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ROBERTO BLUM
Volume I
ROBERTO BLUM — 2 volumes
Recebido pela Voz Interna por Jacob Lorber
Traduzido por Yolanda Linau
Revisado por Paulo G. Juergensen
Direitos de tradução reservados
CopyrightbyYolanda Linau
UNIÃO NEOTEOSÓFICA
Edição 2020
ÍNDICE
Chegada do fuzilado no Além e suas primeiras impressões. Despertar da consciência e explicação errônea desta sensação 17
Grito desesperador por Deus. Referência à pessoa de Jesus. Desejo da
A lembrança da família leva-o à prece 22
pensamentos de perdão. Novo corisco e claridade permanente 25
Toda a sapiência do mundo é fútil. Por isto Jesus recomenda a fé 26
Bons pensamentos sobre Jesus. Novo corisco ilumina a situação de Roberto, de modo benéfico. Cresce a fé na imortalidade e em um Deus
de Amor. Aparece outro corisco 27
alegria de Roberto nesta expectativa 31
Necessidade da autoridade terrena. Não pode existir comunidade sem orientação. Ordem e obediência 42
Aparecimento das montanhas médias e pequenas e sua necessidade 47
Resposta extensa e confortadora. O castigo é causado pela maldade do homem, e não por Deus 53
Razão e finalidade da vida terrena. Felicidade terrena ou eterna? Que trouxeste contigo à Eternidade? 55
Resposta de Roberto: Devolvo minha simples existência àquele que ma
deu! Haverá um Deus de Amor que trate suas criaturas tão cruelmente? 57
manifesta-se a mais elevada Sabedoria do Amor 60
malditos!” Pecado contra o Espírito Santo 64
A fé verdadeira e a fé errônea. Perigos da vida nababesca 73
As duas fontes de conhecimento do homem. A verdadeira fé provém da
outras palestras em local mais agradável 79
para sua evolução espiritual 81
Recordação de sua vida passada 83
uma prova de liberdade em grau evolutivo 87
O verdadeiro irmão. Tudo se organiza dentro do amor a Jesus 89
A casa de Roberto. Interpretação espiritual dos andares. Intercâmbio
O deslumbrante interior da casa. Cenas escandalosas provocadas pelos vienenses. O Senhor, pacientemente, cura os males psíquicos 103
Os vienenses pretendem requisitar algumas dançarinas. Roberto faz um sermão impetuoso. Salvação das almas à beira do abismo 107
Os três companheiros de luta analisados pelo Senhor. As dançarinas,
gratas, como instrumentos de boa vontade 111
e sua compaixão reverte em benefício das moças 113
celeste. Brinde de Jellinek e resposta do Senhor 121
Perigo das pesquisas externas 129
Luta do homem contra os elementos impuros. Perfeição gradativa 133
Os vienenses devassos, no jardim. Sua cura amarga, porém necessária 135
Reação dos hóspedes diante das bailarinas. A heroína das barricadas. O
heroína, bondosa, em vão procura convertê-lo 139
comunicação, aparentemente chocante 145
A heroína ansiosa e o orgulhoso circunspecto. Admoestação do Senhor. Milagre ocorrido com Helena 146
Discussões em torno da transfiguração de Helena. O sonho e a vida real. Comparação feita por Olavo 149
O horizonte conjugal do libidinoso se anuvia. A verdadeira índole de Ema 154
Olavo intercede em favor dos amigos. Promessa do Senhor. O teimoso libidinoso 162
O honesto engraxate e a Mira indesejável. Purificação psíquica do
libidinoso que abandona a Assembleia Celeste 165
A Natureza do Gênero Humano é condicionada pela Terra e pela posição desta dentro do Universo 189
O Senhor critica as propostas de Helena. A Terra não pode ser um Paraíso enquanto for campo de provação 197
Conhecimento de Olavo. Um brinde celeste. A Nova Ponte de Luz e Amor
A Ceia Celeste em benefício dos habitantes da Terra. Cena comovedora entre o Senhor e Helena. Um aparte de Adão. Vestido de noiva e coroa
de Helena, símbolos de seu amor puro e fervoroso 203
A Terra e seus horrores. O espírito do anticristo. Uma alegoria na mesa do Conselho 208
Prosseguimento do quadro, em cima da mesa do Conselho. Por que
Deus permite os horrores no mundo? 212
Deus como polo de equilíbrio 217
livres e independentes. Chave-mor à compreensão da vida terrena 223
Parábola da árvore infrutífera 226
libidinoso. Filosofia materialista 229
demonstrando-lhe sua perversão diante de Deus 233
Finalmente, acompanha o mensageiro de Deus 235
punição justa. Consequência de pedido tão errado 238
Teimosia de Dismas. Críticas acerbas de seus amigos bem intencionados 241
Perplexidade de Dismas diante da condenação geral. Dirige-se com sinceridade ao Senhor, pedindo Graça e Misericórdia 244
Ema e Olavo perdoam a Dismas. O Senhor dá testemunho do forte
espírito “Paulino” em Dismas. Incumbência celeste ao convertido 246
Obras do intelecto e obras do coração. Dismas conduz os renitentes ao Senhor 255
Controvérsia entre o Senhor e Bruno. Humildade e prudência deste
convocado à prova máxima do amor ao inimigo 258
O herói do amor rodeado por inimigos no Além. O Amor do Cristo a tudo suplanta. Grande pesca de almas 261
Espírito cordato entre as almas desordenadas. Inúmeros ignorantes vão
