Doutrina, junto deles, e volta para que eu te dê explicação.
Eu, o verdadeiro Salvador Jesus, declaro no Meu Reino eterno seres tu um espírito insensato não querendo perceber o Meu grande Amor para contigo. Sustenho-te na palma da Mão, e tu continuas cego e sur- do. Dou-te o pão da Vida que ingeres qual pólipo, sem considerar seu efeito interno, produzido nestes pecadores num instante. Fazes parte daqueles que nada veem e ouvem, de olhos e ouvidos abertos. Quantas ocorrências milagrosas operei ao teu redor e tu nem perguntas Quem é Aquele a Quem obedecem mares e ventos. Repito, volta para teus discí- pulos e aprende a conhecer Aquele Que até então igualavas a ti! Amém.”
PALESTRAENTREMARTIMEOHOMEM LUMINOSO
Ainda mais estupefato, Martim faz imediatamente o que Eu lhe aconselhara. Mas, ao se juntar aos salvados, ele se admira por encontrá-
-los inteiramente modificados. Os traços rejuvenesceram e vestes azuis cobrem sua antiga nudez, havendo um cinto de púrpura a formar ricas pregas. Entre esses personagens se encontra um homem majestoso, de chapéu branco luminoso, sob o qual caem fartos cachos louros sobre os ombros.
Este homem belo se encaminha para Martim e diz: “Voltaste de- pressa! Por acaso encontraste no sublime Mestre e Senhor desta casa Aquele para Quem chamamos tua atenção? É Ele Jesus, Senhor de Céus e Terra, natural e espiritual, temporal e eterno?”
Responde o bispo: “Sim, ele é Jesus. Quanto à Divindade, a ques- tão não está bem esclarecida e julgo conveniente andarmos com mais cautela. Suponhamos que não O seja e se tal hipótese desagradasse ao Ser Supremo, poderia nos condenar como fez a muitos povos em tem- pos remotos, que ousavam crer em muitos deuses ao lado Dele.
Disse Moysés explicitamente: Deves crer em Um Só Deus e não fazer uma imagem para adorá-la, tampouco dar honras a outrem senão ao Senhor. Eu sou Senhor Único e Deus, Criador de tudo que existe. Se bem que o profeta falasse de um salvador que libertaria os povos do jugo pesado, ele não afirmou que Jehovah em Pessoa desceria à Terra. Por isto é preciso estudar e pesar nossa atitude.
Comparando Moysés com Jesus deveis descobrir quão difícil e quase impossível se torna identificar a Divindade de ambos. Em virtu- de da rigorosa Lei mosaica, o profeta estipulou a pena capital, a Mando de Deus, caso alguém blasfemasse a Divindade, fazendo sacrifícios a um ídolo, ou tomando um feiticeiro, um profeta ou outro herói qual- quer como Deus, motivo pelo qual também Jesus foi levado à cruz, se bem que se expressasse acerca de sua suposta missão divina, em qua- dros ocultos.
É igualmente difícil de se compreender porque a Divindade teria fundado, por Moysés, uma Igreja com tamanha pompa celestial para toda a eternidade, como disse, Igreja esta que, com a Vinda de Jesus, a Mesma Divindade seria exterminada. Por isto é vossa rápida aceitação da Divindade de Jesus algo muito delicado no mundo espiritual. Em- bora veja que esta aceitação vos trouxe súbita melhoria nesta casa de Jesus, por meio de um pequeno milagre, podeis estar certos que não vos invejo, pois insisto em meu princípio de: Quem rir por último, rirá melhor!”
Diz o personagem de chapéu luminoso: “Sou tão bem informado quanto tu a respeito daquilo que afirmaste; no entanto, lastimo tua ce- gueira e duvido que venhas a rir por último. Eu e meus companheiros pensamos da seguinte forma:
Jesus, cuja Vinda foi predita por todos os profetas, de Quem Davi afirma: Assim falou o Senhor para o meu Senhor! — ou: Assim fala o Senhor para Si Mesmo: Senta-te à Minha Direita até que deposite teus inimigos como escabelo para teus pés! — e: Erguei e abri as portas para que possa entrar em nossa Cidade, a Santa Cidade, a Sua Cidade, o Senhor da Glória! —
Jesus, cujo Nascimento foi marcado por milagres e cuja Vida foi apenas Milagre perpétuo;
Jesus, que em Sua Doutrina sempre demonstrou Sua Natureza In- trínseca, que indagou de um dos dez purificados que Lhe dava a Honra, onde se ocultavam os nove;
Jesus, que de Próprio Poder ressuscitou no terceiro dia e duran- te quarenta dias doutrinou Seus discípulos e em seguida ascendeu aos Céus perante milhares de pessoas, espargindo mais tarde o Espírito da Força eterna, Poder, Amor e Sabedoria celestes sobre os Seus;
Jesus, do Qual João deu o mais sublime testemunho, tanto no Evangelho quanto na Revelação em Pathmos.
Porventura não te é possível considerá-Lo superior a um simples sábio do mundo? Vou dizer uma tolice que todavia parece mais sábia que tua assertiva: Se Deus, o Senhor, não tivesse aceito a Humanização, a fim de ser visto por Suas criaturas, por que motivo nos teria criado? Por Sua Causa, certo que não. Qual seria Sua vantagem, caso nunca chegássemos a vê-Lo e a amá-Lo? E que seria de nossa vida sem um Deus visível? Medita um pouco, talvez se ilumine teu raciocínio!”
Diz o bispo Martim: “Dá-me um pouco de sossego; quero consi- derar mais profundamente as tuas explanações!” Após longa pausa, ele prossegue: “Quanto mais pondero as tuas palavras, mais fortemente descubro o contrário daquilo que afirmaste anteriormente. Ainda as- sim, não quero ser teimoso e me prontifico a concordar contigo, se me deres resposta satisfatória.”
PERGUNTASCAPCIOSASDOBISPO MARTIM
Diz o sábio do grupo: “Podes perguntar que responderei, sem me perturbar com o resultado.” Diz Martim: “Por que possui a Terra ape- nas um monte elevado? Estaria a Plenitude da Divindade nele ou sobre ele, por ser o mais alto?”
Responde o sábio: “Se bem que ela possua apenas um monte mais alto, não representa o monte de Deus, Ciente do motivo pelo qual agiu deste modo com nosso planeta. Sem dúvida para fornecer aos ventos
um ponto geral de divisão, razão por que existem os montes mais ele- vados na proximidade do equador, nos trópicos, onde os ventos ne- cessitam de maior força em virtude da rotação do orbe, pois a força centrífuga precisa de ação mais violenta por se encontrarem as órbitas rotativas mais afastadas do eixo.
Se em tais zonas não fossem erigidos pelo Senhor tão formidáveis reguladores de ventos, não seriam habitáveis. Na Ásia, na direção onde o ar se une num acúmulo principal, se encontram as montanhas mais elevadas. Estás satisfeito?”
Responde o bispo Martim: “Perfeitamente, em teu critério. Outra questão: Por que existe, na América, o maior rio do mundo? Encontra-
-se nele a Plenitude da Divindade?”
Diz o sábio: “Amigo, sei perfeitamente onde queres chegar; toda- via, responderei também esta pergunta mui tola. Vê, a América é um continente jovem e possui nas cordilheiras e nos Andes vasta cadeia de montanhas, próximas ao maior mar do mundo. Destarte dispõem nas bases subterrâneas de grande quantidade de água, que sobe constante- mente pelos inúmeros poros, veias e canais. Além disto, tem a América do Sul, continente que há alguns milênios foi elevado acima do mar, grandes planícies de substância arenosa e de pouca altura.
Zonas em que vastas cordilheiras absorvem muita água, que se acumula nas planícies extensas sem empecilhos, dirigindo-se vagaro- samente ao mar, forçosamente possuem o maior rio, sem que por isto contenha maior influência de Deus do que numa gota de chuva. A resposta te satisfaz?”
Diz o bispo: “Plenamente. Mas, prossigamos! Por que é o diamante a pedra mais dura e transparente, e o ouro o metal mais nobre?”
Retruca o sábio: “Porque os homens assim fizeram, segundo sua opinião vaidosa, pois esses minerais são mais raros que outros. Fossem os diamantes tão comuns como cascalho, e o ouro qual ferro, as ruas seriam calçadas com diamantes e as rodas dos carros chapeadas a ouro. O Senhor saberá o motivo da raridade desses minerais. Talvez porque mesclaram grande quantidade de veneno infernal para o espírito hu-
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mano, de onde se conclui não conterem grande Parte da Divindade. Que achas?”
Diz o bispo Martim: “Não tenho argumentos, por isto dou-me por satisfeito. Não encontrei, porém, o que esperava, quer dizer, uma prova cabal da Divindade de Jesus. Na Terra, como em todos os planetas, exis- tem em cada espécie e criaturas expoentes jamais superados. Deve haver o maior Sol, o maior planeta, e neste vantagens insuperáveis. Poderia um sábio afirmar que fossem divindades por este motivo? Assim agiram os pagãos, instituindo o politeísmo.
Em qualquer época deve ter existido o mais inteligente símio, cão, burro igual ao de Bileam, o cavalo mais belo e corajoso como foi Bucé- falo, de Alexandre Magno, a mulher mais bela como a Vênus, o homem mais formoso, como Apolo, etc. Ninguém pode negar que tais expoen- tes fossem divinizados pelos pagãos.
Por que nos admirarmos se os habitantes do mesmo planeta ele- vassem à primeira divindade o doutrinador mais sábio e maior mago, erigindo-lhe altares, onde o adoram, em parte por uma beatitude igno- rante, e a maioria por política, para conservação da cegueira dos outros? Teria sido isso motivo suficiente para a divinização? Teriam descido junto de nós seres visíveis e audíveis que comprovassem a Divindade de Jesus? Relatam-se fatos milagrosos durante seu nascimento e que seres elevados teriam descido e orientado a Humanidade sobre sua divin- dade. Pergunto, com os mesmos direitos humanitários: Teríamos nós
visto alguma coisa? Eu não! Talvez tu?
Num sonho enfadonho e egoísta de padres ou freiras era possível inventar-se tais mentiras. Se perguntarmos pela veracidade, nada mais se apresenta que a criatura humana, que sempre quer ser mais impor- tante que a outra. No íntimo é obrigada a confessar sua ignorância, pois a fé é apenas maquinal e oca.
Jamais se pode cogitar de convicção quando uma pessoa se baseia na autoridade de outra, aceitando essa autoridade como prova máxima, pois não existem outras. Então é-se obrigado a dizer: Voz do povo, voz de Deus, porquanto nunca se ouviu algo do Ser Supremo.
Uma revelação é portanto apenas obra humana, pois durante nossa vida nunca vimos outra senão a que demonstra mão e fantasia huma- nas. Esse é o motivo por que analiso tudo antes de aceitá-lo e não me oponho a uma convicção; mas tuas provas não me satisfizeram. Pode o homem sentir o máximo desejo pelo conhecimento de Deus, que só pode ser satisfeito por Deus Mesmo. Antes de chegarmos a essa satis- fação, teremos que passar por todos os Espaços da Criação, para nos capacitarmos de uma revelação verdadeiramente divina. Tudo que se deu até então nada mais foi que uma escola elementar e preparatória ao grande ensino santificado. Se fores capaz de me responder algo melhor, mais puro e verdadeiro, portanto divino, à minha argumentação, estou pronto para ouvir-te com paciência.”
PROSSEGUIMENTODA PALESTRA
Diz o sábio: “Amigo, confesso não estar ao alcance de tua argu- mentação, se bem que não conseguiste tirar um átomo da Divindade de Jesus, o Senhor; pelo contrário, foi ela positivada porque percebi mais nitidamente que Deus só pode ser um Homem, naturalmente o mais elevado e perfeito; de outro modo não seríamos humanos e não pode- ríamos amá-Lo. O amor é nosso maior tesouro, nossa vida e felicidade. Para que fim existiria, se não pudéssemos amá-Lo como Homem? Faze o que quiseres, não esperes outro conhecimento de minha parte. Dei tudo que possuía.”
Martim começa a meditar sobre as palavras do sábio e, após certo tempo, diz de si para si: “Tens razão. Se o Pentateuco diz a verdade, Deus seria um Homem, do contrário não teria criado Adão segundo Sua Semelhança.
Um relojoeiro naturalmente não necessita ser relógio para fazer uma máquina; mas a ideia foi tirada dele mesmo. Eis outra dúvida. Se um homem pode formar uma ideia que não lhe seja parecida, tal fato poderia se dar com Deus? Certamente. Então, o texto do Pentateuco deveria ser interpretado da seguinte maneira: Deus criou o homem se- gundo Sua Ideia, quer dizer, correspondendo perfeitamente à Sua Ideia.
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Se esta é a possível interpretação, a consequência não determina que Deus tenha criado o homem de acordo com Sua Forma, ou que Ele necessitasse ter forma limitada para formar um homem. Se a própria ideia como noção é informe, Deus, como Ideia básica de todas as ideias, também pode ser informe.
Se Ele, para formar um homem, precisasse da forma humana, ne- cessitaria transformar-Se em todas as formas animais a fim de poder cri- á-las, ou Ele estaria Presente, decerto modo dividido, porém imutável, para que todas as coisas e seres Nele tivessem um modelo.
Tal hipótese seria o maior absurdo. Deus não necessita de forma nem de humanização para criar seres humanos, pois tal ideia seria con- trária à mais perfeita liberdade divina que deve ser informe, segundo o texto do Pentateuco, onde Jehovah proíbe a Moysés imaginá-Lo sob qualquer figura.
Caro amigo, dentro da pura razão, eu estou certo, enquanto tu vives pela fé. Não deixa de ser vida, sem inteligência e dedução. Longe de mim tirar-te tal vida e fazer um prosélito de ti. Apenas tenho que demonstrar que um ex-bispo não pode ser modificado tão facilmente, sobretudo por aqueles que na Terra foram suas ovelhas.”
Diz o sábio: “Ah, agora compreendo de onde sopra o vento! Se fores aquele bispo que há poucas semanas trocou a vida terrena pela eterna, é natural não aceitares Jesus como a Divindade.
Sou o livreiro da mesma cidade em que eras bispo, e sei de tua índole. Externamente eras um devoto fervoroso; no íntimo, um ateís- ta. Quem teria maior entusiasmo do que tu por Kant, Hegel, Strauss, Voltaire, Rousseau e Helvetius, livros que ocupavam tua mesa de leitura em vez da Vulgata. Condenavas esses autores para o inferno quando te encontravas no púlpito, mas no íntimo os elevavas acima de Jesus.
Estou bem informado porque era teu confidente e fornecedor da- quelas obras. Não segui tua orientação, mas acompanhava os ensina- mentos de Swedenborg, do qual nunca querias tomar conhecimento por não se prestar para teu moinho católico. Alegro-me em saber com quem estou tratando e espero outras oportunidades para polêmicas.”
Diz o bispo, perplexo: “Era o que me faltava! (De si para si): Este camarada sabe de outras traquinadas minhas que darão um belo espetá- culo no mundo espiritual! Tomara que o anfitrião Jesus não apareça por aqui, pois já me fez alguns sermões e revelou certas patifarias terrenas. Que faço para escapar dessa calamidade, caso exista um meio de fuga? Ah, já sei! Mas, se não der resultado, voltarei para qualquer margem marítima para pescar eternamente. Era preciso que eu encontrasse esse homem!... Não posso modificá-lo e convém tomar uma resolução e executá-la! Mas... qual?”
Interrompe o livreiro: “Aceita a minha fé, que escaparás das tuas calamidades imaginárias. Não me tomes por espião, mas apenas como amigo, ao qual ajudaste a sair do fogo de seu zelo e o vestiste, pois an- dava desnudo.
Acredita-me: Jesus, o Senhor, não necessita que façamos papel de espiões e traidores, pois conhece os nossos pensamentos mais íntimos antes que os sentíssemos em nossa alma.
Por que não poderia Jesus ser Senhor dos Céus e mundos, Deus, o Eterno e Onipotente? Se Dele surgiram todos os seres limitados por espaço e tempo, por que seria impossível Ele Mesmo limitar-Se em espaço e tempo, por amor a nós, Suas criaturas, sem perder algo de Sua Onipotência, porquanto espaço e tempo são emanações Dele?
Seria admissível que um pintor, que reproduziu milhares de formas em cores, não fosse capaz de pintar sua própria figura? Se isto se admite em um homem, se bem que num sentido imperfeito, por que supormos tal obra impossível a Deus?
Seria Deus o Ser mais livre se não fosse capaz de realizar algo de Si Próprio? Tu O limitas nos princípios de Hegel, podendo no máxi- mo criar sóis centrais, com planetas, homens, animais e infusórios, que também possuem vida e um organismo artisticamente construído. No entanto, nada teria que fazer como Ser Supremo e não Se preocuparia com os seres humanos até que tivéssemos atingido a dimensão de um sol central. Espero não haver impedimento em aceitares Jesus como Deus, dando-Lhe a honra que Lhe compete para todas as eternidades, sobretudo por ter demonstrado tamanha Graça para contigo.”
Diz o bispo Martim: “Amigo, eu te salvei da chama: tu me deste uma outra, de luz poderosa. Agradeço a Ele e a ti. Deixa que medite, pois o pensamento que se apodera de mim é demasiado grande.”
OBISPOMARTIMDESCOBREEMJESUS,O SENHOR
Após algum tempo, ele prossegue: “Por mais que pense, não pos- so contestar teus princípios, que têm base, e nosso Senhor e Mestre é Soberano do Universo, indiscutivelmente o Filho do Ser Supremo, ou seja, o Pai. Mas, onde fica o Espírito Santo, a terceira Pessoa divina?”
Responde o livreiro: “Deves seguir o Evangelho. Aqui está. Lê o Evangelho de João, que diz: No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus e Deus Mesmo era o Verbo. O Verbo Se fez carne e veio junto de nós, etc.
Numa outra passagem consta: Em Jesus Cristo habita a Plenitude de Deus. Quem Me vê, vê o Pai; pois Eu e o Pai somos Um, o Pai está em Mim, e Eu estou no Pai. Em todo o Novo Testamento se evidencia que Jesus é o Senhor Único de Céus e Terra.
Quando os apóstolos Lhe pediram para lhes mostrar o Pai, Ele muito Se admirou, dizendo: Como quereis que vos mostre o Pai, Eu estando há tanto tempo entre vós? Ignorais que quem Me vê também vê o Pai? — Tu fazes as mesmas perguntas que eles quando a tríplice coberta de Moysés cobria seus olhos.”
Concorda o bispo Martim: “Sim, tens razão, plena razão. É Ele o Senhor Único do Universo e de miríades de anjos e seres; terá Seus motivos por ter preferido a Terra para Sua Encarnação, e com o tempo certamente seremos esclarecidos.
Existe outro senão que consiste num grande pavor de aparecer diante do Ser Supremo, em Jesus. Espera-me certamente a condenação eterna como pecador por excelência. Reconhecemo-Lo e somos obri- gados a chamá-Lo ‘Senhor, Senhor’. Mas Ele Mesmo ensinou na Terra que não entrarão nos Céus os que O chamarem, e sim os que fizerem a Vontade do Pai. Porventura consideramos essa Vontade? Portanto, não existe Céu para nós. O inferno nos espera e vejo até mesmo as chamas
tocarem minha cabeça! Não compreendo como podes estar tão indife- rente, enquanto eu quase me acabo de tanto pavor!”
Retruca o sábio livreiro: “Controla-te, irmão, e esteja certo ser o Senhor melhor do que O representam os papas e bispos de Roma! En- quanto O temermos tão loucamente, Ele não aparecerá, esperando que transformemos nosso temor em amor. Que prazer terias em te vingar de um verme que te incomodasse? Não seria tal vingança a maior tolice de um desvairado? E pretendes submeter tal absurdo à máxima Sabedoria divina? Quem somos nós diante de Deus? Talvez aquilo que um verme é, comparado a nós? Nada somos perto Dele; por que deveria querer vingar-Se de nós? Estou inteiramente esperançoso de que tudo correrá melhor do que imaginávamos. Agora, silêncio! Tenho a impressão de que Ele está vindo para cá.”
SALVAÇÃODEMARTIMNOSEIODO PAI
Quando entro, em companhia de Pedro, o bispo Martim quase desmaia, e o grupo brada: “Ai de nós!” O livreiro, porém, cai de joelhos, consciente, e diz: “Senhor e Pai, louvado seja o Teu Santo Nome, Tua Vontade Se faça! Somos todos pecadores e não merecemos a menor Graça Tua; no entanto, amamos-Te com toda a força de nossa alma. Deixa vir a nós a Tua Misericórdia, sem a Qual nada seremos.
Tu és Eterno, infinitamente Sábio, e Tua Onipotência não tem li- mites. Nada podemos alegar para diminuir a gravidade de nossas cul- pas. Porventura haveria quem se levantasse contra Teu Poder? Antes que formulasse tal pensamento, poderias destruí-lo como se nunca tivesse existido. Eu e todos nós reconhecemos seres Tu o Senhor de Céus e mundos e podes agir como Te aprouver. Mas, lembra-Te de nossa fra- queza e não nos prives de Tua Misericórdia!”
Digo Eu: “Levantai-vos e não vos lastimeis quais delinquentes na Terra. Se vos procuro, já sois felizes, pois os espíritos infelizes fogem de Mim, não querendo que os liberte e os faça ditosos. Por isto é fútil vosso pavor de Mim e fraca a luz do intelecto.
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Desfazei-vos daquilo que não serve em Minha Casa, em Meu Rei- no. Onde Eu estou também está o Meu Reino, e este Reino é o mais elevado Céu, que todavia não é um Céu de ócio e preguiça, mas de plena atividade. Para ele sereis levados, cada um segundo suas aptidões terrenas. Amém.”
Todos se erguem felizes, agradecendo por essa Graça e Misericór- dia. Apenas o bispo Martim continua desacordado e nada vê, de tanto pavor. A um aceno Meu, Pedro o sacode e diz: “Que fazes aqui? Es- tamos à tua espera e tu não apareces. Esqueceste que temos trabalhos urgentes a realizar?”
Diz, finalmente, o bispo: “Ah, sim, é isto mesmo! Tive a impressão de ter feito uma longa viagem, na qual descobri o Máximo, não para minha felicidade, e sim para meu maior pavor. Descobri que nosso anfitrião é Deus, Senhor do Universo. Agora, imagina a minha pessoa pecaminosa ao lado Dele! Aquele amigo de chapéu luminoso procu- rou acalmar-me; mas, enquanto não se ouve consolo Daquele Que nos pode atirar ao inferno, de nada adianta.”
Diz Pedro: “Levanta-te e não sejas tolo. Jesus, a Quem tanto temes, te espera de Braços abertos! Daria Ele a impressão de querer pronunciar teu veredicto?”
O bispo Martim lança um olhar furtivo para Mim, percebendo Minha grande amabilidade. Encorajado, ele se ergue um pouco do solo e diz, com lágrimas nos olhos: “Não, desta meiguice não transpira con- denação. Senhor e Pai, como deves ser Bom para poderes olhar com tanta Magnanimidade para um pecador! Oh Jesus, não suporto mais, meu coração se inflamou de amor qual Sol central! Pecado ou não pe- cado — tenho que abraçar ao menos os Teus Pés, para dar expansão ao meu sentimento. Faze o que quiseres, Senhor, mas deixa que meu amor se externe!”
Digo Eu: “Vem cá, irmão teimoso, teus pecados te são perdoados! Desabafa não nos Meus Pés, mas no Meu Peito!” A este convite, Mar- tim se atira a Mim, encostando sua cabeça no Meu Peito. Após algum tempo de êxtase, digo: “Então, Meu filho, agrada-te essa descida para o inferno? Porventura sou o tirano eterno, como fui por vós classificado?”.
Responde ele: “Senhor, não encontro palavras para confessar, pe- rante Ti e todos, com que clareza reconheço os meus erros e falhas. Dei- xa que me equilibre nesta felicidade imensa; depois farei uma confissão completa. Agora, só posso amar-Te, meu Jesus!”
Digo Eu: “Muito bem, em virtude do amor que via em ti, tive tan- ta paciência contigo, ajudando-te Pessoalmente. Estás feliz em Minha Companhia! Não deves procurar esta felicidade no ócio, mas na maior atividade. Agora vai em socorro dos trinta infelizes, no outro recinto, e tenta trazê-los para junto de Mim. Tão logo tiveres concluído este primeiro trabalho, serão conduzidos para sua eterna finalidade. Vai!”
PRIMEIRAMISSÃODE MARTIM
O bispo Martim se encaminha para o referido recinto, sem per- ceber que não se encontra mais em sua esfera, mas na Minha, da pura Luz celeste, na qual todas as coisas se apresentam diferentemente da Natureza, inclusive as almas desencarnadas.
A expressão desencarnadasnão deve ser confundida com mor- tas, mas aponta um estado de deformação psíquica, após a passagem terrestre. Deste modo, o bispo Martim encontra, ao entrar no recinto, figuras animais em vez de humanas. Não são propriamente ferozes, mas temerosas e tolas. Algumas tinham aspecto imbecil e estavam cobertas de excrescências. A maioria parecia com coelhos excitados, burros e bois esfaimados, e alguns bodes sarnosos.
Quando o bispo Martim, no lugar dos trinta protestantes, depara com esses animais estranhos, que se refugiaram rapidamente nos can- tos, uns por cima dos outros, ele para, como que petrificado, e diz após longo suspiro: “Essa é boa! Que fantasmas infernais vêm a ser esses na Casa do Senhor? Talvez haja aqui ratos, camundongos e outros bichos? Esses bodes sarnosos, os cinco cretinos cobertos de excrescências imundas, são realmente um agrupamento prestável para o Céu mais elevado. Que farei com esse jardim zoológico? Teriam os protestantes se
metamorfoseado nesses bichos?
Estou sinceramente convicto da Divindade do Senhor, e isto me é transmitido pelo meu amor para com Ele. O sentido dessa travessura só pode ser do Seu conhecimento. Mas, para que fim estou monolo- gando qual trigésimo primeiro burro? Retornarei, para regressar opor- tunamente.”
Ele então abre a porta e se junta a nós, com expressão perplexa. Naturalmente, indago do paradeiro do grupo protestante ao que ele responde: “Oh Senhor, isto saberás melhor do que eu! Não podem ser aqueles animais, cuja linguagem desconheço. Tu conheces até mesmo as pedras, podendo falar com os elementos. Mas eu? Certamente sabias quem estava naquele quarto e quiseste pregar-me uma peça!”
Digo Eu: “De maneira alguma, pois tu mesmo fizeste isso! Ignoras que todo novo serviçal precisa receber orientação do trabalho, antes de querer executá-lo? Não basta que Eu diga: Vai! — e tu te encaminhas para o teu destino. E quando Eu disser: Vem! — tu obedeces sem saber do porquê e do como.
Não consta que sem Mim nada conseguireis? Por isto, devias ter confessado, à Minha Ordem de entrares no recinto, que coisa algu- ma serias capaz de realizar, e Eu teria modificado a situação. Entraste cheio de autoconfiança, percebendo pessoalmente o quanto se conse- gue sem Mim.
No mundo, todos são realizadores independentes, com ideias e co- nhecimentos individuais. Aqui, a situação é outra. Existe apenas uma independência, umsentido e umconhecimento, Comigo e em Mim. Onde isto não se dá, permanecem apenas engano e ilusão próprios. Que isto te sirva de orientação e norma. Entremos todos no recinto, para vermos se nesse jardim zoológico celeste poderemos aplicar os re- cursos necessários e se se entende Minha Linguagem.”
PRIMEIRADOUTRINAÇÃODOBISPO MARTIM
Rápido, penetramos naquele recinto, onde o grupo ainda se acha amontoado nos cantos, na mesma forma animalesca. Pedro então os chama, dizendo: “Confessores de Calvino, voltai, pois o Senhor vos
aguarda! Confessai, não a Calvino ou a Lutero, nem a Pedro, a Paulo ou a João, mas unicamente a Jesus, o Crucificado! Ele é Senhor de Céus e Terra; afora Ele não existe soberano, nem Deus, nem Vida! Ele, o verdadeiro Cristo eterno, aqui está para vos receber e vos transmitir a felicidade, em Seu Santo Nome!”
Retruca um deles, com aspecto de burro: “Quem és tu, para apre- sentar-nos a antiga lenda de Jesus, em nossa época moderna? Não vês os meus tesouros, com os quais espero viver por toda a eternidade, de sorte a estar plenamente satisfeito neste meu estado? Que faria eu com Jesus, que nunca existiu, nem existirá? Quando se começará a eliminar os an- tigos sábios, para colocar no lugar deles os atuais homens inteligentes? Seria preciso que fosse Homero, o maior poeta; Orfeu, verdadei-
ro deus dos sons; Apelles, o primeiro pintor; Apollodorus, o primeiro escultor; Gengis-Khan, o maior herói e conquistador; Sócrates, Platão e Aristóteles, os maiores filósofos; Ramsés e Sesostris, os maiores reis da construção; Ptolomeu, o primeiro astrônomo; Moysés, o legislador mais sábio; Davi e Salomão, os reis mais sábios; e finalmente Jesus, o maior moralista?
Porventura os alemães não possuem homens competentes, diante dos quais os personagens da Antiguidade têm que desaparecer? Ainda assim se constroem altares de sacrifícios para aqueles, enquanto não raro se deixa morrer à míngua os da atualidade. Quando terminará esse absurdo?”
Diz Pedro: “Eu sou quem sou; às vezes, Simão Jonas; outras ape- nas Pedro. Quanto à tua época atual, não merece grande crédito, e a antiga lenda de Jesus vale evidentemente mais que os tesouros de tua pele de asno; os antigos sábios têm valor superior aos patetas de hoje, pois sabiam o que faziam, tornando-se professores dos povos de todos os tempos, enquanto os supostos letrados nem conhecem a si próprios, muito menos a Natureza puramente Divina do Senhor, Jesus Cristo, razão por que se apresentam diante Dele como vós, na forma de asnos, bois, lebres e bodes. Analisai-vos reciprocamente que haveis de desco- brir a verdade de minhas palavras. Por que tínheis tanto medo de Jesus,
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pedindo que não Se apresentasse diante de vós, e agora, que realmente vos visita, O considerais como homem lendário?”
O parvo nada responde. Martim, então, observa: “Senhor, Tua Pa- ciência e Amor são ilimitados! Se eu pudesse ministrar uma boa surra a esse asno, me sentiria aliviado! Os católicos também são tolos, mas nunca vi um como esse calvinista!”
Digo Eu: “Caro irmão, não te lembras o que Eu disse a Pedro quando decepou a orelha de Malco, servo de Herodes? O mesmo se aplica aqui. Onde o amor, em união com a brandura, nada alcança, não existe poder nem espada que algo consiga.
A Onipotência pode julgar, matar e aniquilar tudo pelo julgamen- to; socorrer, soerguer, conservar a vida, devolver uma perda, libertar um espírito algemado — só é possível ao amor, ligado à meiguice e paciên- cia; onde faltar a paciência, só haverá perdição e morte.
Nosso desejo é que ninguém pereça, mas que todos que em Mim creem recebam a vida eterna. Depende de nós usarmos apenas aqueles meios pelos quais seremos capazes de ajudar a cada um em sua necessi- dade. Faze uma tentativa nesses calvinistas intratáveis e vê o que conse- guirás como ex-bispo.”
Diz Martim: “Estaria tudo bem, Senhor. Mas, se Pedro nada con- seguiu sem praticar milagres, não sei qual seria o meu êxito. Tu, Senhor, estando aqui Presente, em Tua Natureza Intrínseca, seria imperdoável se eu fizesse uma tentativa neste sentido, pois o mais leve Pensamento Teu realiza mais do que eu num discurso sem fim. Retira, pois, a in- cumbência que me deste!”
Respondo: “De maneira alguma, pois tu és precisamente um recur- so Meu. Se Eu fosse agir Pessoalmente neste grupo semimorto, produzi- ria o julgamento, porquanto sabe de Minha Presença, e alguns também creem que Eu seja o verdadeiro Senhor.
Por isto te entreguei essa tarefa, para a qual Pedro preparou o ca- minho; ele mesmo é ainda muito forte para esses fracos. É preciso que alguém, cuja força não sufoque os fracos, os socorra. Moscas têm que ser alimentadas por moscas a fim de não perecerem, e criancinhas só
podem ingerir leite, antes de serem tratadas com alimento de adultos. Cumpre, portanto, tua missão!”
Eu, Pedro e o humilde livreiro nos afastamos do recinto, deixan- do Martim a sós com os trinta homens animalizados. Ele os observa durante algum tempo e diz: “Pobres irmãos, que na Luz pura de Deus Eterno e Poderoso vos apresentais quais animais tolos, ouvi-me com paciência!
Fui na Terra bispo católico e tenaz oponente do protestantismo, muito embora considerasse minha religião inferior à doutrina de Mao- mé. Aqui cheguei da maneira como vivi na Terra, sem inclinação para o Bem e a Verdade, pois meu coração era um verdadeiro estábulo de Augias. Havia apenas um fator, aliás insignificante, que se fazia sen- tir dentro de mim; imaginava Jesus, o Senhor, tal qual fora descrito e pensava: se fosse possível trabalhar com Ele, convicto de ser Ele o Ser Supremo, eu seria o homem mais feliz do Universo. Primeiro, seria a máxima honra; segundo, o melhor seguro de vida eterna, a proteção mais poderosa, podendo em tal Companhia assistir a coisas milagrosas e inimagináveis para a mente humana.
Esta minha ideia fantástica foi a minha salvação da perdição eterna, pois traduzia um amor oculto para Deus, ignorado por mim. Con- quanto fosse muito difícil, consegui, por este amor, que minha fanta- sia terrena se concretizasse. Encontro-me realmente com Jesus, Senhor Único do mundo espiritual e material, e deste modo estou provido para toda a eternidade.
Se não quiserdes ser vossos maiores inimigos, segui o meu exemplo. Acreditai-me, o Senhor Se encontra nesta Casa maravilhosa e é infini- tamente Bom. Tende confiança, que tudo melhorará, e preferi minha experiência ao vosso conceito errôneo, tornando-vos instrumentos vi- vos do Senhor.”
A esse discurso enfático, todos os trinta homens se voltam para ele, falando quase em uníssono: “Amigo, essa oração nos agradou mais que a primeira, conquanto não possamos deixar de protestar contra os teus conceitos sobre nossa individualidade animalesca, para usar tua expres- são. Pode-se cognominar um tolo de burro; mas, querer convencê-lo de
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ser realmente um asno, isto é forte demais. Seja como for, tuas palavras provaram tua inteligência e bondade, e tens razão quanto ao teu Jesus. Apenas estranhamos a ausência de anjos e vossa vestimenta realmente rude. És simples camponês, sem paletó; e Jesus e Pedro usam roupa bem vulgar. Somente o livreiro denota bom gosto, todavia sem cunho celeste. Se fores capaz de reparar esta falha, acreditaremos em tudo e seguiremos os teus passos.”
Algo confuso, Martim não sabe o que responder, pois ele mesmo ainda não tinha pensado em tais pormenores durante sua evolução es- piritual. Finalmente ele prossegue, dizendo: “Amigos, isso depende da própria pessoa. Eu assim quis que fosse, portanto me trajo deste modo. Tão logo quiser uma alteração, ela se fará.
Realmente ainda não vi anjos. Mas, que valor têm eles e toda a pompa celeste, quando se possui o Senhor de todos os anjos e glórias? Até então não necessitei desse aparato, tampouco desejei roupa melhor, pois o Senhor é Tudo para mim.
Basta atingirdes o meu estado que pensareis e sentires como eu. A eternidade está à nossa espera, podendo nos facultar muitos conheci- mentos ao lado do Senhor e Mestre eterno do Universo. A mais sublime glória é e será sempre o Senhor, Jesus. A Ele somente compete toda honra, louvor e amor eternos! Amém.”
A esta altura todo o rebanho se ergue como de uma nuvem de po- eira, mas em perfeita forma humana e diz: “Amém! Falaste sabiamente, acendendo em nosso coração uma luz que jamais se apagará. Gratidão ao Senhor Jesus, nosso Deus eterno!” Eis que entro com Meus dois companheiros, e todos se atiram a Meus Pés, clamando: “Pai Santíssi- mo, Jesus e Deus, sê Misericordioso para conosco, pobres pecadores! Teu Nome seja louvado hoje e sempre!”
Digo Eu: “Erguei-vos, Meus filhos! Uma vez que aceitastes vosso Pai, Ele vos procura, não com o julgamento, mas com o máximo Amor, aceitando-vos em Seu coração eterno. Vinde a Mim, que andastes can- sados e sobrecarregados, e Eu vos aliviarei para sempre!” Os mais pró- ximos se atiram ao Meu Peito, chorando de alegria, pela primeira vez;
em seguida Me acompanham ao grande refeitório, onde já se acha o primeiro grupo orientado por Pedro.
ONOVOLARDOS LIBERTADOS
Esta sala, em direção ao Sul, é enorme e decorada com verdadei- ra pompa celeste. No centro se encontra uma grande mesa redonda, de ouro puro e transparente, com doze pés feitos de pedras preciosas. Ao redor estão cadeiras de ouro para todos os hóspedes. O piso é tão branco quanto neve, e o teto é azul claro, no qual brilham as mais belas estrelas. Existem vinte e quatro janelas, de doze pés de altura e sete de largura. Através delas penetra uma luz esplêndida no salão, e cada janela aponta regiões de beleza e suavidade jamais imaginadas. Sobre a mesa estão sete pães ao lado de uma grande taça de precioso vinho.
Todos estão inteiramente pasmos diante de tamanha magnificên- cia, e o grupo chefiado pelo livreiro está curvado até o solo, em pro- fundo respeito. Os trinta, que há pouco perguntavam pela ausência da pompa celeste, não encontram palavras para expressar sua admiração.
Somente Martim continua o mesmo e diz, apontando para Mim: “Por que estais tão espantados à vista da magnificência desta sala? A mim, deixa inteiramente indiferente, pois se nosso Senhor e Pai aqui não estivesse, nem daria atenção à mesma. Somente Ele é tudo para mim!
Se Ele Se encontrasse comigo na cabana mais modesta, eu estaria mais feliz que aqui, sozinho. Por isto, não me afeta toda essa pompa, pois considero apenas a Ele, a Quem cabem o máximo respeito, amor, admiração e adoração. Tudo que aqui se encontra é apenas Obra Dele e de um sopro de Sua Boca divina. Fazei o que quiserdes; eu penso deste modo!”
Digo Eu: “Martim, estás desempenhando o teu papel a Meu Con- tento e te tornaste um verdadeiro Paulo. Tem cuidado, porém, de qual- quer fraqueza em que dirias: Ah, se o Senhor não estivesse sempreao meu lado! — muito embora Eu não te deixe! Vamos à mesa, pois temos grandes tarefas à nossa espera.”
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Assim, parto o verdadeiro pão da Vida Eterna, divido-o entre to- dos, que o saboreiam com grande amor e gratidão. Em seguida, tomam o Vinho da Vida e do Conhecimento, de uma só taça, com o que se sentem imbuídos de compreensão sublime e celeste, a ponto de não poderem expressar seu sentimento de felicidade e gratidão por tamanha dádiva. Eu os abençoo e os designo para servos verdadeiros em Meu Reino eterno.
Isto feito, o bispo Martim se levanta e diz: “Senhor, percebi que também eu devo deixar-Te para resolver um trabalho importante. Faze o que quiseres, mas não me afastes de Ti. Não Te abandonarei, pois Te amo demais! Assim — fico Contigo!”
Digo Eu: “Caro Martim, não serás afastado de Mim por um mi- nuto sequer, nem tampouco qualquer um dos incontáveis que Me re- conheceram e aceitaram em seu coração. No entanto, é necessário que cada um se dirija para onde Eu determino, aparentemente sem Mim, do contrário sua alegria seria incompleta e inútil sua vida. Por isto, convém empregar a maior atividade e fazer o bem; quanto mais ativo, maior felicidade recebe o indivíduo, pois a bem-aventurança consiste somente na ação dentro de Minha Ordem Eterna e Celeste.
Olha pela janela. Em direção ao Sul vês um grande e belo jardim, não distante desta Minha Casa Eterna, e nele há uma casinha agradável, que internamente é maior do que parece. Toma conta dela, pois é tua. Em um quarto encontrarás um quadro branco luminoso. Deves mirá-lo sempre que voltares de um serviço, pois lá descobrirás escrita a Minha Vontade, que deves seguir em todas as ações. Se assim agires, estritamente, receberás tarefas maiores; em caso contrário, diminuirão
as responsabilidades.
Se porventura surgir alguma dúvida, voltarás aqui para nova orien- tação. E se Me chamares à tua casa, estarei ao teu lado. Estás informado de tudo. Vai até lá, onde serás cientificado dos pormenores, que terás de respeitar com rigor.
Esta explicação serve para todos os presentes. Olhai pela janela, e cada um descobrirá sua casa. A orientação dada a Martim vale para todos. A organização doméstica é idêntica à dele.”
O bispo Martim que duvida de Minha Presença em seu lar, coça a orelha, mas obedece conforme Minha Ordem. Os outros do grupo, aos quais Minha Proximidade ainda é por demais sublime, se enca- minham mais facilmente a fim de se refazerem de certo modo desse êxtase psíquico.
PRIMEIRASURPRESANOLARDE MARTIM
No momento em que Martim penetra em seu lar ele se admira sobremaneira por Eu recebê-lo Pessoalmente e levá-lo a conhecer sua morada, o que os anjos efetuam para os outros do agrupamento, pois seu respeito supera o amor a Mim. Em Martim dá-se precisamente o contrário, razão por que não lhe agradara a suposta separação.
Todo feliz ao Me ver à porta, ele exclama: “Ah, assim está bem me- lhor do que em Tua Casa, ainda mais naquele salão pomposo! Como já disse: Se Tu estiveres comigo, a choupana mais simples é o Céu mais deslumbrante para mim. Mas, como aqui vieste tão depressa? De certo agiste milagrosamente? Tudo perto de Ti é milagre; eu somente não o compreendo. Não deixa de ser estranho que aqui estivesses antes de mim, enquanto Te deixei no grande salão.”
Digo Eu: “Não te aflijas por isto! Não fosse Eu sempre o Primeiro e o Último em tudo, a situação do Universo seria deprimente. Podes te dirigir para onde quiseres que hás de Me encontrar. Agora quero mos- trar-te a organização de tua casa e explicar sua utilidade. Conquanto seja pequena, contém mais que o mundo, sim, mais que um território solar na esfera cósmica — e disto terás prova evidente. Vamos!”
Martim Me acompanha e se admira sobremaneira ao entrar num imenso átrio, em vez de uma simples antessala, que se dilata à medi- da que o observa com atenção, apresentando tudo que cabe em sua imaginação.
No centro deste átrio enorme está uma grande esfera brilhante em um pedestal dourado, e atrás dela, numa armação de bronze, um globo terrestre artificial, de perfeição celeste, contendo tudo que pertence à Terra, desde o centro até a superfície. Atrás do globo se acha todo o
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sistema planetário de nosso Sol, organizado da mesma forma artística e celestial, demonstrando todas as minúcias e particularidades de cada planeta e do próprio Sol.
O piso do átrio é de safira, as paredes de esmeraldas, o teto de lá- pis-lazúli e coberto de inúmeras estrelas, e pelas grandes janelas penetra uma luz maravilhosamente mesclada de roxo e vermelho. À meia altura do átrio existe uma galeria enfeitada de jaspe, havendo doze portas no térreo que levam a outros recintos. As paredes de esmeraldas produzem as mais maravilhosas silhuetas.
Após prolongada admiração, Martim consegue dizer: “Senhor, que fantasmagoria é essa? Externamente é quase uma casinha de moscas, e internamente um mundo inteiro! Como pode ser maior por dentro que por fora? Não consigo entendê-lo!”
Digo Eu: “Caro Martim, dentro em breve o compreenderás. No verdadeiro mundo dos espíritos tudo é contrário ao mundo material. O que na Terra é grande aqui é pequeno, e vice-versa. Quem no mundo é o primeiro é o último aqui; e quem na Terra foi o último será o pri- meiro aqui.
Qual é o tamanho do homem? Não é difícil medi-lo. Mas, se ele for sábio, quantas grandezas não se ocultam em seu coração? Nem eterni- dades serviriam para revelar e assimilar a complexidade de seus milagres! Observaste sem dúvida um grão de trigo na Terra. Seu tamanho é diminuto, no entanto contém tamanha produção dentro de si que nem numa eternidade serias capaz de calcular. O exterior de tua casa cor- responde à tua natureza exterior e inteiramente humilde, e é como tu, pequena. O interior é idêntico à tua sabedoria interna, que se apresenta maior que o exterior de tua casa. O interior aumentará à medida que fores crescendo na verdadeira Sabedoria de Meu Amor. Aqui cada um vive segundo sua sabedoria, surgida do amor a Mim, que é o criador de
tudo que se apresenta para ti tão milagroso.
A esfera branca representa tua consciência purificada por Mim. Lá descobrirás sempre a Minha Vontade, que terás de seguir à risca. Se bem que toda criatura no mundo possua esfera idêntica de consciência em seu coração, onde sempre é anotada a Minha Vontade para fiel cumpri-
mento individual, são poucos a lhe darem atenção, enquanto muitos a cobrem de preto, por toda sorte de pecados, para que não sejam obriga- dos a conhecer a Minha Vontade.
Vês, portanto, a organização natural desta casa, que nada tem a ver com fantasmagoria. Por detrás da esfera se encontra uma cópia fiel do globo, e no fundo o Sol com os demais planetas. Se tiveres alguma dúvida, basta olhares a superfície oposta da esfera, voltada para a Terra, onde encontrarás a explicação. Querendo saber o que deves fazer, anali- sa a superfície frontal da esfera, na qual verás anotada a Minha Vontade. Além disto, existem doze portas que levam do átrio para recintos menores. Neles perceberás certos pratos ainda cobertos, que poderás saborear somente após Eu os ter abençoado, do contrário te confun- diriam e não serias capaz de ler, por longo tempo, a escrita de Minha Vontade. Tão logo chegares a uma dessas despensas encobertas, convém abandoná-las e procurar-Me, que Eu as revelarei e abençoarei. Agora sabes como andam as coisas; age como te disse, que aumentarás em
felicidade. Amém.”
ESTUDOGEOGRÁFICOETÉDIODE MARTIM
Assim, afasto-Me aparentemente e o bispo Martim começa a mo- nologar: “Bem, de novo estou sozinho, se bem que rodeado de bri- lho celeste, portanto sou feliz. Mas estou só. Minhas ideias sobem e descem pelas paredes, não havendo uma simples mosca para produzir um zumbido.
Vou me ocupar um pouco do estudo do globo terrestre. É real- mente uma obra maravilhosa! Ah, eis a cidade em que trabalhei como bispo; a Igreja, minha residência. Vê só, o cemitério, meu túmulo com um monumento fabuloso. Como são ignorantes os homens a erigirem monumentos à matéria, esquecendo-se do espírito! Se pudesse enviar um raio para destruí-lo, meu coração ficaria mais aliviado. Compete ao Senhor fazer o que é justo!
Vou dar uma volta ao globo para ver a situação na Austrália. Ih, que cegueira! Nada mais que escravidão, perseguição, assassínio físico e
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espiritual! Adeus, sr. globo, deste modo não haverá intercâmbio entre nós. Burro seria eu se me aborrecesse até o desespero no Reino da Paz! Fica para lá, aparelho miserável de crueldade humana!
Veremos o sistema planetário! Ah, eis Vênus! Que aspecto tens, querida, pois que na Terra muitas vezes me alegraste com teu brilho fabuloso? Deixa-me ver de perto. Hum, imaginava outra coisa. És um planeta como o nosso, apenas não possuindo mares tão grandes e liga- dos entre si, enquanto estás suprida de montanhas muito elevadas.
Qual é a situação da flora e dos seres vivos? Peço uma ampliação do planeta, por um microscópio espiritual, para poder descobrir algo mais, porquanto não passa do tamanho de um ovo de galinha. Lançarei um olhar à esfera branca; talvez haja algo escrito. Não, nada. Ainda bem, pois sinto um respeito peculiar diante desta esfera. Quem sabe se con- tém algo na parte dianteira? Igualmente nada. Então voltarei ao sistema planetário. Eis Vênus de novo, do mesmo tamanho. Adeus, então, já que não queres aumentar!
Eis que vem o pequeno Mercúrio, do tamanho de uma noz. Não parece ter mares; em compensação possui grande quantidade de mon- tanhas, na hipótese que se possa denominar essas sinuosidades diminu- tas de montanhas. Podes continuar tua trajetória, Mercúrio, que nada temos em comum.
Que campeão vermelho vem a ser esse? Ah, tu és Marte! Também fazia outra ideia de ti. Julgava-te irrequieto e tempestuoso. A julgar pela superfície plana e dotada de poucas montanhas, pareces precisamente o contrário. É apenas isto que descubro; portanto, adeus!
Que vêm a ser essas sete bolinhas? Seriam planetas? Passai em fren- te! Eis que vem girando Júpiter, com quatro satélites! Maravilhoso! Qual seu aspecto? Quanta água! Somente no Equador existem algumas ilhas, com poucas montanhas de pequena altura. Este planeta é certamente milhares de vezes maior que os anteriores, porém, não vejo vegetação; as planícies são algo acidentadas, mas os meus olhos não conseguem descobrir sua causa.
Lá vejo Saturno, Urano e no fundo um grande planeta com dez luas, das quais três são bastante grandes. Cometas existem muitos, no
fundo. Tudo isto é realmente belo. Mas se as descobertas nos planetas se restringem a mares e montanhas, sua distração é curta e não serve para a eternidade. Já terminei com esse estudo e nada espero para o futuro.
Lá no centro se acha o Sol, uma imensa esfera. De que adianta se este seu tamanho, com relação à verdadeira dimensão, é igual a um grão- zinho de areia comparado à Terra? Portanto, passa bem, querido Sol!
Já finalizei o estudo das raridades celestes. Que farei então? Na esfera nada se descobre. Seria conveniente voltar para junto do Senhor? Seria uma falta de consideração confessar meu tédio como espírito feliz! Tédio não deixa de ser tédio, no Céu ou na Terra. Lá existe o consolo da morte, que tudo finaliza. Mas aqui, onde não há morte, graças a Deus, tudo toma caráter eterno, e esta circunstância monótona é pior que na Terra. Hum, nunca pensei em tédio no Céu, francamente!”
ALIMENTOSESPIRITUAIS,NÃO ABENÇOADOS
Prossegue Martim: “Agora me lembro que existem doze recintos ao lado deste salão, contendo pratos misteriosos. Hei de fazer uma in- vestigação. Abrirei a porta n° 1! Oba! Quem diria! Aqui está meu belo rebanho! Isto me agrada sobremaneira. Mas, convém dar meia volta, pois este prato ainda não foi abençoado.
Passarei para o n° 2. Em Nome do Senhor vou abrir com cuidado, porque não posso saber o que se oculta lá dentro. Está mais difícil para se abrir... mas, já consegui. Este recinto é algo mais escuro que o primei- ro e maior que todo o átrio. No fundo descubro numerosas criaturas desnudas, de ambos os sexos. Como são belas, mormente as femininas! Aí vem uma, diretamente em minha direção. Devo aguardá-la? Natu- ralmente, pois não está oculta! Talvez me queira dizer algo! Que beleza!”
Eis que diz a entidade feminina: “Certamente és proprietário desta casa, a quem aguardamos há muito?”
Responde Martim: “Sim... não... mais ou menos. Sou inquilino, enquanto Jesus, Deus de eternidade, é o Próprio Dono. Em que poderei ser útil, principalmente a ti, a mais bela de todo o Universo?”
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Diz ela: “Não deves elogiar-me tanto, pois lá no fundo existem muitas muito mais belas que eu, razão por que fui enviada como a mais feia a fim de não seres excessivamente ofuscado. Somos habitantes do planeta que vós, filhos do Altíssimo, chamais de Mercúrio, segundo fomos informados. Esta casa é tua e depende de ti aceitar-nos como serviçais, ou expulsar-nos. Pedimos-te que sejas misericordioso!”
Responde o bispo Martim: “Oh, por favor, ainda que fôsseis em número mil vezes maior, jamais permitiria vosso afastamento. Estou inteiramente apaixonado por ti e quero abraçar-te! Não, não! Mas, por que és tão bela e amável? Vem, amor, deixa que te abrace!”
Retruca ela: “Tu és um senhor, eu apenas tua escrava para sempre.
Basta mandares, que serei obrigada a obedecer.”
Diz Martim: “Oh, minha celeste! Não podes ser escrava, e sim so- berana de meu coração! Vem, vem! Oh, meu Deus, como és sublime! Já não posso nem respirar de êxtase!” No momento em que ele se inclina para abraçar a bela mercuriana, Eu bato no seu ombro e digo: “Alto lá, Martim, este prato ainda está oculto! Somente depois de Eu tê-lo aben- çoado para ti poderás abraçá-la, caso o desejares. Volta para a direita!”
Contesta Martim: “Oh, meu querido Jesus! Amo-Te muito, tanto quanto um mortal pode Te amar. No entanto, tenho que confessar..., como ia dizendo? Ah, sim, ainda que Te ame tanto, teria preferido que viesses alguns momentos mais tarde!”
Digo Eu: “Bem o sabia e te havia avisado deste fato, conquanto não quisesses abandonar-Me. Acontece Eu não abandonar quem se ti- ver apossado de Mim; portanto, também não te deixarei. Sai depressa desse recinto, que o motivo te será revelado a tempo. Tu, mulher, volta para trás!”
Ela obedece incontinente e o bispo Martim Me segue desapontado para a terceira porta, que se abre espontaneamente. Muito curioso, ele lança um olhar para o interior, levando um forte choque ao descobrir um outro mundo provido de maravilhas inéditas e muitos seres felizes em forma humana, de uma beleza perturbadora.
Passado algum tempo, ele exclama: “Oh Senhor, Criador e Mestre de todas as coisas e seres, isto ultrapassa qualquer imaginação humana!
Que criaturas são essas? Anjos ou espíritos humanos? Muito embora estejam igualmente desnudas, a pele alva, a perfeição harmoniosa do físico e o brilho que as envolve suplantam as vestes mais magníficas! Não existe louvor e honra para expressar o que Te compete! Tu és San- to, e Céus e Terra estão repletos de Tua Glória! Peço-Te prosseguirmos, pois não suporto este quadro maravilhoso. Dize-me apenas quem são esses seres.”
Respondo: “São almas do planeta Vênus e sua finalidade é servir-
-vos, Meus filhos, onde for preciso. À medida que necessitares o auxílio delas, com sabedoria, aumentarás sua felicidade. Não são as únicas à es- pera de teu aceno, pois existem inúmeras de outros planetas cujo apro- veitamento futuro terás que aprender. Eis tudo que necessitas saber.
Daí poderás deduzir o sentido das palavras de Paulo quando disse: Ninguém viu, ouviu e sentiu o que Deus reserva para aqueles que O amam! Na Terra ignoravas o motivo da atração das estrelas, e agora vês o ímã que tantas vezes te atraiu, fazendo vibrar tua alma empedernida.
Não deixa de ser uma espécie de serviço desses seres que, através de sua vontade firme e inabalável, se aproximam de almas sensíveis, con- duzindo-as para as estrelas. Isto fizeram quando ainda não as conhecias, e o farão mais acentuadamente após este contato. Vamos à 4a porta, onde descobrirás coisas mais espetaculares.”
Diz o bispo Martim: “Senhor, por que essas criaturas sublimes não podem se aproximar de nós, necessitando antes de Tua Bênção?”
Respondo: “Quando na Terra passeavas à beira de um rio, porven- tura podias alcançar as pessoas do lado oposto, sem ponte ou navio? O que no mundo é feito por uma ponte ou navio, aqui é realizado por Mi- nha Bênção. Sem Mim, nada farás na Terra ou no Céu. Minha Bênção é Minha Onipotência, Meu eterno Pronunciamento ‘Que assim seja!’ que tudo criou. Assim terá que ser construída, primeiro, a ponte para todos esses seres, para que possa haver intercâmbio sem prejuízo. Tudo tem seu tempo, que somente Eu determinarei — e aquele a quem for revelado por Mim.”
Insiste Martim: “Como pôde a bela mercuriana aproximar-se de mim a ponto de ter caído em meus braços caso não me tivesses detido,
e ainda assim foi um prato oculto e não abençoado por Ti? O que lhe serviu de ponte? Foi ela simples aparição?”
Digo Eu: “Caro filho, não queiras saber mais do que Eu te revelo. O desvario provocou a queda de Adão e, antes dele, do maior espírito criado. Se quiseres ser perfeitamente feliz, terás que seguir, em tudo, as Minhas Diretrizes, sem jamais ultrapassar a meta imposta por Meu Amor e Sabedoria.
Que te sirva a promessa que em tempo justo tudo te será esclareci- do, do contrário voltarás a um estado psíquico muito mais penoso que o anterior. Enquanto não possuíres a vestimenta do matrimônio celeste não serás habitante fixo do Céu, mas apenas um pecador aceito por mera Graça, podendo tornar-te verdadeiro habitante celeste através de várias provas. Nada mais perguntes e segue-Me à quarta porta.”
Martim se dá uma bofetada e Me acompanha, arrependido pelas indagações capciosas. Eu o acalmo, dizendo: “Não te aflijas. Minhas Palavras não se destinam ao julgamento, mas à Vida eterna. Eis a por- ta aberta.”
ASMARAVILHASDOPLANETA MARTE
Prossigo: “Dize-Me o que vês e se te agrada.” Responde ele, algo desalentado: “Senhor, não tenho coragem, nem palavras para descre- ver essa suntuosidade excessiva. Constato apenas que me torno obtuso diante do constante crescimento dessas maravilhas celestes, sobretudo as que aqui se apresentam, incontestáveis, em formas femininas perfeitas. Quantos milhões existem em um desses recintos isolados que, de certo modo, é um mundo total? Acresce ainda as milhares de casinhas muito jeitosas, templos, jardins, bosques e numerosas montanhas co- bertas de tapetes de grama. É por demais, Senhor, não posso concebê-
-lo, nem o poderei jamais. Não me mostres mais maravilhas suntuosas, pois as que vi até agora já se tornam por demais exuberantes.
Para que necessito de tudo isto? Se tenho a Ti, e mais algum amigo que more comigo quando vez por outra Te afastas, nada mais quero. Aqueles cuja consciência diz serem puros e merecedores de tais sublimi-
dades poderão possuí-las. Quanto a mim, sei perfeitamente o que me cabe, satisfazendo-me com uma cabana de palha e com a permissão de poder visitar-Te, para receber um pedaço de pão e um gole de vinho.
Podes passar este palácio a quem achares mais digno e capacitado que eu. Faze o que quiseres, Senhor. Se eu puder escolher livremen- te, prefiro não ingressar em outra porta. Como utilizar todos esses se- res dentro de minha ignorância? Desiste, pois, de me conduzir além, Senhor! Dá-me uma pocilga, como as existentes na Terra, que serei mais feliz!”
Digo Eu: “Se pretendes conhecer melhor do que Eu os caminhos necessários à perfeição de uma alma celeste, dar-se-á o que desejas. Ape- nas te asseguro não haver progresso espiritual nestes moldes. Se confia- res mais em Mim do que em tua cegueira, faze o que Eu quero e não o que seja de teu gosto.
Julgas ter Eu criado os Meus filhos somente para morarem em ca- banas e saborearem pão e vinho? Enganas-te redondamente! Não cons- ta o seguinte: Sede perfeitos como vosso Pai no Céu? Porventura alcan- çarás essa perfeição em um chiqueiro?
Não viste na Terra que as crianças preferem ocupar-se com suas brincadeiras do que dedicar-se aos futuros conhecimentos profissio- nais? Não conheceste muitas criaturas que prezavam a ociosidade acima de tudo? Fazes parte desta categoria e tens receio de tudo que aqui te espera. Além disto, também queres teimar Comigo por ter feito uma reprimenda à tua pergunta capciosa.
Isto não serve para quem Eu já provi de tamanha Graça, Amor e Misericórdia! Recebes o que milhões ignoram. Inúmeros há, felizes com a expectativa de Me poderem ver um dia, que são conduzidos por sim- ples anjos protetores. Quanto a ti, sou Eu Mesmo — Deus e Pai eterno do Universo, Meta feliz de todos os anjos e espíritos do Infinito — a te guiar; todavia preferes um chiqueiro àquilo que Eu te reservei para máxima bem-aventurança? Que desejo estranho acabas de externar!”
Perplexo, Martim responde: “Oh Senhor, Pai de Misericórdia, tem paciência comigo! Sou um animal, um imundo que não merece a menor fagulha de Tua Graça! Continua a ser o meu Guia que Te se-
guirei, apesar de ignorante!” Digo Eu: “Pois bem, vamos à 5a porta, a de Júpiter.”
OMUNDOMILAGROSODE JÚPITER
Nem bem chegamos à porta, ela se abre e o bispo Martim levanta as mãos à cabeça, bradando: “Em Teu Santo Nome, Senhor, o que vem a ser isto?! Um mundo colossal, circundado por quatro outros, tudo envolto em luz, da qual o mais sábio e sensível habitante da Terra não poderia fazer ideia! Que suntuosidade e majestade sem par dos palácios maravilhosos, dos templos grandes e pequenos!
Vejo também lagos imensos, cujas águas brilham como diamantes à luz solar. Tudo isto tem brilho próprio, pois não descubro luz externa. À medida que observo, percebo outras coisas, inclusive criaturas hu- manas, um tanto distantes, sem poder estudá-las. Certamente corres- pondem à beleza de seu planeta e prefiro que não se aproximem, pois talvez não suportasse sua imponência. Creio não existir espírito capaz de pesquisar e assimilar ao menos umapartícula dessa grandiosidade.” Digo Eu: “Meu filho, tudo que viste e ainda verás é apenas uma parte diminuta daquilo que os anjos deste Meu Reino eterno veem e compreendem em sua profundeza e plenitude. O que aqui vês, cau- sando-te tamanha surpresa, acha-se dentro de ti. A impressão de veres tudo como fora de ti baseia-se na visão espiritual, como num sonho, no qual vias as paisagens fora de ti, enquanto as fitavas com os olhos da alma. Existe apenas a seguinte diferença: aqui tudo é real, enquanto que no sonho tudo se apresentava como simples fantasmagoria. Nada mais
perguntes a respeito, pois no tempo justo te será esclarecido.
As criaturas desse planeta não podem ser vistas por ti por serem demasiadamente belas para teu estado atual. Tão logo estiveres mais forte, poderás analisar e apreciar tudo e sua pureza.
Passemos à outra porta, onde descobrirás sublimidades incompa- ráveis. Deves ter calma e ouvir apenas o que Eu te disser. Não Me per- guntes pelo motivo, tampouco insistas na explicação daquilo que não compreenderes. Vamos!”
Prossigo: “Já nos encontramos na porta aberta. O maravilhoso cor- po celeste, o grande baluarte que a imensa distância se destaca num colorido azul claro, e acima dele tem sete agrupamentos, ou digamos anéis, representa o planeta Saturno, o mais belo e melhor de todos a girar ao redor do Sol. Teu planeta também faz parte do sistema, sendo o mais simples e último da Criação, destinado a servir aos espíritos mais importantes como escola de humildade e provação.
A razão disto é a seguinte: Se um soberano na Terra, morando na residência de seus antepassados, costuma passear pelas avenidas e pra- ças, os vizinhos nem lhe dão atenção, ao que ele também não dá im- portância, pois conhece seus súditos. Se for visitar uma pequena aldeia, todos o recebem com ovações exageradas, o que o tenta a demonstrar sua verdadeira individualidade, fato que não teria efeito na capital, por ser ele conhecido de todos.
O mesmo se daria caso alguém acendesse uma quantidade de pól- vora dentro de um grande hall, onde a explosão não produziria efeito; ao passo que a mesma quantidade de pólvora incendiada num pequeno recinto teria um resultado destruidor.
Como o grandioso se destaca apenas frente ao ínfimo, o forte perto do fraco, o poderoso diante do impotente, a Terra é tão miseravelmente constituída em tudo para servir aos espíritos mais poderosos e ofuscan- tes como humilhação e subsequente vivificação, ou para julgamento e morte eterna. Deste modo serve o que é pequeno e insignificante para ressaltar o que é grande e vistoso, tornando-se uma provação; enquanto o que é grande e importante deveria imitar a referida conduta, procu- rando humilhar-se.
Se um homem de estatura elevada quiser passar por uma portinho- la estreita e baixa para entrar num recinto, terá que se encolher e curvar bastante. Assim, também a Terra é um caminho estreito e espinhoso, uma porta baixa e estreita para a Vida, para todos os espíritos que ou- trora foram grandes e quiseram ser ainda maiores.
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Em seu primitivo orgulho não quiseram submeter-se ao caminho da humildade, achando-o muito pequeno para eles, assim como um elefante não poderia passear por cima de um cabelo, ou uma baleia na- dar numa gota d’água. Tal caminho seria, portanto, tolo, e Seu Autor, sem conhecimento e raciocínio.
Eis que aceitei a cruz, como Espírito Supremo, e fui o Primeiro a palmilhar esse caminho, demonstrando ser possível a todos os espíritos percorrê-lo para alcançarem a Vida verdadeira, livre e eterna.
Muitos seguiram este caminho e atingiram a meta destinada e de- sejada, quer dizer, a elevação para a filiação divina, a herança da Vida eterna em todo poder, força e máxima perfeição pela aquisição dos atri- butos criadores que em Mim naturalmente se acham na medida justa. Isto não acontece com os espíritos de todas as estrelas e mundos, assim como nem todos os membros do corpo possuem visão e audição, mui- to menos a visão interna que, no início, é a própria consciência do ser individual e a capacidade de ver e reconhecer Deus.
Tais capacidades são posse de certos órgãos do corpo, enquanto outros não participam delas, embora dele façam parte integrante e usu- fruam dos seus dons.
O mesmo acontece com os habitantes racionais de todos os outros mundos; são partes isoladas do homem total Minha Semelhança e a semelhança de todos os Céus, razão por que não necessitam de todos os dons divinos, inerentes aos Meus filhos, para sua felicidade. Mas, se estes se tornam bem-aventurados, os habitantes estelares também o são neles e com eles, assim como vós, Meus filhos, em Mim e Comigo, vosso Pai Amoroso e Santo de eternidades em eternidades.
Se, portanto, és feliz, todos os que aqui vês também o são, assim como se te achas saudável, teu corpo também o será. É, portanto, dever do amor de Meus filhos tornarem-se tão perfeitos como Eu; pois desta Perfeição depende a felicidade de inúmeros netos, que aumentarão vos- sa bem-aventurança até o Infinito.
Agora sabes porque te mostrei primeiro este planeta mais próxi- mo da Terra. Medita a respeito e segue-Me à 7a porta, que te levará a
um novo conhecimento. Também lá não deves fazer perguntas, pois sei qual o caminho por onde devo conduzir-te para te fazer feliz. Vamos!”