junto do Senhor. Bruno relata sua vida terrena 266
celestes, como dádivas fortalecedoras 268
Bruno orienta seus tutelados. Objeções de um oponente quanto ao renascimento e livre arbítrio 271
Crítica acerca da deturpação da Religião pelo sacerdócio 275
Bruno responde, inspirado pelo Senhor. Confronto entre a Doutrina do
Cristo e os sistemas humanos 277
Crítica a Roma. Elucidação de Bruno quanto à utilidade da noite 280
Deturpação da Doutrina pura em virtude do livre arbítrio. O Senhor ama
as ovelhas de Roma. O fim de Sua Paciência 282
A alma de Bardo é curada. Os Desígnios de Deus. Confraternização celeste .288
Vestimenta no Além. O Senhor abençoa os recém-vindos. Bruno e seus amigos incumbidos da organização do refeitório 290
Conselhos de amigos. Dismas acha a solução acertada. A bênção do
Roma. Roberto quer socorrer, quando o Senhor Se apresenta 301
Alegria de Roberto pelo reencontro com o Senhor, que Se ocupa com o monge. Consórcio celeste 304
Despertar espiritual do monge. Monólogo como ato introspectivo. Cristo
é a Aurora vital do náufrago 308
cego adquire a visão e reconhece o Senhor e Sua Graça Infinita 311
Gratidão excessiva por parte do monge. A simplicidade do amor 316
Tomás no Salão Celeste. Seu pedido a favor de seus oponentes. Sua
primeira tarefa, em companhia de Dismas 319
o caminho da salvação. O Senhor no limiar da Sala da Vida 321
Deus. O segredo da vida terrena é explicado 324
Divinos. Tomás agradece pela cura. O inferno terráqueo 327
Aproximação de uma falange de almas desesperadas. Filosofia acerca de carência de fé e amor 330
Surge a vingança como consolo. O sofrimento ensina a orar 336
Advertências espirituais feitas aos infelizes. Situação política de tal época 339
Palestras a respeito de Jesus. Parábola do homem sem vestes nupciais e
O orgulho magiar rebela-se novamente, mas é abafado pelo inescrupuloso. O general e Roberto discutem acerca da contenda desses
espíritos. Grande Paciência do Senhor 347
Faz-se a luz na alma do conde. Surgem uma cordilheira e um palácio maravilhosos. Aproximação de um mensageiro celeste 353
Prosseguem as indagações acerca de Jesus e de Seu Paradeiro 358
O franciscano discursa sobre o amor e critica o conde em virtude de seu
título. Miklosch interfere 360
Prédica rigorosa do estranho contra a tendência da crítica 364
Estupefação diante da maravilha e grandiosidade da mencionada casa.
As almas anseiam por Jesus 369
ignorante franciscano recebe orientação 378
Deus. A assembleia de espíritos felizes, na sala principal 388
S
eria ilógico admitirmos que a Bíblia fosse a cristalização de todas as Revelações. Só os que se apegam à letra e desconhecem as Suas Promessas alimentam tal compreensão. Não é Ele
sempre o Mesmo? “E a Palavra do Senhor veio a mim”, dizia o profeta. Hoje, o Senhor diz: “Quem quiser falar Comigo, que venha a Mim, e Eu lhe darei, no seu coração, a resposta.”
Qual traço luminoso, projeta-se o conhecimento da Voz Interna, e a revelação mais importante foi transmitida no idioma alemão durante os anos de 1840 a 1864 a um homem simples chamado Jacob Lorber. A Obra Principal, a coroação de todas as demais, é “O Grande Evangelho de João” em 11 volumes. São narrativas profundas de todas as Palavras de Jesus, os segredos de Sua Pessoa e sua Doutrina de Amor e de Fé! A Criação surge diante dos nossos olhos como um acontecimento relevante e metas de Evolução. Perguntas com relação à vida são esclarecidas neste Verbo Divino, de maneira clara e compreensível. Ao lado da Bíblia o mundo jamais conheceu Obra Semelhante, sendo na Alemanhaconsiderada“Obra Cultural”.
ObrasdaNova Revelação
O Grande Evangelho de João – 11 volumes A Criação de Deus – 3 volumes
A Infância de Jesus
O Menino Jesus no Templo
O Decálogo (Os Dez Mandamentos de Deus) Bispo Martim
Roberto Blum – 2 volumes A Terra e a Lua
A Mosca
Sexta-Feira da Paixão e A Caminho de Emaús Os Sete Sacramentos e Prédicas de Advertência Correspondência entre Jesus e Abgarus Explicações de Textos da Escritura Sagrada Palavras do Verbo
(incluindo: A Redenção e Epístola de Paulo à Comunidade em Laodiceia)
Mensagens do Pai
As Sete Palavras de Jesus na Cruz (incluindo: O Ressurrecto e Judas Iscariotes) Prédicas do Senhor
Cenas Admiráveis da Vida de Jesus – 2 volumes
Volume I
CAPÍTULO 1
A vida de Roberto Blum
Este homem, de origem alemã, veio ao mundo em circuns- tâncias precaríssimas, e teve, com exceção dos últimos anos de sua vida, de lutar constantemente com a miséria mundana, por motivos bem fundamentados, todavia desconhecidos para ele. Sua alma e espírito se originavam do planeta Urano, do qual sabeis, pela reve- lação do “Sol Natural”, serem seus habitantes capazes de remover montanhas através da persistência, de sorte a realizarem, até mesmo como espíritos, o que não lhes foi possível fazer em vida.