NATUREZAEUTILIDADEDE URANO
(O Senhor): “Já nos encontramos na sétima porta, na qual desco- bres igualmente um novo mundo cósmico, se bem que não tão grande e belo como o anterior. Em compensação vês edifícios raros e arrojados, e obras incontáveis realizadas pelos habitantes teimosos do planeta que chamais de Urano. Além disto, descobres muitos jardins repletos de or- namentações singulares. Em suas alamedas largas vês inúmeros espíritos em forma humana e normalmente vestidos. Seus olhares estão voltados para nós, pois pressentem Minha Presença, inclusive seu futuro pro- prietário e senhor, pelo qual esperam ingressar na bem-aventurança que lhes promete força e poder.
No fundo, a aparente longa distância, vislumbras cinco planetas pequenos, satélites de Urano, de organização inteiramente diversa, no entanto em plena harmonia com ele. Os espíritos deste planeta servem aos homens no seu crescimento físico e psíquico, isto é, apenas no que se refere à formação externa, ou seja, o crescimento, que é ocasionado pela insuflação ordenada e permitida deste mundo cósmico. Havendo necessidade de crescimento dentro do homem, os elementos correspon- dentes se encontram no ponto principal dele; por isto, tudo que aqui vês se acha dentro de ti. Todavia, este planeta se encontra realmente no Universo, com seus habitantes e coisas, sem os poderes ver.
Quando alcançares a maturidade da Vida eterna poderás ver a gran- de Criação fora de ti, como Eu a vejo. Isto é necessário porque Meus filhos aperfeiçoados ou anjos, que recebem um mundo para cuidar, forçosamente devem conhecê-lo minuciosamente. Para a pesquisa da verdadeira Criação fora de ti ainda não atingiste a necessária maturação; por isto, tens que te satisfazer com esse panorama, pois vês a realidade num reflexo vivo dentro de ti, como se fora externamente.
Tens que crescer nessa pesquisa interior e teu espírito amadurecerá alimentado no amor para Comigo, sentimento que suprirá o amor ao
próximo. Eis a bênção prometida quando tencionavas amar em excesso a bela mercuriana Essa bênção, ou seja, a ponte certa que se dirige à realidade infinita, jamais te será tirada, e em seus alicerces perceberás perfeitamente onde estás, o que és e de onde vieste.
Sabes o necessário quanto a esta porta e fui Eu a fornecer-te o conhecimento. Convém meditares a respeito e em seguida Me acom- panharás à oitava, onde conhecerás outro mundo com seus habitantes peculiares.”
OPLANETA MIRON
Prossigo: “Eis que deparas com um mundo cósmico extenso e inundado de luz verde clara. Existem montanhas elevadas, muitas das quais produzem fumaça azulada. Correspondem elas aos vulcões que existem em grande quantidade neste planeta, de nome Miron.
Atrás dele percebes dez outros, pequenos, pertencentes a ele, con- quanto tenham organização e consistência diversa. Aqui verás a cada momento algo novo: árvores a flutuarem no ar e outras coisas inéditas. A fumaça provinda das montanhas toma formas raras. As criaturas per- feitas são geralmente vestidas, de sorte que nada vês além do rosto.
São inclinadas à música e poesia, razão por que influenciam Meus filhos, fazendo-os sensíveis, no coração e na alma, a tais artes. Loca- lizam-se nos órgãos apropriados do homem na Terra, despertando a inclinação para a música e a poesia. De um modo geral, todos os senti- mentos elevados e românticos são provocados por este planeta.
Não deves imaginar o planeta físico, se bem que seja constituído de tal forma, mas sim a cópia correspondente dentro de teu espírito que existia antes de toda a Criação material, que se formou segundo o que existia em cada espírito perfeito. Antes do mundo havia o seu espírito criador. Por este motivo, o planeta que tens dentro de ti é muito mais antigo que o verdadeiro, e caso faltasse em apenas um espírito humano, jamais poderia ser criado.
Daí deduzirás que para te conheceres perfeitamente terás de tomar conhecimento de tudo que se acha fora de ti, pois não há algo fora de
ti que não estivesse muito antes dentro de ti; assim como em todo o Universo não pode haver o que não existe dentro de Mim, desde eter- nidades, em perfeita clareza.
Eu sendo o eterno Causador e Conservador de todos os seres, Meus filhos, dentro de Mim, são igualmente a substância básica de tudo que preenche o Infinito. Se o Infinito está em Mim, ele também está em vós, através de Mim, pois Meus filhos são a coroação de Minhas Ideias eternas e Pensamentos grandiosos.
Passemos à 9a porta, onde vislumbrarás novos milagres de Meu Amor e Sabedoria.”
OPLANETA DESTRUÍDO
Prossigo: “Aqui estamos e podes relatar o que vês, mas apenas o necessário.” Diz Martim: “Senhor, por enquanto não vejo muita coi- sa. Cerca de nove pequenos planetas, estéreis e informes flutuam na atmosfera, sem vestígio de construções, apenas alguns arbustos. Numa profundidade inconcebível tenho a impressão de ver um grande corpo cósmico, mas sua distância não me permite descrevê-lo em suas parti- cularidades. Quatro pequenos bólides a girarem na proximidade pa- recem ser povoados, porque vislumbro construções pequeninas. Seus habitantes talvez fossem criaturas diminutas. Agora flutua à nossa porta um pequeno bólide no qual, além de arbustos mirrados e algumas casi- nhas, nada mais descubro. Que vem a ser isto, Senhor?”
Respondo: “Trata-se de fragmentos de um planeta. Além dos nove bólides a girarem em órbitas desordenadas, existe grande massa de des- troços espalhados em outros planetas, em parte também vagueando nos espaços infinitos da Criação e, caso se aproximem de um planeta sólido ou de um sol, são imediatamente atraídos e de certo modo tragados.
Este planeta se destinava à missão que atualmente cabe à Terra, pois o primeiro espírito caído o havia escolhido, com a promessa de lá humilhar-se e voltar para junto de Mim. Tal estrela deveria ser fu- turamente dedicada à salvação, onde ele pretendia agir retraidamente;
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nenhuma criatura seria influenciada em sua esfera individual, muito menos outros planetas e seus habitantes.
Ele não cumpriu sua promessa, agindo com tanta malícia em seu livre arbítrio a ponto de não haver prosseguimento de vida. Por isto, o espírito foi banido para o centro ígneo deste planeta, e sua missão pas- sou imediatamente para a Terra.
Quando esta atingiu a maturação para criaturas humanas e Eu de- positei o gérmen no primeiro homem, o espírito mau procurou soltar as algemas. Senti piedade dele e deixei-o agir à vontade. Eis que o seu planeta explodiu, caindo no abismo da Terra, onde fez constantemente o que é de teu conhecimento.
O motivo da destruição desse planeta foi portanto, como sempre em todas as coisas, a Minha Misericórdia. Quando o planeta ainda esta- va inteiro e cheio de povos poderosos, o dragão enlameou seus corações que se incendiaram no mais feroz domínio, jurando guerra eterna até a completa destruição do último habitante.
Não houve meio livre de salvação e foi preciso um julgamento que resultou no destroçamento pavoroso do planeta, ocasião em que mi- lhões de criaturas gigantescas pereceram. Em parte foram soterradas, outras arremessadas para o Espaço infinito, havendo algumas que ca- íram nesta Terra, dando origem à lenda pagã das guerras de gigantes.
Os primitivos habitantes desse enorme planeta desapareceram com os destroços, por não encontrarem alimento. Em seu lugar surgiram homens relativamente pequenos; que ainda habitam os asteroides como criaturas extremamente modestas e correspondem aos cabelos e pesta- nas do grande Homem cósmico. No fundo vês o planeta completo com tudo que fazia parte dele, reservado para um grande Dia que surgirá futuramente sobre todo o Universo. Sabes, portanto, o que necessitas conhecer. O resto virá de ti próprio, isto é, da semente que ora depositei em teu coração. Vamos à 10a porta, onde te aguardam outros milagres.”
Prossigo: “Já chegamos e podes fazer a descrição.” Diz o bispo Mar- tim: “Senhor, que poderei dizer? Um brilho imenso ofusca meus olhos e harmonias fantásticas atingem meus ouvidos. Isto é tudo que no mo- mento posso vislumbrar. A luz parece abarcar um espaço imenso, pois vejo apenas essa claridade; no entanto, ela não envia calor pela porta. Porventura é ela a lâmpada da casa que me deste? Ou talvez seja o Sol em miniatura?”
Digo Eu: “Exatamente; trata-se do Sol correspondente dentro de ti. Procura fixar tua visão na luz, que começarás a elogiar a riqueza da mesma.” Martim se esforça por descobrir algo mais que a luz. Após cer- to tempo, ele retruca: “Senhor Jesus, nada mais vejo que luz. O aspecto é maravilhoso, mas cansativo.
Senhor, o que vem a ser a luz? No mundo os cientistas discutem até hoje a respeito, e no final demonstram que nenhum deles sabe ou entende algo. Também ouvi e li muita coisa neste sentido, percebendo que o conhecimento a esse respeito é nulo. Poderias esclarecer-me?”
Digo Eu: “Eu Mesmo sou a Luz em toda parte. Ela é Minha Ves- te, por ser a atividade incansável e eterna, Minha Natureza intrínseca, portanto Me penetra e envolve. Onde há grande atividade existe igual- mente forte luz, pois ela nada mais é que emanação da atividade dos anjos e espíritos evoluídos. Quanto maior for sua atividade, tanto mais intensa sua luz.
Os sóis brilham mais fortemente que os planetas porque neles há atividade milhões de vezes maior que naqueles. De igual modo é a luz de um arcanjo maior que a de um simples anjo porque tem que super- visionar territórios solares, enquanto um espírito de pequena sabedoria recebe apenas uma determinada zona na Terra, ou talvez em sua lua.
Por esta razão, um diamante brilha com mais intensidade que uma simples pedra de cascalho, porque encerra em suas partículas uma ati- vidade quase incalculável para ti, provocando sua dureza. Para a coesão de um diamante são precisos outros fatores que os do cascalho.
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Em suma, onde descobrires maior luz e brilho poderás concluir maior atividade, sendo a luz o brilho de todos os seres e coisas. A facul- dade visual consiste em perceber tal atividade. A visão sendo imperfeita, apenas percebe luz e brilho; estando perfeita, consegue ver a própria ati- vidade natural, o que se dará contigo assim que tua visão se aperfeiçoar. Presta atenção, que verás coisas estonteantes, pois temos um Sol à nossa frente! Transmite o que vês!”
Passado algum tempo em que Martim continuava a fixar a mas- sa luminosa, ele começa a se admirar sobremaneira. Perguntado pelo porquê, ele diz: “Senhor... será possível? Existem realmente estas ma- ravilhas e Tu as podes controlar e organizar? Isto ultrapassa inclusive a imaginação dos anjos! Tua Glória é incompreensível!
Como poderei falar, se os sentidos quase se desvanecem diante de tamanha beleza e majestade? Criaturas de formosura inédita são as úni- cas que consigo classificar, pois o resto não tem nome para mim. Nunca vi nada mais sublime, e a fantasia do homem mais inspirado jamais pôde imaginar isto.
As maravilhas se sucedem constantemente, uma mais incrível que a outra. Somente as criaturas continuam as mesmas, mas de beleza sem par. Até mesmo as regiões se transformam. Onde havia planície, subita- mente surge uma montanha imensa que impele as águas, fazendo nascer mares. As montanhas estouram e das fendas se precipitam mundos em fogo a serem impelidos ao Espaço infinito por uma força descomunal. Em compensação, outros tantos voltam do Espaço e se desmancham ao caírem num solo quente. Que fenômenos aterradores! No entanto, as criaturas pouco se impressionam com eles, caminhando nos jardins celestes e apreciando as maravilhosas flores que aos seus olhos se tornam cada vez mais belas.
A beleza e a perfeição das criaturas são insuportáveis! Não aguen- to mais! Algumas estão se aproximando e posso me deleitar com suas formas harmoniosas. Talvez fosse possível dirigir-lhes algumas palavras, mas quem diz que eu teria coragem para tanto? Senhor, faze com que se retirem!
Na Terra tive a ideia tola de que no mundo espiritual todos os es- píritos se assemelhassem; mas agora vejo existir a maior variabilidade, que lá é oculta pela carne. Eis que vem um casal que me deixa com- pletamente tonto. Não quero analisar as formas harmoniosas nem os olhos... mas que olhos! O próprio arcanjo Miguel ficaria perturbado diante desses seres!
Senhor, já me regalei o bastante com essas beldades celestes, puras demais para mim. Dá-me algo mais simples, para que possa suportar a minha feiura. Também sou espírito que deveria ter melhor aspecto que na Terra. Por que esses seres são tão belos, enquanto nós, Teus filhos, temos aspecto simiesco?”
Respondo: “Porque sois Meu Coração; eles são Minha Pele. Meus filhos são igualmente belos quando perfeitos. Assemelhando-se a ti na imperfeição, não são propriamente belos. Dedica-te ao aperfeiçoamen- to, que tua figura tomará aspecto mais celestial.
Foi de Minha Vontade que visses essas formas belíssimas para po- deres mais facilmente descobrir a ti mesmo, em sua luz. Continua a fitá-las por mais algum tempo, sente tua fealdade psíquica, para que se quebre, se torne porosa e amadureça, a fim de que teu espírito renasça, e te transforme em uma nova criatura.
Ainda estás longe do renascimento espiritual. Por isto te transferi para esse jardim, como se fosse uma estufa imensa que facilitasse teu completo renascimento. Tens que suportar o trato de uma planta espe- cial, pois cardos e abrolhos não fazem parte de jardins e estufas celestes. Continua a observar e relata o que vês, sem fazer perguntas.”
AMORESABEDORIA,VIRTUDESMÁXIMASDO ESPÍRITO
De novo Martim dirige o olhar para o Sol, analisando os fenôme- nos e maravilhas em seu solo luminoso. Finalmente prossegue: “Estra- nho, vejo o mesmo Sol, todavia criaturas diferentes. Não deixam de ser belas, porém suportáveis, assemelhando-se às dos outros planetas e até mesmo aos habitantes de nossa Terra.
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Agora percebo vários anéis em torno do Sol e em cada um existem criaturas grandes, menores e pequeninas; mas lá se encontram verdadei- ros gigantes, em cujas cabeças as outras poderiam passear quais piolhos. Senhor, perdoa minha observação imprópria, mas não pude evitá-la diante desses homens colossais.
Se um gigante assim se encontrasse na Terra, ultrapassaria as maio- res montanhas. Eu não deveria fazer perguntas, no entanto, peço-Te que me esclareças a razão do tamanho descomunal desses seres.”
Respondo: “Não viste na Terra as diversas armas dos soldados? Se fosses carregar uma pequena espingarda com a munição pesada, ela se- ria destroçada. O que sucederia a um planeta caso fosse suprido da força solar? Se a Terra fosse submersa por um minuto na torrente poderosa da luz solar, sofreria o mesmo efeito que uma gota d’água em cima do aço incandescente. Deste modo, o Sol tem que ser um corpo cósmico enorme e correspondentemente forte para suportar e conter sua força em constante atividade.
Se depositares uma pena de ave em cima de um ovo, ele nada so- frerá, pois tem suficiente consistência para suportar o peso da pena. Colocando no ovo um peso de cem quilos, ele será esmagado. Poderia um gigante vestir roupa de criança? Não, porque haveria de rasgá-la.
De igual modo, todo objeto na Criação tem sua medida, tanto o grande quanto o pequeno. Existindo mundos de diversos tamanhos destinados a suportar força relativa, neles vivem espíritos de tamanhos variados que necessitam de corpos correspondentes.
A verdadeira grandeza do espírito não é medida pelo seu volume, mas pelo seu amor e sabedoria. Aqui trata-se de espíritos originais que preenchiam, em estado livre, um território solar em plena atividade. Como desejam participar da bem-aventurança em Meu Reino, terão que palmilhar o caminho estreito da carne. Quando deixarem o corpo, terão igualmente o nosso físico, em virtude de sua meiguice e humil- dade, podendo todavia usar o primitivo quando o necessitarem. Agora sabes o necessário sobre esta esfera e podes relatar o que te causa admi- ração, para passarmos à décima primeira porta.”
Prosseguindo em sua pesquisa, Martim descobre templos e edi- fícios imensos, alamedas e pontes formidáveis, majestosas montanhas cujas cordilheiras contornam o Sol, separando os anéis, nos quais há habitantes e hábitos diversos. Ao mesmo tempo percebe que dos lados do anel central dois anéis têm grande semelhança em tudo. O que mais lhe agrada são as criaturas do anel central, a cuja beleza ele já se ha- bituou; apenas não devem aproximar-se, mormente as femininas. Até mesmo os homens o perturbam, em virtude de sua perfeição ultrapassar qualquer beleza feminina de nossa Terra.
Após prolongado exame, ele vê no centro do anel principal um edifício que sobrepuja tudo visto até então, e em redor do mesmo ca- minham criaturas de tal formosura que ele tem uma vertigem e não pode falar por longo tempo. Só depois consegue balbuciar: “Meu Deus e meu Senhor! Quem na Terra poderia imaginar tal coisa! O Sol, uma esfera luminosa, e todas essas maravilhas em seu solo? O que és tu, Terra, ao lado desta magnificência? O que são as feras que se dizem criaturas, comparadas a esta glória física? Lá os homens são insensíveis e diabólicos à medida do luxo que desfrutam. Aqui se dá justamente o contrário. Os mais sábios habitam em cabanas despretensiosas. Na Terra a moradia do mais sábio pastor da cristandade é precisamente a maior, mais rica e luxuosa, e suas vestes são de seda, ouro e pedras pre- ciosas. Os filhos da Terra são filhos de Satanás, comparados aos do Sol. Esses aqui nunca foram doutrinados no Evangelho, entretanto sua natureza é puramente evangélica, do contrário não poderia surgir essa ordem celeste. Aqui percebo o Verbo de Deus, puro, perfeito e justa-
mente interpretado.
Vede os lírios no campo! Não trabalham, não colhem, e no entanto Salomão, em toda sua pompa de rei, não se podia comparar ao mais simples. Aqui vejo inúmeros lírios, sem arado, nem foice, nem tear; e onde na Terra viveria um príncipe, uma princesa capaz de se igualar ao mais simples lírio celeste?
Ó criaturas da Terra, cujo hálito empesta o seu solo, o que somos
— vós e eu — diante desses povos do Sol? Nada mais que meros de-
mônios, e a Terra é o próprio inferno; eis a razão por que as estrelas se encontram tão distantes a fim de não serem contaminadas.
Senhor, envia-me a todos os espaços, mas nunca para a Terra, o pior dos infernos, cujos moradores se incumbem de perseguir os raros anjos até a última gota de sangue. Senhor, profere um julgamento sobre essa mácula de Tua Criação!
Quanto mais fito essas maravilhas, mais forte me vem o pensamen- to que a Terra não seja Obra Tua, mas de Satanás, chefe dos demônios, pois apresenta somente vício, morte e destruição! Aniquila-a, Senhor, que não merece Tua Graça!”
Digo Eu: “Acalma-te, não consegues ver o que está certo, conquan- to falaste acertadamente. Vamos à décima primeira porta, onde obterás outra compreensão a respeito de alguns fatos.”
OBISPOMARTIMEMPALESTRACOMOSÁBIODA LUA
Prossigo: “Já chegamos, descreve o que vês.” Diz Martim: “Que mundo é esse? Criaturas pouco maiores que coelhos, zonas quais pe- quenos canteiros, e árvores semelhantes aos nossos arbustos. As mon- tanhas são consideráveis e íngremes, e os lagos, conquanto não existam mares, são pequenos, o maior contendo talvez dez mil baldes d’água. Que diferença entre a porta n° 10 e a n° 11!
Que palhaço vem a ser esse? Por certo é um animal. Lá adian- te descubro muitas marmotas. É realmente estranho; até então não vi animais e aqui existem várias espécies. Eis outro rebanho de ovelhas e bandos de aves.
Que coisa divertida! Vejo um casal em que a mulher está nos om- bros do homem; e mais adiante um outro se enche de ar qual rã, fazen- do um ruído como o tambor de um regimento. Que ridículo!
Senhor, se foste Tu a criar este mundo, ele não reclamou em de- masia da Tua Onipotência e Sabedoria, pois é realmente enfadonho e me vejo obrigado a pedir perdão à Terra pela crítica feita há pouco. Comparada a este mundo, é ela verdadeiro paraíso, descontando suas criaturas. Por certo não faz parte de nosso sistema solar!”
Digo Eu: “É a Lua, e as criaturas vieram da Terra, assim como o próprio satélite, que em sua origem era a parte pior do orbe, mas hoje está muito melhor que ele. Tornou-se por isto uma escola para almas egoístas.
É preferível um mundo pequeno e estéril com um espírito bem ali- mentado, do que um grande com um espírito raquítico. Embora essas criaturas tenham aspecto tão miserável, terás que lutar muito para atin- gir seu adiantamento espiritual. Para que possas ter um ensino prático com relação à sua sabedoria, um casal palestrará contigo. Aí vem um, e podes perguntar à vontade, que não ficará devendo resposta.”
Diz o bispo Martim: “É verdade, está se aproximando com seu mundo, que utiliza como se fosse um navio. De perto é bem gracioso, sobretudo ela. Segundo me parece, somos invisíveis, pois dão a impres- são de pressentirem qualquer coisa sem ver.”
Aconselho: “Deves chegar mais perto e, com isto, tocar a sua esfera e assim te verão. Os habitantes de todas as luas têm essa particularidade de ver os espíritos de outros planetas quando estes se encontram em suas pequenas esferas. Isto porque as luas são o degrau mais primitivo e material, semelhante aos animas inferiores, conquanto sejam às vezes mais úteis que os donos ou o próprio homem. Segue Meu Conselho, que o casal te perceberá.”
Martim assim faz, sendo imediatamente visto pelo casalzinho, que admira o tamanho dele. Sem mais delongas, Martim indaga: “Sois os verdadeiros moradores deste pequeno mundo, ou existem outros, mais sábios e maiores?”
Respondem: “Existem muitas criaturas iguais a nós. No lado opos- to deste mundo habitam penitentes que às vezes nos procuram para aprenderem a sabedoria interior. Sem dúvida se originam do planeta que habitavas. Fisicamente são grandes; sua índole, muito pequena. Também tu és grande; mas o teu verdadeiro ser é quase invisível.
Que fazeis vós, homens grandes, aos quais foi dada tanta força vi- tal? Por que não a conservais? Quando é tempo de lançar as sementes, cujos frutos servem para o homem conservar sua existência terrena ele se torna diligente e trabalha constantemente enquanto as forças o per-
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mitem, sem se perturbar com as intempéries. Não poupa seu corpo e expõe sua existência aos maiores perigos a fim de conseguir alimentos. Para a proteção, conservação e aperfeiçoamento da vida interior, para o eu verdadeiro e eterno, ele nada faz.
Que dirias a uma pessoa que, após ter plantado árvores frutíferas em seu terreno, arrancasse brotos, flores e folhagem para ornamentar a entrada de sua casa? Tal homem seria sem dúvida um desvairado, pois enquanto seu vizinho fizesse rica colheita, ele morreria à míngua.
Não é desvairado maior o indivíduo que goza sua vida terrena — que é a flor e a folhagem para a vida interior — como se fosse o fruto, e destrói por esse gozo prematuro o fruto futuro, isto é, a vida verdadeira e eterna do espírito? O que é que volta à vida nova e imutável: a flor, a folhagem ou a semente interna do fruto maduro? — Unicamente a semente.
A mesma situação se dá no homem. Corpo, sentidos, razão e ra- ciocínio são flores e folhas. Daí nasce uma alma madura que contém igualmente uma semente madura, o espírito imortal. Quando este ama- durece, abarca tudo, tornando-se imortal, assim como uma carne pere- cível, ao ser ungida com o óleo etéreo da imputrescibilidade, também se torna imperecível. Eis nossa sabedoria. Para alcançá-la seguimos a Ordem do Espírito de Deus. Se puderes, podes contestar-me, pois es- tou pronto a tudo suportar de ti.”
Martim, desconcertado com o conhecimento do casal da Lua, res- ponde após algum tempo: “Quem vos transmitiu sabedoria tão profun- da? Não deve ter nascido de vós. Fauna e flora conhecem sua ordem pelo instinto, sendo obrigadas a desenvolvê-la segundo sua espécie. O homem, um ser livre, tem que assimilar tudo através do ensino externo, e a Palavra de Deus necessita ser depositada em seu coração como a semente é deitada no solo, para que ele possa ter a noção de si mesmo e o conhecimento de Deus e Sua Ordem. Não recebendo ensino, conti- nuará mais tolo que um animal.
Como sois também humanos, com os mesmos direitos divinos que nós, tereis recebido ensinamento de Deus Mesmo, do contrário, vossa
sabedoria seria mero milagre. Dizei-me, pois, como chegou a Luz divi- na para junto de vós.”
DIFERENÇAENTREOENSINOEXTERNOEO INTERNO
Responde o habitante da Lua: “Falas dentro de teu conhecimento, e eu responderei segundo o meu. A julgar por tuas palavras, o Espírito Supremo vos terá ensinado externamente de cacete na Mão, pois para um ensino interno e espiritual pareces ainda muito obtuso, e certamen- te também as pessoas de teu planeta.
Supões que o Espírito de Deus tenha formado o homem, Sua Cria- ção mais perfeita, qual saco vazio que necessitasse ser enchido para con- ter algo? Que engano! O habitante de todos os planetas contém um tesouro infinito de sabedoria; basta ser despertado por um meio útil, que produzirá os frutos mais maravilhosos. O Próprio Espírito de Deus cuida de tal meio. Se o homem aproveitar esse recurso, começará a germinar, crescer e finalmente amadurecer o dom dado por Deus, sem auxílio externo.
Todo conhecimento externo é e será sempre heterogêneo, não po- dendo facultar sabedoria própria e constante; transforma-se em pro- duto parasita que jamais auxiliará a vida, pelo contrário, a atrofia e no final a corrompe. Como algo externo, sempre se dirige ao exterior em vez de ao interior — morada da Vida eterna e verdadeira de Deus, o Espírito Supremo.
É deste modo que atingimos nossa sabedoria, quer dizer, simples- mente de nosso interior e não por um ensino externo. Se vós ainda pre- cisais de ensino externo, sois de natureza obtusa, sensual e pecaminosa, estritamente contrária à Ordem divina e ao vosso próprio espírito. Aqui tens a resposta externa à tua pergunta, pois ela prova que ainda estás longe das possibilidades internas do conhecimento. Podes prosseguir nas indagações.”
Martim está ainda mais perplexo, compreendendo não poder con- correr com a sabedoria do habitante da Lua. Não querendo se dar por vencido, procura um meio de provar sua superioridade intelectual, sem
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achar algo razoável. Finalmente ele se vira para Mim, dizendo: “Senhor, não me abandones e me ajuda a demonstrar que os habitantes de Teu planeta não são de todo ignorantes. Não consigo apresentar argumen- tos, entretanto devo ser senhor e posterior guia do próprio satélite. Seria deveras interessante se os habitantes de todos os mundos até então apre- sentados aqui viessem para demonstrar ser eu o mais tolo da Criação. Para evitar essa vergonha, seria preciso apontar-lhes minha maestria, e eles desistiriam de me tratar como aluno primário.”
Digo Eu: “Caro Martim, julgas poderes tapar a boca de um ver- dadeiro sábio através de argumentos intelectuais? Assim como existe apenas uma Verdade, também só há uma sabedoria, invencível qual for- taleza eterna. Se este habitante lunar te recebeu com a sabedoria única e justa, qual seria teu conhecimento superior para contestá-lo?
Existe outro caminho completamente diverso para fazer com que esses espíritos se tornem prestativos e amorosos; tal caminho se chama amor, humildade e grande meiguice. Por essas virtudes principais pode-
-se enfrentar os habitantes estelares.
O amor ensina a fazeres o bem a todos os seres e a cuidar de sua máxima felicidade. A humildade demonstra como te tornares pequeno e não te elevares orgulhosamente acima de quem quer que seja, achan- do-te sempre o mais simples, e a meiguice ensina a suportar a todos com benevolência, esforçando-te a ajudar onde for preciso por meios suaves, pelos quais ninguém possa ser tolhido em sua liberdade. Caso sejam precisos recursos mais severos, jamais devem ocultar tendência puni- dora ou ira justiceira, mas sempre o amor mais puro e desinteressado.
Esses são os meios da maestria celeste que deverão ser posse tua a fim de poderes entrar em relações amistosas com os habitantes luna- res. Volta junto do casal e tenta tratá-los deste modo, que o resultado será outro.”
O bispo Martim se dirige ao representante masculino e diz: “Caro amiguinho, ponderei sobre tuas sábias palavras e concluí, com a Graça do Senhor, que tens razão em tudo. Ainda assim, tenho uma pergunta a fazer para receber orientação. Afirmaste ser todo ensino externo com- pletamente nulo, no que não pretendo contradizer-te. Mas, se todo
conhecimento externo — seja sua origem qual for e por que sentido penetrou na criatura — é imprestável, desejava saber de ti para que fim o Criador de mundos, criaturas e seres nos teria dado os sentidos? Para que fim existe a forma e a apresentação externa de todas as coisas? A exclusão do exterior não sustaria qualquer ser? Tem paciência e dá-me explicação.”
Retruca o habitante da Lua: “Amigo, o grande Espírito criou inú- meras variedades dentro da matéria que somente se encontram pela parte externa. A fim de compreender as coisas externas, o homem rece- beu sentidos externos; todavia, poderá somente penetrar em seu âmago através dos dons do espírito.
O homem tem, pois, sentidos externos para captar coisas exter- nas, e internos para as do espírito. A sabedoria pertence aos sentidos internos do espírito e tem que ser aprendida internamente. Este ensino interno é facultado à alma por meio do espírito, ao qual o Espírito de Deus insuflou toda a Sua Criação, passada e futura.
A fala serve apenas para avaliar coisas externas e levá-las à alma, com o que se dá um matrimônio entre externo e interno e, por este ma- trimônio, o pleno conhecimento da Ordem divina, ou seja, a própria sabedoria, que deveríamos conquistar por ser a força una do espírito e sua vida ativa.
Daí concluirás que o Espírito de Deus jamais ensinou os homens por revelações externas, mas somente pelo espírito. Ainda que tivesse aparência de ensino individual externo, não poderia ter efeito interno até que a Força despertadora do Espírito de Deus fosse levada ao espíri- to da criatura. Deste modo, o que acabo de te explicar apenas externa- mente não terá resultado até que venhas a ouvi-lo dentro de ti.
Se a Própria Divindade te transmitisse externamente toda a Sabe- doria, como acabo de fazer, não teria utilidade caso Ela não ensinasse o teu espírito, através do Espírito Santo.
Aceita isto como resposta justa, sabendo que não te serviria para salvação, mas apenas para teu julgamento, enquanto não a receberes de ti próprio. O que não é teu torna-se julgamento e não te liberta. Se tiveres outras indagações, saberei responder.”
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Diz o bispo Martim: “Amigo, novamente percebi que és um ser verdadeiramente sábio, não obstante tua insignificância externa. Toda- via, terás que convir que se alguém, por grande amor, ensinar apenas externamente as coisas concernentes à Ordem divina, Seu Poder, Amor e Sabedoria, tal ensino não pode ser julgamento para o discípulo de boa vontade. De um modo geral, tenho mais consideração com o amor do que com a sabedoria. Que me dizes a isto? Bem sei que cada criatura necessita renascer em espírito para poder ingressar no Reino de Deus. Mas, a fim de atingir o renascimento é preciso receber o ensino externo, porquanto o interno, mormente em crianças, não é admissível. Caso esteja errado, demonstra-me como ensinais vossa prole.”
Diz o habitante lunar: “Por que perguntas, se achas que tua opi- nião é a mais acertada? Porventura não é todo ensino exterior uma lei que determina a concepção das coisas? Quando teria uma lei liber- tado alguém?
Tendes por hábito aprisionar vossos filhos, não podendo poste- riormente libertá-los. Nós educamos nossa prole como o oleiro prepara uma vasilha, manipulada no torno, por dentro e por fora, do contrário produziria uma obra imperfeita. Se quiseres aprender a educação para a vida eterna, dirige-te à oficina de um oleiro, onde descobrirás teu amor incompreendido. O oleiro alimenta maior sabedoria que tu.”
Após este golpe, Martim volta para junto de Mim e diz: “Senhor, não há meio de entendimento com aquele sábio lunar. Ainda que apre- sente o assunto dentro de Tua Doutrina, seu conhecimento me ultra- passa. O interessante é que parece conhecer a Terra melhor do que eu, pois indicou-me o contato com um oleiro, onde poderia estudar a sa- bedoria verdadeira e o próprio segredo do amor.
Que farei na oficina de um oleiro? Deveria exercer aqui esta profis- são? Ele chega a afirmar que Tu, Senhor, não me poderias ajudar com Teu Ensino Verbal, caso não o recebesse pelo próprio espírito. Isto é evidente ultraje, e se fosse por mim, eu o faria sentir o que é pôr em dúvida a força ativa de Tua Doutrina.”
Digo Eu: “Deixa estar, meu caro Martim, pois se fosses entrar em discussão com este habitante lunar levarias a pior. De maneira alguma
merece que Eu o faça passar por algo desagradável, sendo um espírito muito bom. Sua reação um tanto grosseira foi motivada por uma espé- cie de vaidade oculta que ele descobriu no teu íntimo, insuportável para os seres da Lua. Para eles, o exterior tem que corresponder ao interior.
Além do mais, deves considerar o que ouviste desse sábio, pois em tempo justo terá sua utilidade. O quadro do oleiro servirá para conhe- ceres Minha Ordem em toda a plenitude. Eu Mesmo sou um Oleiro e Minha Ação se iguala à dele; pois Minha Ordem é semelhante ao torno e Minhas Obras são iguais às vasilhas. O futuro demonstrará o porquê. Sigamos à 12a porta; lá muita coisa te será esclarecida.”
PERIGOS,NOALÉM,PARAOSNÃOINTEIRAMENTE RENASCIDOS
Prossigo: “Aqui estamos, na porta aberta, e podes relatar o que vês.” Martim obedece e depois de prolongada admiração ele diz: “Meu Deus, isto é demais! Vejo em distâncias colossais inúmeros sóis e mundos flu- tuando como as efêmeras antes do pôr do Sol. Quantos serão e quantas eternidades seriam precisas para conhecê-los?
Quanto mais fixo o olhar, tanto maiores se tornam seus agrupa- mentos. Como podes supervisionar essas massas solares? A pequena Lua já me daria trabalho para toda a Eternidade, e Tu organizas esses bilhões de corpos cósmicos, tratando inclusive do mais ínfimo! Como é possível?”
Respondo: “Nenhum espírito criado pode assimilar essa Minha facilidade; mas a Eternidade te ensinará muita coisa incompreensível. Não procures penetrar no assunto. Se Eu fosse demonstrar-te a gran- diosidade e poder do Meu Amor e Sabedoria, não poderias viver, por serem insondáveis as profundezas de Minha Divindade para qualquer espírito criado.
O que aqui vês é apenas o menor sistema solar que viste na Terra em noites serenas. Não é o único, pois semelhantes e infinitamente maiores e mais maravilhosos existem, sem número e medida. Minhas
Criações jamais terão fim. E em toda parte encontrarás organizações mais diversas e formas novas, majestosas e magníficas.
Somente a forma humana é a mesma em toda parte. Entre esses inúmeros habitantes dos diversos mundos existem apenas graduações de tamanho, amor, sabedoria e beleza; no entanto, têm por base a imu- tável forma humana em virtude de Minha Semelhança. Os mais sábios são os mais belos, e os amorosos, os mais delicados e maravilhosos.
Por ora não serias capaz de suportar a beleza mais simples, razão por que tens de te satisfazer com a visão de sóis e mundos a longa dis- tância. Quando o teu espírito estiver mais amadurecido, poderás pes- quisar diretamente os milagres de Minha Criação.
Antes disto é preciso renunciares a muitas coisas, mormente à tua forte inclinação carnal. Enquanto isto não fizeres, ficará oculta a visão mais direta, pois se te fosse permitida, facilmente Me esquecerias. Es- quecer-Me é tanto quanto perder a vida e a própria liberdade celeste, atraindo o julgamento, morte e inferno, dos quais o espírito não estará livre enquanto não for inteiramente renascido pelo Meu Espírito.
Eu Mesmo te conduzi ao limiar da Vida eterna e conheces a tua morada. Agora tens que andar sozinho, para te tornares livre, tanto que te deixarei, mandando-te outro companheiro. Ele te ensinará a in- terpretar a Minha Vontade no quadro branco. Medita sobre tudo que presenciaste e sê sóbrio em todos os momentos, que hás de progredir.”
BENEFÍCIODOCONHECIMENTODE SWEDENBORG
Após estas palavras, Me afasto, dando lugar ao espírito do conhe- cido livreiro que, ao lado de Pedro, fizera grande progresso, no que o estudo das obras de Swedenborg muito contribuiu. Quando o bispo Martim dá com a presença do antigo livreiro, ele diz: “Que é isto? Serás tu o meu futuro guia? Esta é forte demais! Um reles livreiro, guia de um ex-bispo, doutor da Igreja, guia por todos os Céus? Essa não! Volta de onde vieste, pois de maneira alguma te seguirei!
Não teria reclamado caso o Senhor me tivesse dado um moleque para tal fim. Mas, tu, precisamente tu, que sabes de todas as minhas
patifarias — não admito! Com prazer te entrego essa casa de pensamen- tos que certamente não tem consistência, pois toda sua organização é bastante suspeita.
Quanto ao conteúdo desta sala, perceberás as mesmas coisas que eu. Todavia, aprendi que duas pessoas veem o mesmo objeto de modo diferente. Se um vê um burro, o outro vê um boi, ou talvez um sábio. Daí, um homem inteligente como eu concluir que este mundo celeste é bem tolo, uma fantasmagoria, sem consistência alguma.
Por isto, vou andando e poderás em meu lugar estudar astronomia por essas doze portas e te apaixonar por uma bela mercuriana ou uma habitante de um Sol, na hipótese de que teus olhos vejam o mesmo que eu. Passa bem, que procurarei um lugar mais consistente que esse salão astronômico.”
O livreiro impede Martim de se afastar, dizendo: “Que tolo és! Porventura não fomos amigos íntimos e confidentes? Quando teria eu te traído? Se isto não fiz na Terra, muito menos o faria no Céu, onde o Senhor te conhece muito melhor que eu. Por que te alteras, supondo que o Mestre da Eternidade me teria designado para teu guia?
Vim apenas para te fazer companhia e te ser útil em tudo, e como fizeste valiosas experiências ao lado do Senhor, desejava aprender algo de ti. Continua em teu lar, que certamente é mais consistente do que supões, e me trata como serviçal e não pelo que imaginas em tua ingra- tidão para com o Senhor.”
Martim se cala por falta de argumentos; por isto se dirige à porta de Mercúrio, a fim de meditar a respeito. Ao lá chegar, depara com inúme- ras pessoas de ambos os sexos, entre elas, a conhecida beldade que tanto o perturbara durante a primeira visita a este planeta. Imediatamente, Martim esquece seu companheiro, que chamaremos de Bórem, e se dirige à sua esfera, e ela diz: “Conheço-te e te amo, como todos nós te consideramos nosso soberano. Todavia, descubro algo em ti que não nos agrada, e este algo é teu sensualismo. Deves expulsá-lo, do contrário jamais te poderás aproximar de nós.
Digo-te isto por te amar e crer que também me amas e a todos que esperamos atingir a felicidade, caso te tornes como deves. Se assim não
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for, seremos afastados de ti e entregues a um mais digno. Não te deixes tentar pelos meus encantos e procura caminhar dentro da Ordem do Espírito Supremo, cuja Sabedoria infinita nos criou tão belos.
Também tu és indescritivelmente belo a meus olhos e irradias ver- dadeira majestade do Espírito do Altíssimo; no entanto, tenho que fu- gir de ti quando percebo que minha imagem começa a inflamar teu íntimo. Faze o mesmo enquanto não tiveres alcançado a completa fir- meza divina; tão logo a tenhas atingido, todos nós seremos teus na plenitude do gozo celestial. Guarda bem: Foge daquilo que desejas, que o receberás; mas deves fugir por amor, e não por repugnância. Este é o motivo por que me afasto de ti, pois te amo muito. Faze como te dis- se, que encontrarás neste peito uma gratidão doce e eterna que ainda desconheces.”
Com estas palavras, a bela mercuriana se retira com sua beleza fan- tástica, a ponto de Martim tontear. Por muito tempo ele queda no solo, quase sem poder pensar, e apenas se levanta quando Bórem lhe bate no ombro, dizendo: “O que se passa contigo? Teria a bela mercuriana te enfeitiçado de forma tal que quase desfaleceste?”
Responde ele, aborrecido: “Ora, deixa-me em paz! Por acaso te chamei? Se és meu serviçal e eu teu senhor, como vens quando nada quero de ti? Para o futuro, respeita minha ordem, do contrário pode- rás voltar.”
Diz Bórem: “Meu amigo, não deves tratar-me deste modo, pois facilmente o Senhor demonstraria o sabor de Seu Rigor a quem começa a pisar Sua Meiguice. Segue-me em Nome Dele e da sábia mercuriana que acaba de passar-te uma lição aproveitável.
Considera as imensas Graças que o Senhor te conferiu desde tua passagem pela Terra, os sábios ensinamentos recebidos de todos os lados e o pouco resultado obtido. Procura modificar-te e pensa que o Senhor não aprecia brincadeiras. Voltemos à sala.”
Martim se ergue e retruca, irritado “Essa é boa! Agora vejo que espécie de servo e companheiro és! Foste designado para mestre de cor- reção, pelo que agradeço. Eu, um bispo, um apóstolo de Jesus Cristo, deveria suportar as críticas de um livreiro? Isto é demais! Sai da minha
frente, do contrário me obrigas a usar a força. Estou realmente arrepen- dido de te ter salvo das chamas.
Aqui fala-se apenas de liberdade celestial. Bela liberdade essa, que não permite que se olhe pela porta da casa sem se apresentar o mestre de correção. Talvez tenhas um açoite escondido na toga, para aplicar-me uma surra? Não te aconselho tal tentativa, pois serias tu a ser surrado. Se for do Agrado do Senhor querer melhorar-me por meio de castigo, poderá agir à vontade, que também farei o que quero enquanto tiver vontade. Bem sei o que significa alguém querer reagir ao Senhor e co- nheço Seu Poder; todavia, admiro a grandeza de um espírito que tem a coragem de desafiá-Lo.”
Diz Bórem: “Amigo, vim a Mando do Senhor, manso como cor- deiro e jamais te prejudiquei, nem na Terra nem no Céu. No entan- to, me recebeste como nenhum soberano receberia seu escravo. Se o Senhor achou bom mandar-me para junto de ti, porventura és mais sábio que Ele?
Ele percebe teu sensualismo e forte orgulho contra todos que con- denam tua fraqueza, e este foi o motivo de eu me aproximar de ti, para externares tuas inclinações. Todavia, me tratas qual reles habitante do inferno e não ligas para o Senhor, que deseja tua felicidade. Na propor- ção que O enfrentares com teimosia, teu julgamento aumentará. Vou te deixar porque vejo que me odeias, sem que tivesse dado o menor motivo para tanto. Que Ele te julgue segundo Seu Amor, Misericórdia e Justiça!”
Quando Bórem se afasta, o bispo Martim o segura pelo braço, pe- dindo que fique para fazerem as pazes e ventilarem assuntos importan- tes, e o livreiro resolve ficar, esperando que Martim se expresse. Este procura concatenar suas ideias a fim de enfrentar o outro e possivel- mente trazê-lo para o seu lado.
Bórem percebe sua intenção e diz: “Amigo Martim, aconselho-te em Nome do Senhor, Jesus Cristo, Senhor único de Céus e mundos, a não te cansares em vão, pois não podes enganar-me. Tua maneira de engendrar tuas ideias é comum entre todos os espíritos infernais que chamamos de diabos. Com tais coisas grandiosas, que para mim são
ínfimas e miseráveis, não deves importunar-me, pois teu plano seria malogrado.
Por quanto tempo pretendes desafiar o Senhor? Preciso sabê-lo para tomar medidas a respeito. Acredita, conquanto tudo isto aqui não tenha consistência eterna, podes subitamente encontrar-te num local menos agradável. Recebi a incumbência de não te poupar porque em ti surgiu o fogo da impudicícia e do domínio.
Fala sem rodeios quais os teus planos. Mas, o da mentira será in- continenti descoberta e punida com meu afastamento com tudo o que até então fora teu. Pensa bem se queres ou não seguir-me.”
ISOLAMENTODE MARTIM
Martim coça a orelha e diz de si para si: “Pronto, já sabia que tam- bém no Céu não se pode confiar em ninguém. O Senhor me revelou de certo modo todos os tesouros celestes, e este homem usa uma lin- guagem como se eu dentro em pouco estivesse dentro do inferno. Eu o salvei de um foguinho infernal, em compensação ele se esforça por transportar-me para o inferno. Bela amizade, essa!
(Virando-se para Bórem): Aos poucos tiras a máscara, demonstran- do quem realmente és. Realmente alimentava um plano tolo e mau; pois pretendia desafiar o Senhor, apenas para me convencer do resulta- do. Percebendo-o, cortaste meu caminho.
Que por este motivo eu seria um di..., maduro para o inferno, nunca foi ventilado pelo Senhor, que certamente saberá mais que tu. Eu O considero acima de ti e farei o que manda, dando ouvidos somente àquilo que será decifrado na esfera branca. Em todos os outros assuntos prestarei ouvidos, se quiser. Desiste de usar ameaças sem resultado, pois nada temo. Já o percebeste, porque falo ao Senhor sem o menor receio. Agora voltarei para a sala, no que poderás imitar-me.”
Ambos seguem para lá e o bispo Martim percebe de pronto achar-
-se a esfera toda coberta de letras. Rápido, ele se aproxima e tenta ler o conteúdo; no entanto, não conhece a escrita, que se assemelha a hie- róglifos. De novo irritado, ele diz: “Não poderiam os escrivães celes-
tes usar uma caligrafia que facilitasse a leitura sem intérprete? Usar de caligrafia desconhecida é tanto quanto falar chinês a um alemão. Para que serve?”
Interrompe Bórem: “Serve para o mesmo fim que vosso ritual dog- mático na Terra. Ninguém entende algo senão o conhecedor do latim. A fim de ocultar o sentido da missa, faz-se uma barulheira tremenda com órgão, címbalos e trombetas; ou então é ela murmurada apenas, para igualmente não ser compreendida.
Estando habituado a tais tolices, como podes aborrecer-te por não leres essa escrita? Analisa com cuidado, talvez descubras alguns trechos em latim, mesclados com os doze sinais celestes. No alto, eu ao menos leio: Diesilla,diesirae1!”
O bispo estuda a esfera cuidadosamente e descobre o mesmo, per- guntando pelo sentido. Diz Bórem: “Se entendes latim, saberás tradu- zi-lo. Prossegue na leitura!” Martim assim faz e lê: “Requiescatinpace,e lux perpetua luceat eis, domine! Memento, homo, quia pulvis est et inpulveremreverteris2!” etc.
Após terminada a leitura, ele se vira para Bórem, dizendo: “Para que essa tolice? Seria uma censura à minha dignidade terrena?” Respon- de o amigo: “De forma alguma. Aponta apenas o grau de tolice dentro de ti, razão por que ainda te encontras de veste camponesa, da qual te falta o paletó que me presenteaste quando eu me achava desnudo na Casa do Senhor. Podes recebê-lo de volta, pois se encontra debaixo da esfera, limpo e dobrado. Veste-o de novo para poderes mais facilmente perceber o grau de tuas tolices.
Conquanto o Senhor te demonstrasse enorme Graça e te tirasse o veneno da maldade, restou-te a grande tolice que, se for alimentada por ti, passará à pior perversidade, atirando-te em tremendo julgamento. Enquanto não fores inteiramente renascido em espírito, não estarás li- vre do inferno. Para que possas fugir dessa calamidade, ser-te-á demons-
1Dias de ira, aqueles dias!
2Que descansem em paz, Senhor, e sobre eles resplandeça a Tua Eterna Luz! Lembras-te, homem, que és pó e ao pó voltarás!
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trada tua imensa ignorância, da qual nem o Senhor te poderá libertar sem julgar-te.”
Pensativo, Martim concorda: “Muito bem, vou vestir meu pale- tó para ter ao menos aparência de camponês. Em seguida podes mos- trar-me minhas supostas tolices que eu deveria decifrar da escrita do quadro. Não o consigo por serem tais frases muito sérias e sábias, de origem patriarcal, de cujos representantes nós não merecemos desatar as correias das sandálias.”
Diz Bórem: “Ouve-me. Que vem a ser o dia da ira e do julga- mento? Julgas que Deus seja Deus de ira e de julgamento? De maneira alguma. Deus é o puríssimo Amor e afirmou: Não vim para justiçar o mundo, mas trazer a felicidade a todos que crerem e Me amarem!
Se bem que falasse do despertar no Dia do Juízo Final que se inicia imediatamente após a morte física, Ele Se refere ao julgamento da se- guinte forma: Cada criatura terá seu próprio julgamento dentro de si, isto é, o Meu Verbo! Se assim é, onde se encontra teu agourento Dies irae, dies illa*? Deverias interpretar melhor, ou seja: ó dia de minha to- lice e mais crassa maldade!”
Diz Martim: “Se podes interpretar com tanta facilidade esses textos, julgando não haver um Juízo final, que sentido darias aos que garantem a Volta assustadora do Senhor como Juiz inclemente, cujos prenún- cios se fariam sentir nas tribulações, carestia, fome, guerras, revoluções, terremotos, aparição do sinal do Filho do homem no firmamento, o surgir e a queda do anticristo, eclipse solar e lunar, a descida de todas as estrelas e finalmente a preparação para o Juízo Final e o próprio Dia do Juízo, no qual hereges, impudicos e adúlteros se juntariam aos diabos, acompanhados de milhares de raios projetados pelos escolhidos e anjos de Deus, como justa maldição sobre os inúmeros hereges iguais a ti?
— Que explicação me dás a respeito? Porventura sou tolo, ignorante e maldoso se acredito nessas Palavras de Deus?”
Dias de ira, aqueles dias!
Retruca Bórem: “Hipócrita, há quanto tempo aceitas o Cristo como Deus, mas na mais leve tentação O negas? Digo-te o seguinte: Se durante tua vida terrena tivesses demonstrado a menor fé mental às Palavras do Cristo, te encontrarias de veste diferente. Não aceitando o sentido material, muito menos o espiritual do Evangelho, a fim de praticá-lo, continuas o mesmo homem renitente.
Quem poderia entender tua índole e fazer-se teu guia, se em de- terminada ocasião aparentas fé e humildade, e logo a seguir te mostras como uma criatura que evidencia no lugar da fé uma dissimulação in- crível e no lugar da humildade e do amor, o orgulho e o ódio mais tenebrosos?
Julgas que meu sábio ensino te seja útil? E qual teria sido o proveito dos ensinamentos realmente profundos do pequeno habitante lunar? Ficaste irritado até mesmo na Presença do Senhor, à medida que o sa- cerdote da lua, cujo nome é Piramah, se aprofundava nas explicações. Se eu for analisar minuciosamente tua questão provinda do orgulho, pioras em vez de melhorar.
Por esta razão não receberás outra elucidação enquanto permane- ceres como és. A fim de não te dar oportunidade para aborrecimentos, deixar-te-ei, a Mando do Senhor, e poderás agir à vontade. Considera apenas que se acham abertos os dois caminhos, para o Céu e para o in- ferno, inclusive a explicação real dos acontecimentos do Fim dos Tem- pos, como consta no Evangelho.”
Ditas estas palavras, Bórem também se afasta, deixando o bispo Martim entregue a si mesmo, pois depende de como aplicará todos os sábios conhecimentos recebidos. Conquanto ele chamasse por Bórem, o amigo não se apresenta. O mesmo se dá com sua chamada pelo Se- nhor e Pedro, que também não aparecem.
Ele corre à porta de Mercúrio, vendo este planeta a longa distância. Volta-se então para a primeira, onde avistara o belo rebanho de ovelhas, todavia depara apenas com um prado deserto. Em seguida percorre to- das as demais portas, vendo o Sol, planetas e a Lua muito distantes como na Terra. Somente a sala continua a mesma, em cujo centro se encontra o referido quadro, ao lado do mecanismo astronômico.
Esses objetos não agradam a Martim. Por isto ele se dirige à porta da saída, querendo voltar à Casa do Pai; esta também desaparecera. Desesperado diante do pequeno jardim que não convida a um passeio, ele volta à sua casa. Para por certo tempo em frente ao quadro branco que de um lado está vazio e no outro ainda apresenta os textos latinos. Como isto se torne enfadonho, começa a estudar o planeta Terra; não se anima a falar, percebendo sua situação estranha.
CRÍTICASÀS IGREJAS
Decorridas doze horas dentro do cálculo terreno, e tendo analisado minuciosamente o planeta, ele se anima a conjecturar: “Bem, acabo de estudar a Terra e reconheço sua situação horrenda. Fraudes, maldades, a política infame e as crueldades sem nome ultrapassam qualquer ima- ginação. Em meio dos milagres mais maravilhosos de Deus, milhões de criaturas quase não têm noção Dele, agindo com tamanho orgulho como se fossem viver eternamente.
Meus colegas se unem para conclaves e concílios; o motivo não se baseia no Senhor e no Espírito de Sua Doutrina, mas simplesmente no domínio mais feroz, querendo descobrir secretamente a maneira mais infame de atingirem os seus propósitos.
De igual modo, os protestantes tratam de dominar a Terra, por meio da pura razão, para ditar-lhe novas leis que visam o benefício dos legisladores. A Igreja anglicana se esforça em divulgar a necessidade das doações entre os fiéis, por meios condenáveis, enquanto age estritamen- te em contrário ao que professa. Eu também sou um espírito infame
— mas que possa fazer? Talvez consiga desvencilhar-me da maldade em dois mil anos, até que toda tendência materialista se tenha evaporado.” Após esse monólogo, o bispo Martim se cala para tomar uma ati- tude qualquer, sem que lhe venha uma ideia proveitosa. Passado algum tempo, ele se lembra que ainda não visitou as galerias de sua casa. Por isto começa a procurar a subida, que todavia é tão escondida que não a
descobre. O mesmo acontece na procura externa da casa.
De fato o surpreende que essa morada apresente no interior um átrio tão grande, enquanto de fora não seja maior que qualquer casinha de eremita. Além disto, não há vestígio externo dos doze recintos inter- nos que desempenharam papel tão milagroso.
Nada encontrando fora de casa, pois no jardim descobre apenas algumas framboesas de má qualidade que resolve comer, ele volta para a morada a fim de estudar a esfera branca que apresenta a situação an- terior. Finalmente se dirige para a porta do Sol, gozando o seu brilho durante algumas horas, segundo seu cálculo.
Passado este tempo, ele comenta de si para si: “A Terra é de modo geral uma casa de loucos; no entanto, é mais concreta que este mundo celeste. As estrelas continuam as mesmas e uma habitação existe até que seja demolida. Mas, aqui, tudo parece um sonho tolo e inconsistente. A porta, por exemplo, pela qual vejo numa distância de milhões de mi- lhas, onde se encontra ela pelo lado de fora? Nem vestígio existe.
Quem entender isto deve ter maiores conhecimentos que a tabu- ada, mas os próprios cientistas haveriam de rir caso lhes contasse que aqui se mora em casas, cujo tamanho externo não corresponde ao inter- no. Estranho é que, como espírito em um mundo celeste, se possa sentir fome e sede tamanhas, nada havendo para satisfazê-las.
Agora me veio uma ideia. Além dessa porta há um espaço imenso; o que aconteceria se desse um salto lá para baixo? Ao meter a cabeça para fora, nada vejo da casa. Voltando para dentro, encontro-me no meu salão. Tenho uma ideia ainda melhor. Pela primeira porta vislum- brei o conhecido prado, onde talvez encontrasse as belas ovelhas.
Ei-la. Mas, onde está o prado? Sumiu, e vejo apenas neblinas den- sas e cinzentas. Quem sabe se aqui também existe o outono? Se eu der um salto mortal pela porta de Mercúrio, talvez entre em contato com aquele planeta onde descobri a bela mercuriana. Vou forçar a porta; eh.. mas, que é isto? No lugar da esfera encontro um armário embutido, repleto de alimentos e, na prateleira de baixo, uma grande bateria de garrafas de vinho. Adeus, beldade de Mercúrio, pois isto muda o meu modo de pensar. Meu querido Jesus, isto é certamente Tua Obra. Agora estamos apaziguados, e tu, caro livreiro, vem cá e deixa-me abraçar-te.
— Bem, vejo que não te apresentas; todavia, te quero muito. Agora farei uma ceia, em Nome do Senhor.”
FOMEESEDEDEESPÍRITOSNÃO RENASCIDOS
Após estas palavras, o bispo Martim se atira a um bom pedaço de pão, comendo-o com grande apetite. Sempre que um espírito se tiver afastado de Mim por algum tempo ele volta a ter fome e sede; se após alguma reflexão receber algum alimento, ele o ingere com sofreguidão que demonstra sua pobreza interna, não se podendo aguardar algo de proveitoso.
Depois de ter ingerido o pão e tomado uma garrafa de vinho, ele se torna alegre e sensual, pois os espíritos, quando não forem renascidos por Mim, podem embriagar-se e neste estado se apresentam tolos e licenciosos, abusando de sua liberdade. Martim fecha o armário a fim de não se estragar o seu conteúdo e em seguida vai para fora com o se- guinte comentário: “Graças a Deus, pude dar um pequeno trabalho ao estômago e agora vou tomar um pouco de ar, sempre mais benéfico que o café. Se houvesse um banquinho neste jardim para descansar minhas pernas um tanto trêmulas nada teria para reclamar.
Aquele vinho foi formidável, no entanto, deixou-me embriagado e tentarei chegar até a cerca para maior segurança e talvez descobrir algum vizinho. Ah, que belo panorama! Nada se vê! O jardim e meu chateauparecem ser uma espécie de navio a flutuar no Universo! Assim, estou realmente sozinho, ou seja, amaldiçoado!
Se ao menos pudesse orar uma ladainha após outra, de grande po- der e força, talvez melhorasse. Mas, não posso orar e tenho a impressão que não quero fazê-lo, ainda que o possa. A única coisa que consigo pronunciar é: Senhor, tem Misericórdia para comigo! — e só.
Por que insisto em olhar para esse vácuo? Voltarei à porta do Sol... não, tentarei a da Lua, onde talvez encontre o sábio sacerdote. Talvez possa dizer-me o que devo fazer para melhorar minha situação. Oba! Quase que levo uma queda! Aquele vinho...! Ah, a porta lunar está aber- ta, mas..., quão distante está nosso satélite! Assim, nada feito.
Farei uma investida a Júpiter, talvez menos acanhado que a Lua. A porta está fechada; mas deixou-se abrir com facilidade e o planeta se aproxima. Que colosso! Que paisagens extensas! Tenho a impressão que minha casa se encontra no solo desse gigante. Um homem de porte excepcional, posso dizer, um gigante, se encontra à minha frente sem me ver. Entrarei na esfera dele.”
Martim assim faz e é imediatamente visto pelo habitante de Júpiter que diz: “Quem és tu, para te atreveres a aproximar-te de mim repleto de imundície, hipocrisia e impudicícia, torpezas completamente desco- nhecidas no meu planeta? Ele é limpo e se irritaria caso aqui permane- cesses. Volta para tua casa imunda, onde podes devorar teus alimentos e prostituir-te à vontade; do contrário, te estraçalho!”
O bispo dá um salto para trás e bate a porta, dizendo: “Esse ca- marada me faltava para completar minha miséria. Nada mais quero com Júpiter.”
TENTATIVAINÚTILPARA DORMIR
Prossegue ele: “Que farei agora? Conviria dirigir-me para Marte, Vênus, Saturno, Urano, Miron ou para alguns asteroides? Talvez me suceda algo pior e não posso cogitar de defesa, não podendo aceitar desafio de força ou sabedoria.
Ficarei afastado de todas as portas e procurarei um cantinho qual- quer para dormir. Se não conseguir pegar no sono ficarei ao menos imóvel para sempre, não tomando alimento nem perdendo palavras com quem quer que seja; em suma, estarei morto, inclusive para a bela mercuriana. Não podendo deixar de existir, ficarei numa quietude da qual nem Deus me poderá despertar para sempre.”
Martim se dirige para um nicho entre duas pilastras, onde se deita para dormir. Mas o sono não vem. Após duas horas terrenas, ouve-se grande gritaria fora de casa, como se criaturas estivessem em apuros. Incontinenti, ele se levanta e corre para fora, vendo além do jardim inúmeros espíritos à procura de socorro.
O bispo Martim abre a portinhola e grita: “Vinde aqui, caros ami- gos! Aqui estais protegidos de qualquer perseguição e, caso sintais fome e sede, poderei saciar-vos. Quantos sois?”
Responde o mais próximo de Martim: “Somos cerca de mil, todos pobres diabos. Fugimos do inferno, vagueando uma eternidade por esse deserto horroroso e infinito, sem encontrarmos um teto para abrigo e repouso. Porventura dispões de um cubículo?”
Diz Martim: “Aqui está a porta, entrai todos! Minha casa não pa- rece espaçosa, mas garanto lugar para todos.” Os espíritos passam pelo jardim e entram na casa, admirando-se de seu interior agradável. O primeiro orador abraça o bispo Martim e diz: “Que maravilha é teu ambiente! É a primeira luz após miríades de anos que passamos nas trevas! Ó amigo, deixa-nos ficar aqui!”
Retruca Martim: “Mas, naturalmente, pois eu mesmo estou feliz por ter encontrado companhia tão agradável. Não disponho de muita coisa neste meu Céu; mas tudo é vosso, ainda que nada sobre para mim. Sinto maior alegria convosco que com os ditos anjos de Deus que em sua bem-aventurança conseguem esquecer-se de um pobre diabo. Digo-vos: Unicamente o Senhor é Bom o resto é apenas plebe celeste e pode me deixar em paz!”
Diz um dentre eles: “Tens razão, Jesus é realmente Bom e merece todo louvor. Também nós não ligamos para os demais moradores do Céu, com exceção de ti, caro amigo.”
Retruca Martim: “Minha situação é bem semelhante à vossa, mas, como dispomos da eternidade, haverá tempo de sobra para analisarmos nosso futuro. Vamos primeiro tratar de nos fortalecer. Vinde comigo, pois naquele armário existe pequeno estoque de alimentos.”
CONFORTODOS INFELIZES
O bispo Martim abre a porta do armário que se acha repleto de pão e vinho. Admirado, ele pensa: “Graças a Deus, temia estar enganado, pois aqui tudo muda de repente.” E virando-se para o grupo, prossegue: “Podeis saciar-vos à vontade.” Assim acontece e todos se alimentam,
sem que o estoque diminua, mas, ao contrário, aumenta visivelmente. Eles elogiam o anfitrião e adquirem traços mais perfeitos e a pele mais clara. Apenas a vestimenta é bastante precária.
Em seguida, Martim diz: “Caros irmãos de fé — pois percebo ser- mos da mesma religião — não façais alarde com minha pessoa, pois não sou doador e sim mau distribuidor daquilo que certamente recebi do Senhor Jesus, Pessoalmente, para tal fim. Duvido que tenhais tido notícia a respeito Dele, pois, segundo vossa informação, vos encontrais no Reino dos espíritos há um tempo imenso.”
Retruca um homem do grupo: “Por certo não te referes ao judeu Jesus, crucificado com mais alguns criminosos?” Responde Martim: “Exatamente. Ele é Deus e Homem a um só tempo. É a Base de todas as coisas, não havendo outro Deus no Infinito. Acreditai em mim, pois não houve quem custasse tanto a aceitar isto. Por meio de explicações, nem os arcanjos teriam obtido êxito; mas o Próprio Senhor me ensinou por Ações divinas ser Ele Senhor do Universo. Se isto aceitardes, não será difícil participar de minha morada, suprimento e convicção.”
Retrucam várias pessoas: “Tens realmente razão e queremos igua- lar-te em tudo. Em vida não depositamos grande fé em Jesus; e aqui, no mundo das almas, muito menos, porque não descobrimos o menor vestígio de benevolência divina. Assim, não cogitávamos de Jesus, se- não que Ele também estivesse sofrendo e amaldiçoando tudo que fize- ra na Terra.
Se o que dizes é verdade, nós O aceitaremos, contanto que exista. Apenas não compreendemos porque nos deixou tanto tempo sem ali- mento, e não podemos fixar o pensamento nos martírios passados, do contrário nosso amor ficaria abalado.
É bem verdade que pouca importância demos à Sua religião, satis- fazendo apenas nosso apetite. Éramos pessoas honestas e de boa família; nossa educação distinta e a conduta adequada. Um Deus sábio deveria compreender que não existe homem que se autocriasse e se educasse. Seja como for, a caça infame terminou, assim esperamos, e perdoamos a Jesus pelo que nos fez passar.”
Manifesta-se um outro: “Naturalmente, é melhor perdoar do que se vingar; todavia sustarei o perdão total, porque sabeis como fiquei imprensado entre duas rochas incandescentes durante mil anos. Orei e praguejei a não mais poder, e se não fosse vosso esforço supremo a me salvar, eu lá ainda estaria, pois o poderoso Senhor Jesus não amenizou aquela tortura. Isto não se pode esquecer, e qualquer criatura agrade- ceria por uma vida eterna dessa ordem. Não sou propriamente vinga- tivo, pois seria a mais incrível tolice um espírito criado querer reagir contra Deus.”
Diz Martim: “Tua observação é justa e eu mesmo sinto alguns lem- bretes dentro de mim. No entanto, afirmo que a Jesus não cabe res- ponsabilidade e sim somente àquele que sofre, e algumas vezes a certos funcionários celestes que agem com um despotismo incrível.
Finalmente tudo isto pode ser desculpado com a sabedoria, mas ai de quem for submetido ao seu critério, pois teria sido melhor que não nascesse. Por isto Jesus deve ser desculpado e elogiado quando interfere na tirania de tais espíritos, humilhando sua sabedoria.
Tais anjos celestes são teimosos na ausência do Senhor; nem bem Ele aparece, a coragem se retrai e se apresentam com meiguice e mo- déstia. Tudo isto eu sei, razão por que amo a Jesus sobremaneira. Segui meu exemplo que haveremos de nos dar muito bem para sempre. Di- zei-me agora, quando deixastes a Terra? Segundo vossa palestra deduzo que não vivestes antes do Cristo, porquanto tendes conhecimento, in- clusive da Igreja católica.”
PORMENORESREFERENTESAOSSERVOSDE ROMA
Manifesta-se um homem do grupo: “Caro amigo e irmão, todos nós deixamos a Terra no ano de 1846 e vivemos dispersos, dando-se esse encontro somente aqui, no mundo das almas. Fomos monges je- suítas, ligurianos, minoristas e carmelitas. Somos oitocentos homens; as duzentas freiras são Irmãs de Caridade e algumas do Sagrado Cora- ção de Jesus.
O resto podes facilmente imaginar quanto às tolices que fomos obrigados a praticar, tendo o Vaticano nos enviado à pesca em todo o mundo, e por esta honra amarga fomos decapitados na Ásia, Áfri- ca, Austrália e América. Quando, ao ingressarmos aqui, supúnhamos receber a coroa da glória eterna como mártires, a verdadeira miséria teve início.
Como te disse, és tu o primeiro ser humano que encontramos nes- se deserto sem fim. Não é isto horrível quando se espera uma recom- pensa pelo sacrifício prestado? Naturalmente não acreditávamos naqui- lo que pregávamos aos fiéis, pois visávamos apenas os peixes dourados para Roma e para nós. Transmitíamos a Doutrina do Cristo e con- vertemos muitos ao cristianismo: e no fim fomos martirizados como prêmio especial!
Eu então recebi a melhor parte. Durante dez anos fiz bons negócios na China, cujo idioma me era conhecido, e por intermédio de uma bela chinesa consegui ingressar na corte. Lá aquela fera tirou a máscara, pois eu a havia feito participar dos meus segredos e fui por ela traído perante as autoridades, revelando minha fraude e outras intenções que realmente visavam alta traição.
Fui imediatamente preso e imprensado entre duas rochas que dois mandarins esquentaram a tal ponto que fui paulatinamente assado. Tal martírio é o mais penoso e levaria a crer que todos os pecados mortais estivessem pagos. Mas, qual nada, esse sofrimento continuou após a morte, como já falei. Foi o prêmio pelos muitos esforços terrenos, e desconheço o que me espera no futuro. Vês, portanto, sermos pobres diabos aos quais praticas obra de caridade. O Senhor, caso exista, te recompense!”
Responde Martim: “Fui informado além do que esperava. Mas, não importa, continuaremos bons amigos. Trazei-me as freiras, para relatarem sua chegada aqui.”
SUPOSTASANTIFICAÇÃODASOBRAS CATÓLICAS
O orador se dirige à porta onde se encontram as freiras e as conduz para junto do bispo Martim. Sem mais delongas, ele se dirige a elas: “Minhas irmãs, como foi possível chegardes a tal miséria? Sem dúvida confessastes, participastes da comunhão e rezastes inúmeros rosários, se bem que fossem cacarejados e não rezados!
Além disto, não deve ter havido falta de outras práticas de devoção. Respeitastes todos os feriados e as santas relíquias, a pia d’água benta, o incenso e os sinos. E no desempenho das demais obrigações cumpris- tes vosso dever sem esmorecimento. Por isto repito: Como foi possível chegardes a tamanha miséria?”
Responde uma das Irmãs de Caridade: “Caro amigo, Deus, nosso Senhor, deve sabê-lo melhor que nós. Eu e todas essas irmãs da minha Ordem fomos verdadeiras mártires. Trabalhamos dia e noite; tratamos dos doentes, sem trégua, e às vezes fazíamos além daquilo que nossa congregação, aliás severa, nos impunha. Jejuamos e oramos sem cessar; duas a três vezes por semana íamos à confissão e à comunhão e, se vez por outra nos vinham pensamentos sensuais, bradávamos: Jesus, Maria e José, ajudai-nos a manter casto o nosso corpo diante das tentações diabólicas!
Se isto não surtia efeito, corríamos para a igreja; ela não nos so- correndo, aplicávamos os mais fortes cilícios até sangrarmos. Se, ainda assim, não obtínhamos resultado, nosso confessor tinha que agir com recursos exorcistas que, infelizmente, só podiam ser aplicados com êxito nas noviças. Nas mais idosas usávamos banhos gelados e sangrias. Tão rigorosa foi nossa vida que certamente não despertaria inveja a um cão. Ninguém há de nos criticar se após tais fadigas esperávamos aqui as alegrias celestes, pois nos fundamentávamos na promessa feita aos que, por amor a Jesus, tudo abandonaram no mundo e palmilharam a trilha
espinhosa da cruz.
Repara só nossa glória celeste tão decantada! Não temos aspecto de bruxas? A pele do rosto, cinza escuro, a roupa de trapos imundos, e estamos tão magras quais múmias que vez por outra se encontram nos
desertos da África, e esfaimadas quais tubarões. Que noção poderíamos ter da Justiça divina, em tal situação?
Quando aqui cheguei, vi que anjos luminosos acabavam de receber uma criatura imoral, nada mais que prostituta, conduzindo-a para o Céu! De mim, nem um gato se aproximou, muito menos um ser celes- te. Que justiça vem a ser esta?
Além disto, sou amaldiçoada por moças honestas, ricas e belas, que consegui trazer para minha congregação, pois alegam terem sido vilmente enganadas. Faltava-me apenas isto: responsabilidade condena- dora diante do Juiz eterno, pelo zelo excessivo!”
Nesta altura se adiantam várias Irmãs de Caridade e bradam: “Sim, fera inclemente, és culpada de tudo! Como te esforçaste em persuasões para nos convencer a ingressar em tua miserável Ordem! Quando nos recusamos a participar da solenidade da profissão, porquanto nossas expectativas dentro do mundo eram melhores que em tua Instituição, não recorreste a todas as instâncias para que fôssemos detidas em nos- sa intenção?
Uma vez obrigadas a proferir o voto, como um recruta jura fideli- dade militar, fomos tratadas de modo pior que as mais infelizes almas no purgatório, sem podermos comunicar aos nossos pais o tratamento recebido. Havia apenas permissão de queixas ao confessor, que tinha de silenciar a respeito. Agora exigimos o Céu prometido, com maior direi- to que tu! Leva-nos até lá, do contrário sentirás nossa vingança!” A esta imprecação, a freira se atira aos pés do bispo Martim, pedindo proteção.
OBISPOMARTIM,COMO PACIFICADOR
Obtempera Martim: “Minhas irmãs, entregai vossa querela ao Se- nhor Jesus, Único Juiz justiceiro. Perdoai-vos de coração, que tudo irá bem. Minha casa é um lar de paz e de amor, e não de vingança. Ale- grai-vos por terdes recebido tão boa acolhida junto de mim, certamen- te pela Graça do Senhor. Assim que puderdes transformar o ódio em amor, vosso aspecto melhorará.
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Há muitos na Terra que seguem um caminho errado da virtude. Por que haveríeis de fazer uma exceção? Muito foi feito por vós, mas não por causa do Senhor, e sim visando apenas o Céu, o que não corres- ponde à atitude evangélica. Devemos fazer tudo, e só então exclamar: Senhor, fui apenas servo imprestável e preguiçoso e peço que sejas Mise- ricordioso comigo! — Se agirdes dentro deste conceito, jamais pronun- ciareis um julgamento, podendo aguardar a Graça de Deus.
Desconheceis o que afirmou o sábio doutrinador Paulo, que tam- bém foi servo mau e inútil, desconsiderando suas ações, mas apenas a Graça do Senhor? Afirmou ele: ‘Serás bem-aventurado, não pelo méri- to, mas pela Graça do Senhor.’ Depositai vosso suposto mérito aos Pés Dele e confessai vossa completa nulidade, que a Graça do Senhor se apresentará.
Na Terra fui bispo e também acreditei numa recepção de anjos após a morte. Nada disto aconteceu. Até hoje não cheguei a ver o Céu, conquanto já tivesse falado muitas vezes ao Senhor e recebido esta casa de Sua Própria Mão. Como então pretendeis a coroa da glória? Convém ter paciência, meiguice, amor e coragem, e todo o resto se fará por si só.” As Irmãs de Caridade se afastam apaziguadas, enquanto o bispo Martim chama pelas noviças, que durante seu ensinamento tentavam avançar umas nas outras, e pergunta de que modo chegaram a essa in-
felicidade e qual sua situação na Terra.
Uma delas se adianta e diz: “Viemos de diversos lugares: da Suíça, França, Tirol e Áustria. Vivemos muito piedosamente. Durante o dia orávamos no mínimo quatorze vezes, durante quinze minutos. Assistí- amos diariamente à santa missa; aos domingos e feriados assistíamos a três missas, um sermão e a ladainha. Três vezes por semana no mínimo confessávamos e recebíamos todos os dias o Santo Sacramento. Jejuá- vamos cinco vezes por semana em honra dos santos estigmas e nas sex- tas-feiras sofríamos sete flagelações em honra da Santa Virgem. O resto do tempo dedicávamos a meditações e ensino de moças, estimulando a tendência — se possível por motivos financeiros — de ingressarem em nossas pegadas, para depositarem seus bens materiais aos Pés de Deus, tornando-se noivas puras e dignas de Jesus Cristo.
De igual modo, nenhuma de nós podia andar pelas ruas de cabe- ça descoberta, olhar para um homem, nem ao menos um padre, mas somente um franciscano, um jesuíta, um bispo ou um cônego. Se fôs- semos tentadas por pensamentos indecorosos, pedíamos à madre supe- riora um castigo severo, para afastar de nossos corações castos essa obra do inferno.
A madre bondosa e muito santa nos dava os mais sábios ensinos e em seguida aplicava os castigos, que variavam à medida dos pensamen- tos pecaminosos. Por um pensamento simples recebíamos um tapa nas nádegas e a obrigação de três rosários e um dia de jejum. Para um pen- samento maior ela nos dava sete chicotadas até sangrarmos, ordenava doze rosários e três dias de jejum. Se o pensamento do matrimônio nos assaltava, recebíamos quinze chicotadas, trinta rosários, nove dias de jejum e durante três semanas o porte do cilício.
A isto acresciam as penitências psíquicas, ainda piores que as ou- tras. Por exemplo, éramos obrigadas a levantar durante a noite para orarmos no altar, coisa penosa, mormente no inverno. Quando adoe- cíamos em virtude desses sofrimentos, devíamos sempre pedir a morte para mortificação de nossos pecados, etc.
Como tivéssemos sofrido tanto e com tamanha paciência, subme- tendo-nos às duras regras da Ordem e doássemos nossos bens à mesma, para sua disseminação e por honra da Virgem Santíssima e a crescente Glória de Deus, nossa exigência da eterna bem-aventurança não foi descabida. Tal, porém, não se deu, pois quando aqui chegamos e alguns camponeses nos avisaram que tínhamos ingressado no mundo das al- mas, vimos do outro lado a chegada de criaturas dissolutas e esperáva- mos que fossem recebidas por inúmeros demônios.
Mas, quem poderia adivinhar a realidade? Em vez de demônios, anjos desceram do Céu, cobriram as almas pecaminosas com vestes celestiais, entregaram-lhes palmas luminosas e as levaram diretamente para o Alto. A nós, anjo algum se dignou olhar. Clamamos, oramos para Maria, Jesus e todos os santos e escolhidos, sem resultado. Porven- tura não fomos traídas? Seria esta a Justiça de Deus?”
Diz o bispo Martim: “Calma, calma! Ainda que vossa situação não melhore, é ela suportável. Não deveis aguardar algo de bom em virtu- de do mérito; pois se na Terra fostes tão tolas a vos deixar aprisionar, açoitar e finalmente matar, qual seria o benefício do próximo? Cuidas- tes apenas do vosso Céu, não vos perturbando se Deus condenasse o mundo inteiro. Tende paciência, desconsiderai o mérito julgando-vos apenas péssimas e inúteis servas do Senhor, que Ele Se apiedará de vós. Agora deixai que as freiras do Sagrado Coração de Jesus se aproximem.”
ENGANOSETOLICES ESPIRITUAIS
As noviças se afastam com relutância, enquanto as freiras do Sagra- do Coração de Jesus se aproximam dizendo: “Excelentíssimo senhor, somos representantes da primeira Ordem religiosa do mundo, na qual apenas são admitidas moças de famílias ricas e nobres, onde tudo apren- dem, como seja: idiomas, música, dança, ginástica, esgrima e equitação, desenho, pintura e bordados artísticos. Naturalmente estudamos geo- grafia, matemática, física, astronomia, história, náutica, hidráulica, tri- gonometria, estereometria, poesia nos idiomas mais nobres da Europa, etc. Em suma, nossa Ordem ensina todas as ciências e artes à medida que sejam pagas. Além disto, emprega-se o tempo com orações, canto e jejum, uma missa diária, três vezes por semana confissão e comunhão; às infrações das regras seguem punições adequadas que, infelizmente, são mais consideradas que as próprias regras.
Daí poderás concluir a orientação severa de nossa Ordem e a gran- de renúncia necessária para cumprir seus preceitos, pois apenas espíritos muito fortes o conseguem. Assim, tornamo-nos verdadeiras heroínas na conquista do Reino do Céu; no entanto, estamos tão infelizes como no início de nossa chegada. Tua casa é o primeiro local aprazível que vimos até hoje. Seria esta a Justiça de Deus?
Em vez de nos proporcionar o merecido Céu, fomos obrigadas a dar ouvidos a um camponês de feições brutas e sem educação nenhu- ma, pois quando batíamos a uma porta na qual se lia: Entrada para o
Céu! — ele nos dizia: Afastai-vos, virgens tolas e loucas! Por que não enchestes vossas lamparinas com óleo?
Em seguida, a porta desaparecia e nos víamos rodeadas de inúme- ros pequenos demônios quais vagalumes. Eles saltavam constantemente ao nosso redor, espicaçando-nos o tempo todo, até que encontramos esse grupo na fuga quase eterna. Que dizes a isto, venerando amigo? Que faremos para melhorarmos um pouco nossa situação?”
Responde o bispo Martim com ironia: “Ah, neste caso o Senhor agiu realmente com injustiça! Se Ele prometeu o Céu às regras evan- gélicas de vossa Ordem e não as cumpriu, poderia dizer-se que foi até mesmo impertinente. Mas, relegastes talvez a melhor regra cristã do amor ao próximo?”
Retruca uma outra freira, pretendendo ser francesa: “Oh non, mon ami, vivemos muito castas e devotas como as flores. Que mais haveria de querer nosso Senhor Jesus Cristo?”
Interrompe o bispo Martim: “Tola, por que essa ginástica, pois se tua companheira falou alemão comigo, sendo de Lyon, poderias usar teu idioma materno.”
Diz ela: “Julgava me tornar simpática a ti.” Diz Martim: “Que fé mais tola, semelhante àquela pela qual pretendíeis ingressar no Céu! Julgais ter Ele feito o Céu para tolas? Mais fácil é ingressarem asnos e bois. Guardai bem isto e voltai para o cantinho, para aprenderdes primeiro a humildade. Depois indagai se existe um lugar para servas de estábulo no Céu mais simples — o que duvido.”
PALESTRAENTREUMJESUÍTAE MARTIM
Nisto se adianta um jesuíta e diz: “Meu caro, não pareces ser amigo de artes e ciências, pois não te agradam essas dignas representantes do Sagrado Coração de Jesus, por assim dizer a única Ordem feminina que se dedica a elas e com isto as aproxima de nós, irmãos jesuítas. Deverias tratá-las com mais respeito e amor!”
Retruca Martim: “O quê? Maior respeito para essas tolas orgulho- sas? Digo-te que já fiz demais e mereciam ser enxotadas da porta por
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mais alguns milênios. Talvez perdessem a mania de falar em idiomas estrangeiros.
Observa como seus olhos chispam de ira e orgulho! Tudo fariam para disfarçar sua intenção, impossível no Reino das almas, onde tais seres facilmente se traem. Sua grande tolice me causando repugnância, vejo-me obrigado a mandá-las para longe.
Tu e teus colegas não deveis vos orgulhar em virtude de vosso nome incongruente, pois, considerando com que direito vos chamais de jesuí- tas e quem vos permitiu ultrajar esse Nome divino, hás de convir como vilipendiastes o Mesmo e como poderíeis reparar tal ultraje.
Porventura um dentre vós poderia afirmar: Jesus, o Senhor, nos convocou como fez com Paulo e Pedro! — ou talvez tivesse visto ou falado a Ele, ou enaltecido o Evangelho mais que Inácio de Loyola? Na realidade, fostes declarados inimigos de Jesus Cristo, chamando-vos de jesuítas.”
Diz o jesuíta: “Não pareces entender do assunto. Desconheces a frase: Omniaadmaioremdeigloriam?* — Nisto se baseia o motivo de nosso nome. Não foi Jesus, o Senhor, a criar nossa organização, pois nós escolhemos esse nome para Sua maior Glória. Sei que o meio por si só não é louvável. Que importa o meio quando a finalidade é boa e santifica o meio!”
Responde Martim: “Falas qual tolo julgando situações divinas como cego que critica as cores. Julgas que o Ser Supremo, ao Qual mi- ríades de milagres inconcebíveis honram pelo Espaço infinito, lucraria em Sua Honra se te classificas de jesuíta, ou por milhares de outros recursos infames procuras alcançar bons propósitos?
Teria Jesus estabelecido a Inquisição para aumentar Sua Honra por meio de um monge? Sentiria Ele prazer nos autos de fé e outras crueldades que praticastes em Honra Dele, enquanto visastes não raro intenções criminosas?
Tudo para a maior glória de Deus?
Julgas ter tido Ele prazer quando engravidavas uma moça e em seguida mandavas enterrá-la na cripta da igreja, ou pelo assalto de mi- lhares de viúvas e órfãs, por meio de insinuações infernais, sem que teu coração se arrependesse diante de sua miséria? Se assim pensas, és realmente o ser mais deplorável do Universo.
Que dirias se Jesus, Senhor Único de Céu e mundos, Se apresentas- se para saber como tu e teus colegas usastes o Seu Verbo e quem vos teria dado o direito de vilipendiar o Seu Santo Nome, de modo tão infame? Todos vós, dizei-me, qual seria vossa resposta ao Deus Onipotente?”
Os presentes são tomados de visível pavor e estarrecimento, sem se atreverem a pronunciar uma sílaba, pois julgavam que o bispo Martim fosse um anjo justiceiro. Apenas uma Irmã de Caridade se aproxima temerosa e diz: “Anjo da justiça, em Nome de Deus! Tem piedade co- nosco, pobres pecadores, e não nos condenes para o inferno, pois prefe- riríamos seguir para o purgatório! Que juiz pavoroso és tu!”
Retruca Martim: “Criatura tola! Nunca fui juiz, pois sou igual- mente pecador que espera a Graça de Deus. Todavia, reconheço minha grande tolice e posso apontar a vossa, para vos libertardes; do contrário, não aceitareis a Ordem de Deus, caindo em miséria progressiva. Em virtude de vos ter acolhido em minha casa provo evidentemente não ser juiz, e convém ouvir os ensinos de quem tem maior experiência neste mundo. Meditai sobre minhas palavras.”
MARTIMEMPALESTRACOMJESUÍTASE LIGURIANOS
Em seguida, dois outros jesuítas e dois ligurianos abordam Martim com as seguintes palavras: “Caro amigo, concordamos com tua orien- tação e nada nos falta exceto ocupação, pois, sem trabalho para toda a eternidade, a morte seria preferível.”
Diz ele: “Podeis ler o que consta na esfera branca?” — Responde um: “Sim, é o tal funesto ‘Diesirae,diesilla!Liberanosabomnimalo!Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris! Requiescant inpace! Repuiem aeternam dona eis, domine, et lux perpetua luceat eis! Exprofundisclamavi!Clamormeusaeteveniat!Vitamaeternamdona eis,
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domine,etsedereinsinoAbrahami,etconsidereadmensamillius,etcome-derecumilloperomniaseculaseculorum,amen!1’
Como vês, ainda sei ler, se bem que há não sei quantos séculos não mais vi uma letra. Mas, qual a finalidade desses antigos versículos? Por- ventura são eles considerados no mundo das almas? Se assim for, nossa existência estará condenada. Explica-nos como entendê-lo?”
Responde o bispo Martim: “Ora, segundo seu teor! Porventura li- gaste um sentido diferente a essas exclamações, senão ao exterior? Se no mundo eles vos trouxeram dinheiro e certo conceito religioso, por que deveriam importunar-vos aqui, em sentido prático? Para que fim neces- sitais de ocupação? Requiescant in pace; ergo requiescamus!2Essa calma encontrastes na paz eterna.
Luz também não falta, pois se irradia pelas grandes janelas constan- temente; além disto, é esta minha casa semelhante ao seio de Abraão, e o armário grande e repleto de pão e vinho é uma verdadeira mesa de Abraão, na qual sereis alimentados comigo até o Dia do Juízo Final, caso não fordes condenados neste dia de ira! Que mais quereis?”
Intervém um liguriano: “Sim, tens razão. No entanto, observo que a situação na sucessão do tempo se torna terrivelmente enfadonha. Bas- ta imaginares a espera eterna, sem alguma ocupação! Não há ser vivo que o suporte!”
Diz Martim: “De que te adiantam essas conjecturas? Não te recor- das de ter lido: Cada um viverá segundo sua fé! — pois acreditávamos em tamanha tolice, cuja realidade não nos agrada aqui?
1(São) dias de ira, aqueles dias! Livra-nos de todos mal. Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó voltarás! Que descansem em paz! Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno e que sobre eles resplandeça a Tua Eterna Luz! Das profundezas clamei. Que o meu clamor chegue a Ti. Ó Senhor, dai-lhes a vida eterna, e que sejam acolhidos no seio de Abraham, assentando-se em sua mesa para com ele cearem para sempre, amém!
2Que descansem em paz; portanto, descansemos!
Se na Terra fomos burros teimosos, temos que suportar aqui a rea- lidade desta fé estúpida, agrade ou não. Se tivéssemos organizado nos- sa fé em moldes mais sábios, nossa situação aqui seria melhor. Todos nós, inclusive eu nos sentíamos mais felizes à medida que divulgávamos maior ignorância entre as criaturas. Convém não nos queixarmos se vi- vemos agora enterrados em nossa própria ignorância, como no suposto seio de Abraão.
O Senhor, em Sua Bondade, preservou nossas inclinações. Quem se alegra com sua tolice, fique com ela! Quem sentir prazer em dormir poderá dormir à vontade, estendendo-se isto ao ócio, ao comer e beber, à ocupação com virgens, etc. Tudo está ao nosso dispor.”
Todos dão de ombros e dizem: “Que o diabo carregue nossa sabe- doria! Se fosse possível voltarmos à Terra para coaxar quais sapos, nossa situação seria outra. Não podendo alterá-la, temos que nos conformar.”
ACULPADE ROMA
Aproxima-se um minorista dizendo: “Deixai-me fazer um pronun- ciamento; se bem que talvez nada de melhor produza, ao menos suavi- zará nosso futuro descanso eterno. Todos nós possuíamos dois Evange- lhos na Terra. Um antigo, de Cristo, o Senhor, e de alguns apóstolos; e outro, da Igreja católica, que se dizia a única salvadora, porquanto julga encontrar-se na cadeira de Pedro e possuir as chaves para Céu e inferno. A esta Igreja juramos fidelidade até o fim da vida e aceitar como verdadeiro tudo que ela apresenta para a fé, considerar e condenar como herege todo aquele que pensar, conste ou não em qualquer Bíblia. Além disto, juramos crer e agir de modo contrário. Tudo isto foi por nós estri-
tamente cumprido, não obstante fosse oposto à nossa razão.
Sabemos da proibição da leitura da Bíblia, por parte da Igreja, como sendo pecado mortal, podendo apenas ler os Evangelhos muito reduzidos, aos domingos. O restante podiam somente ler os doutores de teologia, enquanto nossa leitura se restringia ao breviário, aos Padres eclesiásticos, às lendas, às regras da Ordem, a Inácio de Loyola, às relí-
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quias, imagens, sacramentos, confissão e outras coisas mais, que agora podemos denominar de tolices incríveis.
Porventura somos responsáveis se agimos contrariamente à Dou- trina de Jesus, se Deus permitiu tal constituição católica? Convém cha- mar-se o culpado de nossos erros a fim de transmitir-nos os meios de conduta para repararmos o mal feito.”
Aduzem os demais: “É isto mesmo, falaste com inteligência, para nossa grande satisfação. O responsável terá que penitenciar-se por nós. Isto cabe ao Vaticano e a todos aqueles que nos designavam para algo sem o nosso consentimento oportuno em que nossa inteligência se ti- vesse purificado no justo conhecimento.
Fomos batizados sem o nosso consentimento, e com este batismo prematuro foi-nos imposta uma confissão católica, atribuindo respon- sabilidades a um menor. Acaso não é desvario exigir-se de um recém-
-nascido juramento de fidelidade, através de representantes, sem consi- derar que uma vez adulto não concorde com o mesmo, cometendo em tal caso quebra de juramento?
O Próprio Cristo afirmou: Quem crer e for batizado será bem-
-aventurado! — Como pode alguém ser batizado antes que se torne consciente da fé cristã? O batismo deve ser prova viva de que a pessoa aceitou a fé cristã como única norma de vida. Que sabe uma criança a respeito da fé e do testemunho? Quanto mais medito a respeito, maior se apresenta essa tolice!
Consta que, pelo batismo, o pecado original e todos os pecados cometidos antes do batismo serão perdoados. Poderia uma criatura com alguma inteligência condenar uma criança por terem seus pais come- tido um erro perdoável? E Deus, o Sábio Criador, deveria atribuir às crianças de milhares de gerações o pecado de Adão? Que absurdo!
E quais seriam os pecados de um pagão que ingressa na religião cristã, atualmente muito mais pagã que o próprio paganismo? Só po- dem ser contados os pecados contra o paganismo, porquanto nunca conheceu as leis cristãs. Relevar a um pagão seus pecados primitivos nada mais seria que positivá-lo no paganismo. O mesmo se dá com
um judeu, pois querer perdoar-lhe seu judaísmo seria a culminância da tolice!”
Aduz outro minorista: “Amigos, vós vos adiantastes às minhas ideias. A meu ver é tal batismo romano idêntico à lenda da consagração ao demônio, que através de Roma se apossa de nós. E tal igreja anticris- tã ainda se diz mãe, e seu chefe, o representante de Jesus Cristo, quer dizer, representante de Deus!
É realmente estranho! Em que engano nos encontrávamos sem percebê-lo! A fim de que ninguém cogitasse de uma séria penitência e verdadeira regeneração, inventou-se a confissão, que ameniza todos os pecados mortais com direito pleno de absolvição, pela qual a criatura era novamente atirada em sua antiga cegueira, sem poder renovar-se em Cristo.
Meus irmãos, tais fatos são incríveis e sua permissão por parte de Deus é um enigma eterno. ‘Sede perfeitos como vosso Pai no Céu!’ — Belo aperfeiçoamento quando conscientemente o homem se torna cada vez mais tolo e somente como espírito começa a vislumbrar em que tremendo erro se encontrava o mundo!
Haveria muita coisa para dizer, provando-se cada vez mais que o Vaticano é o único culpado de nossos erros. O Senhor conhecerá nossa situação e terá misericórdia conosco, pois também perdoaremos a todos os que nos induziram ao planejado obscurecimento atual.” Todos con- cordam com esse discurso, com exceção de alguns jesuítas.
OSIGNORANTESJESUÍTASSÃO ESCLARECIDOS
O bispo Martim aproxima-se deles dizendo: “Por que discordais dessa explicação? Duvido que vosso entendimento supere o de vossos companheiros. Conheço o motivo de vossa atitude e vos direi o que vos obstrui a visão qual tríplice coberta de Moysés.
Primeiro, sois dominados pela teimosia, que impede a penetração de um conhecimento mais puro em vosso coração. Segundo, a supers- tição, pela qual acreditais ser suficiente o batismo para ser cristão, pois basta batizar alguém em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e
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o cristão está feito! Terceiro, vossa opinião orgulhosa e a crença domi- nadora de que sois os verdadeiros apóstolos do Senhor, podendo fazer o que quiserdes, em virtude da posse do verdadeiro Espírito Santo!
Como pretendeis prová-lo? Onde, na Escritura, existe um texto que justificasse tamanha tolice? Julgais que as palavras dirigidas aos apóstolos, quando o Senhor os enviou a divulgarem o Evangelho entre todos os povos, também foram ditas para vós, anticristãos? Lá consta: Recebei o Espírito Santo! O que fordes unir ou separar na Terra, possui- dores deste Espírito, será igualmente unido ou separado no Céu!
Porventura possuístes alguma vez o Espírito Santo? Poderia Ele contradizer-Se, alterar o que determinou para todo sempre, ou con- cluir serem Seus Mandamentos insuficientes, necessitando de ou- tros melhores?
Não teria o Espírito Santo em época dos apóstolos previsto que futuramente seriam necessários monges de todas as categorias, para conduzir as criaturas ao Céu, sendo indispensáveis imagens, esculturas, relíquias, sinos, pias de água benta, incenso, estolas, batinas, cálices, custódia, etc.? Quão cego deveria ter sido o Espírito Santo naquela épo- ca por não prever e organizar tais necessidades!
Talvez fossem os primeiros cristãos, inclusive Pedro e Paulo, en- tregues ao demônio porque não possuíam igrejas, sinos, missas em la- tim, ofícios religiosos de matrimônio e morte, bem pagos, mortalhas e círios? Não conseguis ver tamanha estultícia? Não compreendeis que todos nós, em virtude de nossa cobiça e tendência dominadora, nos tornamos prepotentes e contrários à Palavra de Deus e ao ensino dos apóstolos, criando tais obras a serviço de Deus, leis e cerimônias opostas ao Espírito Santo, que não perdoa os pecados cometidos contra Ele?
Se fordes comparar o Verbo puro do Senhor com nossa estultícia católica, deveis concluir ser Roma nada mais que a prostituta claramen- te demonstrada nas Revelações divinas, e nós, seus anjinhos, em ótima forma. Desisti de vossa tolice antiga e dirigi-vos ao Senhor Único, Jesus Cristo, que sereis aceitos. Que o motivo não seja esta minha explicação precária, se bem que bem intencionada, mas unicamente vossa precária vontade e o amor!”
Todos concordam com o bispo Martim, com exceção das freiras do Sagrado Coração de Jesus, que dizem: “Continuaremos fiéis à Igreja Mãe e não aceitaremos outro ensino que nos levaria ao inferno, en- quanto não recebermos ordem de Deus Mesmo ou da Virgem Maria.” Diz Martim: “Muito bem, tolinhas, o Senhor certamente vos pro- porcionará um presente especial. Não querendo aceitar por norma de vida o Evangelho, podereis vos suprir de vossa mãezinha de Roma! O Senhor, todavia, vos passará uma dieta homeopática que durará uma eternidade, surtindo os melhores efeitos. Deixemos estas senhoras em seu erro, para nos encaminharmos a uma luz mais clara, em nome
do Senhor.”
DILATAÇÃODECORAÇÃOE LAR
Diz o minorista: “Onde se encontra essa luz mais clara? Para onde nos conduzirás?” Responde o bispo Martim: “Acompanhai-me ao cen- tro desta sala; lá se acha um mecanismo verdadeiramente divino, repre- sentando o Universo. Analisaremos primeiro a Terra e em seguida nos dirigiremos aos demais planetas e finalmente ao Sol. Descobrireis muita coisa que até então vos parecia enigmática.”
Todos se dirigem ao ponto mencionado, rodeando o mecanismo em longas filas. Até mesmo as freiras os acompanham disfarçadamente, para ver o que iria suceder com a luz prometida por Martim. Como ele o percebesse, diz: “Por que nos seguis às escondidas, como na Terra age a polícia secreta? Querendo participar de um conhecimento mais claro, fazei-o abertamente, compreendestes?”
Elas param, dizendo: “Não te aborreças sabendo que somos tolas e fracas, como também tu certamente eras ao ingressar neste mundo, não aceitando tudo imediatamente.
Não haverá mal em querermos defender nossa Ordem; no entan- to, nos trataste com rispidez, que suportamos, embora reclamássemos. Perdoa-nos e tem paciência conosco!”
Diz o bispo Martim: “Ah, essa linguagem me agrada muito mais que a francesa; vinde sem susto e convencei-vos dos acontecimentos
futuros.” Assim, todos começam a estudar o globo terrestre tão fiel- mente imitado a ponto de não faltar a menor particularidade, e Martim explica na medida de suas posses, fazendo às vezes observações chistosas acerca das aparições na Terra.
Passado algum tempo neste estudo, a iluminação se torna mais clara e a sala dá a impressão de ser maior. O grupo também o percebe e indaga a razão desta modificação. Martim então responde: “Amigos e irmãos, tal fato não vos deve estontear aqui, onde tudo se transforma com facilidade. Não percebestes quão pequena se apresentava esta casa e como é enorme por dentro? É por certo milagre que não entendemos, mas que para o Senhor é facílimo efetuar.
Creio que Ele nos proporciona maior luz porque aceitamos conhe- cimentos superiores e, nossos conceitos a respeito Dele se havendo di- latado, Ele aumentou essa morada a fim de que todos tivessem espaço. Aqui tudo sucede segundo o adiantamento de nosso coração, através da Onipotência, Amor e Sabedoria do Senhor.
Eis que vejo uma nova escrita luminosa no disco, que tenho de ler!” Quando o bispo Martim se encontra diante da esfera, ele decifra: “Martim, dirige-te para fora, pois tenho coisas importantes a combinar contigo. Os outros devem se manter calmos. Vem!” Martim transmite a ordem ao grupo, que obedece, enquanto ele se dirige para fora.
TRANSFORMAÇÃODOJARDIM.OJARDINEIRO BÓREM
Passando pela porta, Martim vê que o jardim em volta da casa está muito aumentado e todo florido, o que lhe causa grande alegria. Além disto, percebe igualmente a Casa do Senhor, bem próxima, aumentan- do sua satisfação. Todavia, não vê ninguém à sua espera. Conquanto algo admirado, ele não perde coragem e paciência e se dirige ao jardim, julgando Eu estar lá escondido para não ser visto da janela.
Cuidadosamente, Martim dá uma busca no jardim, sem Me en- contrar. Finalmente conjectura: “Isto parece uma pequena prova ce- leste. Mas, não importa, preciso cumprir minha obrigação, seja com o Senhor ou com um mensageiro Dele. Poderia dirigir-me à Sua Casa.
No quadro, porém, consta que deveria sair para resolver assuntos im- portantes. Bem, aqui estou e o Senhor não terá feito a chamada em vão!” Após essas conjecturas, Martim caminha pelas alamedas e encon- tra no fundo um jardineiro entretido na plantação de pequenas mudas. Quando se aproxima, ele reconhece o livreiro Bórem e diz alegre: “Meu amigo, quanto me arrependi das ofensas que te fiz. Perdoa-me e volta a ser meu guia para sempre. Sinto profundamente minha injustiça contra ti e contra a Bondade do Senhor!”
Bórem se vira e retruca: “Sê bem-vindo, Martim. O Senhor está satisfeito por teres feito o bem, de livre e espontânea vontade, e me con- vocou a organizar e ampliar o teu jardim, conforme fizeste ordem em teu coração e o dilataste. Prossegue deste modo, em Nome do Senhor, que te aproximarás a passos largos do renascimento de teu espírito.
Ficarei contigo a pedido de teu coração e te auxiliarei no que pre- cisares. Grande trabalho te espera em tua casa e quanto maior for a luta, tanto mais próxima será a gloriosa vitória. Já terminei o trans- plante, todavia levará tempo até que as mil plantinhas produzam frutos maduros. Agora vamos procurar os que necessitam de ajuda, embora tivessem tido bom preparo de tua parte. Amor e paciência resolverão tudo. Vamos!”
CAMINHOPARAA BEM-AVENTURANÇA
Ao chegarem à casa são imediatamente abordados pelo minorista que se havia expressado com bastante compreensão e que diz a Martim: “Meu irmão, o que houve lá fora onde foste chamado com tanta urgên- cia? Ficamos bastante preocupados, julgando que tivesses sido chamado à responsabilidade por nossa causa. Que houve?”
Martim sorri e diz: “Não vos preocupeis por minha causa. O Se- nhor nos enviou este amigo e irmão para que me ajude a vos conduzir ao justo caminho, e por isto fui chamado.
Convém que todos prestem atenção às suas palavras, aceitando seus conselhos, e talvez em breve nosso destino melhore. Também eu estou longe de ser um espírito feliz, mas me encontro a caminho da completa
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felicidade através da Graça do Senhor. Tratai de fazer o mesmo e facil- mente todos nós ingressaremos juntos no Reino da Luz de Deus!”
Diz o minorista: “Sim, irmão, todos nós prometemos agir rigoro- samente segundo vossa orientação a fim de participarmos da Graça do Senhor, por menor que seja.”
Aduz Bórem: “Sustentai essa promessa do fundo do coração e amai a Jesus Cristo, o Crucificado, acima de tudo, por ser nosso Pai, Único, Amoroso e Santo. Cogitai apenas do Seu Amor e não prendais o cora- ção às coisas do mundo, que vos encontrareis em Sua Morada de Amor mais cedo do que imaginais. Para tanto é necessário vos desfazer das tendências sensuais.
Além disto, convém prestar atenção ao seguinte: Todos vós alimen- tastes em vida conceitos falsos de Deus, do Céu, em suma, da vida da alma e de sua situação após a morte. Até então tivestes oportunidade de vos convencer que vossa fé terrena não ficou comprovada aqui. Não en- contrastes purgatório, inferno, Céu e anjos alados. Assim sendo, tam- bém tudo aquilo que perfazia vossa fé católica não terá eco no Além.
Todas as preces de ajuda, das congregações e dos sacerdotes, tão consideradas por vós, nenhum valor tiveram, pois ninguém chega junto do Senhor por intermédio de uma compaixão transmitida por outrem, por ser Ele a Própria Misericórdia, e seria a máxima tolice querer incitá-
-Lo à Comiseração, pois é Pai Misericordioso e Bondoso.
Por isto, cada um terá que pôr mãos à sua própria obra; do con- trário, seria impossível chegar junto de Deus, o Senhor de toda Glória eterna e infinita. Apesar de Ele me dizer: Meu irmão, como Eu te amo!
— de nada adiantaria se eu pedisse por vós durante uma eternidade, pois cada um terá de agir segundo seu amor e sua força, do contrário jamais atingirá a verdadeira liberdade do seu espírito. Deus é Onipoten- te, mas Sua Onipotência direta a ninguém liberta, e sim nossa vontade livre e o amor a Deus; do contrário, seríamos nada mais que máquinas e autômatos da Onipotência divina.
Eis por que o Senhor instituiu os caminhos equilibrados, em Sua Sabedoria infinita, para chegarmos a essa liberdade divina. Como des- conheceis tais caminhos, eu os transmitirei, e deveis manter-vos estri-
tamente em tais orientações que chegareis ao destino para o qual Deus determinou todos os espíritos criados por Ele.
A partir de agora, tereis a máxima liberdade; havereis de receber tudo que puderdes imaginar e querer. Mas esta liberdade ainda não será liberdade, mas simples provação, que deve ser compreendida e não abusada. Milhares de Evas vos oferecerão a maçã tentadora, que não deveis tocar, por amor ao Senhor. Sereis caluniados e ridicularizados, sem poderdes vos enraivecer ou pensar em qualquer vingança.
Hão de vos perseguir, assaltar e até mesmo maltratar; mas a vossa defesa seja apenas o amor, apesar de terdes todos os meios para vos vingardes. Lembrai-vos constantemente do Senhor e de Seu Evange- lho, que ireis construir vossa morada eterna em solo firme, que jamais será abalado.
Transmito-vos a Verdade eterna de Deus, o Senhor de todo ser e vida. Quem não cumprir a Palavra de Deus dentro de si não poderá ingressar em Seu Reino. Cada um terá que passar pela porta estreita da humildade e entregar tudo ao Senhor. Unicamente o amor, em união com a máxima humildade, deve nos restar. Nada nos deve ofender. Jamais deveremos pensar e dizer que nos assistem certos direitos, pois temos somente o direito do amor e da humildade. Todo o resto é Posse do Senhor!
Assim como Ele Mesmo Se humilhou ao máximo, nós também teremos de nos humilhar, se desejarmos chegar junto Dele. Não revides a bofetada ao teu inimigo, mas oferece-lhe a outra face, para que haja paz e união entre vós. Quem necessitar de tua companhia durante uma hora, acompanharás por duas, a fim de que facultes o verdadeiro amor. Abençoa o inimigo e ora por aqueles que te amaldiçoam. Nunca deves pagar o mal com o mal, e sim fazer o bem aos que te odeiam, que serás verdadeiro filho de Deus.
A todos vós digo: Enquanto fordes procurar vosso direito em outra parte que não apenas na Palavra de Deus, enquanto alimentardes o espinho da ofensa e alegardes tratamento injusto, ainda sereis filhos do inferno, e a Graça do Senhor não estará convosco.
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Os filhos de Deus têm que suportar e sofrer tudo. Sua força seja unicamente o amor para com Deus e o próximo, seja bom ou mau! Uma vez firmes nesta prática, serão inteiramente livres e capazes de ingressar no Reino de Deus.
Sei que fostes padres e freiras católicos e que alguns se vangloriam com isto. Eu vos digo que nenhum pense naquilo que foi e fez na Ter- ra. Se alguém fez o bem, o Senhor não o esquecerá, tampouco o mal praticado, condenando-o segundo suas obras. E quem for julgado pelo Senhor, sê-lo-á para a morte e não para a vida, pois o julgamento é a morte da alma na eterna prisão de seu espírito.
Se o Senhor diz: Havendo feito tudo, confessai que fostes servos inúteis! — quanto mais vos compete esta confissão porque nunca cum- pristes o Evangelho em vosso íntimo, muito menos nos irmãos.
Falei em Nome do Senhor, sem acrescentar ou suprimir uma pa- lavra; apenas transmiti o que recebi Dele. Compete-vos praticá-lo da melhor maneira possível, pois não podeis vos desculpar com a falta de conhecimento se cairdes no julgamento pelo não-cumprimento dos ensinamentos.
Se alguém tiver boa vontade, mas levar uma queda em virtude de sua fraqueza, eu e este irmão haveremos de socorrê-lo, em Nome do Senhor. Percebestes certamente que no início é apenas exigida a boa vontade de todos, e em seguida a obra. Se tiverdes boa vontade para o bem, a obra não será tão rigorosamente considerada, porque a boa vontade já é obra do espírito.
Ai daquele que em seu íntimo alimenta má vontade e traição, si- mulando apenas boa vontade! Digo-vos pelo Poder do Senhor que nes- te momento vibra em mim qual força de tempestade: tal criatura seria subitamente impelida para o inferno, ao lamaçal da perdição eterna, assim como uma pedra que cai do Céu no abismo do mar não poderá ser tirada, ficando no lodo do julgamento!
Sabeis o que vos compete fazer para chegardes ao Reino do Céu como verdadeiros filhos do Senhor. Agi de acordo, que vivereis! Eu e este amigo fiel vos acompanharemos invisivelmente, para vos ajudar em vossa fraqueza. Quem cair em virtude de sua maldade não receberá
socorro, e sim apenas a paga na mesma moeda. Não me pergunteis onde seria o local de tais provações, pois estará em toda parte e quando menos esperardes, a fim de não serdes tolhidos em vossa liberdade. O Senhor seja conosco!”
Diz o bispo Martim: “Irmão, expressaste os pensamentos do Se- nhor. Senti-me bastante tocado, pois descobri certos pontos que me dizem respeito.”
Diz Bórem: “Então não serás prejudicado, caso também os pra- tiques. Pois ainda não te poderia deixar sozinho com a bela mercuria- na, compreendeste?” Responde Martim: “Tens plena razão, mas espero modificar tal tendência.”
UMNOVOMILAGREPARAOBISPO MARTIM
Diz Martim, em seguida: “Estou realmente curioso para ver como se darão as provas deste grupo enorme. Aqui em casa não haverá lu- gar, mas, colocar cada um num local isolado também não seria viável. Somos apenas dois para cuidar da experiência de cerca de mil pessoas. Como se efetuará a mesma?”
Responde Bórem: “Deixa de fazer indagações, pois para Deus muitas coisas são possíveis. Essas criaturas continuarão nesta casa, não dando um passo sequer para a porta; no entanto, serão levadas psi- quicamente a regiões diversas que correspondem ao seu estado íntimo. Se entrarmos em suas esferas seremos vistos e elas poderão se dirigir a nós. Se nos encontrarmos fora de suas esferas, elas não nos verão, mas continuarão perto de nós, podendo perceber através da parte posterior de suas cabeças o que fazem e como respeitam os Caminhos do Senhor. Neste momento todos já se encontram internamente onde devem estar, ao passo que os vemos fixos em seus lugares, dando a impressão de palestrarem. Isto não se dá, pois não se veem, tampouco a nós. Agora estão sendo enfileirados para podermos examiná-los. Eles não o perce- bem, como alguém que dorme e está sendo transportado, com o leito, para outro quarto. Sua posição ordenada facilita a observação de suas
cabeças. Aproxima-te deste minorista para veres o que faz.”
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O bispo Martim posta-se atrás do minorista e olha para sua cabeça como se fosse um vidro de aumento. Eis que descobre uma região ma- ravilhosa, onde se encontra o padre rodeado por um grupo de moças; ele não se deixa perturbar, mas as doutrina, de olhar fixo em uma estrela que surge no Oriente.
Bórem então diz: “Este já está salvo e, com ele, muitos outros. Prossegue para observar a situação dos jesuítas.” A surpresa de ambos é enorme ao verem uns trinta padres se apossando de uma legião de garotas desnudas. A competição entre os mais e os menos fortes resulta em luta tremenda, inclusive no meio feminino, onde se procura des- truir por meio das unhas as formas mais avantajadas. O bispo Martim observa esta cena inteiramente calado, em parte por admiração e em parte por aborrecimento.
Percebendo-o, Bórem diz: “Meu irmão, que me dizes a isto?” Res- ponde Martim: “Francamente, nunca poderia esperar tal atitude desses hipócritas! Ainda bem que não possuo teu poder de sabedoria ao lado de minha revolta, pois faria com que milhares de raios os enxotassem. Não existe quadro suficientemente infame que traduza o aspecto de tais patifes após tal manobra!
Observa o jesuíta que na China foi queimado entre duas rochas, em virtude de alta traição, como maltrata aquela bela chinesa! Dilacera os braços dela qual ave de rapina! Isto é revoltante e não deve ser per- mitido por nós!”
Retruca Bórem: “É apenas o início. Deixemo-los continuar, que a situação mudará. Vê, a chinesa está fugindo e encontrará um exército mais poderoso que a acolherá e vingará naqueles jesuítas. Do fundo da- quela cratera onde ela se encontra gritando, surgem monstros a cerca- rem o grupo jesuíta. Eles ainda não percebem o que os aguarda. Acon- tece que os monstros fecharam o círculo, e a chinesa, completamente estraçalhada e com bastão de soberana, se aproxima do grupo ainda entretido com as moças desnudas. Prossegue tu no relato do quadro.”
O bispo Martim observa por algum tempo os acontecimentos e subitamente leva um choque, dizendo impressionado: “Que horror!” A chinesa enfrenta qual fúria o padre jesuíta e, segundo seus gestos
veementes, lhe diz: “Ainda me conheces, miserável? — O padre, de feição revoltada, retruca: Sim, infame! Minha maldição jamais te esque- cerá! — e ordena aos seus colegas de prendê-la novamente a fim de ser estraçalhada. Ela, porém, brada: Alto lá, malditos sedutores do mundo inteiro! Vossa medida está completa e minha vingança virá sobre vós! — Neste instante, uma legião de monstros enormes e horripilantes se atira sobre os padres, retalhando-os completamente. A chinesa pega a cabeça do jesuíta e a atira a um abismo, do qual começam a subir fortes cha- mas, e ela acaba de arremessar o resto. Não consigo imaginar o inferno sob quadro mais pavoroso. Não conviria intervirmos?”
Diz Bórem: “Oh, não! Em tais casos, o Próprio Senhor agirá; nós seríamos muito fracos para tanto. Enquanto essas almas continuarem diante de nós, em fila, ainda não estão perdidas; se algumas desapare- cessem, não teríamos mais contato com elas. Todavia, não distam mui- to do inferno, pois tudo que acabaste de ver se passa no íntimo dos padres e não na realidade. Mas, se uma alma chega a se portar deste modo, a realidade mais deprimente está bem próxima.
Tudo isto se passa no coração desses padres, e o Senhor fez com que pudéssemos vê-lo figurada e dramaticamente. Acabamos de conhecer a índole e a vontade desses homens e veremos a possibilidade de transfor- mação em virtude dessa demonstração que o Próprio Senhor infiltrou em seu íntimo como ação vingativa.
O estraçalhar pelos monstros representa uma forte humilhação pela qual certamente chegarão a um equilíbrio. Dentro em pouco surgi- rão intactos, para demonstrar o efeito do acontecimento. Se observares bem, verás o grupo jesuíta emergir da cratera na qual a chinesa havia atirado apenas um deles.”
O bispo Martim volta a olhar para a cena e diz: “É verdade, lá vêm eles, e estou curioso de sua atitude. Ah, começam a mostrar atitudes mais humanas e percebo alguns de expressão beata com intenção de orar. Ficaria satisfeito caso melhorassem.”
Diz Bórem: “Para Deus tudo é possível. A primeira prova ocorreu de modo sofrível. Agora virá outra, muito pior, e podes assistir ao se- gundo ato da cena.”
SEGUNDAPROVADOS JESUÍTAS
Voltando sua atenção para o cenário, Martim percebe que uma caravana de peregrinos se aproxima dos jesuítas, carregada de imensos tesouros e riquezas. Indagada de sua procedência, a caravana responde: “Acabamos de chegar do mundo, onde roubamos vários claustros, prin- cipalmente os mais ricos dos jesuítas, por serem eles mesmos os maiores salteadores e bandidos do mundo.
Açambarcar da humanidade as economias adquiridas com imenso sacrifício, usando para tanto de mentiras, atitudes beatas, hipocrisias e insinuações do inferno e da condenação, é pior que roubar aberta- mente; pois contra salteadores e ladrões todos têm o direito de defesa, enquanto que os assaltos e roubos de jesuítas e outros não têm defesa. Sua posse sendo ilegítima, justifica-se termos explorado os claustros, e o roubo será levado diante do Trono de Deus, onde clamaremos por vingança até que o Senhor nos atenda e extermine esta casta maldita e traiçoeira.” Quando os padres jesuítas ouvem isto, se inflamam de raiva e revolta.
O bispo Martim, que tudo ouvira, diz para o companheiro: “A situação desse grupo jesuíta é deveras difícil. Vejo outros da mesma Sociedade, isolados e de aspecto mais agradável.”
Explica Bórem: “Já podem ser considerados salvos, enquanto es- ses trinta padres estão em situação bastante precária. Presta atenção às ocorrências.”
O bispo Martim faz-se de atento observador e diz, após certo tem- po: “Mas — o que vem a ser isso? Pelo amor de Deus, temos que inter- vir! Nunca poderia supor tais atitudes dos representantes desta Socie- dade! Pois, quando a caravana terminou com sua explicação, os padres bradaram enraivecidos e em uníssono: Malditos assassinos de Deus que profanastes a Santidade divina! Somos nós os jesuítas por vós assaltados e foi certamente Deus a trazer-vos aqui, para que vos entregássemos ao mais tenebroso inferno!
Sobe aqui, Lúcifer! Satã e Leviatã, levai esses infames perversos, amaldiçoados e hereges para o inferno mais incandescente! — Eis que
se aproximam realmente três figuras pavorosas saídas do abismo! Lan- çam fogo de guelras horrendas e dilatadas a ponto de poderem tragar casas inteiras.
A caravana se apavora e deposita seus embrulhos diante dos je- suítas, pedindo perdão e misericórdia. Estes a repelem sem piedade, gritando ainda mais ferozmente: ‘Não existe mais perdão e misericórdia aqui! O pior suplício eterno num arrependimento inútil será vosso des- tino e prêmio por vossa obra! Apossai-vos deles, demônios inclementes, e pagai-lhes eternamente o que fizeram em vida!’
A caravana insiste em seus rogos, em vão, pois os três demônios se aproximam dela, cada vez mais apavorada e bradando pelo perdão. Os jesuítas observam com imenso prazer suas vítimas, enquanto os demô- nios, com escrúpulos, ouvem a tenebrosa exigência dos padres.
Neste instante, os três demônios declaram ter sido o veredicto por demais severo e até mesmo injusto para esses pequenos pecadores. Os jesuítas, porém, protestam, dizendo: Nosso julgamento é de Deus, por- tanto justo. Levai-os para o suplício! — Os anjos do mal reagem: Vossa exigência ultrapassa o Julgamento de Deus! Faremos o que exigirdes, por vossa conta, pois Deus não concorda convosco! — Um grito ater- rador se faz ouvir da infeliz caravana, que desaparece com os demônios, ao passo que os jesuítas se regozijam, de feições radiantes! — O que dizes a isto, irmão? Não são eles verdadeiros diabos?”
Responde Bórem: “Não te impressiones, pois tudo isto é apenas visão apresentada por intermédio do Senhor no momento em que é for- çada a se externar das almas dos jesuítas ainda fortemente desvairados. A desistência do mal consiste não raro na expulsão real das almas, como ação direta; no entanto, é apenas fantasia. Assim, tudo que vis- te aqui tem seu motivo no profundo Amor e máxima Sabedoria do Senhor, tendo grande semelhança com a aparição de várias moléstias na Terra. Enquanto são um mal físico, constituem grande benefício da alma — e não raro do próprio corpo — pela violenta expulsão da
matéria nociva.
Assim sendo, essas aparições nada mais são que enfermidades psí- quicas trazidas da vida física, que devem ser expulsas totalmente por
meio de remédios espirituais, do contrário a alma jamais se curaria e o espírito não teria oportunidade de surgir.
Porventura a alma da criatura na Terra não jaz enferma e sem von- tade para qualquer atividade enquanto o corpo está adoentado? Assim que ele recupera a saúde a alma está plena de alegria e disposição. O mesmo sucede aqui. Esses padres são donos de almas sumamente en- fermas e suas enfermidades são afrouxadas e expulsas pelo Poder do Verbo, único remédio eficiente. Uma vez concluída esta operação, che- gou nossa vez de confortar e fortificar os convalescentes com o Amor do Senhor.
Espero que entendas melhor essas aparições e não te impressiones se no futuro deparares com fatos mais horrendos ainda. Em todas as moléstias a última substância a ser expelida pelos remédios é a pior, por ser o próprio motivo da mesma. Assim, também aqui os males princi- pais da alma são expulsos por último. Não te amedrontes ao deparares com eles. Dentro em pouco começará o terceiro e último ato dos trinta jesuítas.”
CONVERSÃODEUMJESUÍTAEVINGANÇADOS RESTANTES
O bispo Martim volta a observar através da parte posterior da cabe- ça do jesuíta à sua frente e percebe que os padres começam a expressar certo desapontamento, e um deles diz: “Obtivemos uma vitória, mas, analisando bem, tenho a impressão de termos agido injustamente e sem autoridade com a caravana, que ora arde no inferno. Se bem que nos injuriasse, não nos cabia o direito de julgá-la e condená-la.
Além disto, lembro-me perfeitamente do ensinamento dado pelo mensageiro celeste, antes de termos chegado a este estado de libertação individual, de que deveríamos enfrentar todas as investidas apenas com amor, meiguice e humildade. Nenhuma dessas virtudes foi praticada, mas demonstramos virtualmente que os três demônios nos ultrapassa- ram na meiguice e justiça.
Que vos parece isto? De minha parte, concluo que tudo neste mundo espiritual tem caráter capcioso, e a ação em si, para a qual não recebemos autorização do mensageiro de Deus, foi estritamente contrá- ria à ordem das coisas neste mundo tão misterioso. Tenho até mesmo a impressão que alguém me dissesse secretamente: Esta atitude tão cruel havereis de lastimar eternamente! Ora, se eu ao menos estivesse ausente naquele momento!”
A essa boa observação, os colegas quedam perplexos, mas dizem após algum tempo: “Sim, no fundo tens razão; mas, pensa bem se era possível agirmos de modo contrário à nossa índole. Quem tiver dei- tado a ira e demais tendências perniciosas em nosso íntimo terá que suportá-las.
Quem proporcionou o veneno mortal à serpente terá sentido agra- do por isto, do contrário não o teria feito. Assim, fomos obrigados a nos tornar jesuítas e aprender em nossa Sociedade que se deve dar plena liberdade à ira e vingança, podendo praticar a máxima maldade sem escrúpulos, para maior honra de Deus. Somos perfeitos em nossa pro- fissão. Que queres tu? Que mais quereria Deus de nós?”
Retruca o primeiro jesuíta: “Certo. Somos, portanto, escolhidos para verdadeiros demônios! Nada mais nos espera senão o inferno. Prossigamos em nossa perversidade e falsidade, para atingirmos quanto antes a eterna condenação. Para tanto vos desejo muitas felicidades! Não vos acompanharei, a fim de não ter a honra de me encontrar con- vosco dentro das chamas de enxofre. Não sinto a menor inveja por esta honra!”
Dizem os colegas: “O quê? Queres abandonar o sublime organiza- dor de nossa Ordem, tornando-te infiel à sua santa doutrina? Considera que nos espera o julgamento final! Se deixares nossa Sociedade, passarás mil vezes pior que a caravana!”
Responde o jesuíta: “No entanto, persistirei em minha intenção, na qual Deus me ajudará. Quanto ao julgamento final, não me impres- siona, enquanto temo a eterna condenação em vossa companhia. Não me interessa Inácio de Loyola; seguirei as palavras do mensageiro de
Deus. Todos os luteranos e calvinistas são verdadeiros anjos, ao passo que nós somos verdadeiros diabos dentro de nossas regras e instituições. Fazei comigo o que vos agrade, pois não hei de me vingar. Sinto profundo arrependimento com minha atitude junto à pobre chinesa; todavia, fui, graças a Deus, bastante castigado. A participação na con- denação da infeliz caravana me arde na alma como o próprio inferno;
que seria de mim, caso continuasse como vosso cúmplice? Adeus!” Nem bem termina de falar, os colegas o amaldiçoam e cercam,
estraçalham e dividem a pele entre si; o corpo é atirado fora do grupo, apedrejado, e todos os demônios são convidados a apanhá-lo. Estes re- almente aparecem, todavia se apossam dos que os chamaram. Os jesu- ítas reagem e gritam por socorro. Nisto, o primeiro se ergue e ordena aos demônios pouparem os ignorantes. E eles obedecem, abandonando os enfurecidos. Esta cena causa forte impressão em Martim, que está ansioso pelo prosseguimento.
SITUAÇÃOPSÍQUICADAS FREIRAS
Bórem então diz: “Amigo e irmão, agradeçamos à infinita Sabedo- ria e à incompreensível Misericórdia e Amor do Senhor por ter Ele agi- do tão suavemente com esse grupo. Tais provações duram muitos anos terráqueos para almas de índole melhor, enquanto aqui levaram apenas três dias. Naturalmente, o sentimento dos atingidos é carregado como peso de alguns decênios. O que representa isto diante da realidade, ou em relação ao estado psíquico em que o personagem às vezes é cumula- do com a duração de mil e até mesmo milhões de anos?
Em suma, o Senhor foi excessivamente Magnânimo com esses je- suítas, que acabam de passar pelo pior. Chegaram até à beira do abis- mo, portanto bem perto do inferno, pois o Céu dista muito deles. De qualquer maneira, estão salvos e entrarão na convalescença, com o que muito lucrarão, competindo ao Senhor toda a Honra. O que aos anjos mais elevados é impossível, para Deus é realizável.
Tens vontade de observar mais algumas cenas neste terceiro ato, ra- zão por que continuas a fixar o olhar no crânio do jesuíta. No entanto,
nada mais verás, pois o grupo começará a meditar, passando para os co- legas mais evoluídos, a fim de aguardarem o desprendimento desta zona material, o que ocorrerá enquanto analisarmos as freiras. Para que não esperem demais, iremos observá-las da mesma maneira que aos trinta jesuítas. Podes escolher uma qualquer, pois em todas verás o mesmo.”
Diz o bispo Martim: “Muito bem, tomarei a mais próxima. De fato, dá-se o mesmo fenômeno. Vejo-as todas dentro de um jardim cer- cado por forte muro e, no fundo, um claustro bastante escuro. Parecem estar em palestra; todavia, não consigo perceber o assunto. Noto apenas que se tornam ora mais escuras, ora mais claras, assim como na Terra as montanhas ficavam cinzentas quando os ventos impeliam as nuvens sobre os picos de neve. Assim que os raios solares afastavam as nuvens, os cumes brilhavam de novo. De onde se origina tal fenômeno com estas freiras?”
Responde Bórem: “Tua comparação foi bem acertada e poderá te facultar a explicação do fenômeno. Junto delas também flutuam nuvens de ignorância sobre os picos dos diversos conhecimentos, nuvens que se baseiam em suas várias paixões mundanas. Sabes perfeitamente que no momento de os ventos iniciarem seu jogo com as nuvens não demora a aparecer um tempo mau. Tal fato se dará aqui em sentido espiritual.
Percebes como as sombras se repetem cada vez mais insistentes? É o sinal seguro que dentro em breve começará a dança. Quando a penum- bra se estabelecer, dar-se-á o primeiro ato da tempestade. Presta atenção a tudo, pois descobrirás coisas mais interessantes do que nos jesuítas.”
Concorda o bispo Martim: “Sim, tens razão, aos poucos a luz agra- dável desaparece e tudo passa para o cinzento, dando-se estranha mis- tura de negro e cinza. As que já se apresentam bem negras são tingidas por baixo com ferro incandescente, talvez em virtude do despertar da ira ou pelo próprio inferno. Esses prenúncios são realmente suspeitos.
Agora vejo que pela porta do claustro dois homens se dirigem ao jardim, sem serem percebidos pelas freiras do Sagrado Coração de Jesus. Neste instante, parecem elas ter farejado qualquer sinal de intrusos, pois vejo punhais incandescentes em suas mãos, prontos para uma recepção não muito agradável.”
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A madre superiora se ergue e dá sinal de silêncio. Pigarreando com ares de importância, ela se dirige às companheiras: “Ouvi-me, minhas senhoras muito dignas e respeitosas. Nossa elevada e santa Ordem está ameaçada de grande perigo. Dois homens atrevidos, que prefiro chamar de velhacos, se introduziram pelo claustro, neste jardim de Deus, certa- mente para nos tentar à impudicícia, ou no mínimo com a intenção de inspecionar essa nossa posse santificada a fim de arrancá-la, caso não a entreguemos de boa vontade. Hão de pagar por essa indiscrição.
Num cálculo ligeiro, conto noventa freiras em nosso grupo. No momento em que esses velhacos se aproximarem ou não debandarem a nosso convite incisivo, serão atacados e cada uma de nós enterrará o punhal até o cabo. Uma vez mortos, nosso empregado os retalhará e queimará numa fogueira maldita, para que seja purificado esse Santu- ário de Deus.”
Observa o bispo Martim: “Que pensamentos sanguinários alimen- tam essas amáveis senhoras! Nunca poderia esperar isso por parte dessas verdadeiras fúrias. Se este é o introito, que aspecto terá o ato em si? Os dois homens têm aparência amorosa, em cuja alma não há dolo; no entanto, são condenados por elas sem lhes ter ao menos falado!”
Diz Bórem: “Calma, já sabes a realidade das coisas. Deixa-as agir. Quando estiver na hora de interferirmos, o quadro branco nos lembra- rá. Antes disto, seremos apenas espectadores.”
O bispo Martim continua a observar a cena e diz, após certo tem- po: “Os dois homens dirigem-se de novo para a porta, como se qui- sessem sair do jardim. As freiras o percebem e gritam contrariamente à primitiva intenção: ‘Alto lá, velhacos infames!’ Os dois não parecem dar atenção e se aproximam do portão. Enraivecidas, elas se antepõem à saída, com grito pavoroso.
Algumas os rodeiam de punhal na mão e bradam em uníssono: ‘Que procurais aqui, malvados? Confessai vossa intenção escabrosa e o plano traiçoeiro, para podermos vos aplicar o castigo merecido, sem piedade alguma. Ultrajastes com vossa infame presença este jardim di- vino, pisando o Espírito de Deus! A tamanho pecado mortal só pode seguir a morte, e vossa condenação eterna fará jus à Justiça divina!’
Os dois homens respondem: ‘Ouvi-nos com paciência! Viemos a Mando de Deus, para vos libertar de vossa grande tolice. Percebendo somente ira e tendência vingadora, ainda não estais amadurecidas para esta Graça e tereis que esperar por muito tempo para atingi-la. Desco- nheceis que quem julga e amaldiçoa será julgado e amaldiçoado? Não queremos pagar o mal com o mal; por isto controlai-vos e deixai-nos se- guir em paz, senão passareis mal!’ As freiras se atiram sobre os homens, que desaparecem, enquanto elas se ferem entre si, em sua raiva cega.”
OSCAMINHOSDOAMOR ETERNO
O bispo Martim começa a rir diante dessa cena e diz: “Irmão, como são tolas essas mulheres a se estraçalharem com os punhais! Se continu- arem deste modo, pouco sobrará delas e não teremos oportunidade de intervenção. Não importa, pois com esses trastes o Céu nada perderá.
Perdoa-me se dou impressão de malicioso, mas não pude me con- ter. Suporto tudo, menos criaturas ignorantes e maldosas, mormente quando se aniquilam de raiva. Não lhes desejo nada de mal, mas um pequeno sabor do inferno em nada as prejudicaria. Não para sempre, mas... um purgatório católico surtiria bom efeito!”
Retruca Bórem: “Não te exaltes, mas afasta de teu coração qualquer chamada de vingança do Céu. Considera apenas a Ação do Senhor, que descobrirás o Bem e a Verdade, segundo os quais tais seres fortemente ignorantes poderão ser levados novamente para a Luz. Fosse Deus se- melhante a ti, pouca esperança existiria para elas, com relação à Vida eterna. Portanto, vês que Ele é Melhor que todos os homens e anjos.
Estranhos são os Caminhos do Senhor; seu número é sinônimo de Infinito, e cada trilha por Ele encetada com uma criatura é um milagre novo e insondável para o mais perspicaz querubim, e santo sob qual- quer aspecto peculiar.
Considerando todas essas aparições deste ponto de vista, nada des- cobrirás de aborrecido ou ridículo. No final virá a convicção de que o Senhor tudo conduz a uma finalidade santa, com imenso amor, e às
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vezes por meios insignificantes atinge as metas mais sublimes; e a ajuda a uma criatura serve ao mesmo tempo para milhares.
Aos poucos perceberás a grandiosidade dos fenômenos, sim, como é santa até mesmo a vida e a atividade de um verme que na Terra viste passear por cima de uma folhinha seca. Por isto, alegra-te com tudo que aqui vês, pois é apenas efeito do Santo Amor de nosso Amado Pai. Jul- gas que o inferno com todos os seus indescritíveis pavores seja vingança do Senhor e baseia-se em Sua Ira, desde eternidades? De modo algum! O puro amor desconhece ira e vingança, e nesta base se enquadram todos os seus empreendimentos.