Foi preso e executado em virtude de sua audácia, inclina- ção que demonstrava desde a infância. Muito embora Eu Mesmo lhe impusesse empecilhos eficazes, tão logo tentasse erguer-se, isto teve pouco êxito neste mundo. A constante insistência de seu es- pírito abriu finalmente um caminho, pelo qual conseguiu ação mais dilatada.
Partindo deste princípio, fez mil planos e os executou na medida do possível. Antes de tudo, seu coração se apegava ao bem dos povos e não mediu sacrifícios! Se tivesse tido todos os tesouros da Terra, os teria arriscado, com a vida, na realização de tão ele- vado ideal!
Este conceito ele devia à Escola de Religião Mundana, de Ronge (escritor e fundador do Catolicismo alemão, independente de Roma, 1813–1887). Não possuía propriamente uma religião, nem igreja, e jamais as terá, porquanto nega a Mim, o Senhor, redu- zindo-Me a um homem comum e doutrinador da Antiguidade. Esta pretensa “Igreja Pura” rejeita a pedra fundamental, construindo o seu edifício sobre areia. Por tal motivo, sua existência será duvidosa.
Quanto ao bem dos povos, a igreja de Ronge se coadunava com as ideias de Roberto Blum, sem base: o que vinha do mundo era ínfimo e sem força. Somente em sua oratória via o poder capaz de destronar todos os regentes.
Neste ponto sua convicção era tão forte que impedia qual- quer reflexão. Mesmo Eu advertindo-o intimamente, quando em empreendimentos mais audaciosos, não o impedia de realizar seu projeto. Seguia um lema: um alemão poderia sacrificar tudo, menos uma ideia por ele projetada.
Alguns sucessos fortaleceram ainda mais sua ideologia; deste modo, atreveu-se a “subir o Himalaia”, porque fora bem sucedido na demolição de alguns montes políticos, ganhando a confiança de todo o país.
Esta confiança determinou-lhe a queda.
Em Frankfurt, numa Reunião Nacional, experimentou o po- der de sua oratória. Compartilhando com o próprio espírito, rego- zijou-se com a vitória. Confiante, dirigiu-se rapidamente a Viena, cujo povo acatava suas ideias. Lá pretendeu matar trinta regentes de um só golpe, sem refletir que Eu — embora nada representasse para ele — tinha o direito de manifestar-Me antes que seu intento se consumasse!
Baseava-se na Minha Doutrina, de que a pessoa deveria ser perfeita como o Pai Celeste, somente um é o Senhor — todos os outros, irmãos, sem distinção de classe e sexo. No entanto, não acre- ditava Naquele que era exemplo para o aperfeiçoamento. O Senhor, a seu ver, era ele próprio, pelo poder da retórica! Esqueceu-se de que os regentes são criaturas possuidoras do Meu Poder, e que também
consta na Minha Doutrina: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. “Submetei-vos à autoridade boa ou má, pois não haveria poder sem concessão do Alto!” Só a prece e uma conduta justa dentro do Meu Verbo podem lutar contra tal poder; jamais um usurpador político.
Este homem foi preso naquela cidade onde queria concreti- zar o seu ideal popular, pelo poder das armas e de sua verbosidade. Após curto processo, em 9 de novembro de 1848, como indivíduo perigoso ao Estado, foi fuzilado. Deste modo, finalizou-se sua car- reira na Terra.
CAPÍTULO 2
Chegada do fuzilado no Além e suas primeiras impressões. Despertar da consciência e explicação errônea desta sensação
Agora resta saber de que maneira sua alma e espírito chega- ram no Além, qual sua posição e o que fazem.
É preciso observar que a maioria dos que perderam a vida de modo violento, em virtude de uma condenação, chega ao mundo dos espíritos quais fugitivos cheios de ira e vingança e, por certo tempo, sujeitos a delírios. Verdadeiras criminosas contra os Man- damentos de Deus, essas almas são atiradas ao inferno, para, no seu elemento, abrandar a sede de vingança. Conseguindo isto, voltam ao mundo dos espíritos para iniciarem uma prova de libertação, condicionalmente limitada.
Almas como Roberto, que chegam como criminosos políti- cos, contraventores das leis terrenas, não obstante estarem em co- nexão com as de Deus, são no início levadas a um estado trevoso, como cegos, sem avistar outros seres, impedidos de dar vazão à ira. Raiva e vingança já produzem a cegueira na Terra, quanto mais no Além. Nesse estado permanecem até que a vingança se tenha torna- do impotente, levando a alma a verter lágrimas. Este pranto ainda é consequência da raiva, mas aos poucos se abranda.
Na Terra, Roberto podia apenas salvar a honra, após ter che- gado à conclusão de tudo estar perdido; razão pela qual mostrou-se tão destemido no momento da execução, desprezando a morte. Não era verdade, pois como neocatólico, não acreditava na sobrevivência da alma, sentindo então o pavor da morte.