Aceita os fenômenos nesta compreensão, que dentro em breve re- ceberás outra veste, quer dizer, uma veste de amor e sabedoria, provin- dos do Coração de nosso Santo Pai. Ela jamais te será tirada, pois com seu uso verás e julgarás todas as coisas e aparições em sua verdadeira luz e origem.
Volta teu olhar para lá, com olhos e ânimo diferentes, para obteres o benefício certo; pois tudo isto acontece por tua causa, sendo do De- sejo do Senhor que alcances o mais breve possível o verdadeiro renasci- mento de teu espírito e a veste celestial de tua alma.”
O bispo Martim volta sua atenção para o crânio das freiras, per- cebendo que duas ainda estavam se engalfinhando e golpeando com os punhais até caírem como mortas ao solo. Ele então diz: “Graças a Deus, acabaram de se exterminar e é realmente estranho servir tal ma- nifestação de ira para a felicidade de tais seres. Estou curioso com o que sucederá a essas amazonas.
Ah, agora se apresenta outro fenômeno! Conquanto continuem mortas, começam a produzir vapor e cada uma tem aparência de cha- miné, e vez por outra expelem rajadas de fogo como de uma forja. O caso começa a tomar aspecto impressionante. Porventura não se trata de uma pequena amostra do inferno?
Neste instante veem-se igualmente fortes chamas que envolvem as pobrezinhas que tomam forma incandescente e é realmente uma sorte que nada sintam. Que quadro estranho, pois muito embora o fogo seja fortíssimo, nada é consumido. Explica-me isto, Bórem.” Responde o
amigo: “É apenas um benefício, pois parte do Senhor. Continua a fazer observações e verás que falei a verdade.”
OSPOLOSOPOSTOSEMDEUSENA CRIAÇÃO
Diz o bispo Martim: “Sim, está certo. Mas, terás que convir que também os pecadores são criaturas de Deus, inclusive o demônio. Quem poderia classificar os pecadores e diabos de bons por terem sido projetados por Deus? Opino o seguinte: Deus criou, entre os inúmeros seres, espíritos livres, e lhes revelou Sua Ordem imutável e dos cami- nhos a serem palmilhados. Como são livres, podem igualmente virar as costas à Ordem divina, agindo contrariamente a Ela.
Se somente em confronto ao divino bem se pode imaginar algo de mal, a ação contra a Ordem divina já é o próprio mal. Esta também sendo boa, desejava saber o que vem a ser o mal. Deve existir o mal, do contrário o inferno seria o conceito mais fútil que um espírito humano poderia imaginar.
Se o inferno for uma realidade, e uma ação contrária à Ordem de Deus for algo maldoso, então essas freiras são más e maduras para o inferno. Pecadores como discípulos do demônio são maus e seu prê- mio é o inferno, segundo declaração do Próprio Senhor. Através da projeção dessas freiras evidenciou-se alimentarem apenas o mal: apu- nhalaram-se quais fúrias e agora ardem em fogo. Poderia o inferno ter outro aspecto?”
Diz Bórem: “Meu amigo, falas como peregrino terrestre e míope, do fundo de tua carne. Por certo é uma ação contrária à reconhecida Ordem de Deus, por parte de um ser livre, pecado, portanto algo de mau. Porventura conheces os limites entre o espírito livre e ao mesmo tempo condenado, no mesmo indivíduo?
Sabes onde a alma iniciou sua peregrinação na carne, e o espíri- to na alma? Sabes claramente onde terminam as ações condenadas e principiam as livres, dentro de uma criatura? É de teu conhecimento a maneira pela qual e até que ponto penetram o espírito e a liberdade em a Natureza e o julgamento?
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Se em vida depositavas o mosto no barril, ele começava a fermen- tar, produzindo fortes gazes, e quando aproximavas teu nariz à gargalei- ra, recuavas diante do cheiro acre. Uma vez terminada a fermentação, o mosto se aquietava, transformando-se em vinho saboroso.
Após a queda da flor de uma árvore frutífera, vias surgir o fruto. Ao experimentá-lo, descobrias o sabor ácido e acre, quer dizer, dentro da ordem de teu paladar era ele mau e ruim. Quando amadurecido, estava ele perfeitamente adequado ao teu gosto, e não nocivo.
O inverno não deixa de ser algo desagradável, pois não se adapta à ordem de criaturas de sangue quente. Mas, se ele não existisse, qual seria a situação do campo e da força física do homem?
Deus sabe até que ponto poderá dilatar o âmbito de liberdade a um ser. Neste âmbito, todo ser dotado de livre arbítrio poderá agir segundo sua vontade. Além deste círculo de ação não existe atividade para quem quer que seja.
Em uma gota d’água vivem inúmeros infusórios, movimentando-
-se livremente; porventura poderiam exercer sua liberdade vital além da gota? Do mesmo modo, podem os homens minar a ordem moral através de guerras e outras atrocidades. Por acaso poderiam impedir a mudança de noite e dia, sustar chuvas e ventos, ou esvaziar o mar? Se pretendes falar da grande Ordem de Deus, deves estender tua visão além do teu horizonte de ação.
O que não pode ocorrer na gota d’água sucede dentro do mar, que não pode ser envenenado pela gota mais venenosa. Aquilo que não encontra equilíbrio na órbita da Terra descobri-lo-á na rota infinita do Sol. Quem a achar pequena poderá dispor de sóis centrais, de distâncias e profundezas incalculáveis.
Se um número não pode ser enquadrado em outro, não quer dizer que não haja um no qual pudesse encontrar aceitação harmoniosa. Se dentro de certa classificação musical determinada tonalidade não pro- duz harmonia, tornando-se mero pecado dentro da ordem dos sons, achas que tal som deveria ser banido completamente da música?
Se bem que Deus tenha dado aos homens na Terra uma ordem certa que determina o seu dever, não deixou de lhes dar muitas outras
coisas. Ele sabe melhor como conduzir cada indivíduo para que alcance a grande finalidade. Por isto deu o Mandamento de não julgardes quem quer que seja, assim como Miguel, o maior arcanjo do Céu, não podia julgar Satanás quando ambos lutavam pelo corpo de Moysés.
Cabe-nos apenas olhar a Ação do Senhor para organizarmos nosso julgamento, caso pretendamos ser filhos sábios e verdadeiros de Deus. Qualquer julgamento pessoal tem que ser banido de nosso íntimo. Te- mos apenas ação livre dentro de nossoâmbito; os movimentos nos incontáveis âmbitos da Ordem de Deus não nos dizem respeito, e sim somente a Ele. Cada um procure varrer diante de sua soleira, ignorando a do vizinho.
Firma tua índole nesta base e prossegue na observação da cena, pois espero que venhas a ver e julgar as coisas num critério diferente. Que o Senhor te proporcione vontade e compreensão justas para tanto!”
EXPLICAÇÕESREFERENTESAOESTADONEGATIVODAS FREIRAS
Decorrido certo tempo de estudo silencioso, Martim prossegue: “Meu amigo, tens plena razão; percebo claramente que a Ordem do Senhor é bem diversa daquilo que imaginava antes. Tiveram razão Davi e Paulo quando afirmavam que os Caminhos do Senhor são impenetrá- veis e insondáveis os Seus Desígnios.
Todavia, também é incompreensível como eu continuo tanto tem- po ignorante, enquanto te transformaste em verdadeiro anjo de sabe- doria neste curto espaço. Seja como for, sinto fortemente que Jesus Se tornou minha única necessidade, e isto me faz muito feliz e alegre. Nada mais quero para toda a eternidade.
Penso o seguinte: Como o Senhor visa apenas o melhor para essas almas obtusas e ignorantes, e nós em nada podemos agir, nem vale a pena continuarmos na observação dessas cenas de pouca elevação, ao menos para mim. Neste instante, as freiras voltaram à vida e correm pelo jardim como verdadeiras fúrias. De que me adianta esse quadro
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horroroso se não consigo compreendê-lo? Se fosse por mim, preferiria mil vezes trabalhar como jardineiro.”
Diz Bórem: “O que é justo para o Senhor também deve sê-lo para nós. Também somos guiados por Ele, que sabe perfeitamente porque determinou esse caminho para nós. Não te preocupes com a explicação do cenário, que te será dada no justo tempo na máxima clareza. Faze o que eu te aconselhei, em Nome do Senhor. Podes falar à vontade, sem fazer julgamento, que compete apenas a Ele.”
Satisfeito com a explicação, o bispo Martim analisa o crânio das freiras e diz: “Ai, ai, ai! Que quadro! Elas estão inteiramente desnudas e com o corpo completamente em brasa, e quanto mais incandescente se torna, tanto mais furiosas elas correm.
Não podem ser classificadas de gordas, todavia têm aspecto hu- mano. Mas os rostos estão horrivelmente contraídos. Na Terra vi coisa semelhante somente entre macacos. Vê só esta mais próxima de nós. Que rosto! O nariz é tão comprido que toca quase o ventre. As orelhas têm semelhança com as de um elefante; a boca não parece humana; pes- coço está repleto de escrófulas; os olhos são duas cavernas, e os cabelos parecem serpentes. Estranho, o corpo é aceitável... mas a cabeça! Não existe coisa mais feia!
Eis que vem outra, cujo aspecto é verdadeiramente aterrador! A cabeça é de serpente e as orelhas de burro amenizam um pouco este horror. Os olhos hirtos, o constante jogo da língua! Pela boca, orelhas e narinas se projeta um bafo escuro a cada respiração. O corpo poderia ser classificado até mesmo de sensual; mas a cabeça!... Agora voltam a debandar quais fúrias! Que vem a ser isto?”
Responde Bórem: “Nada demais. O aspecto incandescente deriva de seu zelo mesclado com paixão irada pela causa de sua instituição religiosa. O corre-corre traduz a atividade pela sua manutenção. O cor- po físico se apresentando bastante agradável tem seu motivo em sua tendência casta. O quadro peculiar das cabeças é prova de sua imensa ignorância. Enquanto permanecerem em seu engano, as cabeças não poderão melhorar. Continua o teu estudo; viste apenas o preâmbulo, pois o próprio drama ainda começará.”
Diz o bispo Martim: “Vejo que esses farrapos humanos se retiram para o claustro. Qual será o motivo? E além do jardim descubro ho- mens e mulheres idosos, cansados e tristes. Quem são?”
Responde Bórem: “São genitores de algumas freiras procurando socorro junto delas porque, após insistentes buscas e preces, foram informados que suas filhas bem-aventuradas se encontravam em um claustro celeste, pedindo constantemente pela salvação deles.”
Diz Martim: “Ai, ai, ai! Sinto pena desses pais infelizes, mas tolos. Um velho estende a mão ao trinco do portão e toca a campainha. Por três vezes ele insiste, sem resultado. Então todos começam a pedir e implorar, por meio de preces dirigidas às filhas, sem que nenhuma delas se apresente.
Ouço-os exclamando sob soluços: ‘Amadas e santas filhas, de vos- so trono celeste dirigi vosso olhar complacente para vossos pais afli- tos e aceitai-nos para serviços desprezíveis! Atendei-nos, virgens e noi- vas de Deus!’
Isto é forte, meu irmão! Não julgava os católicos romanos tão tolos! Também fui bispo e me agradavam certas tolices de cunho beato; mas, não teria admitido tais idiotices entre minhas ovelhas. Ouve só, como os infelizes gritam e clamam.
O que vem a ser isto? Das numerosas janelas do claustro surgem raios e trovões, parecendo encenação católica. Tenho a impressão de ou- vir palavras articuladas pelo trovão. Realmente ele diz: ‘Para trás, amal- diçoados, afastai-vos desse Santuário de Deus, do contrário sereis traga- dos pelo inferno, porque ousastes pisá-lo com vossos pés pecaminosos!’ Meu irmão, o drama é realmente infernal e estou curioso do pros- seguimento. Os pobres velhinhos recuaram e se acomodaram debaixo de uma árvore repleta de frutos, não longe do jardim. De rostos volta- dos para o claustro, devem aguardar um consolo e uma fútil esperan- ça, pois a demonstração fantasmagórica das filhas demonstrou o que
os aguarda.
Os raios continuam a chispar pelas janelas e o trovejar prossegue, se bem que mais fraco. Os velhos descobriram os frutos, que apanham com cuidado. O sabor lhes agradando, passam-nos aos que não se atre- vem a colhê-los.
Por uma das janelas se apresenta algo parecido com um tubo acús- tico que é dirigido para aquela árvore. Muitas corujas saem daquele tubo e voam em direção aos velhos, sumamente amedrontados.
Agora, também chamas e palavras se precipitam sobre os genitores. As chamas parecem ser portadoras de ameaças horríveis que se apresen- tam como serpentes. É fato conhecido que se escrevem palavras; mas, que essas também se pudessem apresentar em formas horripilantes, nunca imaginei. Os velhos acabam de se erguer e fogem, perseguidos pelas corujas, até a beira de um rio. Lá percebo dois homens de branco, os mesmos que as freiras pretendiam apunhalar. Eles acenam para os velhos, convidando-os para acompanhá-los. Quando as corujas avistam os homens, dão meia-volta e correm para o claustro, de onde atiram raios pelo tubo que estava na janela. Os dois homens reúnem os velhos e todos se encaminham para o claustro. Estou sumamente curioso pelo final desta cena.”
Retruca Bórem: “Deves precaver teu coração da curiosidade exces- siva, porque a ela sempre se alia uma alegria maldosa. Sê apenas sábio expectador em benefício de teu espírito, pondo de lado a curiosidade. Cabe-nos a máxima temperança porque surgirá algo diabólico.”
ASFREIRASSETRANSFORMAMEMGIGANTESCAS RÃS
Voltando o olhar para o cenário, bispo Martim continua: “À me- dida que o grupo se aproxima do convento, se intensificam raios e tro- vões, sem grande efeito. Um dos homens se dirige ao portão, que abre ligeiro, e todos se encontram no jardim, nas proximidades da casa. Pos- tando-se diante dos velhos, cada um apanha de sua roupa uma longa trombeta, pela qual produzem um som fortíssimo e majestoso.
No mesmo instante, o claustro desmorona como as muralhas de Jericó, e as freiras rastejam pelos escombros, lastimando-se e praguejan-
do. Suas figuras se transformaram em rãs enormes, enquanto as cabeças se assemelham às de serpentes. Além disto, percebo estarem providas de caudas de escorpiões. Que coisa pavorosa!
Os velhos quedam estarrecidos diante do quadro e as rãs começam a coaxar, sem qualquer efeito. Pois os dois homens as ameaçam e as impelem em direção ao Norte, acompanhados pelos velhos, admirados. No lugar do claustro vê-se um pântano horripilante. Começo a sentir certo medo e estranho o fenômeno, pois, muito embora estejam cor- rendo naquela direção, vejo-os do mesmo tamanho e a distância não produz efeito.”
UMATRISTE HISTÓRIA
Um ancião, pai de uma das freiras, se aproxima dos dois homens e diz, com voz lamuriosa: “Poderosos mensageiros de Deus, como é pos- sível que também minhafilha se encontre em meio dessas infelizes? Ela viveu rigorosamente dentro das regras de seu convento, quer dizer, em perfeita harmonia com a Igreja Católica, única salvadora, sob a direta influência do Espírito Santo.
Em virtude de tal proceder, e segundo as promessas da Igreja, mi- nha filha deveria ter ingressado diretamente no Céu, pois também rece- beu do Papa uma dúzia de indulgências, pelo que foi poupada do pur- gatório. Posso vos afiançar que ela foi realmente escolhida para noiva do Cristo pelo sonho de um jesuíta muito devoto.
Neste sonho, Maria e José lhe apareceram em seu máximo brilho celestial, dizendo: Irmão puríssimo dos anjos, deves visitar o sr. Fulano de Tal, pai de filha adorável, na qual Jesus achou grande agrado, de sorte que a deseja para Sua noiva sublime. Faze este pedido para Deus, teu Senhor, participarás do Reino do Céu.
Ele muito meditou a respeito daquele sonho, que se repetiu por três vezes, e o comunicou ao convento, que enviou relato para Roma. Qual não foi a surpresa de toda a congregação, quando ele recebeu do general da Ordem a maravilhosa explicação de ter ele sonhado o mesmo; mas, como não quisesse dar crédito, Maria teria aparecido pela
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quarta vez, tristonha, dizendo: Verme infame no pó! Como duvidaste, serás martirizado com moléstia grave até a moça se encontrar no claus- tro do Sagrado Coração de Jesus, como noiva de meu Filho. Como pro- va da verdade, todos os sinos de Roma hão de repicar automaticamente durante uma hora, à meia-noite, e durante três dias.
Tudo isto sucedeu milagrosamente, e o general ordenou orações em todos os conventos, pedindo insistentemente ao padre que tivera o sonho que orasse dia e noite para que minha filha entrasse no convento.
De maneira alguma eu estava disposto a entregá-la, pois era rico e de alta nobreza, e minha filha era sumamente bela, meiga e boa, sendo um bom partido. Finalmente, cedi aos insistentes pedidos do devoto padre, e como ela preferisse o Cristo a todos os outros noivos, assim aconteceu.
Poderosos mensageiros de Deus, dizei-me, que fez minha filha para encontrar-se em meio dessas figuras diabólicas? Alimentava qualquer pecado oculto, ou foi apenas hipócrita? Talvez seja a Igreja Católica pura fraude? Por que sucedeu à minha filha tamanha desgraça?”
Pergunta um dos mensageiros: “Amigo, acaso nunca leste o Evan- gelho do Senhor?” Responde o velho: “Sim na escola; mais tarde fre- quentei a Igreja todos os domingos e feriados para ouvir o sermão e a missa. Além do mais, era vedada a leitura da Bíblia aos leigos, e eu julgava agir com justiça obedecendo em tudo à Igreja.”
“Bem”, diz um dos mensageiros, “se a Igreja tinha mais valor para ti que o Verbo Puro de Deus, terás de pedir justiça junto a ela e não a nós que, como protestantes, somente considerávamos o que fora ensinado pelo Cristo. No Evangelho do Senhor nada consta de uma Igreja sal- vadora, do Papa, dos jesuítas e de freiras do Sagrado Coração de Jesus; pois se lê simplesmente: Ama a Deus acima de tudo e a teu próximo como a ti mesmo. Nisto se baseiam a Lei e todos os profetas.
Quem trabalha somente pela recompensa é servo inútil e desmere- ce o prêmio, e muito menos merece o Senhor, que falou: Quem amar pai, mãe, irmãos acima de Mim, não Me merece. E se tiverdes feito tudo, confessai que fostes servos inúteis. Pergunta a ti mesmo se conhe- cias essas Palavras de Deus e se foram consideradas por ti e tua filha.”
Responde o velho: “Certamente são pronunciamentos de Deus, mormente os da Lei do Amor, que muitas vezes ouvi do púlpito, e começo a compreender a razão do estado miserável de minha filha; nes- te caso é ela vítima de logro e merece condescendência e misericórdia do Senhor.”
Diz o mensageiro: “Amigo, não fosse o Senhor muito melhor que tu e tua filha supondes, ambos estaríeis dentro do inferno. Ele sendo o Perfeito Amor, encontrai-vos apenas na indispensável correção de vossa compreensão e no banho da Graça para cura de vossa alma.
Fica sabendo que o sonho do jesuíta foi puramente engendrado por causa de tua filha bonita e rica, e foste ludibriado com a permis- são do Senhor porque pretendias casá-la apenas com um príncipe, erro mais grave ainda, porque negaste tua filha a um pretendente pobre, mas honesto, que fizeste castigar em virtude de seu pretenso atrevimento. Tal procedimento foi condenável para Deus.
Tua filha não foi levada por um príncipe, e sim, por um jesuíta es- pertalhão. Porventura poderias exigir de Deus uma satisfação pelo fato de encontrares a mesma neste estado miserável, em vez de ser rodeada por anjos?
Além disto, foi ela orgulhosa e severa com seus serviçais, pois sen- do a mais rica foi em breve nomeada dirigente da Ordem, julgando-se verdadeira santa por esta missão. Para completar seu engano, todas as noites ela recebia a visita do Senhor Jesus, mascarado, e ela, como noi- va, lhe concedia tudo o que ele exigia após o desvendar do véu celestial. Nada disto ela te contou, afirmando apenas que tal Jesus exigia rigoro- samente que legasses toda tua fortuna ao santo colégio, o que também fizeste em tua crença cega.
Eis tua situação e de tua filha, e certamente será idêntica à de tua esposa ainda na Terra. Julgas que uma criatura poderia aguardar o Céu se ao lado da Doutrina do Senhor levasse aquela vida, pois ela em breve descobriu quem era o tal Senhor Jesus?”
O velho queda perplexo e em seguida faz menção de praguejar a respeito do Vaticano, no que é impedido severamente pelos dois men- sageiros, que lhe demonstram caber o julgamento unicamente ao Se-
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nhor, enquanto convém a todas as criaturas perdoar, caso também pre- tendam ser perdoadas. O velho se acalma. Entrementes, percebo que um dos sapos começa a murchar; certamente trata-se da referida “noiva de Cristo.”
Explica Bórem: “Distâncias físicas não perturbam a visão do es- pírito, pois cada espírito está acima de tempo e espaço. Os diversos estados psíquicos são verdadeiros espaços espirituais, perturbam a visão do espírito ou a cegam às vezes de modo completo. Se os dois homens de branco não estivessem presentes na fuga das rãs, não as poderias ver, pois o estado psíquico das mesmas é por demais divergente do nosso. Os dois homens estando em afinidade psíquica conosco, poderão se afastar o quanto quiserem, que sempre serão vistos por nós.
Também nos é possível ver o inferno bem de perto. Isto não se dá em virtude da associação psíquica, mas por uma intervenção milagrosa por parte do Senhor, que conhecerás mais tarde. Agora conheces o mo- tivo dessa aparição estranha, que se aclarará inteiramente à medida que ocorrer. Continua a analisá-la que aprenderás muita coisa.”
Bispo Martim fixa sua visão mais acentuadamente e percebe as rãs atingirem a margem de um grande mar, em noite profunda. Ali co- meçam a coaxar fortemente, pois não querem entrar n’água, no que também não são forçadas pelos homens. Martim então diz: “Estranho, não aceitam seu elemento e presumo que nelas exista algo de bom e não pertencente à água, mantendo-as em terra firme.”
Diz Bórem: “Deve ser. Insiste na observação, pois dentro em pou- co se desenrolará o primeiro ato do drama.”
Martim fixa a visão para a cena e diz: “Nesta altura as rãs começam a inchar de uma maneira incrível, tomando tamanho de verdadeiros elefantes. E ainda continuam a inchar como se tivessem um maquinis- mo interno. Agora fazem menção de atacar os homens e os velhinhos; mas os dois não arredam pé e ordenam silêncio, e um deles diz para os genitores: ‘Nada temais diante dessas rãs intumescidas. É apenas a pele a vos atemorizar, pois o interior é mais fraco que a natureza de um verme. Poderíamos fazê-las dispersarem-se com um sopro, apesar de que há pouco foram adoradas quais santas. Não somos tão inclementes
quanto elas, supostas noivas do Senhor, conquanto fôssemos protestan- tes a protestarem contra tudo que não seja de acordo com a Vontade do Senhor.
São elas vossas filhas, que vossa incrível ignorância impeliu e, de certo modo, condenou ao claustro do Sagrado Coração de Jesus, inclu- sive sua grande fortuna. Que me dizeis a respeito?’
Desesperados diante dessa revelação, os velhinhos bradam: ‘Por amor de Deus, como é isto possível? Nada mais fizeram senão aquilo que a Ordem severa prescrevia e o que o confessor mandava — e agora as encontramos nesse estado tão horroroso! Que lhes sucedeu?’
Responde um dos mensageiros: ‘Sede calmos e nada temais por essas criaturas de pouco valor. O Senhor nos mandou procurar e salvar os perdidos, e havemos de curar essas rãs. A fim de que também vós sejais curados de vossa tolice, preciso é estardes presentes nesta obra, aceitando tudo com humildade. Antes de mais nada, despertai o amor para o Deus Único, Senhor e Pai, Jesus, que vosso caminho será fácil.’ Os velhinhos desatam a chorar pela infelicidade de suas filhas, que con- tinuam a intumescer.”
EXEMPLOSDAPACIÊNCIADO SENHOR
(Bispo Martim): “O velho vira-se para um dos mensageiros e diz: ‘Aceito como verdade tudo que acabaste de me explicar. Mas, se assim é, desejava saber como o Senhor permite a existência do Vaticano, simples local de horror, e jamais uma Igreja de Deus.
Onde está Pedro, a rocha que nunca seria vencida pelo inferno? Roma afirma isto de si e do Papa, como pretenso representante de Cris- to na Terra, ocupando esta rocha sob constante insuflação do Espírito Santo. Tal afirmação só pode ser o máximo horror perante Deus. Não teria Ele milhares de recursos para impedi-lo?’
Responde um mensageiro: ‘Sem dúvida, o Senhor pode o que quer. Que dirias tu se o genitor de vários filhos, entre os quais alguns obstina- dos e desobedientes, mandasse justiçá-los por um algoz? Não conclui- rias que jamais houve pai tão diabólico?
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Se um soberano mandasse martirizar seus súditos pelo não-cum- primento de suas leis, não dirias ser ele demônio inclemente? Os pró- prios súditos poderiam reagir contra ele, procurando exterminá-lo.
Se nosso Pai celeste também agisse deste modo com Seus filhos, qual seria tua opinião a respeito? Não seria crueldade inominável se Deus Poderoso aplicasse aos Seus filhos castigos cruéis, como fez um soberano desvairado na França?
O Senhor sabe perfeitamente que Roma é uma prostituta horro- rosa, como também estava ciente que a adúltera era simples meretriz, Madalena uma grande concubina, e a samaritana uma grande sensual. A maneira pela qual o Senhor agiu com aquelas mulheres, como aceitou o filho perdido, Ele repete com a prostituta de Roma e recolhe qualquer dos filhos, ainda que a tenha cortejado fortemente. Naturalmente, não haverá aceitação sem arrependimento e penitência.
Quanto à posição da rocha de Pedro, indestrutível pelas forças do inferno, foi pelo Senhor demonstrada em vários textos de Seu Santo Evangelho, onde consta: Quem crer no Filho e aceitar o Seu Verbo, receberá a Vida eterna! — Eis uma prova daquela rocha de fé.
Mais adiante: Meu Reino não se apresenta com pompa externa, pois se encontra dentro de vós! — Outro axioma, comprovando a rocha invencível de Pedro. — Quem ouve as Minhas Palavras e as pratica, ama-Me verdadeiramente e Eu o visitarei para Me revelar a ele. — Nes- te texto também se abriga Pedro, o invicto no coração da criatura, úni- ca Igreja verdadeira e viva do Senhor, caso tenha tomado morada no âmago do homem, pela fé viva, ou seja, o amor. Vês, portanto, qual a situação de Pedro, e não prossigas em indagações fúteis do mundo, mas procura antes de mais nada o verdadeiro Reino de Deus dentro de ti e Sua Justiça cheia de amor, que todo o resto te será dado por acréscimo.’ O ancião se curva respeitosamente diante do mensageiro de Deus,
no que é imitado pelos outros companheiros. As rãs continuam rãs, apenas não me parecem tão inchadas, e a primeira rã diminuiu à medi- da que se aproxima dos mensageiros celestes.
Aliás, confesso, com gratidão ao Senhor, ter aproveitado muitíssi- mo com essa cena, aumentando dez vezes mais o meu conhecimento.
O jesuíta teve papel verdadeiramente glorioso, pois para suportar in- divíduos como aqueles, exige paciência divina. Fosse eu detentor da Onipotência de Deus, esses mistificadores haveriam de passar mal. A Vontade Dele seja feita!”
MARTIMDESPERTAOAMORPARACOM DEUS
Diz Bórem: “Assim está certo; unicamente a Vontade sábia e boa do Senhor Se faça hoje e sempre. Os cardos são evidentemente piores que o trigo, de origem boa. Se fores analisar todas as qualidades de tri- go do mundo, poucas diferenças descobrirás. Fazendo esse estudo com todas as espécies de cardos, encontrarás o maravilhoso ananás, o aloés curador e o figo sumamente doce do cardo africano. Seria, portanto, tolo condenar-se os cardos, pois a Natureza demonstra a que ponto chega sua capacidade de evolução. O trigo continua trigo; o cardo pode ser elevado a ananás.
De igual modo, Pedro continuou sendo Pedro; e Jacó, André e outros o que tinham sido desde sua origem, isto é, um trigo puro no Celeiro do Senhor. Em meio daquele trigo vivia um cardo bastante áspero e selvagem, que se chamava Saulo. Mas o Senhor o transformou em maravilhoso ananás, o fruto mais saboroso da Terra. O que foi feito pelo Senhor naqueles tempos, Ele ainda hoje faz. Por isto, convém di- zermos: Pai, Tua Santa Vontade Se faça!”
Profundamente emocionado, bispo Martim diz: “Sim, caro irmão, sempre Se faça a Vontade Dele. Se agora Ele estivesse Presente, haveria de abraçá-Lo fortemente, ó Bom Jesus, não demores tanto em unir-
-Te a nós!”
Aduz Bórem: “Acabas de iniciar o justo caminho, pois somente agora resolveste atrair o Cristo. Dentro em breve perceberás o sentido das palavras: Ninguém viu e sentiu o que o Senhor reserva para os que O amam. Despertaste o amor para o Senhor, único fator importante para Ele. Presta atenção ao que fores passar, se aumentares este senti- mento. Estuda o quadro branco e dize-me o que descobres.”
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Rápido, Martim segue o conselho do amigo e se assusta ao ver que o disco brilhava mais que o Sol e no centro as seguintes palavras: Irmão, aguarda mais um pouco, que estarei junto de ti! — Admirado, ele diz: “Sinto uma sensação tão maravilhosa como nunca poderia imaginar! Qual será o efeito desta crescente sensação para com Jesus?
Estou de tal forma apaixonado por Ele que teria vontade de me integrar em Seu Ser! Agora começo a perceber quão infinitamente sábio e bom Tu és, meu Amado Jesus! E esta percepção passa a ser clareza, enquanto anteriormente era apenas qual sonho mais nítido. Que ale- gria sinto com a perspectiva da Vinda do Senhor, que certamente nos ajudará a conduzir esses hóspedes um tanto endurecidos à justa ordem.” Diz Bórem: “Assim será tão logo as freiras tenham despido a ma- téria mais bruta. Continua a estudar a cena e transmite as ocorrências,
pois não serão menos interessantes e instrutivas que até então.”
Martim, então, observa e transmite que o velho se dirige aos dois mensageiros para libertarem ao menos sua filha daquela situação horren- da, para ele poder, ao lado dela, ingressar no Céu. Embora compreenda que eles agiam segundo a Vontade do Senhor, não conseguia vencer uma sensação de tédio horrível que desejava abandonar o quanto antes. Continua Martim: “Os mensageiros não parecem concordar, pois dizem: ‘A paciência é a primeira regra da vida, tanto na Terra quanto no reino dos espíritos. Tudo tem seu tempo. Convém prosseguirdes em estimular o amor e a confiança viva no Senhor, que atingireis o mais
rápido possível a libertação verdadeira deste estado miserável.
Nosso poder não conseguiria ajudar-vos em coisa alguma. Preciso é saberdes que ninguém ingressa no Céu em consequência de qualquer mérito, tampouco pela Misericórdia direta ou indireta do Senhor, mas somente pelo amor para com Ele, do qual surgiria a Graça Divina de Jesus Cristo, Único Senhor e Deus do Universo, Obra de Seu Amor.
Não existe um Céu externo, senão aquele que abrigais em vosso coração. Abri-lhe as portas, caso pretendais nele ingressar. A verdadeira vida tem que ser livre; uma vida coagida não é vida, mas a morte. Se vos libertássemos através de nosso poder, estaríeis condenados e mortos.
Haveria utilidade com ajuda tão infeliz?’ Os velhos quedam perplexos e parecem não entender o ensinamento.”
DESAPARECIMENTODASRÃSDENTRODO MAR
(Bispo Martim): “Neste instante, a primeira rã se aproxima dos mensageiros e começa a lamber-lhes os pés, e um deles diz, apontando para o mar: ‘Lá está o teu elemento!’ A rã levanta as patas dianteiras e pronuncia as seguintes palavras: ‘Bem sei que aquele pavoroso mar é meu elemento de castigo merecido e eterno. No entanto, ouso pedir que não ajais com todo o rigor da Justiça Divina com minha pobre alma. Mas, vossa vontade se faça.’
Diz um dos mensageiros: ‘Não temos outra vontade além da do Senhor, eternamente imutável. Nós a transmitimos e cabe-te obedecer. Dirige-te para o teu elemento!’
A rã começa a coaxar e a torcer-se, implorando deixá-la em solo firme, já que não havia graça nem perdão. Retruca um mensageiro: ‘En- quanto não palmilhares o caminho demonstrado, não receberás ajuda.’ O batráquio se encaminha para o mar e se atira no mesmo, desapare- cendo definitivamente. Confesso, irmão Bórem, sentir compaixão do pobrezinho. A Vontade do Senhor assim o quis, portanto está certo. Nesta altura, o ancião também se dirige para a margem e diz: ‘Se minha pobre filha não encontra perdão junto ao Senhor, participarei de sua triste sorte!’
Com essas palavras, ele também se atira ao mar, que não o devora, por não ser elemento dele. Coisa estranha, ele caminha dentro da água como em solo firme e procura sua filha. Ah, agora também as outras rãs diminuem e se aproximam dos mensageiros para lamber-lhes os pés. Esquisito! Como procuraram ser grandes, agora estão pequeninas quais pererecas. Devem ter uma pele muito elástica por não terem estourado. Se fosse possível inventar coisa tão elástica como a pele desses batrá- quios, a borracha seria inútil.
Tens que me perdoar, caro irmão, por fazer às vezes observações chistosas. Sei que aos Olhos do Senhor e de um anjo todas essas ocor-
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rências estão plenas de rigor celeste. Ele certamente não riu quando colocou na cabeça do burro duas orelhas compridas. Nós somos obri- gados a rir quando observamos tal filósofo de orelhas compridas, em- bora saibamos que delas necessita, assim como a ave, de orelhas quase invisíveis.
Assim como na Terra há muitas ocorrências cômicas, também aqui elas não faltam — ao menos para mim. Com o tempo, espero corrigir-
-me; por enquanto, é impossível pôr de lado o ridículo.”
Diz Bórem: “Não tem importância. Não sou casmurro, nem tam- pouco o Senhor; todavia o riso sardônico tem que ser banido dos Céus, porque oculta certa malícia e excessiva curiosidade. Quanto à tua ob- servação a respeito da pele sumamente elástica dos batráquios, é apenas tendência inata para a galhofa, isenta de maldade. Aos poucos hás de rir de tuas próprias banalidades, pois não contêm qualquer fundamento. Volta tua atenção para as pererecas.”
Diz o bispo Martim: “Elas continuam a lamber os pés dos mensa- geiros e algumas encetam uma palestra a seu modo. Segundo me pare- ce, pleiteiam o perdão. Como os mensageiros as ameaçam, as pererecas saltam em direção ao mar, onde se atiram. Os velhos se encontram ainda na margem e fixam o olhar nas águas, para descobrirem qualquer vestígio de suas filhas; procura inútil e semelhante ao referido genitor que continua a caminhar sobre a água e convida os outros a se aproxi- marem, pois onde está, a mesma é dura como pedra.
Os outros, porém, não desejam experimentar a resistência da água e voltam para junto dos mensageiros a fim de saberem do destino de suas filhas e se estavam perdidas para sempre. Eles não lhes dão resposta e se afastam, caminhando sobre o mar.
Desesperados, os velhos experimentam, a convite do outro compa- nheiro, pousar os pés sobre a água e se tem sua firmeza. Todos começam a perseguir os mensageiros, mas a corrida é acidentada em virtude da extrema lisura da superfície. O primeiro que pretendia atirar-se à água consegue movimentar-se. Os outros levam quedas constantes.
Desejava saber o futuro das freiras, ou seja, das rãs. Não podem es- tar no inferno porque ainda se encontram aqui quais estátuas. Seu ver- dadeiro estado psíquico será certamente do conhecimento do Senhor.
Dize-me ao menos o sentido da forma batráquia, do mar, do afo- gamento das rãs, e do afastamento dos mensageiros. Vi tudo e aprendi muita coisa, mas se fosse obrigado a explicar o acontecimento, nada saberia dizer.”
Retruca Bórem: “Todas as pessoas, mormente femininas, que se voltaram para a evolução espiritual, oram e jejuam para conquistarem o Céu, mas também consideram fortemente suas vantagens materiais; por isso se apresentam na desintegração de sua natureza quais anfíbios, quer dizer, animais que vivem em dois elementos.
O mar traduz sua inclinação natural, que em vida lhes valia mais que o caminho espiritual, razão por que são obrigadas a se atirar no mesmo, a fim de experimentarem a futilidade de suas aspirações mun- danas. Do mesmo modo, representa o mar a massa de sua grande to- lice, na qual têm que afundar para reconhecê-la como tal. As cabeças ofídicas revelam a maldade orgulhosa e o cálculo inteligente para sua execução. As caudas escorpioides demonstram sua inclinação traiçoeira, com a qual ferem pelas costas. Compreendes?”
Responde Martim: “Sim, perfeitamente, pois na Terra cheguei a conhecer tais maquinações mistificadoras e ultramontanas, e como bis- po tive que fechar os olhos. Deves compreender porquê, não é assim?”
Diz Bórem: “Não resta dúvida. Mas prosseguirei na explanação do quadro. Os velhos ignorantes, que em virtude de sua origem nobre nunca puderam chegar a outro conhecimento que não o clerical — razão por que consideravam as ordens religiosas como genuinamente celestes, entregando ou vendendo suas filhas a tais padres, com dote substancial — ainda são sumamente tolos para penetrarem na causa de sua própria tolice. Por isto, caminham sobre ela como o burro sobre o gelo, levando constantes quedas, com exceção de um, algo mais inteli- gente. Entendeste?”
Diz o bispo Martim: “Sim, naturalmente. Neste caso, temos diante de nós um verdadeiro embuste da aristocracia.” “Sim”, diz Bórem, “mas
continua a estudar o cenário, que apresentará o segundo ato e te causará grande espanto.”
Retruca Martim: “Estou ansioso pelo prosseguimento. Falta ape- nas a explicação do afastamento dos mensageiros.” Diz Bórem: “Não foi esquecida por mim. Mas, neste caso, bem como em muitos outros, terás que descobri-la dentro de ti, para te exercitares nos negócios ce- lestes. Faze uma tentativa e te convencerás até que ponto chegou tua sabedoria.”
Diz Martim: “Tens razão, e julgo não encontrar dificuldade para a explicação. Penso o seguinte: Os dois mensageiros são comparáveis ao óleo celeste, enquanto esses aristocratas velhos e tolos semelham-se ao piche, sujo e malcheiroso. Compreende-se que o óleo celeste não supor- te o convívio com o piche. Que achas?”
Responde Bórem: “Julgaste melhor do que realmente compreen- des, mas no futuro atingirás tal ponto. Volta teu olhar para o crânio da freira, que apresentará a solução total.” Diz Martim: “Está bem, assim farei. Ah, parece que vai começar.”
SEGUNDOATODODRAMACOMAS FREIRAS
(Bispo Martim): “Do horizonte profundo surgem do mar mas- sas compactas de nuvens que se aproximam, seguidas por verdadeiras trombas d’água, de aspecto aterrador. Os velhos dão com a tempestade em marcha e se esforçam por atingir a beira da praia. Seu empenho de nada vale, pois em vez de atingi-la, mais se afastam.
Os dois mensageiros são vistos a longa distância, quais estrelas. Não se preocupam com o temporal, acompanhado de milhares de trombas d’água, raios e trovões, enquanto os velhos provam que, não havendo ajuda de Deus, todo esforço é inútil. Estou curioso sobre o resultado disto tudo.”
Diz Bórem: “Não te preocupes com os velhos que procuram se salvar do furacão que não lhes diz respeito, pois os mensageiros em direção do Sul são o alvo de vingança, por não terem prestado ouvidos aos rogos das freiras.
Como tivessem chegado à base de sua tolice, descobriram alguns remanescentes do orgulho aristocrata e tendência dominadora. Tais res- tos se inflamaram na recordação humilhante, pela qual foram trans- formadas pelos mensageiros em rãs e finalmente enxotadas de modo inclemente para o mar maldito.
Essa reação mental incendiou dentro em pouco sua natureza total, impeliu-as para a beira do primeiro inferno e lhes proporcionou muitos asseclas de índole semelhante. Em conjunto com esses, aproximam-se naquelas nuvens tempestuosas, querendo vingar-se nos mensageiros e em todos por eles enviados.”
Diz o bispo Martim: “Agradeço ao Senhor e a ti por essa explicação; confesso, porém, sentir verdadeira raiva contra aquelas tolas, enquanto anteriormente sentia uma espécie de misericórdia. Espero que os dois mensageiros consigam defender-se contra aquelas criaturas horrorosas. O furacão dirige-se em direção ao Sul, e milhares de raios são cons- tantemente dirigidos para os mensageiros que, quais estrelas fixas, não se movem. E o mar levanta suas vagas furiosas e a tempestade ruge
com fragor.
Os pobres velhinhos não conseguem manter-se de pé, pois andam de gatinhas. Que tortura não devem passar! Neste instante, rasga-se uma parte da nuvem e voa para junto deles, envolvendo o primeiro que se atirara ao mar e trazendo-o à beira. Vê só, a nuvem se condensa, di- minui visivelmente e agora se apresenta em forma humana; quer dizer: a freira, cujo crânio observo, apresenta-se com ela. Ela consola e acaricia o genitor, todo feliz por poder abraçar a filha que julgava eternamente perdida. É realmente comovedor esse quadro! Mas, outras se lançam em sua perseguição, em forma de dragões, crocodilos e outros animais. O mar parece ferver e tem aspecto incandescente. Imensas bolas de fogo revolvem as nuvens e algumas já se encontram bem próximas dos men- sageiros, mais nítidos que anteriormente.
Neste instante, eles se viram e ameaçam a tempestade que, todavia, não se afasta, mas intensifica sua fúria. Coisa estranha. Os mensageiros fogem e flutuam rapidamente junto do pai a acariciar sua filha. Com isto, a tempestade se volta para cá. Que acontecerá?”
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Responde Bórem: “Apresentar-se-á o segundo ato do drama e assis- tirás parte de um julgamento que promete grande libertação.” Diz Mar- tim: “O velho e sua filha demonstram imenso pavor da tempestade. Os mensageiros os confortam, dizendo: ‘Não vos amedronteis diante desta fantasmagoria. Quando a cegueira se enfurece, os de boa visão podem desviar-se. Se mil guerreiros cegos desafiassem um de visão normal, qual seria o resultado?
Muito mais fácil que na Terra é a vitória no mundo espiritual, em que a cegueira de tais espiritozinhos é acompanhada de surdez. Acredi- tai que facilmente podemos meter essa bicharada tempestuosa dentro de um saco, fazendo-lhe o que quisermos. Prestai atenção.’
Estou deveras satisfeito que o primeiro genitor e sua filha se en- contrem sob proteção dos mensageiros. A maneira pela qual estes pre- tendem meter a tempestade dentro de um saco merece ser vista com atenção. Neste instante, os outros velhinhos, que ainda se acham sobre a água, são envolvidos inteiramente nas nuvens e gritam por socorro. Isto não se dá, a não ser que a própria tempestade os impila para a beira. Uma vez que já se encontram lá, o furacão atira milhões de raios sobre os mensageiros, que realmente abrem um enorme saco e um deles diz ao temporal: Já para dentro, ou para o inferno, caso o prefiras!
Um pavoroso trovão se faz ouvir, incontáveis raios chispam em todas as direções das nuvens cada vez menores, e neste momento um monstro horripilante aparece em meio da massa cinzenta, com uma cabeça horrível e a guelra tão dilatada como se quisesse tragar o mundo inteiro. Os mensageiros não parecem temê-lo, pois um apenas diz: Ou o saco, ou o inferno! Ih! Todo o imenso nó de nuvens se reduz, inclusive
o monstro, a um novelo, rola em direção ao saco, e — pronto! Lá está ele! Isto parece até mesmo um conto de Mil e Uma Noites. A tempes- tade está tão serena dentro do saco como se nunca tivesse tido movi- mentação. Se neste fenômeno também se oculta algo de sábio, aceito qualquer explicação de tua parte.”
Responde Bórem: “Naturalmente. Nunca ouviste falar da maneira pela qual os verdadeiros penitentes se penitenciam com saco e cinza para obterem o perdão de Deus, o Senhor, pelos muitos pecados praticados?
Aqui se proporcionou a esses heróis tempestuosos um julgamento por parte dos mensageiros, motivado pela maldade desenfreada, quer dizer, a escolha entre uma penitência humilhante — a entrada no caso — ou o ingresso no inferno de primeiro grau, pela Onipotência Divina, que representa a máxima humilhação e o mais profundo vexame da alma.
A primeira prova, que deve ser escolhida por livre e espontânea vontade, pode servir de elemento de vida para a alma, caso a pratique com persistência e sem deixar-se desviar por um falso sentido de honra. O segundo julgamento, que promete o inferno, serve-lhe apenas para a morte porque, não querendo aceitar a auto-humilhação, será forçada para tanto para a segurança de outras almas, que poderão sofrer grande dano pelo orgulho solto de uma única alma. A possibilidade e a ma- neira pela qual almas condenadas ao inferno poderiam chegar à vida, e os caminhos para tanto, são do Conhecimento exclusivo do Senhor e daquele a quem Ele quiser revelar.
Percebes a sábia significação do saco? Entrar em um saco quer di- zer aprisionar-se em todos os apetites e desejos, e, nesta prisão, liber- tar-se dos mesmos, para surgir de novo qual criatura renascida e do Agrado de Deus. Compreendes essa aparição, tão irrisória segundo tua compreensão?”
Responde Martim: “Sim, perfeitamente, e vejo que sou deveras muito ignorante. Deves ter mais que paciência celeste para comigo, por não me meteres dentro de tal saco!”
Diz Bórem: “Deixa estar. Já te disse estares bem próximo de um destino maravilhoso. Lapida o teu coração e presta atenção a tudo, que perceberás o grande desfecho em ti mesmo.”
INÍCIODALIBERTAÇÃOESPIRITUALDE MARTIM
Diz o bispo Martim: “Que o Senhor me dê essa libertação, segun- do Sua Graça, como a todos ainda presos à ignorância. Enquanto a criatura não se achar equilibrada neste mundo dos espíritos, não poderá chegar à plena satisfação íntima. Acho-me equilibrado e verdadeira- mente em casa, no Lar do Senhor, e minha saudade nada mais deseja
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senão estar com Ele, de sorte que tudo farei para tanto. Continuarei no estudo do cenário.
Nesta altura, vejo os mensageiros empurrarem o saco para a beira do mar, no que são assistidos pelo velho e sua filha, enquanto os outros acompanham a cena de olhar angustiado. Eis que o saco está perto da água e é desamarrado. Muitos peixes aparecem, grandes, pequenos, vi- vos e mortos, pois nestes não denoto movimentação.
Os mensageiros começam a separar os mortos dos frescos e os ati- ram ao mar, enquanto os bons são deitados num recipiente como se fosse um enorme cálice de ouro ou prata. De onde apanham essas coisas que não se veem? Compreendo serem necessárias dentro da Ordem Divina, não é assim?”
Concorda Bórem: “De fato, pois já sentes que o Senhor é Tudo em tudo, portanto é fácil perceberes a origem dos milagres tão fartos aqui. Prossegue.”
Diz Martim: “Percebo que o cálice se torna mais volumoso e den- tro dele os peixinhos nadam bem vivos, como na Terra os peixes doura- dos num aquário; apenas estes são maiores e certamente se identificam com as freiras que foram obrigadas a entrar no mar como rãs feiosas. Não consigo perceber a razão disto e porque uma quantidade de peixes mortos foram atirados ao mar. Tenho alguma ideia, sem poder expres- sá-la. Ah, neste instante um pensamento luminoso vibrou em meu ínti- mo. Já sei! O cálice representa o receptáculo da Graça e Misericórdia do Senhor, no qual as freiras foram acolhidas, e a água viva as transformará em seres humanos. A dilatação do cálice aponta o acréscimo de Graça e Misericórdia, e a forma dos peixes assemelha-se à dos penitentes humil- des e livres, quer dizer, de todos que são presos ou se deixam prender de livre e espontânea vontade, para o Reino de Deus, através do Seu Verbo, razão por que o Senhor denominou os apóstolos de pescadores de homens.
Quanto aos peixes mortos e atirados ao mar, tal quadro exemplifi- cado pelo Senhor se encontra no Evangelho, a Boa Nova dos Céus, não podendo conter algo de mal. Não resta dúvida que a situação dos peixes
dentro do cálice é evidentemente mais favorável que a dos outros. Teria eu compreendido o acontecimento?”
Responde Bórem: “Que todo o nosso amor seja dirigido para Deus! Regozija-te, Martim, pois acabas de nascer em espírito, com a Ajuda do Senhor! Não foi tua alma a conceber essa verdade, mas teu espírito, que o Senhor acaba de despertar em plenitude. Eis o início da libertação de que te falei várias vezes e, ao mesmo tempo, o final do segundo ato desse grande drama espiritual.
Tua explicação da cena passada está certa em todas as partes, con- quanto ainda não tenhas plena visão espiritual. O que ainda te falta ser-
-te-á dado no terceiro ato, pela Graça infinita do Senhor. Nele assistirás aparições descomunais e ao mesmo tempo terás a justa compreensão dos maravilhosos Caminhos do Senhor, pelos quais Ele conduz os Seus filhos à grande meta de salvação e vida.”
OCÁLICEDA GRAÇA
Diz o bispo Martim: “Observo com grande atenção a cena que continua na mesma situação. O cálice é imenso e parece crescer cons- tantemente e se torna motivo de admiração por parte do velho e de sua filha, acompanhados dos dois mensageiros. Os demais anciãos se en- contram a certa distância, fitando o cálice como o gado costuma fazer com porteira nova.
Os peixes dentro do cálice também são enormes e nadam despreo- cupadamente nesse vasilhame de ouro. A cabeça de alguns tem aspecto humano e tais peixes talvez se transformem em criaturas femininas.
Mas, o que vem a ser isto? O antigo mar tão imponente desapa- receu e o cálice se encontra em meio de uma imensa planície, cujos limites parecem estar cercados por forte baluarte. Estranho é o fato de ele se elevar em certos pontos, de sorte a poder-se olhar por baixo. A uns mil passos do cálice, onde anteriormente se encontrava o claustro, cujo desaparecimento fez surgir uma poça abjeta, formou-se uma cra- tera da qual sobe um forte vapor. Ele some tão logo atinge certa altura da cratera. Neste instante, a água do cálice começa a ferver e os pobres
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peixinhos deitam as cabeças nas bordas, gritando horrivelmente, pois quase todos possuem cabeças humanas e somente alguns se assemelham a leões e bois marinhos. A água ferve cada vez mais violentamente, ar- rancando gritos de dor dos peixinhos, que agora apresentam braços e mãos. Fazem menção de se erguerem acima do cálice para escapar do martírio. Os braços, porém, não parecem ter força suficiente, pois os peixes caem de novo na água fervente.
A água está em tamanha ebulição que impele os peixes que se tor- cem horrivelmente, enquanto os mensageiros não expressam qualquer piedade. Por que têm eles que passar por tamanho suplício a fim de readquirirem a forma humana? Também fui excelente pescador, mas nunca passei por suplício tão horrível. Graças a Deus, sou humano, se bem que em roupa camponesa.”
Diz Bórem: “Irmão, não esqueças a palavra projeção psíquica , pois continuas a ver as freiras em perfeita ordem diante de nós. Por que te apavoras com o que passam no íntimo? Se bem que o mundo inte- rior seja o verdadeiro, a criatura continua como tal, e somente evolui à medida que sua alma é levada a vibrar e agir.
Alegas teres conservado a forma humana sem teres passado por tal fervura. Todavia, te asseguro que foste cozido cem vezes mais no Cálice da Graça do Senhor. Porventura sabias disto? Quando tiveres atingido a perfeição e vires a atividade dentro do corpo humano, que dirás ao observares o foco central da vida, onde inúmeras torrentes de fogo se precipitam com enorme fragor pelos incontáveis canais? Sê, portanto, razoável!”
Diz o bispo Martim: “Realmente assim é. Quem for cozido e as- sado no Amor e na Graça do Senhor não deve passar tão mal. Que continue o cozimento dessas almas, que não parecem demonstrar sofri- mento. Neste instante, vejo os anciãos se aproximarem dos mensageiros e pedirem igualmente o ingresso no cálice em ebulição, a fim de faze- rem companhia às filhas. Eles o concedem, e o grupo salta dentro da água. Os gritos lancinantes, as lamúrias, o torcer das mãos e os brados por socorro são quase insuportáveis. As almas parecem sentir qualquer
coisa, porque percebo alguns movimentos, enquanto antes pareciam verdadeiras estátuas.”
Diz Bórem: “Isto é bom sinal, pois a vida está voltando a elas.” Ob- tempera o bispo Martim: “Está certo, mas o quadro tem aparência de purgatório.” Protesta o amigo: “Nada disto, pois o purgatório não existe em parte alguma, e aqui vês apenas o efeito do Amor de Deus, que não deixa de ser fogo. Tal fogo não é doloroso, pois suaviza todas as dores e cura todas as feridas que a alma passou por parte do inferno. Essas almas gritam realmente por socorro e alívio. Essa dor não é provocada pela água em ebulição, mas pelo inferno que está sendo expulso.
Se observares com atenção o imenso baluarte a cercar a vasta pla- nície, perceberás ser ele nada mais que o próprio inferno ou o diabo em figura de serpente colossal que se acomodou ali, não querendo que suas vítimas sejam agraciadas. Tudo isto é apenas quadro psíquico, e a planície aponta o mundanismo do qual elas não conseguem se livrar, porque o inferno as rodeia por todos os lados. É, portanto, o baluarte a causar dolorosa pressão nos que se encontram dentro do cálice. Não demorará e ele será destruído e atirado ao abismo que vês em direção ao Norte. Presta atenção.”
AANTIGASERPENTE,OSDOZEANJOSJUSTICEIROSEO ABISMO
Diz o bispo Martim: “Tens razão; por detrás do baluarte avisto doze espíritos enormes, cada um de espada descomunal em sua destra. Com tamanha espada, um deles poderia decepar o mundo como uma maçã, e o tamanho dos espíritos é tão colossal que dá a impressão de serem capazes de dizimar um planeta entre os dedos. Neste instante, o baluarte começa a se manifestar cada vez mais violentamente, como se surgisse o Dia do Juízo Final.
Percebo que a água dentro do cálice se acalma e as almas estão como que mortas no fundo, conquanto o espelho d’água esteja ainda produzindo fortes vapores. Tudo é silêncio; apenas os dois mensageiros
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parecem combinar algo, e em seguida um deles ergue um bastão, qual cajado de Aarão.
O baluarte aumenta constantemente, erguendo seu dorso, cá e acolá, para uma altura colossal, e agora vejo nitidamente a cabeça pavo- rosa desse monstro infernal. Levantando sua cabeça, escancara a guelra tão horrivelmente como se quisesse tragar o próprio Universo, e seu movimento se dirige para o cálice.
Dentro do cálice tudo está em plena calma; em compensação, o abismo onde anteriormente se encontrava o claustro expele mais fuma- ça e chamas. Que acontecerá?
Os doze espíritos gigantescos continuam de espada em riste e os olhos fixos no mensageiro com o bastão de Aarão, que neste instante acena ao monstro para que recue. Este não obedece, mas se aproxima cada vez mais do cálice. O mensageiro repete por mais duas vezes o sinal com o bastão, sem resultado algum, pois o monstro atingiu o cálice, querendo derrubá-lo com sua língua terrivelmente comprida. O cálice, porém, está firme, e igualmente calmos a água e o grupo.
A fera se torna sempre mais insistente, pois desconsidera uma nova ordem de afastamento por parte do mensageiro. Neste instante, ele mergulha o bastão no cálice e dá um sinal aos doze espíritos poderosos que decepam o monstro em doze pedaços. Que pavor! É tremenda a reação! As partes isoladas saltam quais montanhas pela planície exten- sa, rolando em direção ao abismo. A cabeça dá saltos que atingem o firmamento, mostrando os dentes num riso de indescritível ira para os doze espíritos, a ponto de serem tomados de pavor. Um deles empurra a cabeça à beira do abismo, com o bastão, onde é atirada. Em seguida, as restantes partes do monstro são igualmente impelidas por um poder in- visível, atirando-se com terrível estrondo no abismo. Chamas e fumaça dão impressão de fim de mundo. Seria preciso a boca de um querubim para descrever a fúria que sobe do fundo. De qualquer forma, estou aliviado por ter a fera encontrado um local onde não poderá ressurgir tão facilmente.
Os dois mensageiros se aproximam do cálice, no que são imitados pelos doze espíritos, que voltam ao tamanho natural. Todos se curvam
diante dos anjos, principalmente daquele que mantém o bastão de Aa- rão na destra. Eis que ele diz aos doze espíritos: ‘Irmãos, transportai o cálice ao portal do inferno, a fim de estabelecer uma barreira para o mal, que levaria à perdição esse pequeno grupo. Todas as forças celestes dentro de Mim foram chamadas para sua vivificação. Amém.’
Os doze espíritos suspendem com cuidado o cálice e o carregam para o abismo, que é tapado com a base do cálice. Agora a zona tomou aspecto mais agradável e percebo que o grupo dentro da água do cálice começa a se mexer. Graças a Deus por terem voltado à vida!”
AGRANDE COLHEITA
(Bispo Martim): “É extraordinário o imenso respeito manifestado pelos doze espíritos diante daquele mensageiro, pois se ajoelham diante dele para adorá-lo. Seria ele o Próprio Senhor? Se pudesse ver o seu rosto, saberia quem é. Os doze espíritos se erguem e curvam-se profun- damente, enquanto ele lhes estende a mão, dizendo perceptivelmen- te: ‘Irmãos, eis um belo pasto! Entrego-vos essas ovelhas, que devereis apascentar e alimentar para o Meu Aprisco, a fim de se tornarem bom alimento e alegria para o Meu Coração. Tirai-as com cuidado do recep- táculo de Meu Desvelo, deixando-as deleitarem-se neste campo imenso de Meu Amor, Graça e Misericórdia. Amém.’
Este só pode ser o Senhor, pois não existe no Universo quem fale como este mensageiro. Estou convicto ser ele o Próprio Senhor. Que dizes a respeito?”
Responde Bórem: “Claro, é Ele o Senhor, o que deverias ter per- cebido há muito; mas, Ele Mesmo conteve tua visão a fim de que teu espírito se tornasse mais ativo. Como chegasse o momento justo, ela se abriu e pudeste reconhecer o Senhor. Observa por mais algum tempo a cena presente a fim de assimilares a solução desse tremendo emara- nhado, reconhecendo o Infinito Amor e Graça do Senhor; pois não há quem se Lhe compare em todos os céus e mundos!”
Exclama o bispo Martim: “Ó Deus, Senhor e Pai pleno de Amor! Quem poderia medir Tua infinita Sabedoria e Bondade? Santo de todos
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os santos, és o Mestre único das profundezas de todos os seres! Santo é o Teu Nome, e a Ordem eterna das coisas é Tua Santa Vontade!
Dispensas conselho de quem quer que seja; no entanto, Teu Cora- ção Paternal não deseja gozar a sós a infinita plenitude de Tua Perfeição, mas cria seres incontáveis dos pensamentos profundos, formando-os no fogo de Teu infinito Amor e na Luz da eterna Sabedoria, para filhos de Deus a fim de participarem, como criaturas livres, da Perfeição Divina. Ouvi-me, serafins e querubins, e todos os anjos: Deus, o Espírito Eterno, em Sua Plenitude da Perfeição Divina, cuja grandiosidade não há quem possa imaginar, é nosso Pai, caminhando em nosso meio como
se fora igual a nós! Elevemo-Lo, pois, em nossos corações pecadores!
Agora, Senhor e Pai, não há lugar em meu coração senão para Ti, que Te tornaste Tudo para mim! Anteriormente eras Pequenino dentro de mim, por ser eu pecador; eis que Te tornaste infinitamente Grande em meu coração; portanto, sou bem-aventurado. Tudo isto é apenas Tua Obra; eu fui, sou e sempre serei servo inútil em Tua Seara.
Irmão Bórem, vê, os doze espíritos erguem o grupo do santo Cálice da Água da Vida, e essas almas são tão belas que merecem o nome de anjos. Que aspecto maravilhoso, que alegria se irradia de seus olhos ce- lestes destinados a ver o Semblante de Deus! Bórem, alegra-te comigo e sente a Bondade do Senhor! Ah, tinha vontade de me desfazer de amor para com Ele!”
Diz Bórem: “A obra foi realizada pelo Próprio Senhor. Agora cabe a nós, filhos de Deus, continuar a mesma, esta obra de Seu Amor e Or- dem. Por isto, devemos estar preparados para o que der e vier.
No mundo, a criatura toma do trigo para semeá-lo no solo. Tal ta- refa preliminar se deu quando ditavas diretrizes e ensinamentos a todas essas almas, no que te auxiliei, de sorte que ambos deitamos o Trigo de Deus nos sulcos de seus corações aflitos.
Uma vez a semente dentro da terra, o homem nada mais poderá fazer para que cresça e produza os grãos, pois isto é feito pelo Senhor através de Sua Insuflação indireta nos espíritos da Natureza, obrigados a entrar em função plena, provocando o crescimento de flora e fauna.
Neste trabalho poucos espíritos, dos mais íntimos amigos e irmãos do Senhor, se ocupam.
Terminada essa tarefa e a semeadura tendo atingido o amadureci- mento, é ela de novo entregue aos homens para a colheita definitiva. E esta tarefa nos aguarda. Deitamos a Semente do Verbo Divino em seus corações, onde repousava qual campo semeado. Neste repouso come- çou o trabalho do Senhor, pois nada podíamos fazer senão observar Sua Ação, assim como o lavrador no mundo apenas observa o crescimento e amadurecimento do trigo. Tal trigo, ou seja, esses irmãos, amadure- ceram sob o Zelo do Senhor, e agora chegou o momento de colhê-lo, apossando-nos da grande Bênção em Nome Dele, movimentando as mãos de nosso coração. Como sabes, a colheita é sempre maior que a semeadura, dando-se o mesmo aqui. Se anteriormente lidávamos com uma criatura, acabamos de receber de trinta a cem. Por isto, regozija-te, irmão, pois nos espera colheita farta!”
MODÉSTIADOBISPO MARTIM
(Bórem): “Agora, outro assunto. Debaixo da esfera luzente do Se- nhor percebes um caixote de ouro puro, no qual encontrarás uma rou- pa e um chapéu luminoso. Deves vestir-te e usar o chapéu, para poderes receber os hóspedes com vestes de matrimônio celeste. Eles serão trazi- dos pelo Próprio Senhor!”
Obtempera o bispo Martim: “Caro irmão, tudo que disseste é tão maravilhoso como o Verbo de Deus! Mas, o último item tem cunho de vaidade celeste que não me toca, e deves perdoar-me se não te seguir neste ponto. Estou satisfeitíssimo de meu coração se encontrar em or- dem e sei que o Senhor Se alegra com isto; quanto à minha veste, estou satisfeito com o paletó camponês. Não dou importância ao brilho, seja terreno ou celeste; faço mais questão do Amor de Deus, que somente me poderá ser facultado pelo meu coração, e não por uma veste lumi- nosa e um chapéu.”
Diz Bórem: “Tens razão em alegar que o Senhor considera apenas o coração, e a humildade gerada pelo verdadeiro amor para com Ele
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é realmente a mais preciosa vestimenta de todos os anjos. Todavia, a Ordem do Senhor exige que em Seu Reino a veste do renascimento e da imortalidade venha a ornar todos os habitantes dos Céus como ex- pressão de seu íntimo. Não existe no Universo um espírito mais humil- de que o Próprio Senhor; entretanto, não poderias imaginar qualquer pompa que não viesse Dele.
Observa o fausto indescritível e a imensidade deste salão, único recinto de tua casa. Quem seria o autor e construtor, senão Ele Mesmo? Por ocasião de tua entrada aqui, olhaste por doze portas, vendo apenas doze gotas do infinito mar das Criações do Senhor e te sentiste quase que tomado de pavor diante da imensa majestade e magnificência que vias apenas de passagem. Que dirias, caso visses realmente um anjo em sua glória celeste? Seria impossível vê-lo e viver ao mesmo tempo, tão imensas são sua beleza, glória e majestade! Desta explicação, e de muitas coisas mais, deduzirás que brilho e fausto se originam na Ordem divina. Assim, presumo não estares errado em te submeteres à Ordem do Senhor.
Lembras o que disse Ele a Pedro quando o apóstolo, por humilda- de, não queria permitir que Ele lhe lavasse os pés? O mesmo o Senhor poderia dizer a ti, caso insistisses em tua teimosia humilde. Vai e faze o que te disse, por Ordem do Senhor, que tudo em tua casa tomará outro aspecto. Antes de vestires a roupa nova, terás que despir esta até o último fio de linha e lavar os teus pés com a água que encontrarás dentro de um recipiente. Isto feito, abre o caixote de ouro e tira a veste que deves usar!”
Diz o bispo Martim: “Se assim é, hei de obedecer ao que me dizes por Ordem do Senhor. Confesso não sentir agrado com isto, pois, não obstante tua explicação, sinto uma espécie de vaidade. Contudo, obe- decerei. Onde deixarei minha roupa atual? Talvez deva guardá-la como recordação eterna, dentro do caixote?” Diz Bórem: “Não te preocupes, pois será tarefa de Alguém!”
O bispo Martim se dirige para lá, virando-se várias vezes para se certificar que ninguém o espreita. Quando se vê como que atrás de uma espécie de biombo a protegê-lo dos hóspedes, ele se despe ligeiro,
amontoando sua roupa, que desaparece. Em seguida, apanha água do recipiente e lava os pés. Nisto, o caixote de ouro se abre e o bom Mar- tim já se encontra de veste púrpura, cuja bainha é ornada de estrelas maravilhosas, e em sua cabeça está um chapéu mais luminoso que o próprio Sol!
No mesmo instante, o interior de sua casa se dilata tão formida- velmente dando impressão de cem vezes maior, e também se abrem as galerias que até então não podiam ser descobertas. Profundamente emocionado, Martim começa a louvar-Me em voz alta. Quando as lá- grimas embargam o seu louvor, surge Bórem de veste igual e diz: “Meu irmão, porventura te sentes envaidecido?”
Protesta Martim: “Não, percebo somente agora quão pequenino sou, e a infinita Grandiosidade do Senhor!” Retruca o amigo: “Então vamos, todos estão preparados para saudar-te como anfitrião. Alegra-
-te, pois!”