Cerca de sete horas após a execução, quando sua alma co- meçara rapidamente a se concatenar, convenceu-se da futilidade de sua fé terrena ao ver que continuava a existir. Esta convicção da continuidade individual levou-o a outra descrença: afirmava ter sido levado à praça de suplício a fim de passar pelo pavor da morte, e aparentemente fuzilado. Com tal propósito, os oficiais haviam ven- dado os seus olhos. Aturdido pelo medo, fora levado sem sentidos a um cárcere escuro, de onde seria libertado por um protesto de seus conterrâneos.
Incomoda-lhe somente a escuridão. Julga-se em um cubícu- lo, sem umidade e mau cheiro. Verifica não estar algemado e tenta analisar o seu cárcere, imaginando a possibilidade de haver por perto uma sessão de julgamento secreto.
É grande sua estupefação, não vendo solo nem paredes, nem mesmo uma rede que lhe desse a sensação de estar suspenso sobre uma catacumba.
CAPÍTULO 3
Roberto presume estar narcotizado
A situação lhe parece estranha e grave. Analisa seus sentidos, julgando seus membros adormecidos. Com fricções e beliscões, se convence estar o seu corpo astral bem vivo.
Após certificar-se de que não está encarcerado, que é apenas uma noite de escuridão total, pergunta a si mesmo: “Onde estou? Que diabo, o que fizeram comigo esses carrascos sanguinários? Não me fuzilaram, estou vivo! Também não me prenderam, não vejo solo, nem paredes, e meus pés e mãos estão livres de algemas! Os sentidos também não me faltam; tenho olhos, mas nada enxergo!
Que coisa pavorosa! Aquele inimigo da Humanidade, que me fuzi- lou ‘pró-forma’, certamente me aplicou um narcótico desconhecido que me atirou neste estado. Ai de ti, carrasco, quando eu me livrar deste torpor; vingar-me-ei de ti, tão logo volte a Frankfurt.
Esta situação não pode durar eternamente. Toda a Saxônia reclamará a minha liberdade. Chegando lá, vingarei o ultraje feito a um deputado do ‘Reichstag’! Eu, toda a Alemanha e até mesmo a França, não descansaremos até que esta infâmia seja punida!
Se, ao menos, pudesse despertar desta narcose! Clamo por vingança e nada posso fazer! Paciência, isto é passageiro!”
CAPÍTULO 4
Grito desesperador por Deus. Referência à pessoa de Jesus. Desejo da não existência
Após tais palavras, ele se mantém calmo por algum tempo. Esfrega os olhos de vez em quando, para libertar-se do torpor. Não conseguindo melhor visão, desespera-se: “O que sucede? Que mal- dita situação é esta? Acaso não existe Deus, mais poderoso e justo do que os justos da Terra? Meu Deus, se existes, estende o Teu Braço e vinga-me! Eu lutava pela causa justa das criaturas, Teus filhos, a fim de levá-los ao destino almejado por Jesus, o incompreendido doutrinador que, pelo esforço e sacrifício a bem da Humanidade, foi preso pelos miseráveis esbirros e morto no lenho mais vergonhoso daquela época.
Deus, se existes, sou tanto Teu filho quanto ele! Se Tua Exis- tência perdurar apenas na consciência humana, como também a Tua força, minhas palavras são ocas, infrutíferas. Fui torpemente engana- do e para todo o sempre! Por que fui obrigado a me tornar um ser vivo consciente? Por que uma ideia amorfa no Espaço Infinito deve- ria transformar-se em uma entidade individual? Porventura surgi na vida, com plena consciência, para ser fuzilado? Maldito acaso que me projetou no mundo! Se existem demônios cuja perversidade ultrapas- se a imaginação humana, que destruam o poder que me fez surgir!
Pobres criaturas do mundo! Deixai de procriar! Não implan- teis no orbe outros seres para sofrerem de maneira atroz! E vós, que ainda tendes filhos, matai-os, para que tudo fique vazio! Potentados, estrangulai vossos súditos, dividi entre vós a Terra amaldiçoada para satisfazer vossa tendência dominadora! Meu desespero é em vão! O que poderia uma gota alcançar contra a força do mar revolto?! Ca- la-te, fraca manifestação de minha mente! Compete a mim finalizar minha existência miserável!”
Roberto tenta estrangular-se, suas mãos não encontram apoio e nem sente asfixia! Perplexo com este fenômeno, perturba-se mais ainda. Resolve caminhar, concluindo “não ser possível haver naquele ambiente local ainda mais trevoso e incerto, não havendo motivo para temer um abismo e muito menos um julgamento secre- to! Talvez alcance alguma luz ou, então, a própria morte?!
Que feliz estado deve ser o da morte total! Que feliz fui antes de ser, sem a consciência para trair-me! Ah, se fosse possível o ani- quilamento! Que seja! O aniquilamento total é lucro e a morte um néctar; nada mais haverá para temer! Por isto, avante!”