HUMILDADEDOBISPO MARTIM
Acompanhado de Bórem, o bispo Martim sai por detrás do biom- bo bastante extenso e é recebido por cerca de mil e quinhentas almas que agradecem com ênfase a acolhida e os sábios ensinos dados para a recente prova de conduta. Com imensa satisfação ele observa a grande multidão, cuja fisionomia traduz o estado de purificação interna.
Após certo tempo, ele diz: “Muito me alegra vossa recepção; toda- via, não me deveis agradecer pela salvação, encontrando-vos no limiar do Reino Celeste, pois toda honra, gratidão e louvor cabem ao Senhor, cuja Graça vos transformou tão maravilhosamente. Amai-me apenas como irmão que, como vós, tem o mesmo Deus e Senhor para Pai.
Vamos amá-Lo, este Pai Único, Verdadeiro e Santo, que é Tudo em tudo. Eu e este meu amigo e irmão fomos testemunhas como o Senhor vos conduziu e expeliu todas as impurezas de vossos corações, e por vos- sa causa enfrentou tremenda luta contra o inferno, qual leão de Israel! Abri vossos corações, para que o Senhor de toda Honra e Glória possa ingressar e permanecer conosco para sempre!”
Ouvindo tais palavras do anfitrião, a multidão é como que transfi- gurada e louva o Senhor por lhe ter dado tão grande poder e sabedoria. Em seguida, os mais antigos personagens se dirigem a ele pedindo para aceitá-los como simples servos.
Retruca Martim: “Não como servos, mas como irmãos com os mesmos direitos em tudo que o Senhor tão fartamente me prodiga- lizou. Sem vós, essa magnificência e glória me seriam enfadonhas; ao vosso lado, a alegria aumenta à medida das oportunidades que tenho para vos fazer felizes. Ficai aqui para alegria minha e do Senhor, que nos suprirá para sempre do melhor pão e vinho, sem que um de nós o tivesse merecido pela conduta dentro de Seu Verbo.
Sendo o Seu Amor sem medida e limite, vamos imitá-Lo neste sentimento. Somos perfeitamente felizes; todavia, nos falta uma coisa, que é a Presença do Senhor. Peçamos que Ele nos conceda também esta sublime Graça!”
O grupo responde: “Este seria igualmente nosso desejo, no entanto nos achamos indignos para tanto. Até mesmo não merecemos aquilo que nos conferiu, conquanto sejamos sumamente gratos. A vontade de ver o Senhor será nosso maior zelo.”
Diz o bispo Martim: “Assim manda a justa sabedoria; o amor ultra- passa às vezes a sabedoria e age como quer. Neste ponto, estou a favor do amor e creio que não cometereis erro agindo da mesma forma.”
ACRÉSCIMODE INFELIZES
Enquanto o bispo Martim fazia menção de prosseguir no elogio ao amor, alguém o chama fora de casa. Indagando de Bórem quem teria sido, o amigo responde: “Vai verificar. Aqui dá-se às vezes o mesmo que na Terra; não é possível ver-se tudo concentrado em um ponto, tornan- do-se necessário caminhar-se para diversos lugares, a fim de ver coisas diferentes. Vai sem demora verificar quem te chamou, pois nem sempre te posso orientar. De novo a voz te chama, corre!” Diz Martim: “Sim, já vou; certamente se trata de almas perdidas pedindo socorro.”
Ele abre a porta e se admira sobremaneira diante da beleza de seu jardim, que aumentara em bênçãos de toda espécie, ultrapassando qual- quer imaginação humana, quer dizer, desde que encontrara seu amigo Bórem plantando as mudinhas. Penetrando pelo jardim, ele encontra, em direção ao Sul, um maravilhoso caramanchão com feitio de templo aberto. No centro ele vê um personagem ocupado com a seleção de plantas deitadas em um altar feito de vegetal. O bispo Martim o obser- va por certo tempo, dirige-se a ele e diz: “Bom amigo e irmão, porven- tura foste tu a me chamar? Em que te poderia servir o meu coração?”
Responde o botânico: “Tua casa e teu jardim se dilataram bastante, de sorte a abrigares mais de mil almas. Onde existe tanto espaço, cer- tamente sobrará lugar para mais algumas. Vem comigo em direção ao Norte de teu jardim, onde se encontram cem pobres à procura de abri- go. Acolhe-os e a Mim também, que de certo modo faço parte deles, e não terás prejuízo.”
Diz o bispo Martim: “Somente cem? Se fossem dez mil, não dei- xaria um sequer ao léu. Vamos sem demora para recebê-los e cuidar deles à medida das forças dadas pelo Senhor.” Diz o botânico: “Irmão e amigo, és um verdadeiro bálsamo para Meu Coração! Vem Comigo!” Dentro em pouco, chegam a um grupo de infelizes de ambos os sexos, desnudos, esfaimados e cobertos de tumores.
Diante deste quadro, Martim se comove até as lágrimas e diz: “Meu Deus, como são desditosos! Quase não manifestam vida! Vinde todos à minha casa, para vos curardes; o Senhor, nosso Santo e Bondoso Pai, Jesus, me dará forças para tanto.”
Exclamam os pobres: “Anjo de Deus, teu senhor deve ser suma- mente bom, porquanto manifestas tamanha caridade para conosco. Vês que somos impuros, não podendo entrar em teu lar limpo.”
Diz o bispo Martim: “Andava muito mais impuro que vós e me purifiquei nesta casa de amor. Espero em Deus que suceda o mesmo convosco e vos convido a me seguirdes, os mais fracos apoiados a mim. Tu, irmão botânico, auxilia alguns debilitados.”
Diz o botânico: “Meu irmão, Meu coração, centro de Meu Amor, quão imensa é a alegria que Me proporcionas! Desde já recebe a re-
compensa, pois Aquele a Quem tanto amas está Contigo! Eu sou teu Senhor, Irmão e Pai!”
O bispo Martim se atira diante de Meus Pés, dizendo: “Senhor, Deus e Pai Santíssimo! Como iniciarei e quando poderei terminar de louvar-Te?! Infinito é Teu Amor e insondáveis as profundezas de Tua Misericórdia por manifestares tamanha Graça a um pecador igual a mim! Tinha vontade de sumir de vergonha por não Te ter reconhecido em Tua Casa Paternal, desconsiderando Tuas Palavras de puro Amor! Fortalece o meu coração, para poder suportar Tua Santa Presença!”
JESUSCOMOSENHOR,PAIE IRMÃO
Digo Eu: “Levanta-te, caro irmão, e não insistas em Minha Glória, mas considera seres Meu irmão no Amor, e assim suportarás Minha Presença. Sou Senhor somente para quem desconsidera Minhas Pala- vras e no entanto se julga grande na sabedoria. Para os que encheram seu coração com todo amor, sou apenas Irmão Onipotente, dando-lhes tudo que possuo, como verdadeiro Pai! Ergue-te, pois, e não alimentes tamanha veneração diante de Mim!
Se na Terra um soberano se dirige aos seus ministros, eles caem diante de seus pés, tal o respeito que lhe dedicam; tal é justo, porque enquanto forem seus servos ele será soberano. Se eles o amassem sobre- maneira a ponto de dizerem: Não mereces apenas nosso respeito, e sim, todo o nosso amor; aceita nossos préstimos sem qualquer remuneração, pois te serviremos com todas as fibras de nossa vida, e caso exigisses cem existências de nossa parte, nós as daríamos por te teres tornado verda- deiro soberano de nossos corações — qual seria a atitude de tal regente? Amor tão sincero tocará o âmago de seu ser, levando-o a dizer: Havendo erigido um trono tão sublime não apenas em vossa mente, mas no próprio coração, será vosso amor a Mim a vos reger. Todos vós Me acolheis no coração santificado pela presença de Minha Majestade, quer dizer, abrigais aquele que Eu Mesmo abrigo dentro de Mim. Por este motivo, sois o mesmo que eu, meus irmãos mais queridos. Assim,
participareis de tudo que eu possuo.
De modo idêntico falo a todos os que Me acolheram em seus co- rações como tu. Aos que Me amam acima de tudo e Me abrigam em seu íntimo, santificando-se através de Mim, não tratarei como Senhor, mas como irmão mais amado, pois não posso ser o Meu Próprio Se- nhor. Os Meus Dons lhes pertencem porque Me possuem através de seu grande amor.
Percebes o que quer dizer Eu te chamar de irmão, assim como chamava os doze apóstolos de irmãos? Se o compreendes, ergue-te e conduze esses pobres à tua casa, sem denunciar-Me. Ignoram seja Eu o Senhor, pois trata-se de chineses que na Terra resolveram aceitar Meu Testemunho, se bem que bastante deturpado, razão por que foram de- capitados, inclusive o missionário. O que não alcançaram em vida re- ceberão aqui, em plenitude. Agora sabes de tudo. Vamos agir depressa, pois a partir de agora, Meu lar e teu lar serão unidos.”
ACOLHIDADOSMÁRTIRES CHINESES
A esse Meu discurso, Martim se atira ao Meu Peito, beijando-Me com efusão. Após ter tido essa expansão, diz: “Bem, agora estou melhor e me sinto mais livre. Se fosse por mim, poderia continuar neste êxtase durante a eternidade. Deixarei essa ocupação tão agradável para mais tarde, a fim de levar esses chineses ao nosso lar — naturalmente com Tua Ajuda, Senhor.”
Virando-se para o grupo, prossegue: “Vinde comigo, irmãos; os mais firmes podem apoiar-se em mim, enquanto os mais fracos serão amparados por este meu Amigo, a fim de penetrarmos juntos nesta casa.” “Como poderíamos entrar, se somos sumamente impuros?” dizem alguns. “Ignoras que temos uma lei que proíbe ao leproso entrar em qualquer casa, com risco de vida? Se os regentes da Terra respeitam de tal modo uma lei divina, quanto mais aqui. Preferimos ficar no jardim,
até estarmos purificados.”
Diz Martim: “Não vos perturbeis com vossas leis antigas e tirâni- cas, que não entendeis, tampouco vossos regentes; aqui só vale uma Lei
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Divina, a eterna Lei do Amor. Esta Lei vos exige cumprimento incon- dicional. Fazei, portanto, o que meu amor vos pede.”
A essas palavras todos se levantam e caminham de passos indeci- sos à casa, na Minha e na companhia de Martim. No momento em que se encontram dentro do salão imenso e majestoso, eles gritam: “Ó Dalai-Lama! Esta é a morada do eterno Brama! Estamos perdidos para sempre! Pois no sânscrito chinês consta que quem penetrar na morada santificada de Brama, não purificado, será aprisionado e martirizado por Ahriman! Ai de nós!”
Diz Martim: “Que tolice é essa? Afirmo, baseado na minha cons- ciência e no amor que desejo vos proporcionar, ser vosso tão temido Brama um mistificador e mortal como vós, pois nem ele nem vosso imperador conhecem o Lama (Deus).
Chamo-me Martim e fui bispo católico na Europa, sendo efetivo proprietário desta casa, e não existe Brama que aqui viesse reclamar qualquer coisa, a não ser que viesse como necessitado. Sede calmos, pois nestes átrios santificados não há quem se perca após ser admitido.”
Enquanto o grupo se acalma e admira o fausto do salão, Bórem se apresenta com pão e vinho. Após Eu os ter abençoado, ele diz aos hóspedes: “Acomodai-vos nesses bancos e aceitai esse conforto, muito necessário após tão prolongado jejum. Nosso Senhor, Deus e Pai, é cheio de Amor, Bondade, Meiguice e Paciência, perdoando-vos qual- quer culpa que vos pese na consciência. Sede alegres e saboreai o que vos é oferecido, pois há de vos fortificar para a vida eterna e o verdadei- ro conhecimento de Deus. Tal conhecimento nada mais é que a própria vida verdadeira, segundo Ele disse aos discípulos: A vida eterna é esta: que conheçam Jesus, que Tu, Santo Pai, enviaste ao mundo para o per- dão de todos os pecados!”
Todos se sentam e saboreiam pão e vinho com avidez que traduz a posterior avidez pela Palavra de Deus.
Quando saciados, após algum tempo, Eu lhes digo: “Caros amigos, é preciso vos despirdes e entrardes no banho que se encontra entre essa coluna e o biombo opaco. Aquele banho vos purificará. Amém.”
O grupo obedece, e nem bem se encontra dentro da água, as cha- gas desaparecem, a antiga cor amarelada se transforma em alva, e as formas igualmente se tornam mais harmoniosas. Sumamente felizes, dizem: “Por quem sois — se a serviço do Dalai-Lama ou de Ahriman, o que não podemos julgar — grande benefício nos foi dado, e que vosso senhor vos recompense.
Quão infelizes fomos durante um tempo incalculável! Andamos pelo orbe todo sem encontrar quem amenizasse nossa miséria. Final- mente, descobrimos teu amigo na proximidade desse palácio e pedi- mos ajuda. Ele respondeu: Posso e hei de vos socorrer! Acompanhai-Me àquele jardim, que chamarei o proprietário, que cumprirá com grande alegria Minha Ordem em vosso benefício.
Assim nos tornamos testemunhas daquilo que fez, cabendo-lhe o louvor principal. Em seguida agradecemos a ti pela fiel execução do conforto dado. Só nos falta uma roupa a fim de cobrir nossa nudez. Se isto fosse possível, nada mais desejaríamos.”
Virando-Me para Martim e Bórem, digo: “Naquele caixote doura- do encontrareis roupas suficientes para nossos tutelados. Posteriormen- te receberão a veste do Reino de Deus, na proporção de seu adianta- mento espiritual.”
Os dois amigos apanham cem peças azuis pregueadas que são dis- tribuídas entre ambos os sexos. Todos Me louvam, dizendo: “És suma- mente bom, sábio e poderoso. Na Terra ouvimos ser o grande Lama igualmente bondoso, caso não seja importunado por Ahriman, em cuja presença se irrita de tal forma que durante mil anos projeta apenas ira sobre o mundo. Em seguida oculta o seu rosto por mil anos para não ver seu inimigo atroz. Com isto, abandona as criaturas durante dois mil anos.
Se esta é a situação com o Lama, confessamos seres tu muito mais bondoso, poderoso e sábio. Na Terra ouvimos falar de um certo Jesus, por parte de alguns mensageiros estranhos. Seria ele o Próprio Lama, estrangulado por Ahriman, porque instigou os homens contra ele. Pedi- mos que nos orientem a respeito, pois nos custou a vida terrena.
Fomos bem doutrinados e aprendemos certas preces bastante pro- veitosas. Aconteceu que um missionário se excedeu e foi denunciado por uma amante, e todos nós participamos da mesma sorte, porque tencionávamos apostatar o nosso Lama. Isto certamente foi obra de Ahriman e nos dá a esperança de reconsideração por parte do Lama, caso seja ele o Próprio Jesus.”
Digo Eu: “Meus amigos, um pouco de paciência e sereis informa- dos de tudo. Segui-Me, que haveis de encontrar uma multidão, da qual fazem parte os missionários católicos e vossa conterrânea que vos traiu. Se fordes capazes de lhes perdoar, descobrireis prontamente o verdadei- ro Lama. Vinde!”
DESAGRADÁVELCENAENTREOS CHINESES
A estas palavas, o grupo aparece por detrás do biombo e se admira da grandiosidade e pompa do salão, em cuja parte Sul se encontram os mil e mais centenas de outros que, por ocasião do preparo dos monges e freiras, também foram salvos.
Quando os chineses descobrem os missionários e a chinesa que tra- íra a todos, dão mostras de aborrecimentos e Me dizem: “Este encontro nos é sumamente desagradável, todavia não daremos importância por- que não vos parece perturbar. O missionário por ela traído certamente lhe perdoou, pois palestra amistosamente com ela. É uma criatura bas- tante atraente e educada, razão por que foi favorita do padre e de todos na grande capital Pequim. Em virtude de sua traição infame, perdeu o conceito dos conterrâneos e faleceu pouco mais tarde, de desgosto. Ad- mira-nos que essa serva de Ahriman aqui pôde ser admitida. Porventura o próprio Lama sente agrado em sua beleza?”
Digo Eu: “Caros amigos, se dentro de vossa prole alguns filhos alimentavam certas maldades, não foram cuidados com maior desvelo, desconsiderando até mesmo os bem-intencionados?
Se vós, que nunca fostes realmente bondosos, apenas fazíeis o bem aos filhos maus, como podeis supor que o Lama (Deus) desse algo no- civo a Seus filhos cheios de remorso, caso Lhe peçam um benefício? Essa moça vos prejudicou na Terra. Seu arrependimento foi tão intenso quanto o seu primitivo amor por todos vós, antes da traição.
O bom Lama é portanto justo quando não repudia um filho Seu que tivesse praticado o mal, quando Lhe pede perdão, cheio de remor- so. Não é pois necessário que esteja enamorado da bela chinesa a fim de fazê-la feliz; basta ser Ele bom Pai de todos os homens, sendo reconhe- cido como tal. Nesta hipótese, não há dificuldade com a bem-aventu- rança de uma filha fraca na Terra. É Ele justo ou injusto?”
Responde um do grupo: “O Santo Lama age deveras bem e com justiça. Eis que a bela Chanchah se aproxima de nós. Qual será sua intenção?”
ENCONTRODOSENHORE CHANCHAH
Chanchah se atira diante dos cem chineses e lhes pede perdão pelo mal feito indiretamente. Os homens retrucam: “Adorável Chanchah, se o grande Lama te perdoou, que poderíamos ter contra ti? Também nos relevou o fato de termos prestado sacrifícios a Ahriman. Levanta-te e dá-nos um beliscão na orelha, como prova de nos termos perdoado reciprocamente.”
Chanchah se ergue com adorável expressão e belisca suavemente a orelha de cada um, dizendo: “Vossos corações sejam meu adorno mais rico, e vosso aspecto o maior conforto para meus olhos. Meu coração vos seja um suave travesseirinho para o repouso, se o amor vos tiver cansado. Meus braços representem um laço doce que liga coração a coração, e de minha boca fluirá para sempre o mais precioso bálsamo em vossa alma.
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Meu peito vos transportará até as estrelas, e meus pés vos condu- zirão sobre trilhas penosas. O Sol se pondo e não havendo luar sobre a Terra, e a neblina densa cobrindo o brilho dos astros, meus olhos ilumi- narão o caminho de vossa saudade. Assim, quero ser vossa serva meiga e doce nas necessidades delicadas e duras de vossa vida, por terdes dado ouvidos ao perdão de minha grande culpa!”
Um dos chineses se adianta, ergue as mãos e toca a cabeça da moça com as pontas dos indicadores, dizendo: “Ó Chanchah, como és bela! Digo-te tão fortemente quanto um tufão e tão suavemente como a brisa noturna abana a delicada lã da gazela: és mais bela que a aurora sobre as montanhas azuis que adornam a grande cidade de nosso país! Tua cabeça é mais adorável que a de uma pomba dourada, e teu pescoço mais branco e torneado que o de uma gazela branca; teus pés são me- nores que os do antílope a saltar e dançar nos cumes do Himalaia. És tão querida quanto o Sol, e tua graça é comparável ao luar que toca as ondas dos lagos. Que teus desejos venham a iluminar as nossas almas e alimentar nossos corações como fazem as estrelas com os navegadores a singrarem o vasto oceano, desconhecendo a rota para a pátria querida!” Em seguida, ele se vira para Mim e diz: “Amigo, agimos bem em termos aceito nossa ex-inimiga, como se fôssemos um só coração?” Respondo: “Sim, segundo vosso hábito. Não mais vos encontrando na Terra, mas no mundo eterno dos espíritos, onde regem outras formas e hábitos, tereis que vos adaptar aos nossos costumes. Se preferísseis as virtudes de vosso país, teríeis que ingressar nas fileiras dos que levarão
muito tempo para chegar a esta casa!”
Diz Chanchah: “Sublime amigo dos pobres, desejamos ser iguais à terra de porcelana que se deixa amoldar a todas as formas perfeitas. Tua Vontade seja nossa vida, e Tua palavra a expressão do Lama!”
Digo Eu: “Vem cá, adorável Chanchah, quero dar-te um vestido novo que te enfeitará mais maravilhosamente que a mais bela aurora faria com os picos das montanhas azuis.” Martim apanha do caixote dourado um vestido vermelho enfeitado com estrelas e Mo entrega com as seguintes palavras: “Eis um verdadeiro vestido do amor que lhe ficará muito bem. Confesso que essa chinesa me agrada muito; somente não
consigo adaptar-me às expressões poéticas do Oriente. Não supunha tanto lirismo nos chineses, que me agrada bastante.”
Digo Eu: “Também a Mim, mormente o coração de Chanchah. Ainda assim, há de te dar muito trabalho. Vem, filha amorosa, recebe o vestido do amor e da justa meiguice. Se bem que traíste aos que que- riam aceitar o testemunho de Jesus, assim fizeste em virtude de teu país, querendo salvar a vida do imperador e poupar a dos teus irmãos. Ele as- sim agiu porque não tinha o teu coração. És portanto sem culpa e pura como essa veste, que representa o Meu grande Amor para contigo.”
OGRANDEAMORDECHANCHAHPARACOM JESUS
Chanchah toma o vestido com respeito e no mesmo instante é enfeitada com o mesmo, de modo maravilhoso. Chorando de alegria, ela diz: “Ó amigo, qual é o teu nome, para poder gravá-lo com traços indeléveis em meu coração?”
Digo Eu: “Bela Chanchah, isto já foi feito. Pesquisa em teu co- ração, onde descobrirás o que esperas ouvir de Mim. Teu amor para Comigo te dirá tudo.”
Arregalando os olhos, ela diz compenetrada: “Como pode ele falar de modo tão estranho? E por que o meu coração se inflama de amor quando se dirige a mim? Em sua voz repousa um poder de sortilégio que seria capaz de criar mundos e destruí-los em seguida. Nunca vi tamanha meiguice, ao lado de verdadeiro rigor divino. Pressinto algo grandioso!
O sublime som das palavras: Teu amor para Comigo te dirá tudo!
— Quero apenas uma coisa, seu nome! E ele diz: Tudo, tudo! Eu falo de um, e ele de tudo! Ó Lama, Lama! Como devo entender isto? Quão maravilhosa é a figura dele, a majestade de seu olhar! Os outros dois são igualmente figuras sublimes e parecem sábios e poderosos. Mas, ao fitar este, meu coração se incendeia!
(Virando-se para Mim): Querido amigo, divino amigo! Quem po- deria entender o sentido de tuas palavras? Despertaram ideias profun- das dentro de mim e um amor maravilhosamente poderoso! Quando
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na Terra caminhava nos belos e imensos jardins de nossa cidade, es- cutava muitas vezes os suaves sons com que os cisnes saudavam o Sol poente quando deslizavam sobre o espelho de um lago delicioso. Eram realmente sons maravilhosos, mas, comparados ao suave som de Tua Voz, nada representam.
Outras vezes passeava de manhã com a lira na mão, que vibrava ao sopro doce da brisa, a ponto de fazer tremer meu coração. Hoje a lira não conseguiria isto após ter sido meu coração tocado pelo som celeste de Tua Voz!
Quão doces eram as palavras de minha mãe quando me chamava: Chanchah, minha vida, vem junto do coração de tua mãezinha que te ama mais que a própria vida! — Nesta chamada havia mais harmonia que o mundo poderia conceber, e a Terra se transformava em jardim celeste. Tudo isto cai no pó quando te vejo e ouço o som de tua palavra divina. Que farei se meu coração se tornar mais impetuoso neste senti- mento por ti?
Ó Lama, Lama, tu és grande e maravilhoso e deves ser amado aci- ma de tudo; mas, que culpa tem a pobre Chanchah se seu coração se incendiou tão fortemente por este que certamente também é teu amigo? Aprendi na Terra existir um céu para os bons, muito mais belo que a cidade de Pequim e mais elevado que a majestade das montanhas azuis; todavia, descubro que apenas um coração pode ser o Céu para o próximo. Em ti encontrei o meu Céu e gostaria que no meu coração en- contrasses um pequeno jardim!” Com estas palavras, ela cai a Meus Pés. Diz Martim: “Senhor..., quer dizer, irmão, nunca ouvi coisa se- melhante em doçura! Perto deste amor, o nosso não tem valor algum!
Ainda temos muito que aprender, não é, Bórem?”
Responde o amigo: “Não resta dúvida que jamais terminaremos o aprendizado na Companhia do Mestre de todos os mestres. Quanto a esta chinesa, estamos longe de poder concorrer com sua delicadeza de sentimentos, e o calor oriental de seu amor. É deveras tocante observar-
-se o crescimento de seu amor, sabendo qual sua meta final.”
Digo Eu: “Convém falardes mais prudentemente Comigo, para não perturbarmos essas almas ainda muito fracas para suportarem nossa realidade. Falei apenas para vós, de sorte que nada ouviram a respeito. Se falássemos em voz alta, seríamos todos iguais, compreendestes?”
Diz Martim: “Ó Irmão, amado Irmão! Deves ter paciência comigo, caso algo de tolo me escape. Às vezes me acho bastante inteligente; mas, em Tua Presença me sinto tão tolo que teria vontade de rir de mim mes- mo. Entretanto, me alegro quando, com Tua Ajuda, consigo vez por outra externar algo razoável.”
Digo Eu: “Continua como és, pois deste modo Me és mais agra- dável. Um bom humor de coração não pode faltar em todos os Céus. Agora convém dirigirmos a atenção a Chanchah. Levantai-a, pois ainda não posso tocá-la.” Assim, a chinesa se encontra de pé em nosso meio, tão extasiada a não poder traduzir seus sentimentos.
Nesse ínterim, Martim observa: “Como é bela em seu êxtase amo- roso! O que mais me admira é eu poder achar agrado em sua beleza extraordinária, sem sensualismo. Se bem que o tocar de seu braço macio me fizesse bem, não senti reação sensual, o que agradeço unicamente a Ti. (Virando-se para a moça): Como te sentes neste lar dado pelo grande Lama? Todos nós te amamos muito e nos alegramos com tuas belas palavras.”
Responde Chanchah: “Sinto-me imensamente bem! Quem não haveria de fazê-lo em vosso meio, pois o amor é o maior tesouro do co- ração humano! Espero não ter que vos deixar nunca! Bem sinto não vos merecer porque descubro muitos erros dentro de mim, não obstante esse vestido maravilhoso. Meu coração vos ama, mormente a ti que não queres declinar o teu nome, e não irás repudiá-lo!”
Digo Eu: “Jamais serás afastada de nós! A origem de todos os Céus é o amor, e o próprio Amor em si. Quem o possui como tu, em tama- nha perfeição, de que modo poderia ser afastado daquilo que perfaz seu próprio ser? Amor semelhante ao teu apaga todas as máculas da
alma, de sorte a estar tão pura como se surgisse neste instante do háli- to do Lama.
Não te perturbes jamais a respeito de tua permanência aqui, mas considera que serás uma doçura especial de nosso amor, ainda que nos dirigíssemos temporariamente a outras localidades deste reino. Não deves tomar nossa permanência nesta casa como algo eterno, pois no grande Reino de Lama existem muitas habitações. Onde quer que for- mos, estarás em nosso meio.
Nosso amor para contigo é tal como se fosses o único ser no Uni- verso, com direito definitivo ao nosso sentimento. Se nós, mormente Eu, querida Chanchah, tanto te amamos, como poderíamos abando- nar-te? És para sempre o Meu amorzinho; disto podes estar mais certa do que de tua própria, vida!”
Exclama Chanchah: “Ó Lama, como deves ser bom se Teus ser- vos são tão amorosos! Sabes, querido amigo, à medida que te observo mais nitidamente sinto que Lama não poderia ser melhor que tu. Talvez seja o único erro do amor, considerar ele seu objetivo o melhor e mais perfeito. Assim, te considero tão bom quanto o próprio Lama, e ele certamente perdoará a pobre Chanchah pelo seu sentimento? Não sou culpada de amar-te ilimitadamente!”
Digo Eu: “Oh Chanchah, Lama de há muito te perdoou tudo, pois Seu Amor é infinito e sente a maior alegria e felicidade quando Seus fi- lhos ou servos se amam incondicionalmente. Não temas, portanto, que teu amor para Comigo constitua pecado junto Dele!”
DIFERENÇAENTREANFITRIÃOE HÓSPEDE
Um tanto acanhada, Chanchah retruca: “Maravilhoso amigo de meu ser! Deves ter visto ou falado por várias vezes ao grande e eter- no Lama, porquanto te expressas a respeito Dele com tanta segurança. Tuas palavras têm uma força que parece originar-se Nele Mesmo.
Teus amigos também se expressaram, sem transmitir grande poder em suas palavras; isto se dava apenas quando falavam contigo. Daí con- cluo estares mais próximo do Lama que eles. Estou certa?”
Digo Eu: “Indaga o teu sentir no coração que tudo te revelará. Vamos tratar dos outros, necessitados de nosso cuidado e amor. Vem!” Diz ela: “É justo considerardes meus irmãos, pois a situação dos an- fitriões é mais privilegiada que a dos hóspedes. Os primeiros podem dar quando quiserem, enquanto os outros só podem receber quando se lhes
oferece algo, tornando-se indispensável sua manifestação de gratidão.
O dono da casa não necessita pedir ao pretender apanhar algo para si de sua despensa, tampouco é obrigado a considerar as regras da boa educação referentes ao agradecimento. Por isto, são os senhores real- mente felizes podendo dar o que querem; os beneficiados são menos felizes porque obrigados a aceitar o que se lhes oferece.
Eis o que penso a respeito desses inúmeros hóspedes de que faço parte. Conquanto sois senhores muito bondosos desta casa celeste, vos- sa situação é mais favorável que a do mais beneficiado de todos os hós- pedes. Sereis sempre senhores; eles, simples hóspedes dependentes. Não tomes a mal minha maneira de expressão, pois meu grande amor para contigo soltou-me a língua!”
Digo Eu: “Delicada gotinha de Meu Coração, fala segundo a ins- piração de teu sentimento, que jamais nos poderias ofender, mormente falando com tamanha sabedoria. É realmente mais fácil dar que receber, e o mais miserável doador se encontra em situação mais feliz que o melhor recebedor.
Esta ordem não pode ser alterada, pois nem todos podem ser se- nhores. Se o Lama tivesse feito senhores de todas as criaturas a ponto de terem morada e subsistência e ninguém precisasse ajuda do outro, que finalidade teria o amor ao próximo e o amor para o Lama? Esse amor sucumbiria e no final o Lama seria Doador e todas as criaturas recebe- doras algemadas, como de fato o são e eternamente o serão.
A fim de que os recebedores possam tomar despreocupadamente o que lhes é dado, nosso suprimento é tão farto que cada um dos rece- bedores se supre tanto quanto seu coração venha a exigir. A oferta é tão exagerada a ponto de não existir no Universo total um ser que recebesse mais que o desejo mais ardente de seu coração. Que achas, Minha ado-
rável Chanchah? Seriam os recebedores realmente lastimáveis em tais circunstâncias?”
Responde ela: “Nesse caso eles são quase mais felizes que o Doador, pois Ele deve ter muitas preocupações cansativas a fim de preencher suas despensas de tal modo que não venham a se esgotar através das constantes retiradas. Muitas vezes refleti na Terra sobre a maneira pela qual o Lama podia cuidar de toda a flora, a fauna e as criaturas. Então minha mãe me dizia: Como podes considerar o Lama tão humanamen- te? Ignoras que Ele é Onipotente e Onisciente? Basta querer, e tudo ocorre comoe quandoEle quer. — Essa explicação me satisfazia intei- ramente. Mas, gostaria de ouvir de ti, servo do Lama, se assim é de fato. Se a constante preocupação com as necessidades dos seres Lhe causa dificuldades, Ele é digno de pena!”
NATUREZAEATIVIDADEDO LAMA
Digo Eu: “Querida Chanchah, isso te posso dizer em poucas pa- lavras. Como conheço o Lama tanto quanto Ele Mesmo Se conhece, digo: Aquilo que se refere ao criar e agir representa para o grande Lama algo tão fácil que não o podes compreender. Ele precisa apenas dizer a uma ideia formada: Que assim seja! — e tudo que Ele quer aparece, assim como Eu neste instante penso que diante de nós se encontre uma bela árvore com os melhores frutos; ou, então, imagina tu tal árvore; digamos, uma figueira. Já imaginaste?”
Diz ela: “Sim, estou imaginando uma figueira como a que havia na casa de meus pais.” Digo Eu: “Muito bem, presta atenção! Eu também imagino a mesma árvore e repito como o Lama: Que assim seja! — e ei-la diante de nós, carregada dos frutos mais saborosos! Viste como Me foi fácil fornecer-te um exemplo vivo? O mesmo sucede com o Lama na criação de um ou de infinitos exemplos. Todavia, não é tão fácil a Ele criar os homens de tal forma que se tornem livres e perfeitos como Ele Mesmo. Para tanto é preciso algo mais que a simples Onipotência. Ainda que seja mais difícil, tudo é possível ao Lama. Entendes essa
Minha Explicação? Essa figueira será tua para sempre e jamais secará, produzindo sempre os melhores e mais abundantes frutos.”
Chanchah está tão perplexa que não pode falar, olhando ora para Mim, ora para a figueira. Esse milagre atrai imediatamente todos os hóspedes, que ficam estupefatos. Também o bispo Martim observa, surpreso, a árvore e diz: “Oh meu Irmão, sei que Te é fácil produzir uma árvore como essa. Ainda assim, estou perplexo de ter surgido tão subitamente.
Confesso que deve ser algo estranhamente belo possuir-se uma pe- quena Onipotência. Mas, que culpa temos nós se não a possuímos em virtude de nossa tolice? De fato, é até mesmo conveniente que um espí- rito tolo como o meu não possua Onipotência. Tu Mesmo, meu Irmão, haverias de te admirar das formações absurdas com as quais eu haveria de encher o Espaço imenso. Seriam certamente apenas caricaturas!
Portanto, justifica-se que o Sábio Lama transmita tal Onipotência apenas aos que possuem capacidade de assimilação da Sabedoria celeste, como ocorre Contigo, num grau elevadíssimo. É claro que à Tua Pessoa se torna mais fácil dar que receber, porquanto tudo já é Posse Tua”
Digo Eu: “Não fales tão alto e considera a presença de pessoas que ainda não participam de teu grau de evolução. No início falaste certo; mas, no fim, quase ultrapassaste o limite, o que teria causado prejuízo a esse grupo, por algum tempo. Controla-te e sê prudente como a ser- pente, mas mansa qual pomba. Aceita Bórem como exemplo, que está no seu devido lugar e respeita a Prudência celeste. Faze o mesmo, que havemos de progredir com esses hóspedes.”
Retruca o bispo Martim: “Agradeço por esse bom conselho, que aceito completamente. Mas, vê essa Chanchah, como Te observa mi- nuciosamente.” Digo Eu: “Deixemo-la em paz, pois tais observações trazem seu espírito mais para perto de Mim. Dentro em pouco apre- sentará várias perguntas que nos darão bastante trabalho. Pergunta-lhe, como anfitrião, se ela está satisfeita com essa explicação. O resto virá por si só.”
O bispo Martim se aproxima dela, ainda totalmente absorta pelo milagre, e diz: “Dize-me, querida, se aceitas essa explicação, pois não
deves alimentar tão forte admiração. Aqui tais fenômenos nada têm de raro e com o tempo hás de te habituar com eles. No princípio também passei pelo mesmo processo. Se soubesses dos milagres que presenciei durante minha permanência aqui, ficarias deslumbrada. Esse aqui serve apenas para elucidação de tuas indagações anteriores que fizeste ao meu irmão. Um pouco de paciência, que as coisas hão de se desenvolver cada vez mais.”
Protesta Chanchah: “Meu amigo, é fácil para ti falares desse modo porque estás habituado a tais ocorrências. Mas, para mim, tal fenômeno me estonteou, pois onde se viu no mundo tal coisa? Se não me tivesses falado tão calmamente, passando-me de certo modo outra convicção, eu teria considerado esse teu irmão e amigo que ora palestra com meus conterrâneos, o Próprio Lama. Mas, como afirmaste que tais milagres não constituem raridade aqui, estou mais calma e amo esse teu irmão ainda mais profundamente que antes. Muito embora seja teu irmão, é ele de aparência muito mais divina que tu, e também o provou por essa minicriação. Também te considero muito, mas duvido de tua capacida- de criadora. Que achas?”
Retruca Martim: “Bem, querida..., se fosse preciso, quem sabe? Mas, se eu o fizesse apenas para apresentar uma obra milagrosa, teria motivo de me envergonhar. Somente o Lama pode produzir milagres, mas raramente o faz, porque entendemos Seus menores acenos.”
MARTIMFICAENCABULADODIANTEDACURIOSIDADEDE CHANCHAH
Diz Chanchah: “Compreendo tudo que dizes, mas se me deste a en- tender que assimilas tudo que o Grande Lama emite, explica-me como se dão tais transmissões, pois elas exigem a Presença Dele. Por favor, dize-me como O vês e ouves, para que eu possa ter alguma ideia Dele.”
Diz Martim: “Minha querida, essa pergunta é algo capciosa, pois se eu a responder, não garanto que entendas a resposta. É preferível desistires da mesma, pois no momento não teria utilidade nem para mim, nem para ti.”
Reage ela: “É possível que o regatear de um preço seja hábito entre vós; mas a nós, chineses, tal coisa é estranha. Cada artigo tem seu preço e quem o oferece tem que vendê-lo e entregar ao imperador o imposto de venda. Não vendendo a mercadoria, o vendedor prova que superes- timou o valor, pretendendo empregar a usura, pelo que não escapará do castigo.
Do mesmo modo, a pessoa tem que se equilibrar quando fala, e não dizer algo pela metade, por medo ou ignorância. Também será pu- nido por isso, pois é indigno para o homem temer algo onde não existe motivo ou querendo ser mais do que é.
Sou rigorosamente chinesa e não posso renunciar a algo que de cer- to modo prometeste. Quem provoca o oponente a fazer uma pergunta terá que respondê-la; do contrário é um embusteiro, mentiroso ou co- varde e desconhece o assunto que ventilou. Se não queres ser tomado por algo do que foi dito, dá-me resposta total à minha pergunta.”
Martim está muito encabulado e não sabe como agir. Se responder na íntegra, terá que Me denunciar antes do tempo. Não o fazendo, ela o declara mentiroso, ignorante ou covarde diante de todos, o que de fato seria desagradável, levando em conta ser ele o anfitrião. Por isso, ele Me procura para orientá-lo.
REPRIMENDAEORIENTAÇÃODO SENHOR
Digo Eu: “Não te dei Bórem como exemplo? Por que és obrigado a falar e conversar à toa? Agora que te encontras em dificuldades, queres sair delas com honra; mas, isso não será tão fácil como pensas.
A chinesa está muito agitada em virtude de Minha Obra milagrosa e por tua conversa. Seu coração suspeita de Minha Presença e seu es- pírito desperta cada vez mais, e ainda incendiaste sua mente e coração através da explicação de teu entendimento a respeito do menor aceno de Lama. Já te havia dito que esses chineses nos dariam muito trabalho, mas não quiseste entendê-lo. Como provocaste essa situação antes do tempo, por causa de tua autopromoção, procura resolvê-la com a moça,
enquanto prepararei os restantes cem chineses. Uma vez encaminhados, farei o mesmo com Chanchah.”
Coçando-se atrás da orelha, Martim diz: “Ó meu Irmão, se puder agir segundo meu parecer — naturalmente sob Tua Influência oculta — chegarei a um acordo com ela. Estou satisfeito por ter conseguido um pouco mais de coragem, sem a qual certamente passaria dificuldades.”
Aduz Bórem: “Tem cuidado para que a coragem não venha a se evaporar. Pressinto a discussão e espero que não venhas a perder a bata- lha. A relação com os chineses, nos quais domina um espírito estoico, é de fato bastante delicada. A uma ideia tua, eles opõem cem. Chanchah não deixa de ser uma criatura de rara pureza, cheia de delicadeza orien- tal carregada de âmbar; todavia não deixa de ser chinesa na acepção da palavra. Sê precavido com cada palavra, do contrário terás dificuldades de te livrar dela com boas maneiras.”
Diz o bispo Martim: “Sim, agirei, mas como? De qualquer maneira farei uma tentativa de entrar num acordo com ela.”
CHANCHAHREPETEAQUESTÃODOGRANDE LAMA
Nessa altura, Chanchah bate no ombro de Martim e diz: “Então, servo de Lama, quanto tempo me fazes esperar por uma resposta certa e segura, pela qual anseio mais que minha alma anseia por cem vidas? Se tivesse mil corações e fosse a criatura mais bela debaixo dos raios do Sol — eles todos seriam teus e meus olhos não haveriam de se despren- der de ti caso me dissesses a verdade. Tenho apenas um coração que te amará tanto quanto mil corações, se fores um verdadeiro amigo e me mostrares o Grande Lama. Mas, ai de ti se te atreveres a enganar meu coração! De fato, amo aquele teu irmão com um sentimento incrível; mas essa paixão será tua se fores um amigo sincero.”
Diante dessas palavras, Martim está perplexo e fita a bela chinesa, totalmente petrificado, e começa a imaginar o que responder. Só depois de algum tempo ele diz: “Se não fosses tão bela e sedutora, já teria dito algo; mas, basta olhar tua figura, que me perco de admiração e amor por ti. Confesso não poder dizer algo racional até que meus olhos se
habituem à tua beleza. Podes falar e até ameaçar-me, pois minha pre- sença não há de te perturbar. Minha língua não consegue mover-se com inteligência, e serás obrigada a ter paciência comigo.”
Diz Chanchah: “Se esse é o motivo, explica-me como te foi pos- sível falar ordenadamente e apresentar-me um motivo sem base a fim de não seres obrigado a te expressar. O homem apaixonado fala como se estivesse embriagado, pois sua língua não tem raízes que tiram seus movimentos da fonte da sabedoria. Tua língua possui raízes cheias de umidade ativa. Justifica-te diante de meu coração, como homem e não qual palhaço.”
Martim se sente mais embaraçado e não descobre uma sílaba para responder à sua bela oponente. Então começa de fato a gaguejar palavras sem nexo e, à medida que prossegue nesse esforço, a chinesa arregala os belos olhos e sorri com piedade. Finalmente, ela diz: “Amigo, despertas minha compaixão; ou és uma raposa ladina ou um burro — um pior que o outro. Mas, sou levada a te considerar um burro e isto desculpa tua afirmação injuriosa de seres também um servo do Grande Lama. Se Ele usasse tais servos, tanto Ele quanto eles seriam dignos de lástima.
Anteriormente ouvi de ti palavras bastante sábias e acreditei que fosses algo superior, no que fui obrigada por teu chapéu vistoso e por teres chamado aquele sábio de irmão. Mas, agora estou bem informada. Não passas de um bom asno que aqui no Reino Celeste apenas vege- ta, por ter sido tolo demais na Terra para poder cometer um pecado. És uma alma de burro de boa índole, incapaz de prejudicar alguém, e como criação de Lama mereces todo o respeito. Impossível se exigir de ti mais do que Ele depositou em tua natureza. Hás de me perdoar por eu ter esperado de ti além daquilo que possuis, e com isto te dispenso da resposta exigida.
Pobrezinho de meu burro, como me arrependo de te ter angustia- do tanto! Tens a figura humana que todos os irracionais adquirem no Reino espiritual, por serem apenas criaturas encantadas, de categoria mais tola. Sê bonzinho, meu pobre burrinho, e não me tomes a mal.”
O bispo Martim está prestes a explodir e de bom grado passaria a mão na boca da chinesa. Mas, como se vê impedido de responder, ele se afasta dela, que todavia não o perde de vista.
INTERCÂMBIOINTERNOCOMO SENHOR
Bórem se aproxima dele e diz: “Meu caro, como te sentes, encora- jado ou desanimado?” Retruca ele: “Ora, era isso que me faltava! Nesses chineses parece existir algo da poesia asiática; aliás, é tudo que possuem de uma educação espiritual. Cafres, hotentotes, madagascarenses, aus- tralianos e neozelandeses comparados a tais ignorantes chineses devem ser verdadeiros platônicos e socráticos. Meu irmão, sabes qual o julga- mento dessa jovem de Pequim sobre minha pessoa? Considera-me um verdadeiro asno. Isso é forte demais!”
Aduz Bórem: “Realmente, é algo forte tomar-se um anfitrião celes- te por um burro verdadeiro. Não te preocupes. Desse modo conseguiste ao menos livrar-te da exigência dela, e isso deves agradecer apenas ao Senhor, que encaminhou essa questão para o bem de ambos. Sê calmo e aceita tudo com paciência; com o tempo, tudo se nivelará. Procura não te orgulhar de teu brilho, que passarás muito melhor, inclusive com ela.”
Concorda o bispo Martim: “Tens razão, pois percebo que não devo ser anfitrião onde o Senhor Se acomodou. Quanto à xingação por parte dessa chinesa, perdoei-lhe sua tolice. Mas, podes estar certo que no futuro não me preocuparei muito com ela.”
Diz Bórem: “Está bem, mas não fales muito alto, pois Chanchah te observa com olhos de lince. Nada de mal existe nela, apenas uma enorme vontade de penetrar nos mistérios de seu país, razão por que tudo empenha para chegar a uma conclusão a respeito do ponto prin- cipal de sua fé.
Assim como essa chinesa, costumam se portar todos aqueles em cujo país eram considerados os segredos mais absurdos. De um certo modo, não deixa de ser uma qualidade louvável. No entanto, é preciso tratar-se com eles com o máximo cuidado, como se age com os famin-
tos, que no início também não devem se atirar aos pratos repletos, mas convém alimentá-los aos poucos a fim de evitar qualquer dano físico.
É bem verdade que essas pessoas mantidas na pior ignorância quando encarnadas, agora venham a sentir fome e sede descomunais pela final revelação dos inúmeros segredos. Mas, todos esses segredos, pelos quais a fantasia e o dom poético forem excessivamente alimenta- dos, são de tal forma adornados com tais quadros e ideias a ponto de constituir quase que sua natureza total.
Se fôssemos apresentar-lhes a Luz mais pura, seriam totalmente aniquilados em virtude da dissolução de sua própria natureza psíquica. Por isso, é preciso agir-se como no reparo de uma velha casa, onde igualmente se é obrigado a efetuar os reparos em etapas, caso não se queira destruí-la totalmente com uma iniciativa mais forte. Uma casa destruída ainda poderia ser reconstruída da mesma forma; mas, tal não se dá com uma criatura, onde todas as suas partículas têm que continu- ar, do contrário ela deixaria de ser a mesma.
Espero que me tenhas compreendido. Tem cuidado e nada faças, especialmente com essa chinesa, senão aquilo que o Senhor informar a mim e a ti — e tudo correrá bem. Além disso, não deves fazer perguntas a Ele em voz alta diante dessa gente, mas apenas no coração, e a resposta surgirá dentro de ti.
Presta atenção, pois a chinesa vem se aproximando. Não precisas pensar no que dizer. Faze tua pergunta silenciosa ao Senhor, que te inspirará o que deves falar. Age como te disse, que tudo correrá bem. Mas, não te aborreças se Chanchah te cumprimentar mais algumas ve- zes como asno verdadeiro.”
OFRUTOABENÇOADODA HUMILHAÇÃO
Eis que o bispo Martim diz no seu íntimo: “Agradeço com todo o amor por me teres orientado tão claramente em assuntos tão importan- tes. Agora começo a compreender o que seja uma criatura que se pro- põe a agir e a falar intimamente. Concebo também o que um habitante da Lua me disse durante minha primeira permanência sob a Proteção
do Senhor, pois eu pretendia passar minha tolice como se fora uma sa- bedoria dos Céus. Meu irmão, concebo um novo conhecimento e vejo em tudo a realidade onde anteriormente via apenas fatos milagrosos e pertencentes a esse mundo. Agradeço também a Ti, meu Deus, Senhor e Pai, e nesse estado aguardo até mil chinesas, que serão tratadas da melhor maneira possível.”
Diz Bórem, também em silêncio: “Está certo. Mas, no início tens que te controlar muito, pois constitui um forte domínio sobre si mes- mo silenciar quando a língua tende a pular da boca; às vezes o Senhor não nos faculta a resposta imediata, como desejamos. Então, convém aguardar com amor e devoção até que Ele nos ajude.”
Diz o bispo Martim: “Ei-la que chega, certamente com uma legião de asnos. Mas, eu os suportarei, assim como o Espaço suporta o exér- cito infinito de mundos e sóis sem ao menos se cansar. Em Teu Nome, Senhor, podem vir as cruzes que couberem nas minhas costas, que as suportarei com amor e paciência.”
PACIFICAÇÃOENTREACHINESAE MARTIM
Chanchah se aproxima de Martim, sorri e diz com voz delicada e suave: “Caro amigo, calaste quando te apresentei minha suspeita acerca de tua natureza. Deduzo daí que essa minha suspeita te tenha ofendido muito. Se esse é o caso, perdoa-me depois de me teres punido segundo teu agrado e volta a ser meu amigo. Prometo-te que nunca mais hei de te inquirir sobre algo, muito menos te insultarei por palavras ou olhares. Crença e hábitos em meu país consideram pessoas de mente um pouco curta, como animais. Fiz tal descoberta em tua inteligência e te supus também um animal. Mas, agora me convenci que nem de longe
és o que julguei tolamente.
Imediatamente me arrependi de meu engano e queria cair a teus pés. Vendo que tratavas algo certamente muito importante com esse teu irmão, e não querendo importunar-te, esperei até que te separasses dele. Como tal acaba de acontecer, ajoelho-me diante de teus pés divinos,
pedindo um castigo justo e também o perdão de minha culpa.” Termi- nando, ela cai de fato aos pés de Martim.
Comovido com essa penitente tão graciosa, ele diz: “Por favor, levanta-te! Que ideia — eu castigar a ti, divina? Teria vontade de te devorar ou apertar-te em meu ser. Julgas ser eu um chinês insensível? Levanta depressa, pois dessa maneira não te posso olhar!”
Ela se levanta depressa e diz: “Meu amigo, em teu país devem exis- tir criaturas de índole superior às do grande reino onde eu nasci, pois lá não se consegue o perdão tão facilmente como aqui. Quando se in- sultou alguém, é preciso se atirar com o rosto no solo e implorar ao ofendido primeiro um castigo justo, e em casos graves até mesmo a morte, e só então se pede a remissão da culpa. Lá todos afirmam que uma ofensa só pode ser reparada por outra ofensa, física, à qual segue então o perdão no coração.
Essa é a situação entre nós. Não deves te admirar se encontrares em mim certos hábitos heterogêneos em relação aos costumes de teu país. Nossas leis são muito antigas e severas, e ai de quem se atrever a interpretá-las mais suavemente, pois trata-se das que o Próprio Lama transmitiu dos Céus ao primeiro casal humano. As leis daqui sendo tão suaves e amorosas, e eu não tendo mais relação com as de meu país, aceitarei as vossas. Que achas?”
ALEICELESTEDOAMORESEUEFEITO BENÉFICO
Diz o bispo Martim: “Acho que tens plena razão. Apenas tenho que confessar que nós, cidadãos dos Céus, não temos leis, pois vivemos uma existência totalmente livre em Deus, isto é, vivemos eternamente pelo amor. O amor liberta tudo e desconhece lei. Entendes?”
Diz Chanchah: “Sim e estou sumamente satisfeita por isto. Se o amor, mesmo oculto, já traz tamanha felicidade ao coração, muito mais felizes devem ser os que vivem exclusivamente sob o seu cetro. Onde o amor é lei, todas as criaturas sujeitas a ele devem se encontrar na maior bem-aventurança.
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De que adianta ao homem todo o brilho do Sol, caso lhe falte o seu calor? De que servem ouro e pedras preciosas, se nos seus donos só pulsam corações frios? Acabaste de me dizer algo santificado e começo a sentir o que teu amigo tão estimado queria dizer com as palavras: Teu amor para Comigo há de te revelar tudo!
Eu vos amo com todo ardor do Sol a pino e especialmente aquele que não me transmitiu o seu nome. Tens que me perdoar, pois amo muito mais a ele que a ti. Não sei porque, pois não é mais bonito que tu e teu irmão Bórem, tampouco usa roupa mais bonita; mas existe algo indescritivelmente atraente em seus olhos azuis e sua boca tem um ricto estranhamente divino, a ponto de se cair na tentação de considerar-se sua figura tão singela a fiel cópia do Lama.
Se pergunto ao meu coração em chama, ele responde: ‘Oh Chan- chah, para mim é ele o Grande e Santo Lama! Quem mais poderia falar tão divinamente, criar com uma simples palavra uma figueira cheia de frutos e em seguida presenteá-la a Chanchah como prova de Seu Amor? Quem mais teria tais olhos e uma boca tão linda, senão meu Lama do coração?’
Assim fala meu coração e não meu intelecto, muito embora este também queira seguir a mais bela voz do coração, caso não temesse cair em pecado. O intelecto não se torna um juiz demasiado severo e adora junto com o coração o que pertence a este. O mesmo ocorre comigo. Meu coração adora aquele Personagem Maravilhoso e a razão faria o mesmo, caso não estivesse rodeada de outras razões. Todavia, seguirei apenas a razão do coração, e talvez chegue mais depressa à meta segura. Se aqui não existe outra lei senão a do amor, o intelecto me levará ao deserto. Que me dizes?”
Responde Martim: “Por ora, muito pouco. Segue teu coração, que não entrarás por atalhos. Com o tempo, tua razão receberá igualmente um justo conhecimento. É só o que posso dizer a todas as tuas belíssi- mas palavras”
Diz Chanchah: “Caro amigo, prezo-te muito e não posso te fazer mais perguntas porque tomei a decisão de não te perturbar com uma questão mal formulada. Ainda assim, terás que levar em conta a seguinte observação: Percebo de tuas palavras e mímica que ficas estranhamente embaraçado quando te abordo com relação àquele teu amigo e irmão celeste. Por acaso tens ciúme porque meu coração o prefere a ti? Talvez te aborreças por ser ele muito superior a ti? Quiçá te perturba sua beleza divina? Não te agradam seus olhos e sua boca, que realmente superam os teus, muito embora tua aparência seja mais brilhante que a dele?
Tais perguntas são para mim de suma importância e anseio pela resposta como um viandante no deserto ávido por um gole d’água. Se sentires qualquer simpatia por mim, não hesites em me responder; caso contrário, me afastarei de ti e jamais hei de te fazer perguntas.”
O bispo Martim queda perplexo. Externamente dá a impressão de meditar a respeito de uma resposta gentil. No íntimo, ele aguarda teme- roso que Eu lhe inspire uma boa resposta. Todavia, deixo que se aflija um pouco, por motivos muito sábios. Diante disto, a adorável Chan- chah começa a fitá-lo dos pés à cabeça, o que o perturba ainda mais.
Finalmente, ela perde a paciência e diz: “Meu amigo, percebo que não podes, não queres ou não deves responder. Caso não possas, estás desculpado, pois é irrisório exigir-se mais de alguém do que possa dar. Se não deves responder és também desculpável, pois é claro que aqui se encontra alguém a te prescrever estritamente segundo sua autoridade. Em tal caso, seria loucura minha exigir algo acima da lei, pois como chinesa sei perfeitamente respeitar as leis.
Mas, se não quiseres me dar resposta, caso o possas, és um homem ciumento e mau e tua roupagem brilhante é qual pele de uma gazela mansa na qual se oculta uma hiena. Neste caso, não mereces outra coisa senão o total desprezo de meu coração. — Responde-me ao menos uma das questões a fim de que eu saiba me portar em tua casa como hóspede. Fala a verdade!” O embaraço de Martim aumenta ainda mais, pois se disser: Não posso, não quero ou não devo, ele se expõe a outra
pergunta de quem lhe havia dado tal proibição. Por isto, Eu Mesmo assumo a responsabilidade dessas respostas.
PARÁBOLADOSACO AMARRADO
Quando Me aproximo de Chanchah e de seu companheiro, ela prontamente se queixa do bispo Martim, pois não sabe como interpre- tá-lo. Então digo: “Querida, perturbas Meu pobre irmão, sem conside- rares as ordens secretas que facilmente amarram sua língua em teu pró- prio benefício. Deves, daqui por diante, tratá-lo mais pacientemente; do contrário, lhe causarás os maiores embaraços e sofrimento para seu coração. Quanto às primeiras perguntas, nada daquilo que supunhas nele é real, menos certa perturbação quando começas a abordar Minha Pessoa; mas, seu embaraço tem outro motivo, portanto não pôde res- ponder. Eis o motivo pelo qual também não pôde responder às últimas questões, pois não exigiste explicação para seu embaraço, e também não podias fazê-lo por desconhecê-lo.
Se ele tivesse respondido afirmativa ou negativamente, teria menti- do, fato totalmente impossível aqui no Reino do Céu. Por isso, o amigo Martim, que muito te ama, estava disposto a aceitar tudo de ti, mas nunca pregar-te uma mentira. Não foi isto louvável da parte dele?”
Diz Chanchah, também embaraçada: “Ah, se a situação é essa, arrependo-me muito de ser motivo de sua forte dor no coração. De qualquer forma, não me cabe a culpa total, pois sou uma estranha nes- ta casa; mas, com tua orientação, terei mais cuidado. Dize-me apenas o seguinte: Por que não se pode obter uma resposta a uma simples pergunta?”
Digo Eu: “Muito simples. Supõe que Me desses um saco bem amarrado, com o seguinte pedido: — Amigo, desamarra-o e dá-me mil pedras das mais brilhantes — Então pergunto se no saco se encon- tram aquelas pedras, e tu responderes: Não, não tenho certeza, mas o presumo.
Imagina se Eu soubesse que nele não se encontram pedras precio- sas, e sim, detritos endurecidos, entretanto cedesse ao teu pedido. O
que julgarias de Mim ao perceberes que apenas pretendia envergonhar-
-te? Não dirias: — Amigo, ciente do conteúdo, por que abriste o saco e não me disseste antes a verdade?
O mesmo ocorre aqui com uma pergunta indiscreta. É igualmente um saco bem amarrado e Martim deve abri-lo e te dar o que desejas. Se porventura não contém o que esperas — que fará ele? Convém abri-lo ou não? Deveria envergonhar a quem ama tão profundamente e lançar o seu coração na maior atividade? Que te parece?”
Diz ela: “Quando tu, querido amigo, te expressas, tudo me pa- rece sumamente claro e reconheço a verdade em tudo. Mas, Martim falando, tudo se me torna confuso e incompreensível, de sorte que sou obrigada a insistir cada vez mais com perguntas que ele nem ao menos responde. Se ao menos tivesse demonstrado a maneira pela qual se deve perguntar e se de fato é permitido tal coisa! Assim sendo, tu e ele deveis me perdoar diante de meu excesso de curiosidade.
Meu amigo, tudo aqui é tão estranho, só se percebendo milagres sobre milagres! Quem não procuraria os mais entendidos diante de tais fenômenos a fim de se orientar a respeito? Quem é o criador disto tudo? Se aqui é o Céu — onde está Lama que o fundou? Seriam tais perguntas perdoáveis em tais circunstâncias?”
AEDUCAÇÃOPRUDENTEDAS CRIANÇAS
Digo Eu: “De fato, cara Chanchah, estas e milhões de perguntas são desculpáveis; mas, como sabes, tanto na Terra quanto aqui, tudo tem seu tempo. Na Terra, as crianças são mais gulosas e curiosas; estão constantemente famintas e querem saber de tudo em suas bases mais profundas, fazendo perguntas sem fim. Julgas ser aconselhável sobrecar- regar os estômagos dos pequeninos com coisas que seu paladar sensível sente enorme desejo e satisfazer sua curiosidade em todos os assuntos?
Os genitores prudentes aplicam aos seus filhos um freio seguro e os conduzem natural e moralmente numa trilha certa à meta maravilhosa da evolução positiva. Pais ignorantes que satisfazem todos os desejos fazem de seus filhos macacos em vez de homens. Seu físico exuberante
pela superalimentação se torna cheio de sensualismo, preguiçoso e fi- nalmente desinteressado em tudo que seja elevado, bom e verdadeiro, conforme se observa em teu país em milhares de exemplos.
O mesmo ocorre aqui. De modo algum seria benéfico para a cria- tura conhecer e saborear tudo de pronto, e sim, aos poucos, segundo a capacidade de assimilação individual. Guiados deste modo, os filhos mais novos se capacitam à aceitação do mais sublime.
Assim também tu serás educada com todos que aqui vês, por nós três. Acomoda-te com paciência e em breve tu mesma poderás respon- der todas as tuas perguntas com facilidade. Estás satisfeita?”
AINTERESSANTEHISTÓRIADAFLORDAMANHÃEDAFLORDA NOITE
A essa Minha explicação, Martim expressa grande alegria e Me agradece no coração. Mas Chanchah obtempera: “Tens razão plena em cada palavra pronunciada; no entanto, não tenho culpa de ser um espírito tão sedento de conhecimento. Ainda assim, dominarei meu coração e serei qual flor do campo que desabrocha pela luz e o calor do Sol de Lama, e alimentada pelas gotas de orvalho do Seu Amor matinal finalmente também preenche seus pistilos com ricas sementes da vida.
O grande Lama deve ser infinitamente Bom, Sábio e Poderoso por ter criado tudo com tanto Amor, Sabedoria e Poder. Se ao menos usu- fruir uma só vez a felicidade infinita de vê-Lo de longe por alguns mo- mentos! Seria eu um dia merecedora de tamanha felicidade? Ainda que acontecesse uma só vez — não vem ao caso quando — me acomodarei por eternidades afora e farei tudo que vós me direis. Desejo apenas essa esperança!”
Digo Eu: “Criança adorável! Vejo que teu Lama é teu grande que- rido, e isto é muito louvável. Todavia, afirmas e Eu também o percebo em teus olhos e palavras, que Me amas sobremaneira. Desejava saber a Quem de nós amas com mais intensidade.”
Chanchah encabula e baixa os olhos. Mas, seu coração se incendeia cada vez mais por Mim, razão por que nada consegue dizer, embora
fosse tão tagarela. Passado algum tempo, Eu lhe pergunto de novo e ela responde algo angustiada: “Quando na Terra me encontrava ao lado de minha mãe, eu lhe perguntava como se deveria agir para amar o Santo Lama de todo coração. E ela respondia: ‘Filha, planta em teu jardim duas flores iguais, uma ao Sul — oferecida ao Lama — e a outra ao Norte, ofertada aos homens. Cuida de ambas sem diferença e observa como crescem e se desenvolvem. Se a flor da noite progredir melhor, será prova que dás preferência ao mundo. Se, porém, notares o contrá- rio, teu amor para com Lama será mais forte.’
Fiz imediatamente o que me aconselhou minha sábia mãe. Temen- do que a flor de Lama se atrasasse diante da flor mundana, eu a cuidava secretamente duas vezes mais que a outra. Não obstante meu grande zelo, ela não se desenvolvia igual à do mundo.
Contei o fato à minha mãe, que me acalmou dizendo: ‘Com isto, filha, o Lama queria te demonstrar que só podes amá-Lo — que vive na Luz impérvia — dedicando teu amor aos semelhantes à medida que tu te amas. Se a pessoa não ama aos que vê, como poderá amar o Lama a Quem não vê?’ Em seguida, comecei a regar a flor da noite mais segui- damente e não demorou que a flor da manhã começou a vencer a outra.
O mesmo faço eu. És minha flor da noite, e meu coração para o Lama é a flor da manhã. Vou te regar com toda força porque em ti descobri o espírito mais perfeito e meu coração viceja bastante forte — infelizmente não com Lama, mas contigo! Tu te tornaste um verdadei- ro Lama de meu coração. Mas, o grande Lama saberá o que dizer em tempo justo. Além disto, confesso que minha consciência de nada me acusa. Que dizes a isso?”
Respondo: “Minha querida Chanchah, fui obrigado a esperar um pouco por essa resposta tão feliz para o Meu Coração. Por isso, também terás que aguardar um pouco por uma resposta bela e boa que receberás dentro em breve.”
PREPAROSPARAACEIA DIVINA
Entrementes, Me dirijo para Martim e Bórem, dizendo em surdi- na: “Amigos, agora tendes ajudantes de sobra; portanto, levai a grande mesa ao centro da sala e arrumai-a com pão e vinho, e bastante figos maduros desta figueira. Após Eu ter trocado algumas palavras com Mi- nha querida Chanchah, iremos todos tomar um alimento fortificador.” Martim chama imediatamente os padres purificados de todas as seitas mencionadas anteriormente e também as freiras incumbidas de servirem o pão e o vinho, e as freiras do “Sagrado Coração de Jesus” têm a tarefa de colocar os frutos, enquanto os frades colocam a mesa bem no
centro, segundo as determinações dos dois amigos.
Os cem chineses observam tudo com muita atenção, pois ignoram a razão dos preparos, especialmente a súbita aparição da grande mesa da qual anteriormente não havia um simples vestígio. O fenômeno da figueira não os preocupa tanto, pois já se haviam acostumado através da prolongada observação da mesma.
Os genitores das freiras do “Sagrado Coração de Jesus” também estão perplexos com a grande atividade na sala e se sentem algo teme- rosos pelo fato de não entenderem sua razão, pois a grande aglomera- ção do povo em torno da mesa os impede de verificar sua arrumação. Depois de a mesa posta, os serventes voltam aos seus lugares, enquanto Martim e Bórem, em companhia da freira que anteriormente se havia atirado como sapo ao mar, se aproximam de Mim avisando que tudo está pronto.
Então Eu digo: “Ide igualmente até a cerca do jardim para verificar se não existe alguém desejoso de participar de nossa refeição. Gela (a freira) ficará Comigo para ouvir o que tenho a dizer para Minha queri- da Chanchah.” Os amigos se dirigem ao jardim e se admiram sobrema- neira ao encontrá-lo numa exuberância celeste e numa extensão que os estonteia, levando Martim a exclamar:
“Segundo vejo, teremos que caminhar muito até terminarmos com a busca de alguns interessados. Esse jardim pode ser comparado, em extensão, com o maior reinado na Terra. Vê só essas aleias maravilhosas!
Não vejo o fim delas e numa marcha comum nossa tarefa será inter- minável. Mas, não importa, a Vontade do Senhor é sempre a máxima alegria de nosso coração. Agora percebo igualmente montanhas de con- siderável altitude, principalmente em direção ao Norte. Isto nunca foi visto na Terra! Estaria tudo isto dentro da cerca de nosso jardim?”
Responde Bórem: “Claro, pois o jardim se dilata de acordo com nosso amor para com o Senhor e os irmãos. Em relação a essa exten- são celeste do Jardim de nosso Senhor, dispomos igualmente de uma movimentação celeste, isto é, tríplice. Primeiro, a natural, com os pés, como na Terra. Segundo, uma flutuante, psíquica, com a velocidade dos ventos. E finalmente a terceira, súbita, espiritual, semelhante ao raio e ao pensamento.
Essa última deve ser usada somente em extrema necessidade; por isto, usaremos a segunda, que solucionará nosso problema. O meio para tanto é nossa vontade firme, e é suficiente querermos em Nome do Senhor, que nos encontraremos flutuando nessa atmosfera celeste. Queira, portanto, e assim será!” Martim segue o conselho do amigo e prontamente ambos se movimentam em direção ao Sul, numa ale- gria imensa.
OSDOISVEGETAISHUMANOSNOJARDIMDOAMORDE DEUS
Entrementes Me dirijo para Chanchah e Gela: “Minha querida Chanchah, há pouco externaste uma explicação maravilhosa surgida do fundo de teu coração, e Eu prometi fornecer-te outra mais sublime. Não deves aguardar um grande discurso, pois tenho por hábito expres- sar muito com poucas palavras.
Apresentaste um quadro com duas flores, uma da manhã e outra da noite. Em compensação te darei outro símbolo. Assim como tu, o Grande e Bom Lama plantou no imenso jardim de Seu Amor duas cria- turas, uma em direção ao Sul para o Seu Coração, e mais tarde a outra para Sua Sabedoria, em direção ao Norte. A primeira Ele alimentou com toda Sua Projeção Divina a fim de se tornar tão maravilhosa quan-
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to Ele Mesmo, dando-Lhe a máxima alegria. Acontece que a primeira criatura se tornou arrogante, não querendo progredir e finalmente afas- tou-se de Lama, desprezando-O, muito embora Este sempre a quisesse receber de Braços abertos.
Como portanto esse primeiro homem não queria evoluir, o Gran- de Lama colocou a segunda criatura em direção ao Norte, isto é, no mundo, e tratou-a igualmente com todo cuidado. Mas, também ela se desviou do caminho. Então Lama Se arrependeu de ter criado o ho- mem e queria destruir tal obra, como um oleiro quebra um vasilhame mal feito. Lama em seguida inquiriu ao Seu Amor o que fazer, e o Amor apresentou-Se no lugar dos perdidos e Ele Mesmo Se tornou Homem a fim de dar um Exemplo Justo para o homem. Mas as criaturas maldo- sas prenderam e mataram o Homem-Deus, conquanto não pudessem matar a Divindade dentro Dele. Foram poucos os que O reconheceram e aceitaram Sua Doutrina em seu coração. Inúmeros não Lhe deram crédito e não aceitaram Seus Ensinamentos, com os quais se teriam tornado Seus filhos, semelhantes ao seu Pai Eterno.
O que deve o Lama fazer com tais criaturas? Deve suportá-las e mantê-las? O Amor Dele é tão imenso que morreria mil vezes caso fos- se admissível e útil. Ainda assim elas não querem amá-Lo mais que ao mundo tolo, pois O esquecem totalmente a fim de poderem se prender com menos escrúpulos à matéria. Que merecem tais criaturas? Deve o Lama suportar por mais tempo essa teimosia, ou convém matá-las?”
Responde Chanchah: “Ó amigo, meu amor, tais plantas são per- versas e merecem grande punição. Mas, se o grande Lama é tão Bom, porventura seria capaz de ceifá-las e entregá-las ao fogo, conforme ame- açou aos patriarcas? Segundo me parece, o Infinito é bastante grande para poder guardar tal joio. Mas, nunca eu haveria de destruir algo criado por Ele. Não achas?”
Digo Eu: “Sim, Minha adorada, sou de igual opinião e também não o farei. Mas, aguarda um pouco, pois os dois amigos trarão hós- pedes estranhos e desejo observar o que lhes dirás. Controla-te, pois assistirás algo sumamente estranho.”
Não demora e a porta se abre para dar entrada a Martim e Bó- rem puxando um monstro horrendo, preso numa corrente possante, e acompanhado de uma quantidade de outros menores que nada ficam a dever em sua figura abjeta. Sumamente assustadas, as moças recuam e Chanchah exclama: “Ó Lama, em Teu Santo Nome! Que Te fizemos nós, coitadas, permitindo que sejamos aniquiladas por esse pavoroso Ahriman? Se Te for possível, salva-nos e a Ti mesmo!”
Digo Eu: “Chanchah, nada temas. Esses monstros estão em nosso poder e não possuem força alguma. Prova isto que, não obstante sua imensa feiura, são dominados pelos dois amigos. Acompanhai-Me e ouvi como essas feras começam a praguejar com Minha Aproximação e se revoltarão. Isto não vos impressione, pois somente Eu sou capaz de aniquilar inúmeros monstros semelhantes com um Olhar apenas, assim como pude fazer surgir essa figueira num instante. Vinde Comigo, pois ao Meu lado estareis eternamente seguras. Não existe poder algum que se oponha a Mim!”
Assim, vou ao encontro de Martim e Bórem por terem tanta difi- culdade de dominar o monstro, e o primeiro diz: “Senhor! Que hóspe- des terríveis! Combinam com essa casa, como ovo e espeto. Infelizmen- te, foi só isto que encontramos, mas confesso ter impressão de se tratar do próprio Satanás com seus asseclas!”
Digo Eu: “Calma, já previ isto para vosso ensinamento mais pro- fundo e vossa paz. Quem quer conhecer o Máximo, não pode continu- ar na ignorância do mínimo. Aproximai de Mim o dragão.” Ambos se esforçam muito, puxando pela corrente, mas sem efeito. Por isto, Mar- tim diz: “Senhor, é impossível arrastá-lo por um milímetro apenas!”
Digo Eu: “Então prendei as correntes nas colunas da sala e deixe- mos que estrebuche. Entrementes, nos fortaleceremos com a refeição, para enfrentarmos essa luta.”
Diz Martim: “É de fato um conforto esses terríveis hóspedes esta- rem presos no fundo da sala, do contrário nosso apetite seria prejudica-
do. O ar também não rescende a rosas do paraíso e lembra mais o cheiro de piche e enxofre.”
Digo Eu: “Bem, agora vamos e convida todos à refeição preparada por Mim e que deve confortar-vos para a Vida Eterna do espírito.” To- dos se levantam ao convite de Martim e se dirigem com calma à mesa, onde sou olhado com grande atenção, pois Me tomam por um Enviado de Deus a lhes transmitir coisas muito importantes.
Eu apenas digo: “Filhos, servi-vos à vontade, pois de há muito foi abençoado para todos os que amam a Deus acima de tudo e seus irmãos como a si mesmos.”
Todos exclamam loas em Meu Nome e se servem de pão e vinho; os chineses, de figos. Alguns provam o pão que lhes agrada mais que os figos. Chanchah e Gela, ao Meu lado não se decidem em sua escolha; por isso digo: “Comei o que mais vos agrada, pois tudo será em bene- fício da Vida Eterna” Gela então observa: “Julgava que o Pão Celeste tivesse o mesmo sabor que a hóstia.”
Digo Eu: “Gela, agora te encontras no Céu, à Mesa do Senhor, e não na Terra, à mesa de Babel. Por isso, considera o que é do Céu e não de Babel, cujo senhor se encontra lá no fundo.” Ela se assusta, tendo a impressão de que Eu Mesmo sou o Senhor.
Eu a conforto dizendo: “Mesmo que seja conforme supões, cala-te, pensando: Deus, o Senhor, não é inatingível, mas um Pai Benigno e Amoroso de Seus filhos, qual Irmão mais simples de todos. Entendes?”
Responde Gela: “Oh, meu Deus — meu Pai!” Chanchah o percebe e pergunta: “A quem dirigias essas palavras tão profundas? Por acaso Se encontra o Lama entre nós? Fala, pois quero ir ao Seu encontro, com respeito e amor.” Eu a acalmo, prometendo que também ela haveria de encontrar em breve o Lama.
“QUEMQUISERSEROPRIMEIRO,SEJASERVODE TODOS”
Outras pessoas do grupo começam também a se admirar da atitu- de de Gela e de Chanchah, e indagam entre si quem sou, pois, muito embora não fosse o anfitrião, tomo essa atitude, sendo Martim e Bórem
apenas Meus servos. Notando essa inquietação, Martim se aproxima e diz: “Amigos, esquecestes as Palavras do Senhor: Quem entre vós quiser ser o primeiro, que seja o mais simples e servo de todos!? Julgastes que aqui no Céu reina outra ordem senão a que o Próprio Senhor demons- trou, ensinou e revelou na Terra? Comei e bebei à vontade e agradecei a Jesus, o Senhor. Justamente aqui é o lugar em que a ordem determi- nada por Ele na Terra é vivamente cumprida. Deixai de fazer tantas perguntas!”
Respondem os outros: “Podias ter poupado teu ensinamento, pois também sabemos que nos é permitido comer à vontade. Estamos con- victos que no Reino de Deus cada espírito tem seu estômago, portanto sabe o quanto pode absorver.
Além disto, estamos cientes de que no Reino de Deus o servo de todos é o maior, pois na expressão servo de todos entendemos também o mais sublime, quer dizer, no amor, na sabedoria e na força. Onde exis- te falta de amor há também pouca vontade de ação; assim, concluímos que o servo de todos deve ser o mais forte e mais poderoso. Porventura te julgas de fato um servo humilde de todos? Se assim for, és digno de piedade, pois nosso conceito é o seguinte: Tal posição de servo único só pode ser efetuada pelo Senhor. Que achas a respeito?”
Martim quase cai fulminado e não sabe o que dizer diante dos opo- nentes. Um deles o percebe e volta à carga: “Irmão, volta ao teu posto anterior e segue estritamente Aquele Que nos parece o verdadeiro Servo de todos. Com Ele poderás alcançar muito; mas, sem Ele, nada!”
Martim corre para junto de Mim e se queixa diante da raspadeira aplicada e que infelizmente os outros estavam com a razão. Então digo: “Observa teu amigo Bórem. Jamais toma uma iniciativa sem Minha Ordem; por isto não se choca com ninguém. É de teu feitio quereres colocar-te em evidência, e então dá-se um atrito. Aqui os hóspedes de- vem ser tratados de outra forma; do contrário, pode suceder que se en- contre alguém que se pretendia doutrinar, e no entanto não merecemos desatar-lhe as sandálias. Quando te tornarás prudente?”
Diz Martim: “Senhor, acredito que em mim se encontrem reuni- dos todos os burros; do contrário, já deveria ser mais compreensivo em
Teu Nome.” Digo Eu: “Bem, tudo entrará nos eixos. Presta atenção ao que EU quero, que nunca entrarás em choque com ninguém. Agora sa- tisfaze-te com pão e vinho para te fortificares na tarefa de trazer aquele hóspede, com ajuda de Bórem.”
NATUREZAMUTÁVEL DE SATANÁS
Retruca Chanchah, perplexa: “Meu amor, por acaso os hóspedes suportarão a presença horrenda desse monstro? Vê como se empina e se enfurece, projetando chispas dos olhos! Quem teria coragem de fitá-lo?” Digo Eu: “Acalma-te. Esse hóspede pode tomar todas as formas, segundo suas necessidades. No entanto, arrancaremos sua brutalidade, ao menos por algum tempo. Não tenhas medo, que tudo correrá bem.” Diz ela: “Deposito em ti, caro amigo, como também em Lama,
a maior confiança. O mesmo não sucede com Martim, que sempre se atira em campo e, quando se faz necessária uma atitude positiva, recua como se não estivesse em condições de agir. Por isso, julgo que no caso do monstro será capaz de agir negativamente. Bórem, por sua vez, é cheio de sabedoria e força, e pode-se contar com ele.”
Digo Eu: “Querida, não estás totalmente errada; ainda assim, ele preenche sua função atual. Dentro da grande Ordem de Lama, devem existir igualmente criaturas que, sem muito pensar, se atiram aos pro- blemas. Com isto, estimulam outros a tomarem certas iniciativas, mui- tas vezes mais prudentes que elas mesmas. Os inteligentes nem sempre têm coragem de tomar quaisquer providências enquanto não consegui- rem enquadrar seus motivos em determinado assunto. Por isso, acalma-
-te por causa de Martim, pois terá sucesso se executar Minha Ordem estabelecida.”
Diz Chanchah: “Por certo. Meu coração aceita plenamente seres tu aqui o mais sábio; protesto apenas contra a negação de tua identidade. Há pouco afirmaste, quando perguntei pelo teu nome, que meu amor para contigo haveria de me revelar tudo. Entretanto, não consigo des- cobrir — muito menos de mim mesma — qual o teu nome e quem és. Por favor, como te chamas?”
Respondo: “Querida, o nome em si não tem valor se ainda não consegues descobrir o que se prende a ele. Se tivesses prestado atenção a tudo que digo, já terias feito a descoberta. Sê mais alerta ao que falo e à maneira como os outros se dirigem a Mim, e o que se apresenta à Mi- nha simples Palavra, que em breve Me conhecerás melhor. Agora prepa- ra-te, pois Martim e Bórem já receberam um aceno Meu para trazerem o monstro até aqui. Como vês, já estão soltando as correntes dele.”
Chanchah silencia; mas Gela se aproxima e lhe diz: “Se conhecesses como eu a Força e o Poder Infinitos desse Amigo, teu medo seria menor diante de mil monstros iguais a esse que frente a um mosquito.”
Assustada, Chanchah exclama: “O quê? Fala, fala-me dele, a quem tanto amo! Por acaso o conheces? Porventura meu pressentimento ocul- to se confirmará? Ó Lama, então serei a criatura mais feliz deste mun- do; mas também a mais desditosa do Infinito!
Sou grande pecadora diante de Lama, porque certa vez cometi uma traição a pretensos mensageiros Dele, que por isto perderam a vida. Se foram de fato enviados por Lama — ai de mim, caso se realize meu pressentimento. Apenas se foram traidores — o que não posso definir
— o Semblante do Altíssimo seria mais suportável. Fala, querida! Não, não fales, e deixa-me gozar essa doce incerteza.” Nesta altura, ela cai desfalecida a Meus Pés; mas, Eu a fortaleço e faço com que se levante.
RECONCILIAÇÃOENTREOJESUÍTACHORELE CHANCHAH
No mesmo instante se aproxima precisamente aquele jesuíta que fora traído por Chanchah, com mais alguns colegas, ajoelha-se diante de Mim e diz: “Senhor, Pai, só agora nosso coração Te reconheceu! Per- doa nossa longa cegueira que não permitiu que Te aceitássemos como és — tão Bom, Meigo e Benigno.”
Digo Eu: “Levanta-te e não faças alarde, pois ainda existem alguns que não Me devem conhecer totalmente em virtude de sua liberdade psíquica. Testemunhai o mal que aquele dragão vos fez e que está sendo arrastado por Martim e Bórem. Tu, Chorel, apresenta-te a Chanchah, que há tempos te denunciou ao Imperador na China e agora se acha
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junto de Mim, em virtude de seu imenso amor, e jamais será afastada de Minha Presença.”
Chorel obedece e se apresenta amavelmente diante de Chanchah, que o reconhece imediatamente e se assusta com seu suposto acusador. Mas, ele lhe pergunta: “Por que te assustas? Não fizeste o que tua cons- ciência mandava? Eu mesmo te ensinei que pecado é somente aquilo que a criatura comete contra a voz da consciência. A voz da consciência é a Voz de Deus ou de Lama. No princípio me consideraste muito quando viste em mim e meus colegas verdadeiros mensageiros de Deus. Quando, mais tarde, tua astúcia feminina descobriu em nós a alta trai- ção, conseguiste que te orientássemos sobre nossas intenções; portanto, foi teu dever, como chinesa, denunciar-nos e evitar uma tragédia para tua pátria. Se fomos terrivelmente punidos, não te cabe culpa alguma, porém a nós mesmos por termos transformado a finalidade santa de nossa missão em ultraje tão infame. Se eu me tivesse ao menos mantido fiel à meta de minha missão, tu te terias tornado uma das mais fervoro- sas cristãs, incluindo grande número de parentes. Ofuscados diante dos enormes tesouros de teu país, desistimos de nossa missão e perdemos tudo, até a própria vida.
Daí concluirás ser impossível levantarmos uma acusação contra ti, porquanto devíamos temer o contrário. Não há motivo de te assustares conosco, pois o inverso seria mais justo. Perdoa-nos para podermos nos aproximar Daquele cujo Nome jamais merecemos pronunciar.”
Sumamente comovida com a confissão de Chorel, Chanchah re- truca: “Nesses átrios não há mais culpabilidade; e caso houvesse uma, meu amor para com Lama haveria de apagá-la. Meu coração me dis- se claramente: teu amor para Lama é Ele Mesmo em ti! E esse Santo Amor desconhece culpa, mas vê somente irmãos queridos, ainda que caminhassem em enganos. Minha acusação contra vós é meu amor e respeito para sempre. Tendes algo a objetar?” Chorel e seus colegas se comovem e Chanchah chora com eles.
Virando-Me para ela, digo: “Flor maravilhosa de Meu Coração, deixa que te abrace, pois amor semelhante ao teu é muito raro nes- ta pureza. Estás muito feliz por Me teres conquistado. Mas, Eu sou
sumamente Feliz por ter encontrado numa pagã um amor que, com exceção de Madalena e Minha Mãe, não apresenta outro exemplo na Cristandade.
Chanchah, chegaste muito longe e ignoras a que ponto atingiu tua evolução. Dentro em breve serás levada a uma profundeza que nem podes imaginar. Teus olhos serão velados por pouco tempo para que sejas tanto mais feliz. Paciência, querida! — Agora, atenção de todos! O dragão está sendo arrastado para cá.”
DISCUSSÃOENTREMARTIME SATANÁS
A certa distância, Martim grita: “Senhor, ajuda-nos! Mal conse- guimos segurar o monstro!” Digo Eu: “Satanás, obedece a teu Senhor!” Vocifera ele: “Jamais, pois desconheço um soberano acima de mim!” Retruco: “Não querendo obedecer às Minhas Palavras Paternais, certa- mente não poderás reagir contra Minha Onipotência, o que já assististe por várias vezes! Por isso te chamo outra vez como Pai e Senhor: Vem e justifica-te!” Vocifera ele: “Não, não, não! Nunca hei de Te obedecer! Eu sou o senhor do Universo, e Tu és o que és, apenas por mim!” Pro- testo: “Satanás, não teimes contra Deus, teu Eterno Criador, do contrá- rio serás atingido por um julgamento eterno!” Grita Satanás: “Eu, Teu senhor, hei de enfrentar-Te e a Teu julgamento miserável por todo o sempre! Tira-me daqui, caso possas!”
Eis que Eu Me aposso dele com Minha Vontade e o atiro com seu séquito aos Meus Pés, onde ficam como mortos. Prontamente, Martim pergunta por que o dragão não reagiu. Respondo: “Deixa-o, até que volte a si; então veremos o que fará.”
Diz Martim: “Gostaria que minha língua tivesse plena liberdade para atirar algumas verdades a essa criatura sumamente tola. Não sinto o menor temor diante de sua feia figura, que me leva apenas a rir.”
Digo Eu: “Se tens tamanha vontade de lutar contra esse Meu ini- migo mortal, tenta tua sorte, mas cuida de não levares a pior. Para tanto ele terá a seu dispor apenas o uso da língua, pois se Eu o libertasse to- talmente, haveria de brincar contigo como um leão faz a um mosquito.
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Sem Mim, a Criação total não resistiria diante da força de que ainda dispõe. Podes começar a disputa, para veres se consegues dominá-lo.”
Cheio de coragem, Martim se posta diante do dragão e diz ironi- camente: “Animal mais ignorante de todo o Universo! Que pretendes alcançar com tua ridícula teimosia contra Deus? Algumas eternidades não foram suficientes para te demonstrar que és mais burro que um asno? Responde, se tiveres algo a responder!”
Retruca o dragão: “Petulante! Um leão não é caçador de mosqui- tos, e eu, um espírito original, sou por demais benigno, nesta minha grande miséria, para tratar com um espírito nômade. Perdoo-te, porque na Terra foste bom operário para o meu reinado.”
Mal se contendo de revolta diante desse menosprezo à sua pessoa, Martim retruca: “Miserável caluniador, como te atreves a humilhar um cidadão do Céu na Presença de Deus? Não te lembras que consta: Ai de quem atacar um ungido Meu?! Julgas que o Senhor não vingará esse ultraje, miserável?!”
Responde ele: “Eu, a quem sempre classificaste de príncipe da men- tira, enquanto na Terra trabalhavas por minha conta, apenas retruquei tua ofensa, e já reages como cidadão celeste de Deus, advertindo-me de não tocar tua cabeça ungida, sob ameaça de vingança divina.
Onde foste buscar o direito de me atacar desse modo? Por acaso não sou uma criatura de Deus como tu, com a diferença de ser eu uma parte infinita — enquanto tu és uma simples poeira da minha poeira, que Deus apanhou da nulidade total e transformou em um miniespí- rito humano?
Se alimentas algum respeito por Deus, deves respeitar tudo que vem Dele e não apenas tua cabeça ungida, que pareces considerar mais que o Senhor. Terias, por acaso, medido as Profundezas Infinitas da Di- vindade, a ponto de poderes perguntar: Por que és como não deves ser? Poderias provar-me eu não ser como deva, segundo os motivos in- sondáveis da Criação, para que tu fosses um pouco o que és? Eu sou a matéria de toda a matéria; portanto, a base, o polo contrário, fixado, pelo qual toda vida e existência específica são condicionadas para se manifestarem no Infinito. Com essa tua cabeça ungida poderás con-
cluir ser eu necessário dentro da grande Ordem de Deus e que Ele, com minha forma original, não determinou uma tolice, para base de todo ser e vida. Como é possível não reconheceres que cometes um ultraje a Deus Mesmo ao criticar as Obras Divinas?
Fica descansado. Hão de passar muitas eternidades até que pos- sas assimilar a milionésima parte de um átomo das relações infinitas e eternas entre mim e Deus. Aliás, não te parece estranho, como cidadão de paz ungido dos Céus de Deus, aprenderes de mim — Satanás — a meiguice? Se algo tiveres a dizer, fala como sábio e não qual moleque de rua! Considera que te encontras diante de Deus e de Seu Espírito Original, no qual apenas sua figura e sua teimosia incompreensível te causam espécie!”
Martim queda perplexo, olha para Mim, depois fita o dragão, e finalmente Me pergunta em surdina: “Senhor, que vem a ser isto? Que responderei ao dragão? Segundo me parece, ele tem razão, embora eu não o compreenda. Mas, pensar que o demônio possa ter razão — isto é forte demais!”
Digo Eu: “Foi tua própria vontade de entrar numa contenda com ele; então prossegue, pois não te podes deixar vencer pelo diabo. Con- tinua tua discussão e contesta-o em suas palavras:” Diz Martim: “Que bela contestação! Ai, ai, ai! Eu — e ele?”
MARTIMÉTENTADOPELAFIGURASEDUTORADE SATÃ
Passado algum tempo, Martim se vira de novo para o dragão e diz: “Incorrigível destruidor da vida e inclemente matador de todas as pobres almas: falas como sábio; no entanto, não é tua vontade a se expressar, mas tua fraqueza profunda, a que estás sendo levado pela Onipotência do Senhor. Se estivesses livre, falarias de modo diferente.
Bem sei que surgiste por Deus como o primeiro espírito cheio de luz e clareza. Mas, também sei que Ele não te criou para tua queda, na qual persistes há eternidades, pois deverias ressurgir da vida mais livre e bem-aventurada Por que não te encontras na situação em que deverias estar, segundo a Vontade de Deus? Por que continuas sendo Seu mais
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forte contraste? Por que insistes em permanecer no pior sofrimento, em vez de voltar ao Senhor, teu Deus e Pai, e assim voltarias qual filho per- dido, desfrutando o Eterno Amor Paternal em toda liberdade e máxima perfeição?”
Diz o dragão: “Essas tuas perguntas são bem mais razoáveis e apre- sentam problemas merecedores de resposta. Antes de responder a al- guém, costumo primeiro examinar o indagador, para saber se realmente está em condições de assimilar minhas palavras. Por isso, pedirei ao Senhor — caso Ele queira que te responda — dar-me por algum tempo plena liberdade, sob garantia de que eu não venha prejudicar a ti ou a algum outro. Se passares por minha prova, responderei a todas as perguntas; caso contrário, testemunharás não estares amadurecido para uma sabedoria demasiadamente profunda. Aliás, te examinarei somen- te se insistires que responda às tuas perguntas. Decide-te!”
Martim se dirige a Mim, perguntando o que deve fazer, e Eu lhe digo: “Quem começa um trabalho terá que completá-lo; portanto, te- rás que fazer o que teu oponente exigiu. Mas, sê firme! Este espírito é sumamente astuto e seus testes são ciladas muito sutis.” Em seguida Me viro para o dragão e digo: “Estás livres por alguns minutos; não abuses desta Graça!” No mesmo instante desaparece a terrível couraça e de sua poeira se ergue uma figura feminina tão bela que faria retroceder todas as belezas do Sol: a suavidade das formas, a nobreza de seus membros, a pele tão delicada e alva que não encontraria outro exemplo no Espaço Infinito. E neste corpo belíssimo se encontra uma cabeça cuja beleza majestosa não permite comparação.
Quando Martim vê essa figura belíssima diante de si, a lhe dizer com olhar muito doce e voz maviosa: “Meu caro, se quiseres respon- derei tuas perguntas; mas, antes, quero que me digas se és capaz de me amar, caso eu te ame mais que minha vida. Poderias amar-me e, com tal amor, salvar-me de meu martírio infinito, que bem conheces? Fala, Martim, fala!” — ele fica todo embevecido. Os imensos atrativos dessa criatura o impressionam de tal maneira que chega a sentir febre. Por ora não consegue formular palavras e balbucia sons inarticulados, arre- galando os olhos e abrindo a boca à medida que seu amor para com ela
se torna insuportável. Após longo tempo de perturbação, ele grita com todas as suas forças: “Céus, quem poderia te ver e não te amar? Amo-te indizivelmente! Se és infeliz, se sofres — quem poderia estar satisfeito após te ver? Se não me for possível salvar-te, prefiro sofrer contigo eter- namente do que ser um bem-aventurado de todos os Céus, sem ti. Da- ria mil vidas por um átimo de tua natureza! Fala, criatura maravilhosa, o que devo fazer para te salvar... e conquistar-te eternamente?”
Diz o dragão metamorfoseado: “Ó maravilhoso Martim, se me amas como dizes, dá-me um beijo bem gostoso, que me salvará para sempre, tornando-me tua companheira mais doce dessa tua vida eter- na.” Totalmente embevecido, Martim exclama: “Não receberás só um, mas trilhões de beijos!”
No desejo de satisfazer seu ímpeto amoroso, ele dá um salto; mas para desajeitado quando aquela criatura o repele com desprezo, dizen- do: “Para trás, miserável impudico; não passaste no teste e não mereces resposta minha. Como pudeste esquecer de Deus e atirar-te em meus braços — a mim, inimigo de toda vida, que não se compara com a tua! Criatura fraca, criatura abjeta!” — Martim desfalece e o dragão aparece de novo em sua figura repelente.
MARTIMÉCONFORTADOPOR BÓREM
Bórem se aproxima de Martim, ajuda-o a se erguer e diz: “Irmão, como vês, és por demais precipitado. É preferível entregares as ações ao Senhor, enquanto só faremos o que Ele nos ordena. Deste modo, seremos bem sucedidos.
Para se lutar contra uma entidade igual a esta, é preciso muito mais do que podemos imaginar. Nem um anjo teria capacidade para tanto, mas somente com a ajuda do Senhor. A este dragão obedecem milhares de recursos, com os quais poderia tentar todos os Céus, caso o Senhor o permitisse. Se todos os habitantes dos Céus não estariam seguros sem a interferência do Pai — que conseguiríamos nós, novatos neste Reino? Quando Miguel, o mais poderoso anjo de todos os Céus, lutou com Satanás pelo corpo de Moysés, ele foi dominado e só pôde atirar
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sobre ele o Julgamento do Senhor, sendo o único meio de tirar-lhe a presa. Se um Miguel leva a pior — que alcançaríamos nós? No futuro, convém estares prevenido num encontro determinado por Deus com tal entidade pois sua natureza é perversa e falsa.
Levanta-te e agradece ao Senhor, que te salvou de um grande mal. Pois Satã teria aceito teu beijo de qualquer maneira. Mas, então, teria transformado teu amor celeste em infernal, algemando-te à sua figura de mulher, da qual não terias desistido tão facilmente. No momento em que pretendias beijá-la, foi atirado à sua primitiva natureza maldosa, seu orgulho infinito despertou de novo, e foste repelido, tendo ele que aceitar imediatamente sua figura de dragão. O Senhor te salvou; por- tanto, agradece-Lhe por tua salvação.”
Sem perda de tempo, Martim Me pede perdão por sua tolice e agradece também pela salvação e a advertência de Bórem. Então lhe digo: “Martim, quanto tempo terei de te suportar nessa tua constante tolice? Quando começarás finalmente a agir segundo os repetidos bons propósitos? Quanta Paciência é preciso para te levar ao justo caminho! Trata de ser mais inteligente! Já basta que te deixas arrebatar por uma realidade qualquer; mas, deixar-te vencer por uma fantasmagoria até a última fibra de tua natureza... quanta fraqueza não é preciso!” Martim soluça de remorso e pede constantemente perdão.
Eu o levanto, dizendo: “Agora te encontras outra vez livre diante de Mim por Eu te ter erguido; mas, quanto tempo ficarás em tal posição? Todo cidadão celeste terá que se tornar independente e não deve cair, mesmo que se encontre num caminho muito escorregadio. Que suce- derá contigo se Eu te der plena liberdade? Por acaso manterás o equilí- brio se fores obrigado a caminhar sozinho por uma trilha lamacenta?”
Diz ele, contrito: “Ó Senhor, não me abandones e não me dês li- berdade total, senão estarei perdido. Se puder ser o mais simples junto de Ti, estarei satisfeito por toda a eternidade. Também prefiro que en- tregues essa casa a Bórem, pois não tenho condições para isso.”
Digo Eu: “Prende teu coração a Mim, que tudo andará bem. Essa posse não te posso tirar e passar a teu amigo. Se assim fizesse, tiraria tua vida para dá-la a outrem. Aqui ninguém tem outra posse senão
aquela que surgiu da própria pessoa, e tal propriedade viva terá que permanecer tanto quanto o proprietário, pois ambos são inseparáveis. No entanto, não te deves considerar um senhor de tua posse, e assim ela se tornará cada vez mais bela. Todo cidadão celeste é livre proprietário das obras de seu espírito, seu amor para Comigo. Mas, o Senhor Único de todas as propriedades e espíritos sou apenas Eu! Agora sabes como andam as coisas. De agora em diante deves estar firme no Meu Amor e assim tua propriedade não te incomodará. Não te preocupes tampouco com Bórem, que já tem de tudo no máximo grau; e, quando estiveres maduro, há de te levar à sua propriedade. Fica junto dele, enquanto dirigirei algumas palavras a esse hóspede.”
DIÁLOGOENTREOSENHORE SATANÁS
Em seguida Me dirijo para o dragão, dizendo: “Satanás, até quando pretendes experimentar Deus, teu Eterno Senhor? Até quando existirá teu orgulho ilimitado? Que pretendes alcançar frente à Minha Oni- potência Infinita, que te poderia dissolver totalmente? E se assim não quisesse, ainda te poderia punir atrozmente.
Sabes perfeitamente que esta é a tua última oportunidade de salva- ção. Poderás te salvar — ou cair para sempre! Que queres fazer? Conhe- ces muito bem a Minha Vontade, e se assim não fosse não terias pecado jamais. Agora tudo se levanta contra ti! Todas as montanhas serão nive- ladas e os vales preenchidos. Os tronos e as coroas da Terra que erigiste serão atirados no lamaçal. Que farás? Jamais poderás enfrentar o Meu Poder, pois nada mais te será permitido. Vê aqui debaixo de teus pés o eterno abismo: aqui estou Eu, um Pai de todos que Me amam, e eis Minha Mesa. Escolhe e decide rápido.”
Diz Satanás: “Senhor, eu Te conheço; Teu Poder é minha terrível impotência. Mas, precisamente por isto reconheço meu triunfo em Te poder desafiar eternamente, e também vejo que não resta um meio ao Teu Poder de vergar minha índole e dominar minha vontade, senão pela dissolução, fator que jamais poderias considerar uma vitória sobre mim. Uma vitória vital e espiritual jamais se baseia na possível des-
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truição total do oponente infinitamente fraco, mas na sábia convicção daquilo que condiciona a plena liberdade de ambas as partes.
Essa convicção se baseia sempre na livre aceitação do oponente, e tal oponente sou eu, que jamais quero aceitar o que Tu queres.
Mesmo que o entendesse, não o faria, para demonstrar-Te que além de Tua Vontade existe outra que toda a Tua Onipotência jamais há de dominar enquanto me deixares existir.
É fácil estar-se livre segundo Tua Vontade; mas, conhecer Tua Oni- potência e Tua Ira em sua própria impotência, renunciando a todas as felicidades e enfrentando-Te no pior sofrimento, vale mais e ultrapassa todas as grandezas que Tua Visão poderá vislumbrar.
Eis o motivo de minha constante desobediência contra Ti, e nela percebo o maior triunfo de minha fraqueza contra Tua Onipotência, porque assim sou sempre vencedor voluntário de Tua Onipotência, Sa- bedoria, Amor e Ira, não Te sendo possível dominar-me.
Não é preciso muito para ser um Miguel; um Gabriel não apresenta dificuldades; um Uriel é facílimo; um serafim ou querubim é uma brin- cadeira celeste. Mas, ser um Lúcifer, o primeiro e maior espírito depois de Ti, sabendo das infinitas bem-aventuranças que Teu Amor oferece, mas igualmente conhecendo o padecimento crescente proporcionado por Teu Julgamento de Ira, e ainda assim desprezar tudo sem a menor chance de um lucro, mas sim a constante perda — tal força de vontade de uma criatura é infinitamente maior que toda a Tua Grandiosidade Divina e me faz indizivelmente feliz. Por isso, não me perguntes até quando hei de Te desafiar. Minha resposta será sempre a mesma. Por toda a eternidade! Deus não me dominará!”
Digo Eu: “Espírito cego e tolo, quão grande é tua morte julgando teimar contra Mim! Alimentas uma satisfação nesta suposição e des- consideras que qualquer liberdade verdadeira, bem como a tua — falsa
— finalmente é sujeita à Minha Vontade. Quem teria dado conselho a Mim e percebido Meus Caminhos? Ignoras se não está na Minha Von- tade seres como és? Por acaso sabes se não te predestinei à queda desde o começo? Poderia a obra prescrever ao mestre como deve ser formada e para que finalidade?
Se sou Mestre de Obra de todas as obras, poderiam teimar contra Mim? Queres chamar de teima se és como és e como Eu te quero afinal? Não sou um Mestre de aço, mas de Amor, de modo que posso tirar o cadinho de seu fogo eterno caso o desejem e pretendam voltar à Ordem de Minhas Obras livres. Não o querendo e lhes dando a maior satisfação continuarem Meus eternos cadinhos — tanto melhor, pois não preciso criar outros. Preferindo ser cadinhos, são eles como devem ser, pois um instrumento nunca pode ser diferente de como foi criado. Por tal motivo é tua suposta teimosia que tanta alegria te traz nada mais que uma ilusão nascida de tua grande cegueira. Da mesma manei- ra que um vasilhame não pode dizer ao oleiro: Sou como eu quero! — tampouco podes afirmar que és como queres; porquanto tens que ser o que és, como Eu o quero. Mas, Eu — o Amor Eterno — acrescento tanta liberdade a esse teu julgamento, que poderás sentir teu estado de martírio, compreendê-lo e modificá-lo se quiseres. Não o querendo, continua como és — não porque tu o queres, mas por ser esta a Minha Vontade. Pretendendo melhorar teu destino, colocarei um outro instru- mento em teu lugar, útil como tu. Fala o que pretendes, pois para Mim não faz diferença se continuas o que és, ou se coloco outro elemento
em teu lugar.”
Nesta altura, Satanás queda perplexo e não sabe o que dizer, en- quanto sua numerosa falange grita: “Senhor, se assim é, liberta-nos de nosso martírio e coloca outros instrumentos úteis em nosso lugar. Já sofremos por demais e estamos corroídos pelo fogo. Tem piedade de nós e nos transforma, Senhor, segundo Tua Bondade e Amor.”
Ouvindo tais palavras de sua falange, Satanás se enfurece e vocife- ra: “Não quereis participar de minha grandeza? Então não continuarei a ser o que Deus quer, mas o que eu quero! Concordai comigo!”
Gritam os outros: “Tolo, que poderias querer que Deus não quises- se? Não é tua livre vontade a Vontade Dele? Age segundo teu julgamen- to! Nós fomos envolvidos pela Misericórdia Divina, que não nos soltará jamais! Por isso, faremos aquilo que se apresenta em nosso julgamento amenizado.”
Digo Eu: “Levantai-vos, infelizes, e que vosso destino seja livre! Tu, fica o que és; seja o que for que fizeres, não será tua a vontade, mas a Minha Vontade Divina de agir.
Para o maior e mais profundo ensinamento, Eu te concedo um curto espaço de tempo para poderes meditar sobre o que és e como és. Desejando melhorar tua sorte, assim será. Caso contrário, continuarás o que és até que o último prisioneiro da atual Criação se tenha libertado pelo caminho da carne. O que sucederá então contigo é de Meu exclu- sivo Conhecimento — e de ninguém mais no Infinito.”
Nesta altura, Satanás solta um grito tremendo e foge pela porta, enquanto seu séquito atira para longe suas couraças de dragão e no mes- mo instante se apresentam mil almas desnudas e de aspecto miserável, pedindo cura e alívio para suas grandes dores.
Então convoco Martim, Bórem e Chorel, ordenando que condu- zam esses infelizes ao banho confortador. E assim acontece.
OSENHORFALADESI MESMO
Entrementes, Chanchah desperta como de um sonho, ao Meu lado, e se recorda de tudo como num sonho vivo, e começa a Me relatar tudo. Em seguida Me pergunta se havia algo de verídico naquela visão. Digo Eu: “Então não viste como Bórem e Martim deviam arrastar o terrível dragão até aqui, e quando os dois Me pediram socorro Eu o atirei diante de nossos pés com Minha Onipotência?”
Diz ela: “Sim, lembro-me perfeitamente. Mas, quando o dragão estava deitado à nossa frente fiquei tão apavorada que caí num certo torpor, no qual vi tudo como na época em que aqui cheguei neste mun- do, tendo o encontro com Chorel; e depois de dar conta de mim, tudo parecia um pesadelo.
Aquilo que vejo conscientemente, posso assimilar segundo minha fraca força de assimilação. Quanto a essas visões, elas ultrapassam o âm- bito do conhecimento de minha alma, e então só me resta dirigir-me a Ti, o mais sábio e forte dessa grande casa.
Durante a visão agias e falavas como o Próprio Lama. Agora, acor- dada, não percebo a menor mudança de tua aparência tão conheci- da, tanto que podes ser um mensageiro do todo Poderoso Lama, ou o Próprio Lama oculto numa máscara. É o que posso deduzir de minha visão, e o resto aguardo de Ti, meu único Amor.”
Digo Eu: “Onde estão o dragão e seu séquito? Admiras-te e dizes intimamente: Não vejo mais o monstro, nem seu séquito, tampouco Bórem, Martim e Chorel. Onde estão? — Mas, Eu te asseguro que Meu Poder enxotou um deles pela porta na velocidade de um pensamento e ordenei-lhe atirar-se nos suínos da Terra para ficarem raivosos e neste ódio invadirem o promontório do egoísmo total e finalmente se atira- rem no mar da loucura e lá se afogarem.
Seu antigo séquito foi aceito por Mim pela Força do Verbo e man- dei que entrassem no banho do conhecimento próprio, da humildade e subsequente melhora. Tudo que faço aqui ou alhures é feito através de Meu Próprio Poder e não existe outro, acima ou abaixo de Mim, que ordene fazer isto ou aquilo. Se Eu disser a alguém: Faze isto ou aquilo!
— não há quem se Me oponha.
Chanchah, se percebes tudo isto de Minhas Atitudes, como podes perguntar se sou um Mensageiro de Lama ou talvez o Próprio? A sim- plicidade de Minha Natureza não deve te perturbar. Lama não necessita brilhar como fazem os potentados da Terra, mas apenas através de Seu Amor Paternal, Sabedoria e Poder no coração de Seus filhos. De há muito Eu brilhava dentro de ti; como não conseguiste reconhecer-Me? Minha Chanchah, Minha filha, Eu sou teu Pai, teu Lama, e fora de Mim não existe outro. Isto não deve te assustar, pois sou eternamente o Mesmo, e todos os Meus filhos devem reconhecer-Me como Pai Amo- roso, amando-Me e adorando-Me. Não te amedrontes diante de Mim, pois jamais hás de notar diferença em Mim, senão o crescente prazer de saborear os tesouros infinitos de Meu Amor Paternal. Estás satisfeita
com a explicação de Minha Natureza?”
AMORESABEDORIA.OSENHORÉPAIE IRMÃO
Chanchah cai aos Meus Pés, soluçando de imensa felicidade e ale- gria. Eu a animo e ela se ergue, fitando-Me, extasiada, dos Pés à Cabeça, e somente seu coração fala: “Então Tu O és! O Santo e Eterno Lama! Criaste Céus e Terra, o mar, um exército infinito de animais na água, na terra e no ar! Lama, Ó Lama, quem Te poderia louvar condignamente? Mesmo não tendo mérito, qual seria o coração que não Te amasse após Te ver e reconhecer? Reconheço minha nulidade frente a Ti, que és o Todo! Por certo não Te zangarás de eu Te amar tão incrivelmente! Ó Lama, eu me desfaço de amor por Ti!” Terminando assim, ela cai por terra novamente e soluça por amor.
Digo Eu: “Chanchah, teu amor é grande e teu coração uma pérola sumamente preciosa; todavia, é preciso que te controles e não incen- deies teu amor acima de tuas forças; do contrário, não suportarias Mi- nha Presença — o que haveria de perturbar tua felicidade.
Observa Gela, Martim, Bórem e Chorel; eles Me conhecem há bastante tempo e também estão plenos de amor para Comigo; mas con- seguem suportar Minha Presença, podendo fazer e gozar tudo que Eu lhes ofereço. Se estivessem em tua situação, nada fariam nem gozariam, assim como tu agora nada podes fazer e sentir de mais sublime, porque teu amor muito forte absorve todas as tuas forças.
Não te digo isto como prova de desagrado, pois já te disse várias ve- zes o quanto te amo, e acrescento: Ninguém pode Me amar suficiente- mente! No entanto, nota-se que o amor não deve existir sem sabedoria, caso deva proporcionar a maior bem-aventurança.
O amor por si só é um fogo devorador por ser um fogo básico, e só pode ser dirigido por um grau de sabedoria correspondente. Por isto, deves controlar teu amor para Comigo por um justo grau de sabedoria, caso queiras saborear a verdadeira bem-aventurança do justo amor.
Não Me consideres constantemente como o Ser Supremo e Po- deroso, do Qual ninguém se pode aproximar e continuar vivo; mas, aceita-Me como Pai mais bondoso e Verdadeiro, e até mesmo teu Ir- mão devido à Minha Humanização, e assim hás de Me suportar como
qualquer outra criatura feliz, podendo estar sempre em Minha Compa- nhia. Então participarás de todas as bem-aventuranças com os espíritos felizes que também se encontram junto de Mim como tu, apenas estão ocupadíssimos nos Espaços Infinitos de Minha Criação. Entendeste?”
UMADECLARAÇÃODEAMORCELESTE.AVITÓRIADO AMOR
Diz Chanchah: “Ó Lama, onde estaria o coração que Te reconhe- cesse e tomasse uma medida para seu amor por Ti? Se eu tivesse tantos corações como existem estrelas no Céu, ervas na terra e grãos de areia no mar, e cada coração possuísse a chama de um sol, seria apenas uma gota de orvalho fresco frente a um mar fervente.
Bem sei que és Pai e até mesmo Irmão de Tuas criaturas porque assim o queres. Mas, qual seria o coração que Te amasse apenas como Pai e Irmão, sem se lembrar de que és também o Grande e Poderoso Lama? Se eu tivesse mil vidas e a sabedoria me dissesse que eu perderia essas vidas caso não controlasse o meu amor para com o Lama, eu ape- nas responderia que seria uma imensa felicidade perder mil vidas por amor a Ti. Por isso hei de Te amar cada vez mais e não haverá sabedoria que controle meu sentimento. Somente se Tu, ó Santo, destruísses meu coração, a pobre Chanchah não poderia mais amar-Te. Certamente não farás isto comigo, não é?”
Digo Eu: “Minha filha muito querida! Quem Me ama como tu, é uno Comigo e possui inúmeras vidas, não podendo portanto ser des- truído. Ama-Me com todas as tuas forças e nada temas; teu amor te dará igualmente a sabedoria, que dilatará teu coração para Me amares sempre mais. Agora vem e desabafa teu amor.” A essas palavras, ela solta um grito de êxtase e se atira ao Meu Peito, quase desfalecida. Gela chora de emoção e diz para consigo: “Ó felizarda, o que não deve sentir quem respira neste Peito os eflúvios infinitos do Amor Divino! Ó Chanchah, qual seria o anjo capaz de medir a bem-aventurança que ora sentes? Mas, que pensas tu, meu coração? Por acaso não te encontras igual- mente na maior proximidade Daquele que é Santo? Acalma-te, meu
coração! O Senhor dá a cada um segundo a medida justa de Seu Amor e Sabedoria. Não reflitas acerca do máximo grau de felicidade desta chinesa e considera quão feliz tu mesma és.”
DESPERTARESPIRITUALDOSDEMAISCHINESESEDOSMONGES.HUMILHAÇÃODASFREIRAS CIUMENTAS
Entrementes se aproximam todos os chineses e um deles diz: “In- contestável plenipotenciário de Deus, dize-nos o motivo, segundo tua sabedoria, pelo qual Chanchah tanto se apega a ti? Seu amor é tão imenso que ninguém poderia amar mais fortemente o Próprio Lama, caso estivesse Presente.”
Digo Eu: “Tende um pouco de paciência. Chanchah vos revelará em breve o que necessitais saber. Por ora não pesquiseis, mas permiti que vosso coração tome a vanguarda e não a sabedoria, que caminhareis a trilha mais certa e curta.”
Obtempera um outro: “Sem dúvida; mas, teria ela condições de nos revelar o que significa o monstro que expulsaste repentinamente, após ter apresentado algumas fantasmagorias e até mesmo se transfor- mando numa mulher incontestavelmente bela, a fim de prender nosso amigo? Não seria um enviado de Ahriman, ou talvez ele próprio?”
Respondo: “Também isto ela vos esclarecerá; por isto, voltai para vossos lugares e aguardai, cheios de alegria, a salvação.”
Nisto se apresentam também vários monges, fazendo perguntas semelhantes. Informados da mesma forma, eles procuram seus lugares anteriores e esperam com paciência e alegria.
Apenas algumas freirinhas formam um grupo e cochicham: “Se- gundo alguns comentários de nossa irmã, que agora se chama Gela, quase acreditávamos que o amigo dos chineses que enfrentou o dragão fosse o arcanjo Miguel ou talvez Jesus, o Próprio Senhor. Julgando sua atitude para com a chinesa, muito mais bela que nós, como a beija e a abraça, nossa suposição caiu por terra. Seria mesmo um enorme pecado supor-se tal coisa de um arcanjo ou de Jesus. A atitude dela é deveras uma desfaçatez, parece um gatinho enamorado. Se ele fosse Miguel ou
o Senhor Jesus, certamente nos teria procurado, pois temos um privi- légio, como cristãs. Aliás, é bastante tola a atitude de nossa irmã Gela, dando a impressão de querer também atirar-se ao peito dele.”
Eis que digo para Gela: “Minha filha, aqui, ao lado de Chanchah, ainda há um lugarzinho para ti. Podes também dar expansão ao teu amor.” Ela se atira ao Meu Peito, totalmente embevecida de amor.
As freirinhas então protestam: “Viram só? Está confirmada nossa suposição. Não há mais o que dizer. Se ao menos voltasse o anfitrião Martim, para fazermos queixa. Ei-lo com Bórem e Chorel. Vamos!”
Quando Martim vê o numeroso grupo de freiras, percebe qual o motivo de sua aproximação; por isto diz, amável: “Já sei onde vos aperta
o sapato. Voltai para vossos lugares, pois para tais queixas não tenho ou- vidos. De passagem observo apenas o seguinte: Quem quiser amor, terá que amar primeiro; pois amor só se consegue através do amor. Amai
o Senhor como aquelas duas moças, que também conquistareis o Seu Peito. Compreendestes?”
Respondem as freiras: “Como podíamos fazer isto? Não vês que somos chinesas? Aquela favorita é pagã, e Gela sempre foi um tanto le- viana, razão por que na Terra sempre foi vítima de tentações diabólicas, de sorte que não perderá oportunidades nesta tua casa celeste de prestar ouvidos e coração a essas insinuações.
Aquele homem que todos nós quase considerávamos o Senhor Je- sus, ou ao menos o arcanjo Miguel, deve ser um espírito bastante infe- rior, do contrário não se daria com tanta intimidade. Por isso...”
Martim as interrompe, dizendo: “Está bem, queridas. Já vi que também necessitais entrar no banho. Julgava que todas estivessem pu- ras, porquanto foram bastante trituradas e lavadas; mas, agora aparece uma antiga ferrugem e impureza. Por isto, tereis que entrar num banho forte antes de estardes em condições de vos aproximar Daquele Santo.” Gritam elas: “O quê?! Tomar banho?! Também és um impuro, ra-
zão por que o demônio frequenta tua casa. Então não assistimos com horror que querias dar um beijo na diabinha, caso ela não te tivesse repelido? Se isto continua, ficará evidente nas mãos de quem nos en- contramos nesta casa.”
Diz Martim com calma: “Sim, sim — para dentro do banho! Lá, atrás daquela parede branca se encontram mil peixinhos raros, nadan- do, e ainda haverá lugar para vós. Vamos portanto de boa vontade, senão...” Elas gritam de raiva e voltam para seus lugares.
NATUREZADOCIÚMEESUA CURA
Martim, Bórem e Chorel se dirigem a Mim para anunciar que os banhistas do séquito do dragão estavam tomando várias figuras e ati- tudes, uma vez que haviam melhorado, de sorte que mesmo Bórem ignora o que fazer com eles. Digo Eu: “Deixai-os dentro do banho, onde estão bem acomodados. Eles não percebem essa residência, mas apenas o mundo de sua maldade interior, que paulatinamente se liberta e aparece externamente. Isso é bom sinal; por isto convém deixá-los, que serão levados ao bom caminho.
Mas, aqui se encontram cerca de trezentas moças dominadas pelo ciúme e sofrendo intimamente, de sorte que sinto piedade delas. Dou- trinai-as com justiça, mas não devem ser ameaçadas com o banho, Mar- tim, caso pretendas trazê-las para junto de Mim.
O ciúme é uma erva parasita do amor e o abafa. Caso se torne mui- to forte na árvore vital do amor, dentro em breve destrói todo o vegetal. Querendo mantê-lo e fortificá-lo, é preciso encontrar os justos meios para limpar o mesmo de tais aberrações.
Se irritas almas enciumadas com certas ameaças, inoculas o parasita na árvore da vida e ele começa a vicejar, destruindo o vegetal todo. Se futuramente tiveres contato com almas ciumentas, deves considerar ser o ciúme um produto do amor, chegando à seguinte conclusão: Onde existe ciúme, também há amor. Amansa o ciúme com amor, que o transformarás num sentimento verdadeiro. Digo-vos, onde não houver ciúme, também não há amor.
Essas criaturas têm muito amor, assim como uma árvore frutífera dispõe de muita seiva; procurai afastar, com amor, as excrescências de seu coração, que lucrareis verdadeiros milagres do amor produtivo. Fa- zei o que mandei, que praticareis uma boa obra para Meu Coração.”
Os três se aproximam, solícitos, das freiras e Bórem toma da pala- vra, dizendo: “Minhas irmãs, quero proporcionar a todas vós o que de direito, pois sei que vosso coração sofre e que esse irmão vos tratou com aspereza. Como também eu sou hóspede dessa casa, não pude impedir sua fala. Mas, como o Chefe de todos os anfitriões me autorizou a pra- ticar o direito do amor, farei tudo para reparar em Nome do Senhor aquilo que oprime e ofende vosso coração. Estais satisfeitas?”
Respondem elas: “Sim, caro amigo, pois deves ser um verdadeiro amigo de Deus, do qual aceitaremos tudo. Com Martim nada mais queremos tratar. Em vez de reconhecer nossa aflição, confortar, ensinar e demonstrar a Verdade, caso estejamos num caminho errado, ele nos mandou para o banho dos diabos. Por isto, gostaríamos que ele recuasse para não nos aborrecer com sua presença.”
Diz Bórem: “Deixai isto por minha conta. Ele não é um espírito mau, mas, como eu, um espírito bom, provindo do Senhor. Tivemos muito aborrecimento com os maus hóspedes que se encontram den- tro do banho, e quando, quase totalmente saturados devido ao grande desgaste, nos dirigimos para aquele grande Amigo a fim de procurar- mos conselho, encontramos vosso grupo, e Martim, bastante irritado, tratou-vos indelicadamente. Suponho que o perdoareis com facilidade por ser ele cheio de amor e se alegrar muito em vos receber em sua casa. Acredito que fareis o que eu faria convosco, se me tivésseis ofendido.”
Dizem elas: “Certamente e de todo coração; mas o fazemos por tua causa, e se futuramente tal fato se repetir, não o perdoaremos. Graças a Deus, somos igualmente bonitas e os homens presentes já nos olharam com bastante agrado, muito embora não nos orgulhemos com isto, pois toda beleza externa é uma dádiva de Deus. Mas, ficamos bem magoadas porque Martim e vosso amigo tão poderoso não ligam para nós. Aque- las duas irmãs não nos excedem em beleza; no entanto, aquele amigo as ama acima de tudo e só se dedica a elas. Nós aqui estamos como peca- doras e ninguém nos dá atenção. Mesmo que nosso coração suspeitasse algo sublime a respeito dele, essa suspeita não haveria de fenecer qual
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flor, caso não lhe seja dado o alimento necessário? O coração também precisa de alimento, caso deva se tornar forte no amor; mas, como pode fortalecer-se, se ao invés de alimento só deve jejuar?” Diz Bórem: “Ten- des razão e vossa exigência é justa; mas, tende um pouco de paciência, que vosso coração será saciado plenamente. Sabeis que o bom médico procura primeiro os doentes e, após curá-los, visita os sãos. O mesmo ocorre aqui. Tão logo aquelas duas pacientes estejam totalmente con- valescidas, o médico vos procurará. Agora segui-me, pois vos mostrarei algo maravilhoso.”
Dizem as moças: “Não há necessidade, pois neste salão enorme há tantas coisas excepcionais a serem vistas que a pessoa não se cansa de vê-las. O formidável piso dá a impressão de ser feito de pedrinhas pre- ciosas multicores em forma de guirlandas. As colunas elegantes, como suportes das galerias, como brilham, dando a impressão de serem feitas dos mais belos rubis, em cujo centro nadam milhares de estrelas, como peixinhos dourados, provocando sempre novas formas de luz!
Como vês, existem aqui milhares de coisas maravilhosas para as quais ainda não encontramos nomes. Assim sendo, não necessitamos ver outras coisas. Nossos olhos estão providos de tudo, mas isto não acontece com nosso coração, muito necessitado. De que adianta saturar a visão, se o coração sofre? Trata primeiro de nosso íntimo, que a visão estará satisfeita com algo mais simples.”
Diz Bórem: “Essa exigência é justa; no entanto, é feita antes de sen- tirdes o que pretendia vos mostrar. Minha surpresa não estaria calculada para vosso coração? Por acaso o milagre serve apenas para os olhos? Não poderia ser também algo formidável para o coração? Que vale mais: a visão ou o coração? A pessoa pode estar cega, e no entanto desfrutar da plenitude da vida do amor. Qual seria a visão humana capaz de ver Deus? O coração pode imaginar Deus, amá-Lo e até mesmo se tornar um templo vivo para o Senhor, onde Ele tomaria morada para sempre. Se assim é, como imaginas eu vos conduzir a algum lugar, aqui no Reino do Coração de Deus, onde talvez existissem espetáculos apenas válidos para a visão? Aqui tudo tem valor exclusivamente para o co-
ração. A visão é somente uma testemunha de luz de tudo que ocorre no coração.
Aqui, no Reino de Deus, não havendo cegos, pois todos têm sua visão tão forte quanto o coração, ela também é testemunha de tudo aquilo que ocorre por causa do coração e vem dele. Deste modo, vereis o que sucederá para vosso coração também com os olhos. Vinde co- migo!” A tais palavras, as moças seguem Bórem até a porta que leva às paragens do Sol.
CALÚNIASDOSÉQUITODO DRAGÃO
Enquanto Bórem, Martim, Chorel e as moças se dirigem para a porta do Sol, os mil banhistas dentro do tanque ficam inquietos e co- meçam a praguejar, sendo ouvidos por todos os monges purificados, por Chanchah e Gela. Estas despertam de seu êxtase amoroso e escutam com atenção. Quando Chanchah pretende perguntar-Me o significado daquilo, cem frades se aproximam de Mim e pedem para tapar as bocas dos outros, pois os mais fracos poderiam se aborrecer.
Entrementes, também se apresentam os chineses com suas mulhe- res e os genitores das monjas e dizem: “Poderoso mensageiro de Deus, por acaso não ouves como o séquito do dragão ataca a Deus e a ti, pretendendo nos exterminar a todos? Ouve só que terríveis blasfêmias pronuncia! Essas feras são piores que o próprio dragão, que palestrara razoavelmente com Martim e contigo. Acaba com isto ou deixa-nos sair para não ouvirmos os insultos contra o Altíssimo.”
Digo Eu: “É de fato louvável que vosso coração se encha de horror contra tamanho ultraje. Ainda assim, deveis considerar apenas a Mim e não vossa pessoa; do contrário vos tornareis juízes, o que seria muito pior que as calúnias ocas desses banhistas, aliás bastante maldosos.
Quem calunia confessa apenas sua fraqueza, pois se tivesse poder agiria imediatamente. Querem dar a impressão de alguma força e se arrogam o direito de juízes, e como tais invadem com petulância os Direitos de Deus, ultrajando-Os através de sua fraqueza, enquanto so-
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mente Deus tem todo o Poder e Força de julgar com justiça, devido à Sua Ordem Eterna.
É justo que vosso coração se revolte contra essas blasfêmias; no en- tanto, percebo em todos vós uma ânsia de acabar com esses banhistas, caso vos fosse possível; e tal ódio é pior que aqueles pronunciamentos sem nexo. Eles nos injuriam sabendo que nada conseguem contra nós e quanta Paciência e Condescendência existem em Deus; em compen- sação, pretendeis dizimá-los porque nos assiste poder para tanto, ou ao menos abandoná-los. Estaria isto dentro da Ordem de Deus, que não quer destruir algo, mas sim manter tudo, devendo até mesmo fazê-
-lo, pois somente Deus sofreria caso fosse destruído o mais ínfimo que Dele surgiu?
Controlai-vos e deixai que nos insultem e injuriem; aos poucos chegarão ao fim, passando a um grande remorso que os transforma- rá em irmãos, especialmente irmãs — pois a maioria é feminina. É fácil deduzires que são fracos porque não conseguem movimentar-se um palmo para fora do banho. Que glória representaria nossa vingança neles por sermos mais fortes e eles totalmente fracos? Tal glória seria comparável à de um leão que se rebaixasse a um caçador de moscas.
Recomendo a vós todos que olheis sempre Minha Pessoa para no- tardes o que EU faço, e assim não tereis nenhum aborrecimento nem ânsia de vingança em vosso coração. Sou o mais atingido, no entanto estou calmo; sede, portanto, mais calmos, pois nada disto vos atinge.
Eles injuriam a Justiça de Deus que os faz se banharem, o que não pode ser totalmente indolor, caso devam ser socorridos; pois toda trans- formação é ligada à dor enquanto a natureza toda não tiver passado a uma ordem diferente. A dor é necessária. Se não existisse dor, também não haveria prazer, pois uma criatura incapaz de sensibilidade será tam- bém insensível ao prazer. Esses banhistas se encontram num importante processo de transição e passam por certas dores que levam suas línguas a injuriarem. Assim que estiverem mais próximos de uma ordem segu- ra, suas dores diminuirão e suas línguas começarão a formar palavras elevadas causadas pelo arrependimento, tornando-se uma ponte para o amor e a vida.
Para não vos aborrecerdes com essa manifestação sem nexo, acom- panhai-Me até aquela sala onde se encontram os outros. Eu a abrirei e tereis uma grande chance de vos humilhar até a última fibra de vosso coração bastante altivo, o que é um benefício para todos.”
ADVERTÊNCIASPARAAESFERADA SABEDORIA
Toda a grande assembleia Me segue até a porta, onde aguardam o Bispo Martim e Chorel com as moças, para que Eu venha abrir a porta da luz. Somos ao todo umas três mil pessoas, o que provoca certo tu- multo na porta que, em virtude de sua largura, proporciona lugar para todos, de sorte que chegam ao solo do Sol percebendo os milagres do amor e da luz.
Quando Eu chego à porta, aproxima-se Martim para saber do motivo pelo qual esta se encontra fechada, pois todas as outras estão abertas. Então lhe digo: “Nunca ouviste falar dos nascimentos diversos de homens e animais? Todo ser é dotado de seus sentidos ainda que no ventre materno, com exceção dos olhos. A criança sente, saboreia, sente cheiro e ouve; mas a visão só é aberta depois do nascimento. Por isso, o abrir da porta durante o renascimento espiritual é o último aconteci- mento, pois antes que alguém queira enxergar terá que estar preparado. Alguém querendo acender uma luz em sua casa durante a noite,
terá que providenciar os necessários preparativos com os quais produzi- rá a luz. Não seria preciso uma lâmpada cheia de óleo e um acendedor bom? Que deverá fazer com o acendedor e quanto tempo levará para conseguir a luz desejada? Levará certo tempo e uma atividade variada terá que anteceder a produção da luz. Assim que a luz é gerada, será possível passar para uma outra atividade na luz; mas, antes, não se pode cogitar disso.
Poderás então deduzir facilmente porque nesta casa todas as outras portas estão abertas, enquanto justamente a porta do Sol ainda está fechada diante desses hóspedes. Percebo que queres perguntar: Por que a porta que já vi várias vezes aberta está fechada, e por que não foi ela a última? — Explico: Primeiro, não pertences mais a esses hóspedes
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que ainda necessitam do renascimento; segundo, no que diz respeito às outras portas que encontraste após a porta do Sol, todo espírito terá que se preparar depois do renascimento para uma atividade na luz ou na compreensão e conhecimentos claros.
Julgas que depois do recebimento da luz se inicia possivelmente um ciclo de ociosidade? Justamente o contrário; começa então a justa atividade na luz. Antes de recebê-la, toda atitude era dirigida para a aquisição da luz. Uma vez que ela existe, abre-se o templo do Sol e en- tão começa a grande atividade do espírito renascido.
Por acaso viste na Terra alunos receberem empregos? O aluno tem que atingir primeiro a luz total do necessário conhecimento através de vários estudos até que lhe seja dado um emprego, segundo seu conheci- mento. Depois de ter feito sua carreira científica e atingido certo apro- fundamento intelectual, ele por acaso ficaria deitado numa poltrona para dormir sossegado em vez de trabalhar? Justamente agora iniciará seu verdadeiro trabalho, pois todos os exercícios anteriores eram apenas um meio de iluminar a noite de sua mente. Eis aí um motivo forte por- que além da porta do Sol ainda existem outras — principalmente as do imenso Universo. Entendeste?”
Diz Martim: “Ó Senhor, vês meu coração como se vê uma gota d’água! Agora Te amo mais ainda, Santo e Bom Pai! Sabes que uma atividade adequada às minhas forças é de meu agrado; por isso me será muito útil um grau de luz superior. Nunca me faltou vontade de fazer o bem; todavia tive carência de luz, isto é, da justa sabedoria. Por tal motivo, estou certo que a reabertura total desse templo será de gran- de utilidade para mim, muito embora veja em Ti o Verdadeiro Sol de todos os sóis e a Luz de toda luz, portanto posso desistir de qualquer outra iluminação.”
Digo Eu: “Caro Martim, essas palavras Me agradam muito mais que as perguntas anteriores. É bem verdade que sou o Sol de todos os sóis, a Luz de todas as luzes, e quem Me possui caminha em pleno dia; mas, como cada pessoa é uma entidade livre, possui também sua pró- pria luz, que deve iluminar livremente, como o Sol no âmbito de seus planetas. Assim como em cada criatura brilham seus olhos, seu coração
impulsiona novos pensamentos, dos quais nascem ideias livres, e delas os conhecimentos de si mesmas e subsequente grande conhecimento de Minha Natureza Divina, Meu Amor e Sabedoria. Por isto, essa porta será também aberta para esses hóspedes a fim de que se conheçam e posteriormente a Mim Mesmo.”
Diz Martim: “Meu Senhor e Pai, tudo isto estaria muito bem; mas, dá-me a certeza de que, em virtude do conhecimento e da verdade ple- na que esses hóspedes receberão, não Te ocultarás de novo, e ainda que Te procurássemos e chamássemos, leves muito tempo a aparecer. Nunca mais faças isto conosco.”
Digo Eu: “Preocupa-te com tudo, menos com isto. Onde estive- rem os filhos, o Pai também estará. Mas, sabes que Minha Família é enorme e imensa a manada de minhas ovelhas. Todos serão levados à Minha Casa e então haverá Um Pastor e um rebanho. Até lá ainda haverá muito trabalho.
Note bem: Na Terra se encontram muitos ceifadores para provi- denciarem uma grande seleção. Necessitarei de muita carne, por isto correrá muito sangue para exterminar toda a prostituição; despertei na Terra testemunhas e o que ora falo, falei e ainda falarei e farei será ao mesmo tempo escrito e revelado na Terra. Por isto, não te preocupes a ponto de supores que Eu venha a vos deixar depois de aberta essa porta e pensa o seguinte: De agora em diante ficarei convosco eterna e imutavelmente.
Agora outro assunto. Dessa vez estenderemos nossa visita às gran- des paragens do Sol com muito maior intensidade e extensão que da primeira vez. Serás recebido por criaturas de beleza jamais sonhada, com grande amor e carinho, inclusive homens. Terás que tratá-las sem- pre com o verdadeiro rigor celeste e falar pouco. Quando te externares, fala com sabedoria, e assim as conquistarás. O amor deve ser oculto, de sorte que não o percebam, e então caminharás seguro.
Neste grande mundo da luz a sabedoria está em primeiro lugar, onde se esconde o amor, assim como o calor se oculta na luz do Sol e se manifesta apenas em inúmeros efeitos produtivos. No Sol terás somente que projetar a tua luz, assim como também Me verás brilhar.
Mantém essa regra com fidelidade que hás de saborear muitas graças. Agora vai e abre a porta em Meu Nome.”