CAPÍTULO 5
Tentativa de marchar e nadar no Espaço trevoso. Monólogo
Começa a fazer movimentos para andar, mas não encontran- do solo, tem a impressão de balançar os pés, como se estivesse sen- tado em um banco. Pensa, então, em outro meio e diz: “Tentarei nadar, pois para me locomover preciso de solo firme; sem este, res- ta-me nadar ou voar, mas faltam-me asas! Céus, que triste esportista! Convém armazenar energias para sair daqui!”
Começa a fazer movimentos de natação, sem êxito. Pros- segue, no entanto! Quanto maior esforço empreende, maior é sua decepção.
Por isto, para e diz: “Que tolo eu sou! Por que me canso? Encontro-me no nada; para que prosseguir? O nada contém a maior calma; à calma me entregarei para com ela identificar-me! Talvez seja
o caminho certo para a total destruição! Se ao menos tivesse a certeza de que fui fuzilado! Tenho a impressão de ter ouvido o estampido dos fuzis. Neste caso, estaria morto!
Talvez exista de fato uma vida após a morte? Sinto o meu corpo e minha roupa! Se a alma possui corpo, meu paletó terá alma? Isto levaria um homem igual a mim a ridicularizar o infinito! Ah, ah! A imortalidade de um paletó soaria pior que o poder milagroso do Manto de Cristo exposto em Trier, pelo Bispo Arnoldi! Mas..., se sou alma, o paletó me acompanha?
Nunca! Não sou alma! Sou Roberto Blum! Deputado do Rei- ch, em Frankfurt, para formar nova Constituição a que a Áustria não quer se submeter! Soube em Viena das intenções deste país: as suas aspirações pendem para o Absolutismo! Como um tigre lu- tei contra isto. Os canhões adversários foram mais poderosos e tive de desistir, a ponto de deixar-me prender e, finalmente, fuzilar — aparentemente! Bonito prêmio para um coração devotado à pátria! Maldita vida e maldito quem ma deu!
Se existe Deus, que prazer poderá sentir em Sua Onipotên- cia quando as criaturas, demonstrando verdadeira fraternidade, são cruelmente abatidas em virtude de um regime e meras discussões políticas? Se acontecem na Terra coisas tão horrendas, não emana- das de Deus — o puro amor — concluo não existir Divindade; ou, então, só pode ser má, fatalidade que merece a maldição, já que considera as criaturas bonecos de seu capricho! Repito: amaldiçoo a entidade responsável pelas criaturas infelizes!
Agora, calma. Se pretendo encontrar a destruição dentro deste nada, afasto-me do aniquilamento com o despertar de novas energias. Calma, muita calma!”
Calma externa, inquietação. O que é a vida? Desejo de paz oriundo da fé. A lembrança da família leva-o à prece
Quanto mais Roberto se entrega ao silêncio, tanto mais vibra o seu coração, o que o aborrece, pois sente maior sensação de vida e consciência mais dilatada, aumentando o desespero e a raiva, com- preendendo não poder livrar-se da vida que lhe é desagradável. Co- meça a falar novamente: “Em nome do diabo, desejava saber o que vem a ser esta vida nojenta, da qual a pessoa não consegue livrar-se? Vi milhares morrerem! A decomposição era o final! Teriam uma vida idêntica à minha?!
Não consigo compreender a morte! Quem me conserva esta vida abjeta? Tu, ó responsável pela minha execução, teus verdugos não entendem do ofício! Não me fizeste fuzilar para morrer, mas, ao contrário, para viver! Se teus auxiliares produzem tais resultados, poupa teu esforço! Afirmo-te daqui, de minha noite trevosa: usando pólvora e chumbo, apenas vivificarás os teus inimigos. Aplicaste-me grande injustiça: tencionaste tirar-me o que jamais poderás me res- tituir! Pretendias matar-me; estou vivo! E tu, que julgas viver, estás mais morto do que eu, tua vítima!
Tudo estaria bem, se houvesse um vislumbre de luz! Que o diabo carregue esta escuridão total! Que horror, permanecer assim por toda a Eternidade! Talvez eu já seja um espírito, o que seria uma deplorável surpresa! Não, não creio na vida eterna! No entanto... tenho a impressão de terem passado muitos anos nesta escuridão! Necessito de luz, luz!
Confesso a mim mesmo: preferia ser um sujeito bem tolo que acreditasse no Filho de Deus, no Céu e na morte eterna, no diabo e no inferno. Com tal superstição, morreria com a consciência tranquila. No entanto, encontro-me na treva total e meu raciocínio é claro! Que culpa me cabe? Sempre procurei a verdade, creio tê-la encontrado. De nada me adianta, se não recebo luz. Já que é assim, que assim fique!
Minha intrepidez e completa ausência de temor ainda me valem. Se eu fosse como a maioria das criaturas, medroso, cairia em total desespero.
Sinto em meu coração a tristeza e aflição de minha mulher e filhos, por minha causa. Coitados! O que posso fazer por eles? Nada! Poderia orar, tenho tempo de sobra! Mas, a quemorar, e o que deveria pedir? O menor desejo para que sejam felizes já é uma boa e verdadeira prece. Caso não os auxilie, não será prejudicial. Com exceção do Pai Nosso, Ave Maria e outros exercícios linguísticos, desconheço outra prece. Com tais tolices, minha boa e culta família agradeceria admirada, caso percebesse que eu faço tal coisa para o seu bem! Mas, será possível saberem o que faço aqui?”
CAPÍTULO 7
Respeitosa recordação de Jesus provoca fortes coriscos
Prossegue Roberto: “Entre todas as preces, o Pai Nosso é a melhor. Assim o sábio doutrinador Jesus ensinou os discípulos a orar. Esta oração, infelizmente, nunca foi bem compreendida. É o resumo das necessidades principais de cada um, devendo ser re- petida, para que a criatura conheça suas verdadeiras carências. No entanto, é pronunciada como remédio para todas as necessidades e condições. Católicos e protestantes atribuem-lhe um poder mági- co contra todos os males, inclusive moléstias de animais! Isto, para mim, é insuportável!
Ó bom mestre Jesus! Se o teu destino é semelhante ao meu, certamente já te arrependeste por teres feito tanto bem à Humanida- de maldosa! Dois mil anos nesta treva, posso imaginar como é duro!”
Mal Roberto pronuncia com dignidade e sentimento o Nome de Jesus, vê um forte raio, com o qual se assusta, mas ao mesmo tempo sente alegria, percebendo que não está cego. Come- ça a refletir sobre a origem do fenômeno e procura lembrar-se das explicações referentes à eletricidade. Não chega a uma conclusão satisfatória para o enigma. Ele pensa: “A eletricidade necessita de
condições naturais, negativas e positivas. Aqui, no absoluto nada, isto não pode acontecer. Sou alguém, como indivíduo consciente, mas não posso sustar o nada!
Agora me veio uma ideia! Oh, maravilhosa filosofia germâ- nica, fonte inesgotável de verdadeira sabedoria! Única e mais segura conselheira e guia nas situações mais estranhas! Trazes a luz a todos os que te abraçam com amor e dedicação! Se é possível encontrar-se um indivíduo no reino do nada, é lógico existirem outros! É ad- missível então a existência de elementos produtores de eletricidade, sem que isto altere o nada! Estou rodeado por vizinhos de espécie e forma diversas. Não estou só; isto causa-me bem-estar.
Se eu tivesse me dedicado à filosofia, certamente estaria em condição vantajosa. Perdi-me em crítica religiosa sobre o grande sábio e mais nobre doutrinador Jesus, entregando-me à compai- xão inútil!”
Novamente aparece o raio, mais forte ainda. Alarmado, Ro- berto não se conforma com a intensidade da luz, embora de curta duração. Parece-lhe ter visto contornos de objetos a longa distância, mas a luminosidade não permitiu defini-los.
Após prolongado silêncio, consegue concatenar seus pensa- mentos: “Ah, já sei! É uma tempestade que se estende sobre Viena! Estou acordando, aos poucos, de um atordoamento provocado pelo medo mortal e volto à vida. Certamente a atmosfera carregada de eletricidade me será favorável; voltarei a mim sob uma trovoada em boas condições! Não ouço trovões, certamente ainda não começou o desencadear dos elementos!
Talvez eu esteja surdo! Ouço meus pensamentos como pa- lavras, o que prova não estarem em pleno funcionamento os meus órgãos auditivos! Talvez os recupere nesta ocasião? Não consigo compreender a estranha sensação do nada que me envolve. Que im- porta? Existo e vi coriscos, não estou cego! O melhor é esperar que a tempestade passe para não alterar a minha situação, que parece durar há cem anos! Acaso será também um engano? Se ao menos trovejasse para modificar esta monotonia!”
Despertar do amor à vida. Ira e vingança transformam-se em pensamentos de perdão.
Novo corisco e claridade permanente
Roberto continua a monologar: “Será que tais coriscos sur- giram apenas em minha fantasia, provando que em breve minha existência terá chegado ao fim? É bem possível, pois como comecei a me interessar por esta vida isolada..., é fato conhecido: quem preza a vida, a perde. Quem chama a morte não é atendido; quem a teme, desejando prolongar a existência, em breve terá de deixá-la. Convém clamar pela morte e desejar com ímpeto a minha destruição. Assim, estarei certo de que não morrerei tão cedo.
Eis o meu caso: atirei-me aos maiores perigos por amor aos meus conterrâneos, para finalmente ser transportado para aqui, com chumbo e pólvora! O príncipe Alfredo, chefe do Estado Maior de Viena, pensou ter determinado a minha execução! Acontece que es- tou vivo! Eu, Roberto Blum, vivo para a tua condenação, Alfredo, e a queda de tua dinastia.
Por enquanto estou fraco, é claro! Mas sinto que em breve estarei forte para vingar o meu sangue, infames verdugos! Em vida só contava comigo mesmo; agora, vivo nos corações de milhares, razão pela qual não desanimo!
Enquanto a ira e a vingança estão no apogeu, seria melhor que a força me voltasse; com a maior calma poderia assistir ao martírio de meus assassinos, por dez mil anos. Se minha revolta se abrandar nesta treva, prefiro continuar sem forças, deixando agir o destino.
É curioso não poder manter minha vibração de ira e vingan- ça. Às vezes se transforma em uma espécie de perdão, o que muito me aborrece. Refletindo um pouco, reconheço ser esta tendência bem germânica! Somente o alemão sabe perdoar! O perdão é uma virtude inerente às almas abnegadas!