VIAGEMNOLUMINOSO SOL
Martim agradece por tal incumbência e abre a porta com a maior facilidade, muito embora tenha aparentemente cerca de 24 metros de altura e 12 de largura. No momento em que ela se abre de par em par, ouvem-se gritos de êxtase de milhares de pessoas que tapam os olhos, porquanto a luz as recebe com a máxima intensidade. Ninguém se atre- ve a dar um passo, nem para frente, nem para atrás, na suposição que em tal claridade formidável esteja a morada da Divindade em toda a plenitude de Seu Poder, Força e Sabedoria. O próprio Martim queda perplexo, pois também tem a impressão de ser esse brilho muito mais possante que das outras vezes. Isso o perturba um pouco; por isso diz sem delongas: “Irmãos, não temais aquilo que foi destinado pelo Se- nhor a nos proporcionar a maior felicidade; aproximai-vos de mim, pois essa luz é um solo firme no qual se pode caminhar sem susto.”
Bórem e Chorel conduzem então as moças ao limiar da porta e são acompanhados pelos monges e os genitores das freiras. A estas se juntam finalmente os chineses, de passos cuidadosos.
Quando todos se encontram em terreno solar, Eu também sigo com Chanchah e Gela, que no início também se atemorizam com a in- tensa claridade; mas ao Meu lado perdem o receio e pisam nessas para- gens luminosas. Eis que todos se encontram no solo solar, não somente espiritualmente, mas também fisicamente. Todos os espíritos dos Céus mais elevados veem igualmente todo corpo natural em sua estrutura ex- terna e interna. Como se encontram junto de Mim, enxergam por Meu intermédio tudo que se encontra no mundo espiritual e no material, assim como Eu o vejo.
No início a visão não é bem clara porque os olhos são por de- mais ofuscados; mas aos poucos esse senão vai passando, pois alguns hóspedes já começam a registrar vários objetos em cores. As mulheres descobrem algumas flores maravilhosas e tentam colhê-las; Bórem as
desaconselha, porquanto tal atitude seria considerada no Sol como mau presságio, caso num vegetal algo fosse danificado antes do tempo. Lá tudo deve ocorrer na ordem mais rigorosa.
Depois de a grande assembleia se ter movimentado por certo tre- cho no solo solar, Martim para e Me diz: “Senhor e Pai, segundo meu sentir, nós nos afastamos de minha casa mais de mil milhas e, além de algumas flores, nada vimos ainda. Até quando caminharemos para atingirmos qualquer meta? De minha parte confesso que não aprecio esse mundo luminoso caso só se vejam luz e flores. No entanto, temos a vantagem de que essa luminosidade não queima e que nossos olhos espirituais não estão sujeitos à cegueira, do contrário levaríamos prejuí- zo. Estou na vanguarda, mas, que me adianta isto, se ignoro para onde vou? Senhor, vai Tu em frente, pois assim saberemos que chegaremos à meta final.”
Digo Eu: “Meu filho, vai caminhando no solo da luz, com paciên- cia e constância, que nosso destino há de aparecer. Ignoras que o Sol é milhões de vezes maior que a Terra? Se é necessária grande paciência e renúncia para grandes viagens na Terra, muito maior terá que ser nossa disposição para percorrermos essas paragens com utilidade.
Não posso ser guia, para não confundir a liberdade de ninguém e, além disto, os habitantes desse mundo de luz haveriam de Me reco- nhecer segundo o seu espírito lúcido e ao mesmo tempo desfalecer de respeito diante de Mim. Indo na retaguarda não haverá contratempo, pois eles consideram o que está na frente como algo extraordinário, enquanto não dão importância para quem se encontra atrás.
No momento estamos numa cordilheira muito alta; mas, quando chegarmos a um vale a luz será mais amena e então descobrirás quan- tidade de pessoas que darão muito trabalho. Eis o motivo de nossa viagem. Agora volta ao teu posto como guia.” Martim se posta de novo na frente de todos e os convida a acompanhá-lo.
ENCONTROCOMPEDROE JOÃO
Depois de ter caminhado por algum tempo e na expectativa de aparecer o dito vale, eis que surgem Pedro e o evangelista João e o cum- primentam com muita amabilidade. Ele os reconhece, principalmente a Pedro, seu primeiro guia no mundo espiritual, e diz após alguma surpresa: “Amigo, irmão, rocha da Palavra de Deus, por onde andaste tanto tempo? Por que não vieste à minha casa dada pelo Pai? Ficarias admirado de todos os milagres efetuados por Ele. Permanecerás algum tempo comigo?”
Responde Pedro: “Irmão, como sabes, todos nós temos s uma von- tade, a Vontade de Deus; o que Ele quer e ordena sempre é bom. O In- finito é grande e pleno de Suas Obras; nós somos Seus filhos e de certo modo Seu Braço. Por isto estamos ora aqui, ora acolá. Tão logo Ele nos queira utilizar, lá estaremos; não vem ao caso se estivermos bilhões de distâncias solares, abaixo ou acima de nosso ponto atual, pois para nós não existem mais distâncias.
Deste modo tive muita coisa para fazer e não pude te ver. Agora tenho mais tempo à minha disposição junto a esse irmão mais querido e ficarei em tua companhia por algum tempo. O motivo principal é nosso Pai Jesus; sem Ele, sem Sua Presença Visível, nunca suportaremos viver, principalmente quando Ele Mesmo está em grande Atividade e sai de Sua Paciência e Indulgência.
Não podes imaginar o que se passa nos mundos, especialmente na Terra; por isto o Senhor Se põe em campo e havemos de ver coisas que nunca sonhaste. Quando chegarmos aos vales, te convencerás como começa a se manifestar um tumulto nos grandes ápices do Sol. Mas, levará tempo até chegarmos lá. No entanto, ainda não tens uma noção dos milagres que te esperam, muito embora já sejas um habitante do terceiro céu, como eu.
Nunca desconsideres o rigor, pois os habitantes do Sol são criaturas bastante curiosas. Externamente são o reflexo dos céus; mas, no íntimo são mais espertos que as raposas. Alimentam o máximo respeito perante os filhos puros de Deus; mas, se apresentares qualquer deslize sensual,
não te livrarás deles tão cedo, tratando-te com uma sabedoria que nun- ca sonhaste. Nosso irmão João estará em condições de relatar-te algo a respeito, porque lida quase sempre com eles.”
Diz Martim: “Teu relato é deveras atraente; no entanto, não tenho vontade de entrar em contato com esses habitantes tão estranhos. Sei que são extraordinariamente belos, pois já tive oportunidade de ver al- guns. Todavia, ignorava que alimentam certas artimanhas atrás de sua beleza. O Senhor já me deu algumas diretrizes que condizem com as tuas observações. No entanto, nada me disse de astúcia e ardil. Que Ele me ajude, pois só nos faltava sermos envolvidos por essas beldades!”
Diz João: “Irmão, o amor é sempre acessível ao amor, pois logo o reconhece. Mas, os caminhos da sabedoria são infinitos e, além do Senhor, jamais poderemos penetrá-los totalmente. Por isso, não con- vém abrir luta com eles por conta própria, mas exclusivamente com o Senhor, que conhece todos os caminhos, pois toda Sabedoria vem Dele, razão por que é o Caminho, a Verdade e a Vida. Sabes que Ele me con- feriu o dom da Sabedoria mais profunda, dando-me a revelação mais elevada. Por isto entregou-me os povos de todos os sóis e bilhões de es- píritos de grande sabedoria que se alimentam do meu supérfluo; ainda assim, seus habitantes, mormente desse Sol, já me causaram grande em- baraço. Se naquele momento o Senhor não tivesse aparecido, eu teria que me dar por vencido. Se isto acontece a mim, que lido com eles há quase dois mil anos, que farias tu ao entrar em controvérsia com eles?
Observa quão linda é essa região montanhosa, as rochas claras que se fundem com o éter como grandes cristais, o planalto coberto de flo- res de um brilho inconfundível, o caminho que se estende qual arco-íris
— toda essa maravilha é apenas miséria comparada com a harmonia que te envolverá por um simples olhar de um habitante solar.
Mas depois terás que considerar a harmonia das palavras que flui dos oradores e cantores desse mundo de luz. Ficarás qual coluna de pedra de êxtase e admiração, te atrevendo a pensar, muito menos a falar ou querer ensinar os que com um olhar taparão tua boca.
Se quiseres te dar bem com esses moradores belos e sóbrios do Sol, de ambos sexos, terás que parecer inteiramente desinteressado. No
íntimo tens que ser muito benévolo, pois eles reconhecerão em ti um cidadão do grande céu a quem fora dado grande poder, retribuindo teu sentimento.
O amor se expressa entre eles de modo totalmente diferente que entre nós, filhos de Deus. Não deixa de ser uma espécie de pendor, mas apenas na medida que a sabedoria não o destrói. Tão logo o amor se tor- na um pouco mais forte que a sua luz, o supérfluo do amor se transfor- ma numa chama fortíssima. Essa chama de amor se une imediatamente à luz interna da sabedoria, quando então se apresenta, em vez do amor, apenas uma sabedoria potencializada, mais fria que o polo sul.
Por essa razão, nada conseguirás com o amor carnal junto às mu- lheres do Sol, porquanto elas são as menos acessíveis para tanto. Se con- siderares essas regras estritamente, encontrarás grande felicidade entre os povos solares; caso contrário, fortes embaraços, semelhantes aos que Satã te apresentou quando a querias beijar em seu disfarce, na frente do Senhor.”
Diz Martim: “Pelo amor de Deus... estiveste presente?!” — Res- ponde João: “Claro! Tua casa possui grandes galerias que ainda desco- nheces, e comportam muitos assistentes quando o Senhor está Presente com Seu Poder. Não somente eu, mas todos os incontáveis cidadãos dos céus assistiram a tal cena. Entre os habitantes do Sol encontrarás muitos que te lançarão isto em rosto, caso cometas o menor deslize.”
Martim faz uma expressão atônita e diz, depois de algum tempo: “Que coisa desagradável! Essa é boa! Mas, não importa! Se na Terra o Sol me provocou bastante suor, aqui não há de ser mais econômico, uma vez que tenho o prazer de pisar seu solo. Avante, vamos ver no que vai dar essa experiência!”
INTERCESSÃODOSSANTOSEAPREOCUPAÇÃOCOMOS PARENTES
Diz João: “Meu amigo, segundo meu conhecimento, eras grande amigo de Maria, José e outros santos. Por que será que não te preocupas com eles agora? Tampouco o fazes com teus parentes, pais, irmãos e
amigos que aqui chegaram antes de ti. Talvez estejam alhures, infelizes? Como grande amigo do Senhor, poderias socorrê-los, caso fosse neces- sário. Na Terra davas grande valor à intercessão dos santos, e agora que tu mesmo és santo, como amigo do Senhor, nem te lembras disto?”
Responde Martim: “Meu amigo, o boi come capim e feno, e um burro se satisfaz com o pior alimento. Mas eu fui primeiro um asno e depois um boi. Qual foi meu alimento? O pior possível; poderemos nos alimentar espiritualmente com tal forragem?
Por meio do Amor, Misericórdia e Graça do Senhor tornei-me um homem verdadeiro, e por várias vezes saboreei Seu Pão da Vida e Seu genuíno Vinho do Conhecimento verdadeiro. Por acaso seria razoável eu voltar ao alimento de asno e boi? Deveria presumir que os cidadãos felizes desse mundo maravilhoso dos espíritos sejam mais misericordio- sos, amorosos e bondosos que o Próprio Senhor, e que Ele necessitasse ser movido a usar Sua Clemência infinita? Amigo, graças a Deus não sou mais tolo!
Que representam Maria e José, todos os santos, meus pais, irmãos e amigos comparados ao Senhor? Ele cuida deles todos, como também cuidou de mim. Creio que todo cidadão verdadeiro do céu pensa como eu; se pensar de modo diferente, terá que ser mais perfeito que o Pró- prio Senhor.
Não foi Ele Mesmo que perguntou: Quem são de fato Minha Mãe, Meus irmãos? —quando O informaram que todos O aguardavam lá fora? Se Ele nos deu tal ensinamento, que infelizmente não entendemos na Terra, deveríamos encontrar um outro, melhor, dentro de nós? Que achas disto?”
Diz João: “Falaste o que sinto no coração e jamais poderá ser de modo diferente. Mas, se porventura aparecessem Maria, José e outras pessoas importantes, não sentirias grande satisfação?”
Diz Martim: “Sim, mas essa alegria não ultrapassaria a de um en- contro com o Senhor, pois Nele possuo tudo, portanto é Tudo acima de todos. Tu e Pedro estais entre os primeiros personagens na Terra; por acaso cairia eu em êxtase por isto? Estimo-vos muito e considero qual-
quer cidadão celeste igual a vós, pois somos todos irmãos, e somente Um é o Senhor.”
Diz João: “Dotado dessa sabedoria, tua situação no Sol será equi- librada. Mas, vê, o caminho desce ao vale e teremos um encontro com os seres do Sol.”
CONDIÇÕESDOTRANSPORTERÁPIDOOULENTONOREINODOS ESPÍRITOS
De fato, Martim descobre o caminho que leva por incontáveis cur- vas até o vale imenso, no qual ele ainda não consegue notar qualquer objeto. Os espíritos veem aquilo que desconhecem como à longa dis- tância e se aproximam à medida que sua sabedoria cresce acerca do objeto em apreço. Deste modo, a descida da montanha para o extenso vale significa o ingresso total na humildade e, através dessa, no maior amor, sem o que nenhum espírito chega à plena força vital.
Assim, Martim e muitos outros hóspedes conseguem vislumbrar o vale, no entanto não conseguem ver algo especial. Por isso perguntam aos guias o que haviam de encontrar lá em baixo. Bórem está informa- do, mas não sabe o que deve dizer. Os chineses então se dirigem a Mim, que certamente estou em condições de esclarecê-los.
Entrementes, Martim se dirige a João, dizendo: “Irmão, de que me adianta a visão do vale se não consigo ver o que lá se encontra? O ca- minho é por sinal agradável, estamos quase flutuando em vez de andar; ainda assim não nos aproximamos do vale. Quanto tempo levaremos para tanto?”
Diz João: “Amigo, a paciência é a base da sabedoria. Conserva essa base em teu coração, que alcançarás o vale solar com muito mais faci- lidade.” Diz Martim: “Amigo, não me falta paciência e nunca deixei de tê-la. Mas, sei que para cada espírito existem três possibilidades de movimentação: a natural, a psíquica e finalmente a puramente espi- ritual, veloz como o pensamento. Por que usamos apenas a natural e mais vagarosa? Não seria conveniente alcançarmos nosso destino por um recurso mais rápido?”
Diz João: “Agora falas muito menos sabiamente que antes. Que importa se chegamos ao vale mais depressa ou mais devagar? Aqui não contam as horas terrenas. Que relação temos nós, eternamente vivos, com as condições de tempo a serem vencidas? Não temos pressa e onde estamos — quer dizer, onde está o Senhor — nos encontramos em casa. Aliás, a ligeireza de nossa movimentação no reino perfeito dos es- píritos não depende de nossos pés, mas exclusivamente da perfeição de nossos conhecimentos. Quem deseja movimento mais rápido, que se esforce na paciência, e desta para a humildade da qual surgem o amor e a sabedoria. Quem tiver sabedoria plena, possuirá o conhecimento total das coisas, e o conhecimento condiciona o movimento do espírito. Sendo esta a situação, não precisas observar teus pés e seus movimentos lentos ou rápidos; observa apenas a alma e o conhecimento, que os
movimentos serão mais rápidos.”
DAONIPRESENÇAEATIVIDADEMÚLTIPLADOSPERFEITOSCIDADÃOS CELESTES
Diz Martim: “Entendo isso em parte. Sei que o Senhor, tu, Pe- dro e Bórem possuis o mais perfeito conhecimento; no entanto, não vos movimentais mais rapidamente que toda essa gente. Como posso entendê-lo?”
Diz João: “Essa movimentação é apenas aparente e ocorre por amor a ti e a todos que aqui estão. Na realidade, há muito tempo estamos em toda parte onde precisamos e queremos estar. Enquanto agora falo con- tigo, não me encontro apenas nesse, mas em inúmeros sóis e mundos, e ajo em toda parte segundo a Vontade Santa de Deus e em Seu Nome. O que eu faço é feito em escala muito maior pelo Senhor Mesmo, por Pedro e todos os cidadãos perfeitos dos Céus. Entendes?”
Responde Martim: “Isto me soa, de tua parte, como um exagero celeste, pois de ti, um João, no decorrer de quase dois mil anos, não nasceram bilhões de outros; tal fato é inteiramente impossível. Também sou espírito e uma vez ao lado do Senhor, não posso ser o mais imper- feito; ainda assim, sou apenas um, não sendo possível haver outro igual
a mim alhures. Enquanto a unidade é una, não pode ser divisível. Se for dividida ou existindo em multiplicidade de igual valor e caráter, a unidade deixa de ser unidade.
Se a questão acima é conforme me dizes, incluindo o Próprio Se- nhor, não és um João completo, nem o Senhor é Completo. Só poderei te considerar completo quando fores inteiro. Explica-me isto com lógi- ca, se há possibilidade de outra explicação.”
Diz João: “Amigo, isso é apenas uma pequena noz de sabedoria interna oferecida a ti para que a quebres, e já estás ficando confuso. Que farás quando os filhos dos filhos do Sol te apresentarem verdadeiros blocos de diamantes para serem triturados?
Nunca viste além de um Sol; mas, se um ou mil espelhos refletirem sua imagem, por acaso foi ele dividido ou enfraquecido em seu efeito? Não absorve cada gota de orvalho e cada olho o quadro do Sol? Por acaso deixa ele de ser apenas um e seu efeito não é sempre o mesmo? Medita um pouco, depois prosseguiremos nossa caminhada nesta esfera solar; do contrário, levaremos muito tempo para atingirmos o vale.”
AONIPRESENÇADE DEUS
Martim arregala os olhos e começa a meditar. Passado algum tem- po, ele balbucia: “Hum, estou deveras atrasado. Ó profundeza! Quando irei entender tua base? Deus é Onipresente. Mas como, se Ele é Um Só e Se acha aqui entre nós, e eu vejo Sua Figura igual à de um homem?
Sim, o Sol, ainda que projetado por milhares de espelhos, é um só; é maravilhoso e estranho que assim seja. Muito mais difícil de se entender é que o Senhor, de modo semelhante ao Sol, pode estar em toda parte. É talvez também um Sol? Mas, onde? Vi somente o Senhor, o Homem-Deus Jesus; mas nunca vi um outro Sol senão este em que me encontro.
Tudo é luz, e desconheço sua origem. Ela vem certamente do Se- nhor, mas Ele Mesmo não brilha. É sem brilho, mais simples que nós. Deve ser Sua Onipotência, Seu eterno ‘Que assim seja’, numa Ação ininterrupta, espiritual e natural. Pela primeira vez concebo que toda
minha sabedoria é nula, um círculo vazio com muitas sinuosidades onde não há centro. Senhor, quando compreenderei o que És?”
OSBEM-AVENTURADOSPODERÃOOBSERVARATERRAESEU FUTURO
Enquanto Martim se entretém com seus pensamentos, Chorel se aproxima de João e Pedro, dizendo: “Perdoai se também me atrevo a vos importunar com uma pergunta. Já me dirigi a Bórem a respeito, mas sempre me respondeu com evasivas e não conseguia aceitar o que me dizia. Por isso espero mais clareza junto de vós.”
Diz João: “Não necessitas perguntar, pois tua questão já foi colo- cada diante de nossos olhos e hás de receber uma boa resposta. Dese- jas saber se os bem-aventurados poderão observar a Terra e assistir seu progresso futuro, porquanto te perguntavas, como habitante terráqueo: Será possível eu rever essa Terra tão bela com seus rios, mares, mon- tanhas, vales e milhões de outras maravilhas? Terei conhecimento de todas as novas aparições no que tange a história do ser e do desvanecer? Poderei participar daquilo?
Respondo: Tudo, tudo está ao dispor dos bem-aventurados do Senhor. Se somos Seus filhos, o Pai que nos dá tantas grandiosidades haverá de nos privar de algo ínfimo? Ele, que nos dá de beber mares de Seu Amor e Graça, nos negaria uma gota d’água?
Estás caminhando no Sol verdadeiro e material, e vislumbras suas maravilhas e ainda chegarás às maiores. Se podes ver essas, quanto mais poderás observar as daquela pequena Terra. A meu ver, a pessoa que habita num palácio real onde goza de toda liberdade, conforto, alegrias e prazeres, não terá a menor vontade de ocupar um lugarzinho numa morada de crimes, num cárcere cheio de moléstia e morte, ou observar com alegria o objeto que surgiu da morte. Gostarias de descer à Terra, abandonando esse Sol?”
Responde Chorel: “Oh não! Desistiria de trilhões de Terras para não deixar essas paragens santificadas do Senhor, que é tão Bom, Amo- roso e Meigo. Já me dou por satisfeito em poder ver a Terra tão logo o
queira, mas nunca me preocuparia com o uso real dessa possibilidade. Agradeço, irmão, por tal explicação. Que o Senhor te recompense!”
Diz João: “Todo louvor, gratidão e honra competem ao Senhor! Volta para junto de Bórem; tenho que tomar as rédeas de Martim, pois dentro em pouco estaremos no vale com seus belos moradores.”
MARTIMRECEIAASABEDORIADOSHABITANTES SOLARES
Enquanto Chorel volta para junto de seu amigo Bórem, Martim descobre o grande vale com suas planícies ornamentadas de maravilho- sos jardins, palácios e templos, e uma verdadeira caravana de pessoas de grande formosura, que deles se aproxima. Isto o faz despertar de suas meditações e ele se vira para João e Pedro, dizendo: “Segundo me parece, acabamos de chegar ao nosso destino. Que maravilha de para- gens e construções magníficas! Uma verdadeira procissão de criaturas solares nos vem ao encontro. Já consigo ver as da frente, muito belas e fabulosamente bem vestidas. Quanto mais se aproximam, mais belas se tornam. Se isto continuar, digo antecipadamente que não suportarei sua presença sem ajuda especial do Senhor. Já começo a perceber o enfraquecimento de minhas pernas. Se a visão delas for relativamente boa, já devem ter notado minha beleza masculina! Por favor, ficai na minha frente, para que elas não venham a taxar de pronto minha gran- de burrice.”
Diz João: “Não te preocupes se sentires algo estranho no começo. Num convívio prolongado te sentirás melhor. Sê sempre sério, mas no íntimo meigo e paciente, que terás muito mais proveito com eles do que imaginas. Sua sabedoria é de fato grande, mas tem seus limites, como tudo que é criado. Coragem! Chegou o dia de suportares as ma- ravilhas, o que será tanto mais fácil em virtude da Presença do Senhor, que nos guia tão de perto.”
Diz Martim: “Tens razão, mas não resta dúvida que esse empreen- dimento não é brincadeira. Faltam apenas alguns passos e teremos esse
encontro tão estranho. Que vêm a ser aqueles chapéus e coroas que as jovens nos trazem?”
Responde João: “São prêmios para os mais sábios entre nós, após sermos testados. Tu já tens tal chapéu, dado pelo Senhor. Mas não im- porta. Se fores classificado com mérito, elas juntarão teu chapéu ao delas a ponto de se tornar apenas um chapéu, de brilho multiplicado. Não te achando com mérito, ficarás como estás. Tem cuidado para não perderes tal prêmio.”
Retruca Martim: “Não te aflijas. Nunca fui detentor de qualquer prêmio, nem o serei agora, o que pouco me importa. Mas, meu tem- peramento e essas beldades! Isto me preocupa. Agora, silêncio, pois já estão aqui.”
OBISPOMARTIMSEDEFRONTACOMASTRÊSBELASVIRGENSDO SOL
No mesmo instante, três virgens de beleza fabulosa se dirigem de braços abertos a Martim, dizendo: “Maravilhoso guia desse grupo ex- cepcional, que de elevado nos trazes de tua sublimidade? Fala, pois te esperamos há tanto tempo!”
Martim morde a língua e belisca suas coxas a fim de não cair numa excessiva réplica amorosa. Por isso ele nada diz. Mas elas repetem sua pergunta com maior suavidade Martim se cala, mordendo a língua.
As três moças se admiram com sua mudez e dizem: “Criatura su- blime, por acaso percebes defeito em nós, pois não nos queres dirigir uma palavra? Por acaso não te agradamos? Estranho, pois vimos como pretendias beijar o disfarçado dragão, em tua casa nas alturas.
Além disso, nossos observadores já te viram em Mercúrio, onde quase te derreteste diante de uma beldade; e antes disto eles te viram ativo junto à manada de carneiros, e finalmente também te observaram na Terra, sendo testemunhas de tuas ações não muito louváveis. Lá fa- lavas bastante; e nós, filhas do Sol, não merecemos uma palavra tua! Sabemos que o silêncio na hora certa faz parte da sabedoria, mas teu
silêncio agora não dá essa impressão. Dize ao menos por que motivo silencias. Nossos corações anseiam por te ouvir!”
Martim quase se desfaz de amores para essas moças belíssimas e reflete o que responder a tal pedido. Percebeu que elas o conhecem per- feitamente, inclusive suas artimanhas. Por isto, diz de si para si: “Que problema difícil! Como me posso dirigir a elas? Primeiro, sua beleza indescritível aumenta a cada instante, dilatando seus encantos de tal forma que não encontro como me expressar. Além disto, elas me co- nhecem quase melhor que eu mesmo. Oh, Senhor, não me abandones, nem tu, meu rigor! Que olhos! Os cabelos longos e semelhantes ao ouro! As formas... Quem na Terra já teria visto essa alvura? A neve mais pura iluminada pelos raios do meio-dia pode ser comparada a elas como a pior graxa de sapato. Martim, afasta teu olhar, do contrário estarás totalmente perdido.”
TESTEENTRESABEDORIAE AMOR
Enquanto Martim monologa, as três virgens começam a sorrir, pois deduziram da expressão dele o que se passa; por isto dizem: “Amigo, vi- mos que és ainda bastante fraco e essa fraqueza paralisa tua inteligência. Somos de fato tão belas? Dize-nos ao menos isto!”
Martim está disposto a se atirar sobre a primeira moça; no entanto se contém e diz: “Sim, vossas formas são infinitamente belas; no entan- to, vossa sabedoria suplanta a beleza, tornando-a mais suportável. Não sou amigo de excessiva sabedoria; querendo-me como amigo, é preciso falardes de amor e não de sabedoria.
Conquanto viestes para me oferecer um prêmio, caso me reco- nhecêsseis qual sábio perfeito, caístes num engano, não obstante vossa grande sabedoria. Só conheço um prêmio, o amor, que é Deus, o Se- nhor, Que conheceis como Espírito Eterno, Criador de todas as coisas. Ele é meu prêmio, há muito tempo aceito por mim. Vosso prêmio de sabedoria não tem utilidade para mim, podendo ser entregue a alguém mais merecedor.”
Dizem elas: “Até agora não fizemos teste algum contigo e também seria inútil, pois vemos que espírito habita em ti. Tu te referiste ao prê- mio que possuis, dando-lhe grande valor e com justiça. No entanto, nosso parecer é outro. O Espírito Eterno e Criador não é divisível. Se bem que o Amor é Sua Natureza intrínseca, não é apenas Amor, mas também a Eterna Sabedoria. Se prezas este Amor, por acaso poderás separar dele a Sabedoria, a Luz de toda luz? Não te vem à ideia de que teu cálculo foi errado devido à tua precipitação? Como podes cogitar do corpo, desconsiderando a cabeça?”
Martim está perplexo, pensando: “Muito bem, agora me enrasquei! Que eu não perca o rigor, pois diante de tanta amabilidade se torna difícil mantê-lo. Com gestos sedutores elas aguardam uma resposta de mim. Mas, como torcer a língua, dizendo-lhes a verdade, sem ofender seus ouvidos habituados às harmonias celestes? Ah, já me ocorre algo razoável. Coragem, em Nome do Senhor!”
JUSTIFICATIVADEMARTIMERÉPLICADASFILHASDO SOL
Virando-se para as moças, ele prossegue: “Vossa resposta às minhas conjecturas é certa; no entanto, cometestes um engano considerável. Realmente, o Grande Espírito Eterno, em Seu Amor e Sabedoria é in- divisível, e onde existe um corpo deve haver uma cabeça. Em outras palavras, quem recebeu um prêmio do amor, não pode desprezar o da sabedoria, caso queira ser perfeito. Vossos belíssimos olhos já devem ter visto que minha cabeça foi premiada com um chapéu semelhante ao vosso, dado pelo Próprio Senhor. Se este fato não pode ser contestado, conclui-se que Ele me conferiu um prêmio dividido, o do amor, que no entanto contém o justo grau de sabedoria. Se assim é, não vejo a utili- dade de vosso prêmio da sabedoria. Se tenho uma cabeça, para que uma segunda? Se eu necessitar de fato de uma outra, segundo a Vontade de meu Senhor, eu a aceitarei de bom grado. Não havendo necessidade de duas cabeças, deveis compreender que não posso absolutamente aceitar o prêmio previsto.”
Dizem elas: “Estamos cientes que tal prêmio contém muito mais do que jamais poderemos compreender. No entanto, as inúmeras ex- periências nos ensinam que o Grande Deus proporciona uma vida per- feita e inteira a cada ser. Ninguém nasce sem cabeça e toda criatura é detentora de olhos para enxergar, ouvidos para ouvir, nariz para cheirar, a língua para sentir o paladar e vários nervos para reações e sentimentos. Nada falta a uma criança recém-nascida e tudo isso se origina do Amor, portanto igualmente da Sabedoria do Espírito Supremo.
Mas, como sucede que uma criança recém-nascida — obra do Amor e da Sabedoria — alcança a sabedoria muito mais tarde que o amor, que é em si a própria vida? Tu mesmo vives há bastante tempo e possuis amor em plenitude; mas, se perguntares se tua sabedoria corres- ponde à mesma idade que tua vida, responderás negativamente.
Nossos sábios mais cultos nos informaram que o Grande Deus em tua Terra dissera a um certo judeu inteligente: Ninguém ingressará no Reino de Deus, caso não renasça em espírito. — Dize-nos, como pode o Grande Deus exigir o renascimento de uma pessoa viva há bastante tempo, se já no ventre materno lhe proporcionou o necessário à con- quista total do eterno Reino de Deus? Em toda parte se nota que a maturação ocorre muito mais tarde. Poderias provar, dentro dos conhe- cimentos gerais, que uma criatura totalmente desenvolvida se origina do ventre materno? Porventura sabes por que o Grande Espírito te en- caminhou somente agora para estes dois espíritos muito sábios, depois de teres passado por tantas transformações? Explica-nos isto, pois dese- jamos assimilar de ti coisas deveras profundas.”
BOARESPOSTADE MARTIM
A essa explicação Martim se vê perdido, dizendo de si para si: “As- sim é que está certo! Elas têm razão em tudo, enquanto sou um burro perfeito, aliás, de chapéu na cabeça! Meus irmãos, tirai-me dessa enras- cada, do contrário levarei a pior!”
Diz Pedro: “Paciência, suporta esse teste de sabedoria, que tudo melhorará. Pensa um pouco, que hás de achar qualquer resposta. Sê sé-
rio, não te deixes envolver e positiva tua afirmação falando qual doutri- nador, que te sairás bem com esse grupo. Com os outros haverá maior dificuldade, mas te ajudaremos quando necessário.”
Diz Martim: “Segundo me parece, nada de importante será pro- duzido por mim, pois já esvaziei minha caixa de sabedoria. Tornou-se bem claro que a sabedoria terá que acompanhar o amor e não há o que se opor. Sabes algo melhor?” — Diz Pedro: “Não, o que é certo, o é na Terra como no Céu. Ainda assim, não te deixes dominar depois de algumas afirmações mais sábias, pois também as tuas merecem defesa. Medita um pouco, que descobrirás algo aproveitável.”
Depois de meditar algum tempo, Martim tem uma ideia que me- rece ser pronunciada e diz: “Vossa explicação não deixa de ser bastante sábia; falta-lhe porém algo, talvez muito simples ao vosso entendimen- to, no entanto não para mim. Informadas pelos sábios daquilo que o Grande Espírito ensinou na minha pequena Terra e conhecendo a natu- reza de todos os seres, admira-me muito que ignorais o que Jesus ainda falou em outras oportunidades.
Quando certa vez as genitoras levavam seus filhinhos para junto Dele, provocando um tumulto, os discípulos, que se achavam bastante sábios, impediram que elas se aproximassem do Senhor. Mas Ele lhes disse: ‘Deixai vir a Mim os pequeninos, pois deles é o Reino do Céu. Em verdade vos digo, se não vos tornardes semelhantes a eles, não en- trareis no Meu Reino.’
Se o Senhor impunha a infância aos que já eram sábios, como condição da conquista do Reino do Céu, ignoro porque considerais a sabedoria algo tão grandioso, dando a impressão de que só depois de se receber o prêmio da sabedoria é possível o ingresso no Reino do Céu. Acredito que a Doutrina de Deus é bem mais elevada e verdadeira que a vossa.
Se bem que o Senhor disse para Nicodemus ser preciso ele renascer de novo, caso quisesse entrar no Reino de Deus, Ele não Se referia à vossa sabedoria, que o judeu já possuía, mas à infância inocente, que é puro amor. É assim que eu interpreto a Palavra do Senhor e me prendo somente ao amor, entregando ao Senhor toda a sabedoria. Por isso es-
tou ao lado Dele, ao passo que não saberia onde me encontrar caso Ele considerasse minha sabedoria.
Além disto, ficou mais que provado que peca aquele que se van- gloria da sabedoria perante Deus. Se o coração da criatura simples está repleto de amor para com Deus, ela já possui o máximo prêmio de vida que lhe proporciona a filiação divina. Possuindo este prêmio, de que serviria o vosso? Por isto afirmo pela última vez: Não necessito de vosso prêmio da sabedoria, porquanto já tenho de há muito o que necessito. Cuidai de ganhardes o meu prêmio, que sereis felizes, pois o brilho da sabedoria transpira pouco amor. Falai, se tendes algo para dizer, mas não contai com uma resposta minha. Só precisamos de amor; todo o resto o Senhor nos dá quando necessitamos.”
COMOSEDEVEAMARA DEUS
Depois dessa explicação, as três filhas do Sol se curvam até o solo e dizem: “Só agora reconhecemos que és um verdadeiro filho Daquele que para nós não tem Nome. Tu nos venceste, somos tuas, inclusive esse prêmio. Deixa que sejamos as mais simples em tua casa e ensina-nos a amar o Deus Eterno.”
Diante dessa mudança, Martim diz, admirado: “Em minha casa existe espaço para milhares de pessoas, portanto também para vós. Mui- to maior que o vosso mundo é a casa que o Senhor, meu Pai Eterno, construiu para mim. Se tendes vontade de morar nela, desvencilhai-vos do prêmio da sabedoria e agarrai o meu, do amor, seguindo-me. Se pos- sível, cobri porém vossos encantos, mais poderosos que vossas palavras, para mim que vivo no amor e não na sabedoria.”
A essas palavras, as moças que se encontravam atrás trazem imedia- tamente vestidos azuis pregueados e vestem suas irmãs. Isso feito, elas se viram para Martim perguntando se são agradáveis aos olhos dele, não provocando escândalo.
Ele responde: “Está bem, pois esse é o costume em minha casa, a Casa do Grande e Santo Pai, que também anda completamente vesti- do. Muito embora sejais ainda infinitamente belas, agora meus olhos
suportam vosso aspecto. Outro assunto: Conheceis o Grande Espírito? Tendes uma Imagem Dele, e que faríeis caso fôsseis obrigadas a en- frentá-Lo?”
Dizem elas: “Esse Grande Espírito que tudo criou é tão infinita- mente Santo que não nos atrevemos a fazer uma ideia Dele. Isso só po- dem os sábios mais puros. Portanto, podes imaginar o que sentiríamos caso O enfrentássemos em Figura com a certeza de que é Ele Mesmo. Isso seria o pior a nos acontecer.”
Diz Martim: “Como então não tendes pavor de nós, Seus filhos? Vede os frutos da sabedoria pura. Aquilo que para o nosso coração é a máxima necessidade, é poupado para o vosso; e o que constitui nossa maior felicidade seria vosso máximo padecimento. Que diferença existe entre nós! Nunca sentistes um amor em vosso coração? Não sentis algo possivelmente para mim ou um de meus irmãos?”
Respondem elas: “Que queres dizer com isso? Sabemos que o amor é uma cobiça no coração, uma força concentrada que às vezes se apossa de coisas homogêneas, procurando unir-se com elas. Fora isto, igno- ramos o que seja o amor. Essa força do coração só pode agarrar coisas pequenas, por ser igualmente pequeno; como poderia agarrar algo tão grande como tu? Podemos respeitar-te muito, mas para nosso amor serias demasiado grande.”
Diz Martim: “Ha, ha! Vossa sabedoria começa a perder suas ba- ses. Não vos preocupeis com o tamanho do coração, bastante grande para muito amor. Dizei-me, quem de vós seria capaz de me abraçar com efusão?”
Respondem elas, alegres: “Oh, como não! Se o permitires, daremos uma prova cheia de fogo.” Ele consente e elas caem sobre o seu peito, dizendo: “Oh, como isso é bom! Deixa-nos bastante tempo assim!” Diz ele: “Sabia que tínheis amor, aliás bastante forte. Ficai assim presas ao meu peito, que vos ensinará muito bem.”
ATITUDEAMEAÇADORADOSTRÊSMARIDOSDASFILHASDO SOL
Os demais personagens do Sol percebem que as moças não tencio- nam largar Martim. A situação lhes parece algo estranha e entre eles se destacam os maridos, que dizem para Martim: “Vemos algo incomum aqui, algo fora de nossa ordem. Por isso te perguntamos o que significa isso? É teu desejo tomar essas moças para esposas? Não podes fecundá-
-las, porque não és deste mundo e, além disso, um espírito é incapaz de gerar. Quais são tuas intenções?”
Diz Martim: “Não vos preocupeis com elas, que se encontram muito melhor em minhas mãos que nas vossas, pois alimentais apenas sabedoria temperada com pouquíssimo amor. Eu lhes ensino a amar e elas assimilam esse sentimento segundo a Vontade do Grande Deus, Que em Si é o Amor mais puro e elevado. Aconselho que também aprendais isso, podendo subir, não permanecendo sempre neste mun- do, tanto física como espiritualmente. Levarei essas moças à minha casa, sem vos convidar, porquanto não tendes amor. Isto sucedendo e se demonstrando amor em vosso íntimo, encontrareis igualmente um lugarzinho no meu lar.”
Retrucam os homens: “O sentido de tuas palavras é desordenado, portanto, sem sabedoria e incompreensível para nós. Querendo falar-
-nos, terás que fazê-lo com sabedoria. Sabemos que vens da comunida- de dos filhos do Grande Espírito Original, e nossos sábios te conhecem desde tua vida na Terra. Tudo isso não tem valor para nós enquanto não estiveres provido da veste da sabedoria. Por tal motivo ordenamos, em nome da máxima sabedoria deste grande mundo de luz, que libertes essas moças, do contrário passarás por grande calamidade, inclusive os que te seguem. Obedece, ou chamaremos nossos espíritos mais podero- sos para vos prenderem.”
Diz Martim: “Ora vejam! Observai-me, pois sou o mais fraco en- tre todos que me acompanham e se tornaram hóspedes de minha casa; no entanto, tenho tanto poder que com o pensamento mais sutil vos poderia dizimar qual tempestade faria com o pó. Desisti de vossas ame-
aças, do contrário serei eu a pôr as mãos em cima de vós e os pretensos espíritos mais sábios. Vereis irradiar de mim tamanho rigor que vos dará a sensação de febre. Voltai por bem, do contrário mudarei o teor de minhas palavras.”
Os três homens do Sol levantam as mãos para o alto e chamam seus espíritos. Mas esses respondem através de uma nuvem: “Nada podemos fazer contra esse grupo, pois, sentimos em seu séquito o horror de todos os horrores. Obedecei ou fugi o mais rápido possível. Eles são muito poderosos e o Onipotente Se encontra entre eles. Para onde pretendeis fugir diante dos que são mais velozes que vossos pensamentos?”
Ditas essas palavras, Martim prossegue: “Então, meus caros e belos amigos, que diz vossa sabedoria a isto? Ainda pretendeis lutar conosco?” Respondem eles: “Nossa sabedoria afirma: se aquele com quem dese- jas lutar é mais forte, desiste da luta; e se ele te der um mandamento, obedece rigorosamente. Como és mais forte que nós, obedeceremos. Ordena o que queres de nós!”
Diz Martim: “Ide em frente, com exceção dessas moças, e organizai vosso lar; passaremos algum tempo junto de vós. O que deve ocorrer mais tarde será revelado por Outro de nosso grupo; pois, como já disse, sou o mais simples entre esses milhares.” — Os três homens se afastam para uma região luminosa, em direção a uma pequena elevação, onde se encontra um grande templo, destinado para moradia desses persona- gens solares, circundado, mais em baixo, por construções menores, nas quais são educadas as crianças.
CURIOSIDADEDASFREIRASESUACORREÇÃOPELABELEZADESVENDADADASFILHASDO SOL
Depois que o grupo de criaturas solares se afasta, as moças do Sol se erguem, aliás muito mais belas, pois agora transpira amor de seus olhos magníficos e suas palavras são apenas um canto de querubim falando de amor. As inúmeras mulheres conduzidas por Bórem e Cho- rel, incluindo os monges ao lado delas, começam a se aproximar para verem as beldades do Sol. Martim percebe imediatamente, através de
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um aviso Meu, qual a intenção delas, e sente o quanto as freiras, tão or- gulhosas de sua beleza, são ultrapassadas por aquelas beldades. Por isso, Martim lhes diz: “Vede, inúmeras mulheres de meu planeta começam a se adiantar afim de comparar sua beleza com a vossa. Como sois tão infinitamente atraentes, podendo vossa impressão matar as vaidosas por longo tempo, cobri o rosto com os cabelos e só depois de eu vos dar um sinal tirai-os aos poucos. Fazei-me esse favor.”
Dizem elas: “Somos realmente tão belas? Nunca alguém nos disse isto, pois aqui ignoramos a beleza física, e somente consideramos uma ordem na figura e uma correspondente beleza. Foste o primeiro a elo- giar nossas formas, o que transferíamos mais para a ordem e a sabedo- ria. Se é como dizes, explica em que consiste nossa supremacia física.”
Diz Martim: “Cumpri primeiro meu desejo, que explicarei tudo oportunamente” Contestam as moças: “Então vem cobrir nosso rosto, pois saberás como isto deve ser feito para não nos tornarmos perigosas para alguém.”
Martim não se faz de rogado e quando termina com a terceira moça, aproxima-se Bórem, dizendo: “Irmão, resolveste tua tarefa com maestria. Muito embora tenhas dois amigos junto de ti, conhecedores de todos os caminhos neste e em inúmeros mundos, realizaste verda- deiro milagre. Agora é preciso que sejas muito cuidadoso em relação às freiras impacientes, do contrário haverá confusão. De modo algum podes descobrir o rosto dessas filhas, senão por uma forte necessidade. Se te for possível evitá-lo, tanto melhor, pois quando as freiras virem essas moças, cairão fulminadas e começarão a se arranhar de tristeza e vexame. Cuidado, irmão, para evitares qualquer escândalo.”
Martim fica embaraçado e diz: “Ora, outra complicação em vista! As freiras sempre me deram o maior trabalho, e aqui ainda não me dão sossego. Teria vontade de apresentar essas beldades completamente des- nudas. Assim seriam humilhadas e talvez melhorassem.”
Diz Pedro: “Tens razão, não se pode tratá-las com luvas de pelica, pois se esforçam por agradar fisicamente além do que é justo. É acon- selhável usar-se no início recursos mais amenos para afastar tais restos mundanos da alma; mas se estes não são suficientes, convém usar-se as
raspadeiras. Tu, Bórem, tens razão; mas Martim igualmente. Deixemo-
-lo agir em liberdade.”
João concorda e acrescenta o seguinte para Bórem: “Ambos tendes razão. No Sol não existe noite, e o Polo Norte não ilumina igual ao do Sul. Traze a tua manada beata, que deve ser penteada e tosquiada da melhor maneira possível.”
Bórem, acompanhado de Chorel, vai ao encontro das vinte mais vaidosas, que se consideram sumamente belas. Elas rodeiam os amigos e dizem para Martim: “Onde estão aquelas maravilhosas moças do Sol, das quais nos disseram em tua casa que nada somos perto delas? Prova-
-nos essa afirmação.”
Diz Martim: “Muito bem! Ei-las aqui! São de vosso agrado?” Retrucam as freiras: “Vemos apenas cabelos e vestes pregueadas, que também possuímos. Queremos ver o rosto e o corpo.” Diz Martim: “Querendo morrer de tristeza e vergonha, será feito o que desejais. Res- pondei: sim ou não?”
As freiras, perplexas, se perguntam o que fazer, mas não chegam a uma resolução. Uma delas então se vira para Chorel, pedindo conselho e ele dá de ombros, respondendo depois de alguma reflexão: “É de fato difícil aconselhar-vos. Se disserdes: sim, tereis que aguardar o que foi dito por Martim. Respondendo: não, vossa curiosidade ilimitada vos aniquilará. Há algo melhor, mas duvido que o façais.”
Dizem as freiras: “Queremos fazer tudo que é justo. Dize o que é.” Responde Chorel: “Atrás de nós caminham os chineses e, atrás destes, vem o Senhor no meio das duas moças que O amam muitíssimo. Di- rigi-vos a Ele, Que saberá melhor que todos nós o que deve ser feito. Seguindo Sua Ordem, salvareis vossa pele; em caso contrário, sereis cul- padas daquilo que suceder, e não será brincadeira. Eis meu conselho; podeis fazer o que vos agrade.”
Retrucam elas: “Isto sabemos de há muito. Neste caso, nosso temor diante delas é mil vezes menor que do Senhor. Ele é o Senhor; todos nós somos apenas Suas criaturas. Belo ou feio, isto não muda para Ele. Por isto, achamos melhor observarmos essas beldades ao invés de nos aproximarmos do Senhor.”
Diz Chorel: “Muito bem. Se vosso parecer é melhor que o meu, poupai-me futuramente de qualquer problema.” Diante disto, as freiras se viram para Martim, dizendo: “Aconteça o que acontecer, queremos ver essas beldades em sua beleza total.”
Diz Martim: “Abri vossos olhos, que vossa vaidade há de passar dentro em breve.” — Virando-se para as moças do Sol, ele prossegue: “Afastai os cabelos de vosso rosto para ser visto por essas vaidosas.” Di- zem elas: “Se levarem prejuízo, preferimos continuar cobertas.”
Diz Martim: “Quem algo quiser, bem ou mal, não sofre injustiça. Elas vos querem ver, embora fossem avisadas. Então, seja feita sua von- tade e que sucumbam de uma vez!”
Retrucam as três moças: “Amigo sublime, és de fato um grande sábio, pois tuas palavras têm base positiva. Faremos o que aconselhaste, seja qual for o efeito.” Com essas palavras, as moças afastam os cabelos do rosto e o brilho forte de sua beleza excepcional tem o mesmo efeito que dez raios a se projetarem diante das freiras tolas. Caem por terra e só algumas conseguem balbuciar: “Ai de nós, feiosas, estamos perdidas! Crocodilos, rãs e outros bichos são mil vezes mais belos que nós compa- radas a elas. Senhor, faze com que fiquemos cegas, pois é preferível não enxergar a se defrontar com essas beldades!”
JOÃOEMARTIMPALESTRAMCOMASFILHASDO SOL
Em seguida elas silenciam e as três moças se viram para Martim, Pedro e João, dizendo: “Se já sabíeis antecipadamente deste resultado, por que nos mandastes descobrir nosso rosto? Agora as coitadas estão no chão, totalmente sem ânimo. Não podeis reanimá-las? Por favor, fazei isto, pois estamos arrependidas de nossa ação.”
Diz João: “Não vos preocupeis. O que ocorreu diante de vossa be- leza inaudita, dada por Deus, é muito salutar para essas criaturas. Pre- cisamente com isto se libertam de um fardo pesadíssimo que as teria mantido incapacitadas de gozar alegrias maiores do Céu de Deus. Com um golpe ficaram livres para sempre, podendo se erguer para uma vida melhor e mais pura. Chegarão a poder olhar-vos sem aborrecimento,
vergonha e prejuízo, como nós, e também vos ajudarão, como filhas do Altíssimo.
No momento estão quase que mortas, porque lhes foi tirado seu amor-próprio, que então as alimentava muito mais que o amor a Deus, Senhor Eterno de todas as Glórias e Vida. Mas, vede, lá no fundo surge um homem, um pai entre duas filhas. Ele chamará de volta essas moças aparentemente mortas e assim resplandecerá diante de vossos olhos a Glória de Deus.”
Retrucam as três moças: “Tendo pronunciado palavras tão confor- tadoras, dize-nos ainda quem é aquele que vem cercado de duas filhas? É ele também um irmão vosso, habitante de vosso planeta?”
Diz João: “Da maneira como O vedes caminhando, é um Irmão de todos e descende, segundo Sua Natureza, da Terra, aquele pequeno planeta que vossos sábios chamam de santo; todavia, é Ele nosso Mestre e Senhor. Quem é Mestre também é Senhor, sendo Ele Senhor de todas as coisas.”
Dizem elas: “Neste caso, deve ser mais que vós, talvez como entre nós o mais sábio de todos, a quem devem obedecer não somente todas as criaturas, mas igualmente a própria matéria, flora e fauna.” Concorda João: “Sim, mais ou menos isso; todavia, ainda é diferente, o que vereis dentro em breve.” Dizem as moças: “Será preciso que nos cubramos?” Responde João: “De modo algum. Ele vos conhece de há muito e ao vosso mundo, antes que este existisse e antes que nós e vossos sábios existíssemos.”
As filhas do Sol muito se admiram, dizendo: “Isto nunca ouvimos falar, nem de nossos sábios mais importantes, pois afirmam que nosso mundo de luz é qual mãe de todos os mundos, portanto, mais antigo. Se nosso mundo quase infinito é o maior — e isto é certo porque já fomos testemunhas como de seu seio enorme surgiam outros, meno- res — como pode um sábio de outro mundo, menor, ser mais antigo que nossos sábios? Deve haver um engano de tua parte. A menos que vosso mestre fosse espírito de um arcanjo. Isto sendo difícil pela falta de brilho, o que é fato comum em outros espíritos angelicais, deves com- preender se te acusamos de engano.”
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Diz João: “Minhas filhas, vossos sábios calculam certo; nós ainda melhor, havendo grande diferença entre nós. Somos verdadeiros filhos do Altíssimo; vós, apenas Suas criaturas, e somente através de nós po- dereis chegar a ser Seus netos. Isto também é do vosso conhecimento, pela boca dos sábios. Se assim é, quem são mais velhos, os filhos ou os netos?”
As três moças estão perplexas e dizem após certo tempo: “Tua per- gunta é de uma sabedoria muito profunda e não podemos respondê-la; talvez nossos sábios estejam em condições de fazê-lo, mas não estamos certas, porque não podemos abarcar o grau de sabedoria deles. Deixe- mos esse assunto, pois vosso Mestre e Senhor já chegou bem próximo e desejamos nos preparar para tanto. Dize-nos apenas como Ele deseja ser recebido, para estarmos em condições, interna e externamente.”
Diz João: “Neste assunto dirigi-vos ao vosso segundo pai Martim, que vos ensinou a amar. Ele saberá responder com segurança.” As moças assim fazem e Martim lhes responde: “Queridas filhas: Junto a esse nos- so Mestre e Senhor só vale o amor; por isto recebei-O com o máximo amor que O conquistareis e então tereis ganho tudo, pois todas as coisas Lhe são possíveis. Poderia até mesmo transformar-vos em verdadeiros filhos de Deus.”
Dizem elas: “Poderíamos amá-lo assim como te amamos anterior- mente e abraçá-lo à vontade?”
Diz Martim: “Claro, pois o amor jamais comete deslize! Se num caso extremo Ele vos dissesse: Não me toqueis! — isto não vos deve reter, mas incendiar ainda mais vosso coração, e então Ele Se encami- nhará para junto de vós, permitindo em plenitude aquilo que vosso coração anseia. Uma vez aceitas em Seu Coração, havereis de sentir uma felicidade imensa, da qual nenhum de vossos sábios jamais teve o menor vislumbre.”
Dizem elas: “Aquelas duas moças estão neste momento certamente gozando tal felicidade! Deve ser um espírito poderosíssimo, pois, como verdadeiros filhos, reconheceis ser ele vosso mestre e senhor. Certamen- te é o primeiro filho do Altíssimo, Seu predileto e Seu todo?”
Responde Martim: “Sim, atingistes o ponto central da questão. Agora calma, pois Ele não demora a estar aqui. Os mortos, com a Sua aproximação, já começam a se mexer. Que me dizeis, não é Ele suma- mente agradável?” Retrucam elas: “De fato, tal amabilidade não pode ter comparação em todos os Céus. Quanta meiguice se irradia de todo o seu ser! Quanto mais se aproxima, tanto mais atraente se torna! Per- doai-nos, mas diante dele sois apenas sombras ocas. Amigo, não con- seguimos reter nosso sentimento, e vê, agora, a dez passos daqui, ele nos acena com o indicador! A quem se destinará esse aceno, pois até as montanhas se curvam quando repete o aceno?”
Diz Martim, totalmente comovido: “Destina-se a vós, e certamen- te também a esse vosso mundo. Apressai-vos e fazei o que vos ensinei.” Dizem elas: “Guiai-nos, não temos forças e coragem, pois nosso amor paralisa os movimentos.” Martim, João e Pedro assistem as três moças e as conduzem calmamente a Mim.
OSENHORELOGIAMARTIMCOMOPESCADORDEALMAS.OBOMUSODAGRAÇA DIVINA
Quando Chanchah e Gela avistam as belezas excepcionais das fi- lhas do Sol, levam forte susto e a primeira diz: “Santo Pai, que criaturas são essas? São de fato criaturas ou espíritos originais, cujo sentir desde eternidades foi mais imaculado que a luz das estrelas mais brilhantes? Minha figura deve ser um horror comparada com essas e chego a pen- sar — perdoa-me — ser-Te quase impossível formar imagem feminina tão bela. Tal pensamento é tão tolo quanto eu. Mas, sua beleza é quase insuportável!” Gela se cala e suspira secretamente, em virtude de sua suposta feiura.
Eu as deixo algum tempo neste desânimo e em seguida digo para Martim: “Como vejo, estás te dando bem com a pescaria, pois apa- nhaste três peixinhos apreciáveis das águas profundas do Sol, o que Me alegra bastante. Por isto serei obrigado a fazer de ti um verdadeiro pescador nestas águas; assim te firmas mais e fazes parte dos Meus prin- cipais pescadores, Pedro e João.
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Soubeste agir bem, dando-Me grande alegria. Até hoje nenhum pescador enviado a esse mundo de luz conseguiu pescar criaturas em sua rede. Sua sabedoria é grande e sua beleza já provocou total aniqui- lamento a muitos pescadores. Serei obrigado a te dar uma tarefa maior, porquanto trabalhaste tão bem num empreendimento pequeno.”
Diz Martim: “Ó Senhor e Pai, tal é uma graça imerecida. Sem ela teria passado mal na companhia dessas adoráveis filhas do Sol; se bem que não me derrotassem pela sabedoria, tanto mais o fariam pela sua beleza. Ajudaste-me por meio desses fortes irmãos e tudo correu bem. Se me tivesses largado um pouquinho só, minha força seria anulada, e o que teria acontecido depois, só Tu o sabes.”
Digo Eu: “Meu filho, falaste certo, pois sem Mim ninguém fará algo. Mas a situação é a seguinte: a transmissão de Minha Graça é de fato MinhaObra e ninguém é privado dela. A posse dessa Minha Graça e a ação segundo sua insuflação é obra particular de todo espírito livre, portanto também tua, razão por que te elogio por teres tomado a ti Minha Graça e agido tão favoravelmente.
Transmito Minha Graça a muitos que a percebem e Me louvam; mas, quando devem agir segundo ela, a desconsideram e continuam em seus hábitos prejudiciais. Enquanto encarnados, vivem conforme seus apetites e permanecem sensuais até o último momento. Chegando ao reino dos espíritos, são dez vezes piores, pois têm tudo que desejam. Desfrutam também de Minha Graça Poderosa, mas a desconsideram, o que se torna nocivo para eles. Agiste considerando Minha Graça e mereces Meu Elogio, mormente aqui, onde é mil vezes mais difícil que na Terra empregar-se Minha Graça ativamente. Prossegue deste modo, que em breve teu espírito se alegrará de uma liberdade tão forte que é difícil encontrar uma semelhante.”
Pedro e João também testemunham, dizendo: “Não teríamos tido coragem de enfrentar as moças do Sol com amor porque as conhecemos e sabemos o que fazem assim que descobrem uma fraqueza, por menor que seja, num espírito. Martim o conseguiu. Todo louvor a Ti, Senhor, e para Martim uma coroa de herói.” Acrescento: “Amém. Agora, Mar-
tim, apresenta-Me teus três peixinhos para ouvir como os preparaste para Mim.”
CENAENCANTADORAENTREOSENHOREASFILHASDO SOL
Martim se vira para as moças e diz: “Chegamos ao ponto certo. Abri vossos corações conforme vos ensinei e o calor de vosso coração o exige.” A tal convite elas estendem os braços e fazem menção de se atirarem ao Meu Peito. Eu as impeço, dizendo: “Minhas filhas, não Me toqueis, pois ainda estais encarnadas e tal ato mataria o físico. Quan- do estiverdes fora do corpo, podereis tocar-Me, sem prejuízo. Sou um Espírito Perfeito, razão por que somente espíritos perfeitos Me po- dem tocar.”
Protestam elas: “Mas esse irmão também é um espírito; ainda as- sim o abraçamos, conhecendo o amor sem sermos prejudicadas. Se tu, maravilhoso mestre e senhor de teus irmãos, és um espírito mais perfei- to, acreditamos que o dano seria menor se desfrutássemos o amor mais doce, entregando-nos inteiramente. Que mal faria se morrêssemos? É preferível amar-se sem corpo, a ser banida do amor com ele. Vê só como sofremos por não podermos amar-te como desejamos.”
Digo Eu: “Queridas, podeis amar-Me com todas as forças de vossa alma, mas não deveis tocar-me, porque isto vos prejudicaria. Sendo o vosso sentimento tão forte, a ponto de querer dissolver o físico, podeis tocar os Meus Pés, pois o Meu Peito seria por demais quente.”
A essas palavras, as três moças se atiram a Meus Pés, abraçando-os com suas mãos delicadas e dizem com vozes harmoniosas: “Que suavi- dade! Se nossos irmãos, que são bilhões, soubessem quão doce é o amor, dariam toda sua sabedoria em troca de uma gota dele. Maravilhoso Senhor e Mestre, por que nós, criaturas deste mundo estupendo, igno- ramos o amor? Por que somos obrigadas a escavar a sabedoria jamais penetrada dos Céus do Espírito Eterno, sem sabermos o que vem a ser o mais doce amor?”
ASDIFÍCEISCONDIÇÕESPARAACONQUISTADAFILIAÇÃODIVINANA TERRA
Digo Eu: “Queridas filhas, o corpo humano possui vários mem- bros e instrumentos sensoriais. No entanto, o ouvido não dispõe da- quilo que tem o olho; a boca ignora o que tem o nariz; a cabeça, o que pertence ao coração, etc. Mas, se o físico todo é sadio, os membros e órgãos também o são, e a visão não se entristece porque não ouve, nem o ouvido porque não vê.
Assim, também a cabeça nunca se queixou por se encontrar mais afastada do coração que o pulmão, pois todos os órgãos, seja sua função qual for, vivem de um só coração, habitação do amor e da vida. Deste modo, também vós sois — se bem que não o próprio coração na grande Ordem das coisas de Deus — participantes de tudo que vem do Co- ração do Pai. Quem reconhece o amor, especialmente como vós, será igualmente aceito pelo amor.
Enquanto ainda fordes sangue, podereis participar de cada órgão; tão logo o sangue se tiver unido com qualquer órgão, impossível cogi- tar-se do futuro encaminhamento de tal partícula de sangue ligada a determinado órgão. Sei perfeitamente que vossos sábios se admiram do grande privilégio daquele pequeno mundo — geralmente denomina- do o santo planeta por serem seus habitantes exclusivamente filhos do Altíssimo — mas considerai quão penosamente passam sua existência temporária.
Têm que suportar fome, sede, frio, calor, com um físico fraco desde a infância. Tal físico é acometido por mil enfermidades e finalmente sucumbe numa morte dolorosa. Lá o homem nasce e morre com dores. Até os doze anos quase não consegue elaborar um pensamento concreto e é educado para uma criatura razoável através de chibatadas dolorosas. Mal chegou a época da razão, é-lhe aplicado o jugo pesado de leis du- ríssimas, cuja infração lhe garantem penas temporais e eternas. Além disso, precisa cuidar de seu alimento por meio de trabalhos pesados. Acresce a isto a incerteza constante se após a morte dolorosa ainda haja uma vida qualquer; e se é que existe, tal hipótese lhe é demonstrada
mais penosamente e de modo menos desejável que a eterna destruição. Além de todas as amarguras da vida, é ele tão animado por um amor a ela, que a morte penosa lhe parece algo pavoroso.
Considerando as criaturas do planeta chamado de santo, seus sofri- mentos a fim de corresponderem à missão sublime, porventura mere- cem ser invejadas? Estaríeis dispostas a suportar e vos tornar aquilo que não são desde que nascem, e também não serão caso não cumpram to- das as difíceis condições das leis dadas pelo Máximo Espírito Divino?”
CRÍTICACONTRAAFILIAÇÃO DIVINA
A essa descrição, as três filhas do Sol se levantam e dizem: “Sublime amigo e mestre da sabedoria! Se a Grande Divindade usa tal tratamento para com os Seus filhos, tal filiação não tem valor para nós, eterna- mente. Se um entre milhares tivesse recebido todas as capacidades do Altíssimo através de uma vida terrivelmente abnegada, não podem ser comparadas com os sofrimentos, e além disto só podem ser conferidas a quem tiver suportado toda a possível miséria com a máxima paciência. De que adianta a tal filho a máxima bem-aventurança dada pelo Espírito Supremo? Caso lhe reste a recordação daquilo por que passou anteriormente, esta terá que amargurar toda a sua felicidade, tanto mais quando assiste seus irmãos padecerem aos milhares, em qualquer ponto de punição eterna, muito embora tenha, entre bilhões, resolvido sua
tarefa terrível.
Não havendo recordação de sua miséria anterior e não se preocu- pando com seus irmãos infelizes, porque somente ele tivera a felicidade quase inatingível de se tornar um filho de Deus, foi ele ludibriado por- quanto, sem recordação, não poderá afirmar ter conquistado a bem-a- venturança. Desconhecendo os que com ele se infelicitaram, uma crian- ça aqui no Sol já é mais sábia e iluminada que tal filho de Deus, que de sua filiação divina nada mais goza senão uma bem-aventurança obtusa, qualificação vazia e sem importância.
Em tais condições, não nos interessa essa decantada filiação divina, mesmo que fôssemos semelhantes a ti, na hipótese que tua filiação tam-
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bém te tenha custado grande sofrimento preliminar. Não compreende- mos a Sabedoria de Deus por ter satisfação em seres tão martirizados. De fato, tal Deus e o nosso certamente se desconhecem.
Sentimos grande piedade de vós e vos convidamos a ficar entre nós, onde sereis mais felizes que na situação atual. Se bem que vosso amor seja algo suave e doce — e em parte a base da vida — de nada adianta se o espírito continua preso eternamente e sua movimentação é quase nula, pois só lhe é permitido movimentar-se nos limites restritos de uma ordem determinada.
Nós, habitantes desse grande mundo, somos realmente livres atra- vés da sabedoria; ela nos liberta e submete a nós todas as coisas da sabedoria de nossos espíritos. Se além disto consideramos o amor ape- nas como força muda e vegetativa, desconhecemos qualquer imperfei- ção física e muito menos moral. Somos perfeitos na forma, no pensar, desejar e agir, e não havereis de encontrar a menor imperfeição nem nos vales, nem nas montanhas. Desconhecemos totalmente inveja, ira, ambição, avareza, impudicícia e domínio, pois a verdadeira sabedoria nos ensina os mesmos direitos e privilégios. Somos todos a perfeita se- melhança do Espírito Sublime e O respeitamos no próximo pela justa sabedoria Dele recebida. Eis a veneração digna desse Espírito. Julgais conquistá-Lo apenas pelo amor e vos tornar Seus filhos? Como sois fracos imaginando — como supostos filhos — ser possível à criatura aproximar-se Dele qual criança recém-nascida! Sois totalmente errados, demonstrando que a noção de espíritovos é inteiramente desconheci- da, ainda que pretendais ser espíritos renascidos. Não vos conheceis e nunca o fizestes; no entanto pretendeis conhecer o Eterno Espírito Ori- ginal de todos os espíritos e finalmente quereis ser Seus filhos diletos? Frequentai nossa Escola, onde podereis conhecer a vós mesmos e em seguida ao Espírito Supremo!”
“Não nos passou desapercebido que especialmente esse irmão, que chamais de Martim, é detentor de alguns lampejos de sabedoria místi- ca, semelhante à de nossos moradores das cordilheiras, que às vezes nos apresentam problemas semelhantes à distância correspondente às nos- sas moradas. Mas, de que serve tal mística elevada, quando vos faltam os princípios da vida prática da sabedoria? Consistem na condescen- dência para com os fracos, pois se o forte quer vencer o fraco, perdeu-se toda a ordem da sabedoria. Toda força tem que encontrar a vitória em sua consciência clara e jamais na sujeição ultrajante daquele que de longe denota sua fraqueza.
Assim agimos quando vos percebemos muito mais fracos em nosso solo. Fizemos o que nos pedistes a fim de pesquisar-vos mais profun- damente, e descobrimos que sois criaturas muito lastimáveis. Por isto vos convidamos, não obstante serdes espíritos, a aprenderdes a justa sabedoria tão necessária, caso desejardes receber pensamentos e noções mais adiantados do Grande Espírito. Nossos espíritos puros das águas flutuantes nos haviam revelado que não conviria reagirmos contra vós, porque em vosso meio se encontrava o espírito mais apavorante; no entanto, não compreendemos esse aviso. Agora constatamos que se referiam a ti, e o mais apavorante consiste em que tenhas atingido o máximo em tua imaginação tola, julgando seres o primeiro filho do Altíssimo, estimulando ainda teus irmãos nesta fantasia. Entre nós o ludibrio dos irmãos mais fracos é o mais apavorante.
Quem for forte não deve ocultar sua força, mas também não a faça prevalecer nos fracos. Quem for fraco não procure parecer forte, pois assim a força do forte e a fraqueza do fraco se transformarão em uma força única no forte. Considerai essas palavras dos filhos menores deste mundo maravilhoso e vinde às moradas hospitaleiras de nossos patriar- cas. Lá havereis de receber um ensinamento bem mais profundo, que não vos deve impedir de aceitá-lo, julgando-vos perfeitos.
Através da sabedoria justa já somos, quando crianças, muito mais perfeitos e puros do que jamais podereis alcançar. O elemento espiritual
não se encontra no físico, mas no próprio espírito que permanece sem- pre o mesmo, seja num corpo mais grosseiro ou mais etéreo.
Além disto, não deveis comparar nosso físico com o vosso usado no dito planeta santo, pois era muito mais grosseiro, pesado, obtuso e de- sajeitado que as pedras mais rústicas. Deveis convir que nossos corpos são muito mais etéreos e semelhantes à luz que vossos espíritos, como são vistos aqui, apresentando pureza muito maior e justa ordem por serem penetrados constantemente pelo espírito que os habita.
Vinde conosco, pois em nossas moradas vos purificareis muito mais que agora; todavia, não vos é imposta qualquer coação através da força superior que não costumamos expor tão ostensivamente como tu, Martim. Não concordas que superestimaste tua força? Não te critica- mos, mas como agora nos conheces melhor, certamente não repetirás tal coisa, nem pensando ou falando a respeito.
Iremos na vanguarda e, se for de vosso agrado, podeis nos acompa- nhar, pois garantimos a mais amável acolhida em nossos lares, que não são como o teu, apenas uma imaginação fixada, mas construídos pela vontade e materialmente. A fim de que vejas que nossa sabedoria vai bem mais longe que a tua — e nós conhecemos a vós todos muito me- lhor do que pensais — hás de constatar uma encenação na qual te reen- contrarás desde o início até este momento. Presumes encontrar-te fora de teu lar celeste, todavia nos encontramos dentro do mesmo e vemos perfeitamente o que lá sucede e também fomos testemunhas quando pretendias aplicar um beijo apaixonado no dragão disfarçado. Não pre- cisas pensar, querendo descobrir essa nossa força visual; em tempo justo hás de encontrar na justa sabedoria a base de tudo, caso nos acompa- nhes.” Após esse discurso prolongado, as três moças do Sol se afastam.
RETUMBANTEEFEITODASABEDORIADASFILHASDO SOL
Martim, que parecia pisar em brasas, se dirige para Mim e diz: “Senhor e Pai, caímos num verdadeiro ninho de marimbondos. Pe- dro e Paulo, vosso louvor a respeito de minha coragem e vitória foi
prematuramente expresso. Agora vemos que sorte de vitória alcancei e o sabor dessas trutas solares. Senhor, quando me lembro de minha pescaria miserável, foi ela bem mais louvável que esta. Tua Bondade e Graça nomeou-me para real mestre pescador nas águas da vida do Sol. Mas agora Te peço que retires tal nomeação, pois esses peixes são capazes de me devorar antes de eu pensar em pescá-los. Que discurso essas três nos apresentaram de uma só vez! E o pior é que não existe o que argumentar! Elas são boas, nobres, meigas, condescendentes e incrivelmente belas! Todavia, tenho vontade de estourar de raiva pela admoestação recebida. Devemos segui-las? Eu não! É o que nos faltava: aprendermos algo com elas! E Tu, Senhor, Pedro e João — também devereis acompanhá-las?”
Digo Eu: “Fica calmo, pois faremos o que elas desejam de nós e então veremos o resultado. Quanto mais truncada uma comédia, tanto mais feliz a solução. Vós, Meus primeiros filhos, irmãos e amigos, ten- des que aprender tudo, do contrário não sereis úteis para Meus serviços. Vamos com paciência ao encalço delas.”
Diz Martim: “Senhor, sabes que para mim prevalece sempre Tua Santa Vontade, pois conheces nossos caminhos para chegarmos à meta que Tu, Deus, Pai, Senhor, Amor e Sabedoria determinaste para nós. Ainda assim me sinto qual boi diante da montanha e não consigo con- catenar a massa de incoerências produzidas pelas filhas do Sol. Percebo cada vez mais que suas frases têm que ser contraditórias, mas não posso argumentar, pois tudo estava certo. Tu Mesmo deves ter observado a felicidade delas quando me abraçavam e queriam aprender o amor, cuja doçura foi tão elogiada que seus companheiros chamaram seus espíritos para me dominarem, no entanto sua reação foi bem diversa. Naquele momento o amor lhes representava tudo; agora o declaram como uma força vegetativa e muda, mais um absurdo sem valor servindo apenas aos seres livres para procriação, sem motivação própria, que certamente consiste num fluido eletromagnético, superimponderável.
Como sua linguagem foi cheia de lirismo quando acenaste para elas! Cheguei a pensar: Vê só, elas já perceberam com Quem estão li- dando, ou pelo menos o suspeitam. Mas, qual não foi minha decepção!
Como falaram diferentemente ao abraçarem Teus Pés e que reação forte ao enunciares as amargas condições necessárias a uma criatura na Terra para alcançar Tua filiação — quando aliás demonstraste pouco de Teu Infinito Amor, Graça e Misericórdia.
Realmente, se a situação com os habitantes do Sol continuar des- ta forma, nossa colheita será pequena, pois seria mais fácil alcançar-se algo com o próprio Satanás a convencê-las da Verdade. Afirmo que um demônio pavoroso é mil vezes menos perigoso que tais beldades super- celestes que possuem tamanha astúcia.
Tua Vontade seja cumprida, Senhor, e iremos visitá-las em seus lares. Mas, hás de permitir que eu não controle minha língua em certas ocasiões. Sua ilimitada beleza não me confundirá mais, pois em Tua Honra e em Teu Nome me tornarei um leão lutando com mil espadas incandescentes. Naturalmente, não podes abandonar-me, do contrário minha coragem cairia em frangalhos.”
DIRETRIZESREFERENTESAPROCESSOSÍNTIMOSDASFILHASDO SOL
Digo Eu: “Caro amigo, tua vontade e coragem merecem todo lou- vor. No entanto, nunca deves empreender algo movido por uma reação forte antes de penetrares o verdadeiro motivo pelo qual pretendes lutar qual leão com mil espadas.
Há tempos te nomeei para mestre pescador desse mundo, e isto continuarás sendo, e a coroa de herói oferecida por Pedro também será tua, porquanto te portaste de modo verdadeiramente positivo, pois é de fato muito difícil levar tais criaturas ao ponto atingido, muito embora munido de Minha Força. Não deves supor que elas tenham desistido do amor pelo fato de terem sido afastadas por Mim. Se assim fosse, não nos teriam convidado a acompanhá-las, tampouco teriam feito tamanho discurso, pois sua sabedoria costuma ser bastante lacônica.
Justamente por ter seu coração se agarrado a nós tão fortemente foram elas tão efusivas, e ainda estariam falando caso tivéssemos feito alguma objeção. Como as deixássemos falar à vontade, chegaram a um
final e te asseguro que nos deixaram com o coração bastante pesado e estão ansiosas por nos receber, e verás que voltarão aqui porque fizemos uma parada. Seria injusto de nossa parte se as julgássemos segundo seu discurso, movido pelo ciúme, que precisamente fora provocado pelo amor desperto. Perceberam que sua beleza nos deixou um tanto indife- rentes e tampouco seu amor apaixonado as tornava mais agradáveis. Por isto recorreram à sabedoria, pretendendo tornar-se úteis na medida do possível. Então pergunto: seria aconselhável enfrentá-las qual leão com mil espadas? Pensa um pouco e me responde.”
Martim reflete bastante e diz finalmente: “Naturalmente, assim é. Onde estava minha razão? É incrível minha tolice e estupidez! Eis que elas já vêm descendo a colina. Minhas queridas, vinde aqui, pois des- ta vez recebereis tratamento bem melhor. Que farei para corrigir meu grande erro? Certamente estão cientes do que eu falei Contigo a respei- to delas. Que situação!”
Digo Eu: “Tem o devido equilíbrio, que tudo correrá bem. Con- sidera o ensino que deve ser empregado aqui — cheio de amor, com rigor externo — que continuarás sempre o mesmo vitorioso e mestre de pescaria nas águas do Sol. Agora controla-te, pois já estão bem perto.”
Pede Martim: “Senhor, dá-me um pouco mais de compreensão e percepção para que possa julgar melhor sua sabedoria notável.” Digo Eu: “Não te preocupes, pois justamente como és podes Me servir mais que Pedro e João, cuja visão penetra em todos os segredos desse mundo. Quem antecipadamente sabe do resultado de seu esforço em virtude da ordem estabelecida desse mundo, não se atreve a tanto quanto um outro que julga tais seres segundo a ordem de seu próprio mundo. Con- tinua como és, que serás bem sucedido.
Essas criaturas perdem o interesse com um espírito ao perceberem que é semelhante a elas na sabedoria, ou, como ocorre com Pedro e João, as superam de longe. Lidando com pessoas como tu, tornam-se muito amáveis e podem ser envolvidas com facilidade.”
PALESTRAENTREOSENHOREASBELDADESDO SOL
Quando as três moças chegam junto de nós, na mesma veste como anteriormente se apresentaram perante Martim, dirigem-se a Mim di- zendo: “Quanto tempo pretendes fazer-nos esperar com teus amigos, até nos achares dignas de receber-vos em uma de nossas moradas? Atra- vés de nossos sábios, de espíritos de nosso grande mundo, como tam- bém de outros que várias vezes nos visitaram, fomos informadas que não só somos sumamente belas, mas igualmente de moral muito pura. Os próprios seres mais puros da luz não conseguem descobrir qual- quer mácula em nós, achando-nos dignas de sua visita, e nos relatam das obras maravilhosas no Reino do Espírito Altíssimo que chamais de Deus e Pai, que continua criando a todo instante.
Se, portanto, todos os anjos e espíritos dão tal testemunho e não se portam retraídos, não podemos compreender o que vos faz sentir tão pouca simpatia por nós. Nunca pedimos aos espíritos para que nos visitem; se assim o fazem é porque sempre encontram o que os alegra. Quanto a vós, insistimos da melhor maneira possível e pela sabedoria mais elevada; no entanto, parece que não tivemos o menor efeito. Pe- dimos, portanto, que nos digas porque ainda não nos procurastes em nossas moradas, onde milhares vos aguardam.”
Respondo: “Nenhum de vós é culpado, pois conheço muito bem vossa figura, vossa moral pura e vossos lares. Mas, também somos li- vres como vós e não há quem nos diga para fazermos isto ou aquilo, pedindo contas de nossas ações. Segundo vossa sabedoria, deveis estar orientadas que não nos deixamos atrair pela simples sabedoria, senão pelo amor justo e verdadeiro. Se formos amados, seguiremos ao desejo de vosso coração; pela suposta sabedoria profunda não daremos um passo adiante.
Percebi que usastes as palavras sábias dirigidas a Mim como pretex- to para ocultardes vosso verdadeiro amor. Acontece não ser Eu amigo de tais disfarces, mas aprecio a máxima sinceridade do coração. Querendo que Eu e os Meus amigos entremos em vossas moradas, é preciso não serdes diferentes daquilo que sentis, pois penetro as fibras mais ocultas
de vossa vida. O que Eu vejo, todos que Me acompanham também per- cebem, como também inúmeros outros perfeitamente unos Comigo.”
EFEITOHUMILHANTEDABELEZADASMOÇAS SOLARES
A essas Minhas Palavras, as três moças se despem, dizendo: “Se é assim, então essas roupas também não devem nos cobrir, pois são um disfarce da verdade e contribuem para ocultar nosso amor no coração, o que não se justifica.” Usando, portanto, apenas um cinto largo e de- monstrando totalmente a sua beleza, todas as mulheres se desesperam diante de sua própria fealdade.
Martim se irrita com tal procedimento e diz com energia: “Pronto! Eis a reação dessas tolas. Nota-se que o Céu em nada é melhor que a Terra com suas criaturas perecíveis. Lá elas ficam totalmente tolas de- vido ao perecimento, fazendo com que a vida verdadeira se perca em sua apresentação verdadeira. Desconhecem que vivem e muito menos sabem algo após a morte.
Aqui no Céu terminaram as preocupações com a morte, mas em seu lugar surgem milhares de outras misérias que ultrapassam as pri- meiras. Criaturas tolas, julgais que o Senhor vos criou para a futilidade ou como enfeite dos Céus? Presumis possuirdes o constante direito de vos tornardes um peso insuportável para os homens com o exército de vossas tolices?
Por causa de um ódio oculto, por serem essas meninas do Sol in- finitamente mais belas, estas aqui gritam de desespero. Digo apenas o seguinte: Se vosso progresso na tolice prosseguir nesta marcha, sereis capazes de ficar mais horríveis que aquele hóspede que eu arrastei com Bórem para minha casa. Erguei-vos, se quiserdes continuar conosco!”
A essas palavras as mulheres se levantam e se dirigem a Mim, pe- dindo que Eu faça a Martim uma admoestação. Respondo: “Se sois capazes de falar, retribuí-lhe o que não vos agrada. A Mim ele não ofen- deu, pois foi justo vos chamando a atenção por um pequeno trovão.” Retrucam elas: “Oh Senhor, também Tu és contra nós? Onde então encontraremos Graça?”
Digo Eu: “Na humildade, obediência e no justo amor para Mim. Através da vaidade não haveis de alcançar Graça alguma. Segui o con- selho de Martim, tornai-vos amigas das outras e amai-as, que sua beleza não haverá de vos perturbar.” Então as moças começam a se acalmar e algumas até conseguem suportar a grande beleza, aproximando-se delas.
NOVATENTAÇÃODE MARTIM
As filhas do Sol haviam notado o embaraço provocado por elas em virtude de sua nudez; por isto se aproximam e dizem: “Respeitáveis irmãs, atirai para longe o que não mereceis, assim nossa figura não vos perturbará. Não nos cabe culpa ter o Onipotente nos criado tão belas, e não alimentamos vaidade e orgulho terreno porque percebemos ni- tidamente que não somos obra nossa, mas exclusivamente Dele. Seria desprezível de nossa parte se olhássemos para vós com orgulho.
Foi justamente o Poder do Altíssimo Espírito que nos fez a todas como achou por bem. Como então nos vangloriarmos ou vos despre- zarmos em virtude de qualidades dadas por Ele Mesmo? Sede alegres, irmãs, e não nos olheis desconfiadas, e assim suportareis nossa aparên- cia que também vossos companheiros suportam, muito embora exerça- mos grande atração sobre eles.”
Diz Martim em surdina: “Sim, mas com que dificuldade! O menor toque de um braço nos poderia levar ao mais estranho êxtase. Acho conveniente que se vistam outra vez, pois poderão se tornar insuportá- veis até para as pedras.”
Aparteiam as mulheres: “Belas filhas do Sol! De fato sentimos gran- de inveja diante de vossa beleza; mas agora confessamos ser ela própria o motivo de nosso abatimento porque nossa visão não estava habituada a suportá-la. Por isto pedimos que useis uma veste a fim de evitar um grande desalento, muito embora sejamos espíritos, enquanto vós sois seres dotados de carne e sangue.”
Retrucam as filhas do Sol: “A realização de vosso desejo não depen- de de nós, mas de vossos senhores. Faremos o que eles determinarem.” Digo Eu: “Tereis que Me servir, pois sei o porquê. Queridas filhas,
nascidas neste planeta, ninguém sabe o que é útil aos filhos senão o Pai, e por isto quero que vos trajeis segundo vossa ordem.”
Dizem elas: “Senhor, Mestre e Pai de todos os filhos, Tua Vontade é nosso mandamento. Mas, agora vinde à nossa morada para serdes honrados e amados com todo o calor de nosso coração.” Digo Eu: “Está bem. Martim, vai na frente com Pedro e João; tu, Bórem e Chorel, segui os outros com as mulheres e demais irmãos. Atrás de Mim irão os chineses com suas mulheres. Vós três, filhas do Sol, ide com Chanchah e Gela para entrarmos na justa ordem.”
Perguntam as três moças do Sol: “Senhor e Mestre, porventura os três da frente saberão para onde devem conduzir esse grande gru- po?” Respondo: “Não vos preocupeis. Os dois, em cujo meio se encon- tra Martim, conhecem perfeitamente vosso lar, pois nada é estranho para os Meus filhos. Tudo que Eu possuo, eles também desfrutam em plenitude.”
ALEIDOINCESTOENTREOSHABITANTESDO SOL
A caravana se põe em movimento e caminhamos calmamente. En- trementes, as filhas do Sol Me perguntam: “Senhor, Mestre e Pai, por que essas duas filhas tão gentis andam tão caladas e não te fazem per- guntas? Talvez estejam cientes de tudo? Nossos sábios também falam pouco, mas quando o fazem, cada palavra é mais importante que mi- lhares pronunciadas por nós. Quiçá é este o caso delas?”
Digo Eu: “Sim, assim é, apenas com a diferença que estas duas pos- suem em plenitude aquilo que vossos sábios nem de longe suspeitam em sua profunda mística, que mal se atrevem a pronunciar. Uma sabe- doria semelhante à deles não é sabedoria, mas um acúmulo de segredi- nhos que não levam a coisa alguma, e suas leis são totalmente impres- táveis para o Meu Reino. Se bem que não cometais pecado seguindo o que elas mandam, elas distam das leis originais tanto quanto o Céu é distante da Terra, pois continuais na forma original e possuidoras de grande vontade. Mas vossos ditos sábios pouco valor têm de um modo
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geral, conquanto existam alguns que mantêm as leis básicas. Assim sen- do, essas duas irmãs são muito mais sábias que os mais sábios entre vós. Elas são cheias de amor e quando se encontravam na Terra, a união carnal com irmãos e pais lhes era totalmente estranha e o maior pecado, por ter sido imposto a tal ato o pior castigo eterno, sem piedade. Entre os terráqueos consta: Amaldiçoado seja o incestuoso! Mas, entre vós, o incesto é uma lei instituída pelos sábios. Por isto Eu vim para lhes
demonstrar sua grande falta de conhecimento.”
Dizem elas: “Por acaso és também um senhor acima de nossos sá- bios e nosso grande mundo, querendo impor-nos outras leis?” Digo Eu: “Sim, Minhas filhas ainda não tocadas pelo incesto. Satanás descobriu um meio para chegar a este mundo puro e deturpou muitas comuni- dades. Por isto Eu tive que vir Pessoalmente para varrer o solo impuro, do contrário todos vós perderíeis vossa nobreza original e a vida eterna do espírito. Quando Satanás quer prender alguém, ele começa por um certo orgulho intelectual e em seguida pela impudicícia. Em vosso meio ele empregou muita astúcia, mas Meu Olhar percebe tudo.
Vós e vossos sábios ficastes muito enfermos em grandes comuni- dades; a fecundação, que anteriormente era puramente espiritual, tor- nou-se material, sim, o mais deprimente de tudo que se possa imaginar.
Para Meus filhos no planeta santo, o incesto é o próprio crime, a ponto de Eu o condenar irremediavelmente com a morte do fogo tem- poral e eterno. É um vício puramente satânico que se tornou lei entre vós. Julgais que Eu, a Base de todo Ser e a Ordem de tudo, posso con- cordar com tal lei? Por isto vim para vos salvar ou julgar para sempre. Não foi sem razão que vossos espíritos gritaram que em nosso grupo se encontrava o terrível; não se tratava de espíritos bons, mas perdidos por Satanás. Não sou o terrível , mas o Amor para os inocentes, e um julgamento eterno para os que, possuindo o Meu Verbo e Minha Lei, agem contrariamente.”
Minhas Palavras causam perplexidade nas filhas do Sol; mas Chan- chah toma a palavra e diz com meiguice: “Maravilhosas filhas deste mundo estupendo que jamais viu a noite, nem sentiu a mudança das estações! Felizes vós que nunca sentistes qualquer enfermidade e nunca vistes alguém morrer! Vossas leis, piores que nossos piores vícios, vos conservam livres e imortais. Assim sendo, sois livres, não podendo pe- car contra vossas leis ainda que o quisésseis. Mas, como acontece que elas impossibilitam qualquer pessoa a infringi-las?
Através da Graça e do Amor de nosso Santo Pai hei de explicá-
-lo. O perverso Ahriman (Satanás), como figura espiritual cheia de luz, apresentou aos vossos sábios toda sorte de qualidades e necessidades de vossa natureza e ensinou a transformar em lei qualquer exigência de vossas fibras, mas com a seguinte ressalva: Se for do agrado de alguém, que faça o que quiser; não lhe agradando, não erra se não age de acordo com a lei.
Imaginai o valor de tais leis, ou talvez já ouvistes falar de uma pu- nição que acompanha a infração das mesmas?
As leis devem ser de tal modo constituídas, se forem verdadeiras, que custem uma grande renúncia ao homem até que as possa cumprir, contrariando as violentas tentações da sua natureza. Se ele as respeita de livre vontade, renunciando a qualquer vantagem material, ele se eleva como espírito livre acima da morte e do perecimento a que é sujeita a matéria. Então ele se apresenta como vencedor sobre sua própria mor- te oculta na natureza, podendo assim ingressar na ordem superior da eterna vida espiritual e da filiação do Espírito Supremo e de Sua Graça. Qual seria a vitória alcançada por vossas leis sem valor e dadas pela máxima sabedoria? Nenhuma! Onde não existe luta, não pode haver vitória; e onde não há vitória, não há prêmio. Que vem a ser o ho- mem que nunca conquistou algum prêmio? Tem menos valor que a mais simples planta pisada por ele, pois esta alcançou sua finalidade na grande escala dos seres em evolução. O homem sem prêmio vive sem
finalidade e não pode jamais alcançar qualquer destino, o que ocorre precisamente convosco.
Após a libertação de vosso invólucro externo continuais vivendo como uma espécie de espíritos de nuvens luminosas, tão inúteis como agora em vosso físico, que corresponde à parte externa de vosso mundo, cuja esfera exterior também é luz pura de grande força e glória, mas cujo interior é mais obscuro que o de qualquer outro planeta. Afirmo que vossa sabedoria é nada mais que ilusão, e vossa beleza, pura aparência.
Por esse motivo, o Senhor vem em Pessoa a fim de dar aos filhos do Sol uma luz verdadeira e demonstrar um caminho totalmente novo, pelo qual também podereis chegar junto de nós em verdade. Esta é nossa verdadeira sabedoria. Querendo vos tornar perfeitos, ela terá que se estabelecer efetivamente entre vós, do contrário sereis os seres mais miseráveis no eterno Espaço de Deus, meu Pai, não obstante vossa be- leza excepcional.”
As três moças vibram diante da sabedoria de Chanchah e dizem, após algum tempo: “Se é como dizes — o que não duvidamos diante da descrição de nossas leis — por que vosso Senhor e Mestre nos deixou tanto tempo neste engano, não nos socorrendo há mais tempo?”
Responde Chanchah: “Queridas, Ele sabe bem quando o fruto está totalmente maduro, pois fez a semente na qual depositou o germe vivo, e neste, o fruto, seu tempo e amadurecimento. Eis vosso caso. Chegas- tes à maturidade, não dentro da verdade, mas no erro. A fim de evitar que ingresseis na maldade, Ele veio Pessoalmente para vos salvar.”
ASFILHASDOSOLPRESSENTEMAPRESENÇADO SENHOR
Retrucam as moças, já perto de sua morada: “Adorada irmã de nos- so sexo! Falas desse teu Senhor e Mestre como se fora o Altíssimo e não apenas um mensageiro Dele. Sendo possuidora de tamanha sabedoria, pedimos explicação.” Diz Chanchah: “Isto é apenas da competência de meu Senhor e Pai. Mas, percebo que já estamos perto de vossa mora- da, onde ouvireis tudo que desejais.” As moças se dão por satisfeitas e
assim seguimos até a grade do primeiro pátio, onde começa o primeiro jardim, do qual segue um segundo e após este um terceiro, mais alto e estupendo.
Diante do encanto da construção de imensa pompa Chanchah e Gela retêm a respiração e finalmente exclamam: “Será possível habitar- des tais palácios? Só vemos ouro e pedras preciosas de tamanho enor- me! Que formidável arquitetura! Deve de fato ser maravilhoso morar-
-se aqui, com a consciência plena de nunca morrer enquanto tal vida cause agrado!
No entanto, compreendemos ser muito difícil, com tamanha ri- queza, levar-se uma vida agradável a Deus. Onde se cuida tanto do agrado externo, ninguém chega a pensar numa renúncia, condição úni- ca pela qual o espírito pode ser despertado e reunido com seu Criador. Oh Senhor, por acaso sentes algum agrado nessa pompa externa? A residência de Martim também foi soberba; mas, comparada com esta, é um verdadeiro casebre! E estes jardins! Que enorme quantidade de
obras artísticas! Isto não é um mundo, mas o próprio Céu!”
PONDERAÇÕESDECHANCHAH.VÁRIOS CONTRASSENSOS
Retrucam as moças do Sol: “Se essa simplicidade externa tanto vos extasia, que direis ao entrardes para ver o interior ao qual dedica- mos todo cuidado e atenção, pois acreditamos com isto prestar a maior honra ao Grande Espírito Original! Qualquer pompa em Sua honra se justifica plenamente. Se Ele nos facultou tal sentido, que para nosso espírito representa uma lei, como poderíamos criar algo inferior? Não seria o mesmo que moldar nosso espírito de modo diferente ao criado? Não vos escandalizeis com a pompa de nossa morada, pois não é obra de vaidade, mas puramente a necessidade de nosso espírito.”
Diz Chanchah: “Eis aqui o mesmo fator encontrado nos jesuítas, dos quais fui aluna, que diziam: ‘Que tudo seja para a maior glória de Deus.’ — Teriam eles chegado até aqui? Uma habitação semelhante a essa seria muito mais bela que um império chinês na Terra! Pobres
criaturas, vede o Senhor; Sua Veste vos dirá qual é a pompa preferida por Ele, podendo deduzir o quanto Lhe agrada vosso luxo. O brilho inflamado do coração Lhe agrada sobremaneira; mas, todo o resto é um horror para Ele. Se assim não fosse, por várias vezes vos teria visitado, como costuma fazer em meu planeta à procura dos pobres e simples, ensinando-os Pessoalmente para se tornarem Seus filhos, dando-lhes Graças em plenitude. Os potentados e ricos que moram em suntuosos palácios nunca são procurados por Ele.”
Retrucam as moças: “Deves ter razão. Mas, como te tornaste tão agradável ao Senhor — caso tenha realmente o Espírito do Altíssimo dentro de Si — se sabemos que não te originas de uma casa pobre de teu planeta?”
Retruca Chanchah: “Precisamente por isto nunca tive tal Graça em vida. Meu grande amor para com Ele fez com que me encontre tão per- to Dele, pois amava-O com todo o calor de minha vida muito antes de conhecê-Lo e saber que uma criatura também pode amar seu Criador. Justamente este amor, e não o brilho de meu lar, me trouxe perto Dele.” Obtemperam elas: “Mas nós também nos encontramos com Ele!”
Diz Chanchah: “Externamente sim, mas tal proximidade não é real e verdadeira, o que ireis perceber quando começar a falar. Já chegamos na entrada de vossa casa. Martim parou e volta aqui para se orientar. Aguardemos os acontecimentos.”
EXCESSIVOZELODEMARTIMEATOLERÂNCIADO SENHOR
Neste instante, Martim se aproxima de Mim, dizendo: “Senhor e Pai, nossa visão quase não suporta esse brilho e Teus irmãos prediletos também esfregam os olhos. Estranho, porém, que ninguém nos receba. Pedro supõe que deveríamos aguardar aqui até que os personagens mais importantes nos cumprimentassem, segundo o uso deste mundo. De minha parte, que na Terra me enojei de toda cerimônia com que fui enterrado, opino que deveríamos entrar sem delongas. Tu certamente possuis o Poder para tanto?”
Digo Eu: “Ora, Martim, não viemos como inimigos, mas quais amigos sinceros, e queremos socorrer e construir, mas não bater e des- truir. Que mérito teríamos se destruíssemos toda essa região num ins- tante? Por acaso é louvável arrancar-se a cabeça de uma mosca? É pre- ferível colocar a mesma e não destruí-la. Por isto faremos uso de nossa Paciência e Amor, em vez de usarmos nossa Força.
Terias apreciado se Eu, em vez de tratar-te com toda Minha Paciên- cia e Amor — que nunca mereceste — te tivesse atirado ao inferno com Minha Onipotência? Não agi desse modo porque não era honroso para Mim, o Onipotente, destruir-te, mas sim, conservar-te e levantar-te. Então, seria prudente de nossa parte agirmos com animosidade?”
Martim bate no peito e diz: “Mea culpa, mea maxima culpa! Se- nhor, perdoa-me, pois sabes que sou estúpido!” Concordo: “Está bem, tudo te foi perdoado. No futuro deves considerar sempre o único mo- tivo pelo qual devemos agir eternamente, e assim não cairás em outro engano. Agora volta para teu lugar.” Martim beija os Meus Pés e se junta aos dois companheiros, que lhe perguntam o que devem fazer: aguardar ou entrar.
Diz Martim: “Os tolos são sempre impacientes porque não têm inteligência. Mas, quando ultrapassam as medidas, uma admoestação se torna bastante salutar. Isto se deu comigo, e o Senhor me passou uma lição que me colocou na devida ordem.”
Concorda Pedro: “Falaste bem, pois também recebi no mundo vá- rias admoestações por parte do Senhor e o próprio Paulo me atirou seu punho espiritual às costas, para meu grande benefício. Contudo, ignoramos o que deve ser feito.”
Responde Martim: “Segundo me parece, pretendeis beliscar-me um pouco? Subentende-se que temos de aguardar a Vontade do Senhor até que todas as cerimônias sejam aprontadas.”
Diz Pedro: “Bem, não precisas te irritar, pois sei que uma admoes- tação por parte do Senhor não é tão agradável quanto uma carícia. Re- corda-te de Sua resposta quando O preveni de Jerusalém e dos possíveis padecimentos?” Responde Martim: “Não repitas aquela sentença horrí- vel, pois nunca compreendi como o Senhor, instituindo-te para coluna
de Sua Igreja, que nenhum poder do inferno jamais haveria de domi- nar, pôde chamar-te de Satanás. Isto até hoje é um segredo para mim.” Diz Pedro: “Vê, quando o Senhor me elegeu para coluna de Sua Igreja, expressou Sua Sabedoria; mas, quando me chamou de Satanás, falou de Seu Imenso Amor, querendo expulsar meu materialismo com um só golpe, e esse materialismo era o próprio Satanás. Entendes?” Diz Martim: “Não totalmente, mas sinto de leve a verdadeira situação. Não
resta dúvida que o Senhor é puro Amor.”
PEDROACONSELHAMARTIMAVENCERSUA SENSUALIDADE
Prossegue Martim: “Agora percebo maravilhosos sons de sinos, se bem que não transmitam qualquer ritmo. Estou curioso de saber quais os instrumentos usados.”
Diz Pedro: “Trata-se de uma espécie de sinos semelhantes aos usa- dos pelos antigos egípcios e ainda hoje são comuns entre os persas e hindus. Apenas são aqui muito mais puros que na Terra e consistem de uma espécie de discos, nos quais se bate com martelos elásticos por ocasião de comemorações especiais ou também durante grandes fenô- menos da natureza, bastante comuns aqui. Para ocorrências menores, eles usam uma espécie de campainhas com as quais se comunicam. Além disto, também tocam harpas com maestria, mas que ouvirás so- mente no interior desse templo. Já que estás informado, aguardemos sua chegada.”
Pergunta Martim: “Nossa posição está de acordo com a recepção?” Responde Pedro: “Ora, que é isto? Não somos soldados, nem come- diantes!” Diz Martim: “Não te zangues, do contrário ficaria desespera- do; sempre que abro a boca cometo qualquer tolice.”
Diz Pedro: “É que falas e indagas sem seres convidado pelo Senhor. Além disto, ainda habita dentro de ti uma forte tendência sensual que enrosca tua alma como pequenas serpentes. Tal fato perturba constan- temente os sentidos de teu espírito, de sorte que só consegues falar algo mais inteligente quando teus sentidos não são influenciados por tenta-
ções externas. Peço-te, pelo amor de Deus, que estabeleças um compro- misso contigo mesmo e não te deixes tentar por aquilo que não honra teu espírito, e assim a visão espiritual se aclarará cada vez mais e tuas palavras serão pura sabedoria. Se não agires deste modo, com muito ri- gor, jamais sairás de tua tolice, e o Senhor, em vez de te elevar às alturas, te fará passar por mil anos na Lua, calculando pelo tempo terráqueo.
Dentro em pouco surgirão inúmeras criaturas mais belas, e eu te digo em Nome de Deus: Ele previu tua proteção até aqui a fim de te li- bertar finalmente de toda a sensualidade. Se passares pelo teste, sentirás o benefício; em caso contrário, serás abandonado e levado ao solo estéril da Lua, de onde já tiveste experiência com um sábio de lá.
Tudo que ocorreu desde tua chegada neste mundo espiritual deu-
-se por tua causa, para fazer-te um bom operário na grande Vinha do Senhor, razão por que Ele realiza tantas provas para fazer de ti um bom anjo. Acontece que também tens que fazer algo, do contrário prepararás um destino bastante penoso, sendo — no verdadeiro Reino de Deus, até então totalmente desconhecido de ti — na melhor hipótese, um colecionador de trapos.
Agora estás ao par de tudo; comporta-te corretamente, sê bom e rigoroso, e caso uma beldade pretenda perturbar-te, dirige teu olhar para o Senhor, que encontrarás sossego. Tens que alcançar uma situação em que belezas superiores a estas não te convençam, porque pertences ao Senhor para sempre. Só então estarás em condições de ser aceito no verdadeiro Céu, onde te aguardam inúmeras felicidades, das quais não tens o menor vislumbre.
Até agora ainda não viste o que o Senhor prepara para os que O amam fielmente; não como tu, que à vista de um rosto sedutor quase O esqueces, e apenas voltas para Ele após enterrado até a boca numa poça de tolice ilimitada. Foi sempre esse o teu temperamento e, segundo tua própria observação, eras um verdadeiro animal. Agora, que estamos na meta final, despoja-te em Nome do Senhor de tua tendência, teu velho Adão, e aceita o Cristo em toda a plenitude do amor, que serás imedia- tamente aceito no Céu, verdadeiro e eterno, na nova Jerusalém, do qual eu, João, e muitos outros há tempos somos cidadãos. Entendeste?”
DESESPERODE MARTIM
Diz Martim, pensativo: “Quer dizer — testes e mais testes! E tudo isto só por minha causa! Santo Deus, quando terminarão essas prova- ções? Por acaso serei experimentado tanto tempo até que esteja maduro para o inferno? Estarei saboreando tantas coisas celestes para poder sen- tir melhor o sabor infernal? Quantas vezes me disseram: Martim, agora estás perfeito! — Se assim é, por que terei de ser mais que perfeito para o Céu? Meu Deus, por que me criaste, pois o nada seria mais agradável que essa existência sob constantes provações!
Agradeço-te, Pedro, pelo esclarecimento de minha situação, termi- nando com um só golpe todas as provações. Podes apresentar um exér- cito de anjos ou demônios, pois terá o mesmo efeito que meu futuro ser ou não-ser, Céu ou inferno. Se for constantemente experimentado e tentado, a vida futura perde todo interesse para mim.
Mencionaste a estéril Lua. Podes transportar-me para sempre, pois serei mais feliz lá do que aqui sob repetidos testes, dos quais deduzo que, muito embora rodeado pelos anjos e pelo Próprio Senhor, sou levado ao inferno. Como já disse: Trazei anjos ou demônios, que tudo me será indiferente, pois serei mais mudo que uma pedra.”
Diz Pedro: “Irmão, desiste desse espinho, a morte que a impudicí- cia da carne traz dentro de si. Seu nome é ira, razão por que os filhos da carne se chamam filhosdaira. — Eis que elas surgem. Sê calmo, e teu rigor te será de grande utilidade.”
FÁCILVITÓRIADEMARTIMSOBREOARROGANTECHEFEDOTEMPLO SOLAR
Nesta altura, surge no limiar do templo o superior e mais sábio do terceiro grau, em veste cinza pregueada e rodeado de um grupo de jovens, rapazes e moças. Na direita ele traz uma vara semelhante à de Aaron e na esquerda uma espécie de fita mágica na qual estão colados vários sinais místicos. A uns cinco passos diante dos três amigos, ele abre toda a fita e a estica no solo azul. Em seguida inclina a vara sobre
a fita e diz, após algum tempo: “Dotado da imensurável força e poder através de minha sabedoria ilimitada, eu vos conjuro — como primeiro e mais antigo homem desse mundo que jamais terá fim e é mantido por mim — que me digais a verdade sobre a vossa presença e procedência! O menor vislumbre de uma inverdade, e todos vós sereis pulveriza- dos. Falai!”
Diz Martim: “Todos em uníssono, ou um por todos? Peço maior esclarecimento!” — E de si para si: “Este foi feito sob medida, pois sua tolice estende um forte véu sobre a beleza das moças. Agora estou apa- ziguado com Pedro, João e os demais.”
Responde o sábio: “Se fala apenas um, não se sabe o que pensam os outros. É preciso que todos falem ao mesmo tempo e bastante alto.” Confabula Martim consigo mesmo: “De um modo geral e especial- mente frente a estes príncipes celestes sou muito ignorante; mas, com relação à ignorância desse sábio, não fico devendo nada. Todavia, per- guntarei a Pedro o que devo fazer.” E este responde: “Agora chegou tua vez de falar com a máxima liberdade.”
Eis que Martim começa a falar: “Sábio sem par, se tua sabedoria é tão gigantesca, não compreendo como fazes tais perguntas. Nós, de sabedoria bem menor, penetramos em teu âmago e sabemos perfeita- mente o que se oculta por detrás de tua suposta sabedoria. Acredito que fazes o mesmo conosco; tenho razão?”
Responde o outro: “Claro, quando tiver estendido diante de mim a grande fita mágica e segurado a vara dupla. Como trouxe apenas meus apetrechos simples para hóspedes tão comuns, sou obrigado a perguntar.”
Diz Martim: “Mas, como poderás saber se falamos a verdade?” Re- truca ele: “Para evitar qualquer engano, pronunciei a grande ameaça que será executada se falardes uma mentira; por isto exijo a pura verda- de, do contrário...”
Diz Martim: “És e serás um burro!” Diz o outro: “Que é um bur- ro?” Explica Martim: “Um burro é uma criatura totalmente inofensiva, tem tua cor, tem orelhas longas, mas uma inteligência curta.” Diz o sábio: “O que te faz julgar-me assim?” Responde Martim: “Peço uma
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pequena pausa, pois pergunta tão importante necessita de estudo.” Diz o sábio: “Que vem a ser estudo? Desconhecemos tal coisa.”
Diz Martim: “Olha, mais sábio de todos os sábios, tua sabedoria não deve ser muito profunda se desconheces o que é necessário, ao menos no início, para a conquista da sabedoria. O estudo é semelhante ao pensar profundo acerca dos primeiros elementos e noções que pre- cedem a sabedoria. Entendes?” Responde o outro: “Não, pois minha sabedoria é por demais elevada e não capta tais ninharias. Explica-te mais profundamente, para que eu te possa entender.”
Prossegue Martim: “Ora, vê só, então chegou minha vez de não compreender como há pouco assimilaste a noção muito menor de bur- ro”. Diz o sábio: “Burro é um ser; estudo é apenas uma noção; é mais fácil entender-se um ser que uma simples noção”. Diz Martim: “Ami- go, creio ser muito difícil e até mesmo impossível nos entendermos, porquanto com toda tua sabedoria és uma criatura sumamente igno- rante, sem o menor vislumbre de conhecimento. Dou-te um conselho: Deixa um outro falar por ti — mas sem fita mágica e vara de bruxo; talvez consiga produzir algo melhor que as três filhas desta casa. Pro- nunciaram palavras inteligentes, de onde deduzi tua sabedoria colossal. Fui enganado, pois ignorante como tu não deve existir outro neste teu mundo. Terminamos nosso colóquio e podes chamar um outro.”
Diz o sábio: “Isso é inteiramente impossível, pois se desci das altu- ras junto desses vermes, só eu posso falar como o mais elevado, sábio, poderoso, eterno e infinito.” Diz Martim: “O quê? — Então és o Pró- prio Ser Supremo?!” Diz o sábio: “Isso não! Mas não sou muito menos! Ele é apenas um pouco mais velho que eu, pois sou seu filho!” Diz Mar- tim: “De fato, creio em tudo que dizes. Oh, és realmente estupendo a teu modo!” Diz o outro: “Sim, não existe ninguém acima de mim, e quando toco o solo com a vara todo o mundo estremece e todos os seres são tomados de pavor quando me aproximo. Apenas não compreendo como tu e teus fracos companheiros não tremeis diante de mim, que vos posso pulverizar.”
Diz Martim: “Ainda hás de compreendê-lo por uma Pessoa deste grupo. Foste ludibriado por um espírito mau na figura de um anjo lu-
minoso e passaste teu engano para toda essa grande comunidade, dan- do-lhe leis segundo as quais pode agir à vontade, sem pecar. Sei que anteriormente eras um sábio bastante humilde e bom chefe do povo. Quando aquele espírito traiçoeiro te seduziu, trocando tua sabedoria antiga, verdadeiramente divina, por essa estupidez, te tornaste o sábio que ora és, uma criatura totalmente ignorante.”
Diz o sábio: “Talvez tenhas razão; mas primeiro deve ficar provado que sou tolo, pois não tenho essa impressão. Fala, mas claramente.” Diz Martim: “Porventura te lembras de tua idade? Foste sempre o que és, ou houve um outro antes de ti, talvez teu pai? Não foste mais moço, talvez rapaz? Responde, para que possa responder mais facilmente à tua pergunta.”
Diz ele: “À primeira questão não posso responder porque o gran- de medidor do tempo quebrou há muito tempo; houve uma grande tempestade que arrancou o cordão do pêndulo e não houve conserto possível. Por isso, ninguém sabe qual sua idade. Se sempre existi ou tive um começo, só me lembro vagamente como se eu tivesse nascido; por- tanto, não fui sempre o que sou. Tenho a impressão de ter tido um pai que praticava meu ofício quando eu era menino — mas, naturalmente, menos sábio que eu.”
Diz Martim: “Estás vendo? Sabia que não eras um deus nem seu filho, mas um simples mortal como nós, o que é muito bom para todos, pois agora podes ser salvo. Se tivesses insistido em tua ignorância, to- dos vós teríeis grande sofrimento. Se quiseres ser muito feliz, joga para longe tua fita mágica e a vara de bruxaria, do contrário não haverá meio de falarmos.”
Diz ele: “Exiges demais. Se me desfaço desses recursos para meu poder, força e sabedoria, não poderei mais agir. Quem me obedecerá? Não deves pedir coisas que minha alta dignidade não suporta.” Diz Martim: “Amigo, os terráqueos têm um conselho de Deus Mesmo, que diz: ‘Tudo que deixardes em Meu Nome vos será restituído cem vezes na época da recompensa.’ E isto se dará também contigo. Aquilo que fizeres ou deixares de fazer em Nome de Nosso Senhor, receberás de volta mil vezes em plena verdade. Deixarás coisas sem valor para rece-
beres o mais nobre. Em troca da aparência, te será dado um verdadeiro ser. Pela mentira terás verdade; por tolice, sabedoria; por fraqueza, força real; e assim ganharás em verdadeira plenitude de Deus, o Senhor, o que abandonas aqui na totalidade de tua nulidade. Faze de boa vontade o que exijo de ti e eu me entrego como refém, com o qual poderás fazer o que quiseres, caso não tenha dito a verdade total.”
Concorda o sábio: “Bem, percebo que és um espírito verdadeiro e farei o que exiges de mim. Em compensação, responde minha primeira pergunta dizendo quem sois e a vossa procedência.”
DESPERTARESPIRITUALDO SÁBIO
Quando o sábio atira para longe a fita e a vara, Pedro se aproxima e diz: “Assim está bem; fizeste o que o irmão Martim exigiu de ti em nome de todos e te tornaste nosso irmão mais novo. É justo que tam- bém nós te informemos quem somos e de onde viemos.
Nada mais fácil do que dizermos o que desejas; mas com isto nada é feito e pouca ajuda receberias. É preciso uma fé incondicional, uma aceitação voluntária daquilo que digo. Esta fé não existindo, de nada adianta eu te esclarecer o que quer que seja. Em teu íntimo pensas: Se me forem dadas as provas, estou pronto a acreditar em tudo. No entan- to, tenho que fazer a seguinte observação: tal fé não é fé, mas simples conhecimento, que pouca ou nenhuma ajuda fornecerá. Um conheci- mento baseado em provas é um conhecimento coagido e não liberta o espírito; pelo contrário, o algema tantas vezes quantas forem as provas dadas para testemunhar a fé.
Somente a fé semelhante a uma livre obediência do coração que não indaga: por que, como, quando, etc., é uma fé justa e liberta o es- pírito pela livre aceitação do que te foi revelado por um mensageiro dos Céus, cuja autoridade consiste em testar o amor do coração.
Se sentires amor por ele, acolhe-o; se nada sentires, deixa-o partir. O mensageiro tem a mesma orientação de Deus; pois Ele diz e sempre falou: ficai onde fordes aceitos; não sendo aceitos, sacudi a poeira de vossos pés e ide em frente.
Por aí vês que nem aquele que recebe a mensagem, tampouco o mensageiro devem ser coagidos, mas totalmente livres. A revelação e a aceitação devem ser livres, pois onde se exige mais do que isto, só existe julgamento que jamais libertará um espírito.
Seria facílimo para Deus, o Senhor Eterno, ensinar Suas criaturas por meio de provas de que Ele existe e o porquê de Sua Existência. Bas- taria colocar os homens num julgamento, que eles nada mais aceitariam ou pensariam, devido à coação de seu coração. O Senhor não deseja ho- mens artificiais, mas inteiramente livres; por isto, também seu coração deve ser livre, mormente na aceitação da Doutrina revelada.
Enquanto teu intelecto pede provas a fim de aceitar um ensina- mento ou uma revelação, teu espírito se encontra qual prisioneiro num cárcere escuro. Sentindo fome e sede, ele clama por alimento que é dado por provas quais migalhas, e por elas jamais chegará àquela força pela qual conseguiria se libertar de suas algemas.
Se a razão do coração aceita algo livremente, sem provas, ele de- monstra imediatamente sua força independente, que passa para o espí- rito e o liberta. O espírito estando livre, tudo na criatura é livre: o amor, a luz e a visão. Não há mais necessidade de provas para a verdade, pois o espírito livre é a verdade mais clara e total de todas as verdades. Agora pergunto a teu coração se podes crer incondicionalmente, e eu te direi o que desejas saber. Se não te for possível, minhas palavras seriam inúteis; nós não viemos para vos julgar, mas libertar do jugo de vossa antiga prisão.” Retruca o sábio: “Amigo sublime, és superior a mim; fala, que acreditarei livremente, porque assim o quero.”
PEDROEXPLICAAVINDADAASSEMBLEIAESUA MOTIVAÇÃO
Diz Pedro: “Pois bem. Todos nós aqui presentes somos filhos de Deus, segundo vossa compreensão, filhos do Espírito mais elevado. En- tre nós, alguns são diretamente os primeiros servos do Altíssimo, pois foram por Ele Mesmo escolhidos para alicerces básicos de Sua Igreja em todo o Universo. Inicialmente somente na Terra, no planeta que
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chamais de santo. Como cumpriram lá sua tarefa com toda alegria e dedicação, foram, pela dolorosa separação do corpo, elevados para jun- to Dele nos Céus sublimes. Então participam de tudo que Ele Mesmo possui e gozam a mais elevada bem-aventurança, e dentro desta feli- cidade efetuam o mesmo serviço, num sentido muito extensivo, que realizam na Terra em medidas limitadas. Saiba que sou Pedro, e aquele é João, os servos acima descritos. Os demais ainda são principiantes neste mundo e função.
A finalidade de nossa vida é conduzirmos esses recém-vindos a ser- viços de amor mais elevados e em seguida reerguer-vos, habitantes desse mundo de luz, isto é, apenas algumas comunidades que se afastaram do justo caminho. Esta tarefa sendo muito árdua a ponto que o esforço poderia ultrapassar nossa capacidade, Deus, o Próprio Senhor, está Pre- sente em toda Sua Plenitude de Força e Poder, em forma humana, isto é, divina, pois Deus criou o homem segundo Sua Semelhança, externa e interna. Ele não criou outra forma para os Seus prediletos senão a Forma Original do Amor Eterno.
Por isto não existe em todo o Universo um mundo no qual as criaturas tivessem uma outra forma senão a nossa; apenas ocorrem dife- renças no tamanho, cor e às vezes fatores externos. Mas, a forma básica é sempre a divina.
Por tal motivo, não deves estranhar se chegares a ver Deus, o Espí- rito mais Elevado, igual à minha figura e tamanho. Seu Infinito Poder e Força Eternos não dependem de Seu tamanho externo e humano, mas do interno e espiritual, que habita eternamente na Luz impenetrável e jamais pode ser vista e muito menos entendida por um espírito criado. Agora sabes de tudo. Não omiti nada que fosse necessário para a resposta exigida. Dize-me, sem subterfúgios, tão comuns entre vós, se
crês em tudo que eu disse.”
Responde o sábio: “Nobre amigo, falando honestamente, acredito em tudo, com exceção da última explicação. É algo muito forte para conhecedores de nossas antigas revelações e predições, de que Deus, o Ser Supremo e Eterno, deva existir entre vós, com tua figura e tamanho.
Talvez possa entendê-lo mais tarde. No momento é quase impossível, segundo meus conceitos de Deus, o Ser Supremo.
Deves saber que Ele muito raramente envia Seus anjos aqui, que nos revelam, aos superiores, o Ser Divino, mas sempre acrescentam: Ninguém pode ver Deus e viver ao mesmo tempo! Por isto, Ele habita numa profundeza insondável para que nenhum ser venha a ser prejudi- cado pela visão do Altíssimo. Que nos sucederia se Deus estivesse entre vós? Não quero contestar que tal coisa possa ser possível; mas onde fica- ria Sua Ordem eterna e imutável, que tantas vezes nos foi anunciada?” Diz Pedro: “Um pouco de paciência, amigo, e hás de achar o apa- rente impossível totalmente viável. Tem um pouco de paciência, pois
Ele Mesmo vem Se aproximando, e Dele o entenderás melhor.”
ALÓGICADEPEDROCONVENCEOSÁBIODAPRESENÇADO SENHOR
Diz o sábio: “Caro amigo, certamente não será aquele que caminha entre duas moças e em cuja vanguarda andam as três filhas desta casa, anteriormente enviadas por nós para vos encontrar? Para nossa com- preensão, seria deveras inconveniente caso apenas um sábio de terceiro grau se deixasse conduzir por mulheres. Como aceitarmos que o Ser Su- premo, do Qual devem se originar todas as leis da Ordem, se deixa levar por mulheres, na suposição de que aquele homem seja de fato Deus?”
Diz Pedro: “Amigo, em toda tua vida nunca efetuaste várias coi- sas para teu uso ou apenas para teu prazer? — Respondes: Claro, fiz quantidade de coisas para ambas as finalidades! — Bem, então dize-me se entre elas havia uma da qual poderias afirmar: Esta obra não me merece. Envergonho-me da mesma e seria contra a ordem e muitíssimo inconveniente olhar ou tocar a mesma! — Respondes Não! Pois, como poderia ter feito tal obra se ela não fosse digna de meus olhos e mãos?
Falaste certo, pois assim é. Mas, se consideras que nenhuma obra tua é tão ruim que não tenha mérito diante de ti, porquanto perante Deus és puro remendão de tuas obras, como podes exigir de Deus uma virtude ordenada que desde eternidades foi Mestre de todas as Suas
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Obras mais perfeitas? Dize-me com honestidade, qual das obras divinas consideras tão ruim, que a Própria Divindade Se envergonhasse delas? Ou julgas que Ele, o Senhor eterno de todas as obras eternas, fosse pedir a nós o direito de poder lidar com elas?”
Responde o sábio: “Percebo claramente que és um sábio especial- mente profundo; todas as tuas frases contêm uma base muito sólida e nada há para se contrapor. E assim, começo a sentir tal fé de que aque- le homem de aspecto tão simples possa conter em si o Ser Supremo. Se isto Lhe foi possível no pequeno planeta santo, como nos disseram Seus anjos, por que tal deveria Lhe ser impossível neste imenso e lumi- noso mundo?
Vês que posso aceitar tal fato, e o faço realmente. No entanto, surge uma outra pergunta: Se Ele é o Onipotente, Santo, o mais Sábio, que para nossos pensamentos mais elevados é por demais Sublime, a ponto que a criatura mais pura não se atreve a pensar no Seu Nome — como O receberemos e nos manteremos diante Dele?”
Diz Pedro: “Amigo, Ele já está próximo. Fixa-O com teus olhos penetrantes e dize-me se Seu Aspecto é tão tremendo e se as filhas desta casa, que se voltam constantemente para Ele com grande alegria, tradu- zem qualquer medo.” Diz o sábio: “Não, Ele parece muito bom, meigo e suave, e quanto às três moças, nunca as vi tão felizes.”
Diz Pedro: “Então não O temas, pois quando Ele vem, o faz por amor e nunca com ira e vingança, muito embora ira e vingança sejam Dele como também o Amor, razão por que ninguém deve alimentá-las em relação ao próximo. A ira é exclusivamente de Deus, e a vingança pertence ao Juiz. Mas o Amor é do Pai, e Ele o dá a Seus filhos, pro- curando esse sentimento junto a eles, pois foram criados segundo Sua Semelhança, depositando em seus corações a finalidade maravilhosa de se tornarem o que Ele Mesmo é.
Se isto que te revelei corresponde à Verdade plena, seria inteligente a pessoa temer Aquele que é o Próprio Amor para conosco? Tu não tens medo de mim, que tenho poder e força para destruir esse mundo todo com um simples pensamento e imediatamente criar um outro. Se assim é — pois tenho esses dons pelo Senhor, no entanto jamais serei
como Ele — por que haverias de temê-Lo se Sua Bondade é infinita? É preferível alegrar-te muito pela imensa Graça dada a ti e a todo esse mundo, e Ele também Se alegrará com todos e vos ajudará muitíssimo. Põe ordem em teu coração, pois Ele já está quase entre nós.”
Diz o sábio: “Não sei dizer se meu coração se encontra em ordem; sei que sinto um grande amor por Ele, pela primeira vez em minha vida. Também consegui me libertar de meu pavor, considerando que eu, como criatura, não posso ser outra coisa senão o que sou, e que Deus também não pode ser menor do que é, Deus, o Ser Original, do Qual toda e qualquer outra entidade depende.
Impossível imaginar-se uma criatura sem Criador, mas sim, um Criador sem criatura. O Criador é o que é através de Sua Consciência claríssima, podendo criar o que e quando quiser. A criatura jamais po- derá ser algo antes que o Criador a tenha projetado pela Onipotência.
Vejo no Criador e na criatura duas coisas inevitáveis, segundo as quais a segunda parece irremediavelmente condicionada. Portanto, não vejo porque eu, objeto condicionado, me deva amedrontar da primeira, Imprescindível. Para maior acomodação de minha alma penso o se- guinte: Esse nosso grande mundo tem em sua superfície inúmeras coi- sas pequeninas, cujo conteúdo, comparado ao volume total, é ínfimo, como o nada frente ao Infinito.
Todavia, o menor permanece junto ao grandioso e tem a mesma razão de se alegrar de sua existência, como o maior; ainda que seja um nada perto do todo, é ele o que é em perfeição. Jamais poderei ser o que é o nosso Criador Onipotente; entretanto, Ele, não obstante Sua Onipotência, jamais poderá ser o que sou.
De fato, não existe privilégio nesta situação, mas é um degrau es- tranho que jamais poderá ser pisado pelo Criador, como primeira con- dição de todo ser. Conclusão: Cada uma dessas necessidades tem algo a seu favor, isto é, esse algo talvez possa ser atingido aparentemente, mas nunca poderá ser atingido na realidade pelo oposto. Nessas condições, libertei-me de um certo temor que me preocupava.”
RELAÇÃOENTRECRIADORE CRIATURA
Nesta altura, João se manifesta: “Caro amigo, pesei o sentido de tuas palavras e achei que está certo; apenas tenho que observar que trataste os dois extremos com muita inflexibilidade, traçando uma li- nha muito dura. É bem verdade que o Criador jamais poderá Se tornar criatura e vice-versa. Ainda assim, o Criador não Se acha em qualquer desvantagem, tampouco numa especial vantagem frente à criatura.
Primeiro, Ele só dispõe de Si Mesmo para criar um ser, quer dizer, Ele tem que formar a criatura da mesma substância que Nele existe des- de eternidades; segundo, Ele tem que conservar a Sua Obra, enquanto esta nada tem a fazer senão existir.
Se a criatura é como o Criador deseja, na Ordem determinada, ela pode ingressar igualmente na Perfeição de seu Criador. Pode alcançar a filiação divina e habitar com Ele, de certo modo no mesmo ambiente, usando e usufruindo de todos os Seus Direitos. Creio que neste caso tanto o Criador quanto a criatura nada ficam a dever um ao outro. Enquanto Criador e criatura devido ao livre arbítrio moral na vonta- de e ação se defrontam, teu axioma se justifica; pois a prioridade do Criador jamais pode ser contestada, por ser de fato uma necessidade incontestável.
Mas, se a criatura, através do conhecimento e vontade ativa da Vontade revelada do Criador, destrói a parede divisória, acolhendo em si o Criador e tornando-se totalmente una com Ele, resta a saber: Quan- do é o Criador, sendo Uno, mais Criador: Nele Mesmo ou na criatura? Quem é mais antigo: a criatura como ser idêntico com o Criador, ou o Criador qual Entidade idêntica na criatura? Ele Mesmo diz: Estais em Mim e Eu em vós. Neste ponto, creio, na plenitude de minha mais lúcida compreensão, que te excedeste em teu conceito. Que achas?”
Diz o sábio do Sol: “Percebo que és incrivelmente sábio e não há argumentação possível para combater tua explicação. Apenas presumo que o ser produzido continua sempre Sua Propriedade, seja Ele isolado ou preenchendo sua criatura qual receptáculo com Sua Própria Identi- dade — naturalmente segundo a capacidade assimiladora dela.
Não pode haver dúvida que a criatura jamais poderá assimilar toda a plenitude da Divindade, e a resposta a esta questão já se enquadra na noção Eternidade que só pode ser assimilada por ela mesma.
Daqui deste nosso mundo vemos um Sol cujo tamanho deve ul- trapassar milhões de vezes o nosso. Quando percebo que as mais pe- queninas gotinhas de orvalho assimilam a imagem daquele mundo colossal, não resta dúvida que nós, criaturas, assimilamos o Criador de modo semelhante, à medida que Ele possa ser acolhido para nosso aperfeiçoamento.
Mas, quão distante do verdadeiro Sol permanece o quadro na gota de orvalho, e quão longe a criatura se acha do Próprio Criador! Acre- dito não existir número capaz de contar as gotinhas necessárias para representarem o verdadeiro volume daquele Sol. Todavia, se defrontam apenas duas coisas limitadas. Como seria possível uma comparação na qual o eterno Infinito e uma quase invisível limitação temporária se defrontassem?
Não resta a menor dúvida que a entidade criadora na criatura é idêntica ao Criador, e vice-versa; mas, em que proporção? Tal propor- ção deve ser igualmente levada em consideração, pois dela se evidencia que entre Criador e criatura, não obstante toda sua identificação natu- ral e moral, tem que permanecer tal abismo eterno porque não pode ser ultrapassada por nenhuma das partes.
Deste modo, insisto no meu conceito, levando em conta que os dois contrastes jamais se poderão identificar totalmente; não pretendo esquivar-me de uma explicação mais profunda; pelo contrário, ela me será sumamente bem-vinda, razão por que me alegro em te ouvir por mais tempo.”
ADIFICULDADEDOINTELECTOFRENTEÀSABEDORIADO CORAÇÃO
Diz João: “És bastante crítico neste assunto sumamente impor- tante e tens razão em determinado ponto. Em sua totalidade e de um modo geral podes chegar a tamanhos desvios que nem em eternidades
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alcançarás a verdadeira meta de tua existência. Em Nome do Senhor prosseguirei numa explanação mais profunda.
Usaste um quadro natural a fim de apresentar a exatidão de teu princípio que te deveria proteger contra o medo. Neste caso também posso empregar uma imagem semelhante para te contestar e esclarecer mais do que o mar de luz do Sol que enunciaste. Não penetrarei tão profundamente como tu no Espaço Infinito; todavia, creio que acerta- rei o problema com ajuda do Senhor.
Vê, o mar é em quase todos os mundos — grandes ou pequenos
um volume de água no qual finalmente todos os rios, riachos e cor- rentes de todos os tamanhos se juntam, inclusive a maioria das gotas de chuvas. Esse mar é a base principal de todos os lagos, rios, riachos e fontes, igualmente da chuva e do orvalho. Um mundo sem mar seria semelhante a uma criatura sem sangue e outros humores, tornando-se ipso facto uma múmia ou estátua morta.
Tudo que num mundo se denomina de líquido nasce do mar, exe- cuta determinados serviços e volta posteriormente ao mar. Por inúme- ras gotinhas ele fornece constantemente de seu imenso supérfluo o éter, totalmente afim, que envolve qualquer planeta. Nesse éter as diminutas gotinhas são levadas em todas as direções possíveis. Existindo em gran- de quantidade, são visíveis como neblina, e mais tarde, em acúmulos maiores, como nuvens densas. Nessas nuvens elas se juntam, crescem e formam gotas mais pesadas que caem em grande quantidade como chuva no solo sedento para vivificá-lo. Neste caso, pergunto: o que é mais antigo, as gotas isoladas do mar ou ele mesmo? Claro que o mar total existia antes de poder subir uma gota de chuva ao ar. Uma vez que se elevou do mar, ela era diferente dele, e ao cair de novo no oceano encontrarias uma diferença entre ele e a gota que se desprendeu? Tudo é idêntico, pois onde uma parte do todo é igual a este, ambos são iguais. Bem, se entre Criador e criatura existe a mesma relação, onde buscar os limites tão exatos entre ambos?”
Diz o sábio, um tanto perplexo: “Vejo perfeitamente que tens razão e não há o que contrapor a esta tua tese para a identidade do Criador e da criatura. Donde o Criador teria tirado a substância para a formação
da criatura, senão Dele Mesmo? Neste caso a substância é a mesma, se bem que a época em que a criatura foi separada do Criador não corres- ponde à do Criador porque o tempo é apenas uma nesga limitada da Eternidade, enquanto o Criador é e tem que ser Eterno.
Esse ponto é portanto claro e não pode ser mais explícito. A fim de solidificar a questão, julgo que a consideração de uma proporção seria de grande utilidade, principalmente para essa comunidade que quer tudo exatamente calculado. Considero a proporção da seguinte forma: o Criador Se apresenta como Totalidade de todas as totalidades isoladas pela Sua Vontade, assim como as últimas se apresentam em sua totalidade frente a Ele, fornecendo um produto de todas as espécies que são idênticas ao Criador. Penso que tal observação não seria supérflua ao nosso problema?”
Concorda João: “Sim, a proporção está certa; apenas tenho que ob- servar que nós, como filhos do Senhor, nosso Pai Eterno, costumamos contar de modo totalmente diferente. Aquilo que calculas pelo intelec- to, nós calculamos com o coração, alcançando sempre o melhor resul- tado que inclui todos os casos excepcionais. Mas, eis que vem o Mestre dos Cálculos, que te demonstrará teoremas totalmente diferentes.”
Diz o sábio: “Então, este é o Senhor, o Próprio Ser Divino?” “Sim”, diz João, “eis o Senhor!” Prossegue o sábio: “Sua figura não traduz gran- de Glória; mas Sua aproximação desperta em mim um grande amor. Todavia, é inteiramente impossível que este homem tão simples, que pode possuir enorme sabedoria, seja o Criador do Infinito e de todas as obras. É tão limitado como nós. Como pode então penetrar e abarcar o Todo? Afirmo apenas que acho isto sumamente estranho. Agora Ele faz um sinal para silenciarmos.”
OSENHOREUHRON,OSÁBIODO SOL
Nisto Me aproximo e digo: “Então, Uhron, a porta desta casa se abre com facilidade ou não? Se for fácil, deixa-nos entrar; caso contrá- rio, deixa que Eu experimente seu peso.”
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Diz o sábio: “Amigo sublime de todos os anjos e homens! Segun- do me parece, não estás habituado a procurar a sabedoria junto dos homens; pois toda nossa sabedoria é Tua Dádiva, e nossa organização é Tua Obra, de sorte que acho desnecessário dizer se esta porta se abre com facilidade ou não. Ordena o que deve acontecer e assim será.”
Digo Eu: “Disseste o que esperava de ti. A porta se abre facilmente e podes nos levar ao interior. Não perguntei pela porta dessa constru- ção, pois isto não Me diz respeito, podendo, pela Minha Onipotência, fazer surgir bilhões de tais casas num instante e fazê-las desaparecer em seguida.
Fiz tal pergunta ao teu coração, que é a porta certa da casa de tua vida; esta se abre facilmente e por isto desejo que Me faças entrar. Assim fizeste, e agora, como prova de tua vida, leva-nos a esta moradia para que todos vejam que sou também um Senhor desta casa e deste mundo.” Responde o sábio: “És o Senhor em todo o Infinito e a Ti pertence também esta casa material, pois além de Ti ninguém tem o direito de ordenar dentro dela. Por isso, seria um ultraje de minha parte condu- zir-Te à Tua Propriedade. Ó Senhor, Criador do Infinito, uma vez que
vieste ao que Te pertence, sê o verdadeiro Anfitrião desta morada!”
Digo Eu: “Falaste certo. Acontece que Eu te nomeei, pelos Meus anjos, para Meu administrador, e agora venho pedir contas de ti. Neste caso, cabe a ti Me introduzires na Minha Posse que te foi confiada.”
Diz o sábio: “Sim, caso fosses um arrendatário. Mas, Tu és o Pro- prietário e não existe um átomo daquilo que ela contém que Te fosse desconhecido, inclusive minha péssima organização, motivo pelo qual hás de registrar minhas contas erradas que Te são conhecidas desde eternidades. Por isto, repito meu pedido humilde: Tu, Senhor Único e Pai de tudo, toma conta do que é Teu. Sê Benigno e Misericordioso com Teu administrador incompetente e não me castigues na medida de minha incompetência!” Com estas palavras, o sábio se prosterna, cho- rando pela primeira vez em sua vida. O sorriso como o choro é quase totalmente estranho aos moradores frios desse mundo.
Eu chamo Martim de lado e digo: “Agradou-te a linguagem desse sábio convertido?” Responde ele: “Ó Senhor, ele pronunciou a verdade
plena, à qual não posso imaginar qualquer acréscimo. Se os judeus ti- vessem falado deste modo quando palmilhavas sobre a Ter