Quem poderia dizer ao próprio assassino: ‘Amigo, fizeste-
-me grande mal, mas eu te perdoo, de coração!’ Só um alemão po-
deria fazê-lo, e eu o faço! Roberto o fará! Alfredo, criminosamente me mandaste fuzilar; eu te perdoo, não me vingarei e mil vezes per- doaria! Toda a Alemanha deve ouvir e saber que Roberto perdoou o crime do príncipe Alfredo!
Agora sinto-me aliviado! Admiro a minha nobreza, é um ín- timo lenitivo! A lenda conta o mesmo sobre o grande Mestre que na cruz perdoou a todos os inimigos. Certamente sua alma era alemã, caso contrário outra seria a manifestação de caráter. Os orientais jamais o fariam! É isto, o grande Mestre Jesus era alemão!”
Ao pronunciar o nome de Jesus, um raio se estende de Oeste a Leste, perdurando um vislumbre peculiar que causa espanto a Ro- berto; sua hipótese de tempestade desmorona.
CAPÍTULO 9
Toda a sapiência do mundo é fútil. Por isto Jesus recomenda a fé
Pensativo, Roberto observa aquele vislumbre e não sabe como explicá-lo. Após certo tempo, refaz-se da surpresa e, mais cal- mo, diz: “As nuvens se tornaram mais claras após o terceiro raio. Percebo agora que estou flutuando, sem qualquer base. Antes, em completa escuridão, esta sensação estaria sujeita a engano; agora, é a plena verdade.
Sei que morri fisicamente; não é admissível que um corpo pe- sado se mantenha por tanto tempo no ar. Nada vejo, só a mim mes- mo. Devo estar longe de qualquer planeta! Tudo isto é muito curioso!
Ó sábios da época, vossa sapiência parece fracassar! Onde es- taria a alma universal, na qual, de acordo com vossa afirmação, a criatura se integra após a dissolução corpórea?! Onde está a divinda- de que deveria surgir no homem, e onde sua consciência?! Eu morri, encontro-me em completa solidão: nem sombra de divindade, tam- pouco minha integração na alma universal!
Pretensos sábios, todavia humanitários! Vossa visão é bem turva e o será ainda mais; nunca imaginastes sensação tão estranha
após a morte. Enganastes-vos, o que ainda fareis no futuro! Por serdes alemães, tudo vos será perdoado! Se tivésseis outros conhecimentos, certamente não os teríeis omitido aos vossos adeptos! Sois justos!
Vosso zelo não é de utilidade para estemundo; lançastes, no
entanto, a ideia de uma ordem. No que diz respeito a esta vida de além-túmulo, tão discutida — na hipótese que todas as criaturas passarão pelo meu estado atual — ela dispensa leis. Quais seriam, no momento, as minhas obrigações? Certamente as mesmas de uma nuvem impelida pelo vento! De nada me valeriam a sabedoria de Salomão ou a força de um gigante.
Seria melhor viver e morrer com a superstição de Roma, na fé cega de que a alma teria de continuar sua existência, boa ou má, eternamente, do que, como adepto de Ronge, perder toda a sensa- ção de vida, o que desperta pavor, como experimentei. Prefiro mil vezes esta escuridão, do que passar novamente por esse sofrimen- to horrível!
Ó doutrinadores, ensinai os vossos adeptos a terem fé; eles morrerão mais felizes do que eu, com toda a minha intelectuali- dade! Agora compreendo por que o Grande Mestre sempre reco- mendou a fé!”
CAPÍTULO 10
Bons pensamentos sobre Jesus. Novo corisco ilumina a situação de Roberto, de modo benéfico. Cresce a fé na imortalidade e em um Deus de Amor. Aparece outro corisco
Prossegue Roberto: “O mais sábio doutrinador dos povos, igual a mim, nasceu de pais pobres e, através de privações, deveria elevar-se ao mais alto cume da sabedoria. Por parte do sacerdócio ju- daico teve de suportar as piores perseguições! Deveria ter sido difícil atingir tal cume entre os seguidores de Moysés e Aarão!
Certamente teve oportunidade de chegar ao Egito em com- panhia dos progenitores — que na própria pátria poucos meios de
vida teriam encontrado — ou com alguma caravana qualquer, des- pertando a atenção de algum sábio em virtude de seus talentos ex- cepcionais e inatos. Deve ter frequentado a escola e se iniciado em todos os segredos e, empregando-os sabiamente, deve ter causado a maior sensação em meio de seus conterrâneos. Talvez até chegasse à escola dos essênios — naquela época a quinta-essência da sabe- doria mundana — e deste modo era natural apresentar-se ele qual deus diante dos judeus ignorantes: um consolo da pobre Humani- dade, muito embora causando aborrecimento ao sacerdócio rico e orgulhoso!
Regozijo-me ainda hoje quando me lembro da maneira como admoestou os sacerdotes, incapazes de conterem sua raiva! Infelizmente, tornou-se no final uma vítima de sua intrepidez e da infâmia das feras do Templo, enfeitadas com prata, ouro e pedrarias.
Mas... acaso tive mais sorte? Oh, não! Também sou um már- tir de minhas mais nobres aspirações: tencionava libertar a Huma- nidade das algemas da escravidão, e o prêmio foi a morte mais es- túpida em Brigittenau! A Humanidade toda está perdida, pois mata seus maiores amigos, e aos adversários mais infames ela faz ovações e passeatas com banda de música!
Seja como for — estou livre de tudo, com a convicção tirada da História de que todos os benfeitores dos povos não tiveram me- lhor sorte do que eu que, não obstante minha melhor boa vontade, longe estou de ser um Jesus!”
Ao pronunciar este nome, surge um raio poderoso junto de Roberto, deixando uma espécie de luz crepuscular e uma zona ao Norte que ele bem pode vislumbrar.
Conquanto também o surpreenda o raio, ele não mais se assusta e reflete da seguinte maneira: “Realmente, muito estranho! Agora o corisco atravessou-me o corpo e, pela primeira vez, senti uma aragem agradável e confortadora! Sua maior projeção de luz me causa sensação de conforto ao coração e olhos. Ao que me pare- ce, vejo uma zona nublada, o que me convence de estar realmente flutuando no ar! Noto, também, pés e mãos e até mesmo a roupa
que usei na hora da execução! Oh, quem no mundo não daria boas gargalhadas se alguém afirmasse que, após a morte, não só a alma, na ulterior figura humana, mas até a roupagem se torna imortal.
Shakespeare tinha razão quando dizia: ‘Entre Lua e Sol ocor- rem fatos que o intelecto humano jamais imaginou’. Oh, Shakespea- re, desses fatos faz parte a imortalidade da roupa terrena! E — o que mais me intriga — ter sido justamente minha farda, como a do má- ximo vexame aos olhos dos inimigos, levada comigo à liberdade! Isto só pode ter sido obra de um Deus amoroso e justo! Agora acredito, não obstante a filosofia de Hegel e Strauss, existir um Deus Verda- deiro, que não precisa indagar deles se permitem Sua Existência!
Algo estranho é a observação de que ao pronunciar o nome do grande oriental surge um raio! Haveria algo de verdadeiro ser ele mais que um Filho de Deus? Se até mesmo as fardas são imortais, por que Jesus — hum, novo raio, e desta vez mais forte que antes! Estranho, muito estranho!”
CAPÍTULO 11
Saudades de Jesus. A zona de luz se aproxima
(Roberto Blum): “Talvez se encontre, igual a mim, nesta zona e corresponde-se comigo, seu semelhante, de maneira inteiramente inofensiva, como reminiscência terrena? É isto! Pois era perito na magia egípcia, pelo conhecimento das forças da Natureza, o que explica também seus milagres, deturpados com o tempo — uma vez que os turcos queimaram a grande Biblioteca de Alexandria!
Assim como mantive a filosofia de Hegel e Ronge, ele conser- vou seu grande tesouro de sabedoria, de onde transmite, por meio de raios, estar na minha proximidade e desejar encontrar alguém neste vácuo. Não deve ser brincadeira satisfazer-se com sua própria pessoa — mesmo sendo o espírito mais lúcido do mundo — no decorrer de 1840 e alguns anos!
Oh, maior amigo da Humanidade! Não mereço, diante de tua grandeza, desatar tuas correias; mas, de que adianta aqui a gran-
diosidade mundana?! Desvanecem brilho e celebridade terrenos! Teu nome — e no futuro também o meu — serão louvados e admirados! Que nos adianta isto? Podemos apenas nos comunicar reciproca- mente por meio de coriscos.
Se fosse possível aproximarmo-nos, tal companhia seria su- ficiente para toda a Eternidade! Duas almas afins jamais haveriam de sentir carência de assuntos maravilhosos, encurtando deste modo o tempo ou o Infinito, tornando-o mais atraente! Que vale, porém, qualquer desejo? Quem poderia realizá-lo?
Assim como nós, quantos estarão flutuando? Os corpos cós- micos, em eras remotas, foram o que hoje somos? Após trilhões de anos, se agruparam inúmeros átomos ao seu redor, dando origem aos corpos, em cujo centro ainda habitam os mesmos espíritos ou almas!
Talvez, meu grande amigo, te transformaste, no decorrer de cerca de dois mil anos, num pequeno cometa, e assim consegues emitir raios de tua própria esfera? Eu, por certo, precisarei de muita paciência até que alcance a projeção de uma pequena atmosfera! Tal- vez estejas lá onde percebo uma zona nublada? E, quando te tiveres tornado um planeta, eu serei teu satélite? E, quando fores — em mi- ríades de anos — um Sol, eu serei, talvez, teu planeta mais próximo, como o atual Mercúrio?
Tais esperanças se projetam no Infinito e convém esperar com paciência. Na Terra, as esperanças passageiras deveriam erguer o ânimo das criaturas sofredoras; por isto, convém aqui — no Reino da Eternidade — empregar os meios adequados, caso não se queira cair em desespero!
Mas... que é isto? Aquela zona turva está ficando mais clara e parece aproximar-se! Isto seria ótimo e tal qual eu imaginei!
Meu grande amigo Jesus — hum, eis o corisco! Mas, não importa! O que ia dizendo? Ah, sim! Meu grande amigo ouviu o meu mais ardente desejo e se empenha para vir aqui. E, quando o fizer, certamente me atrairá ao seu mundo, redobrando a força de atração dos átomos, o que aumentará sua projeção sideral! Quiçá já
o circunda uma quantidade de seres afins? É bem possível, pois já houve muitas pessoas semelhantes a mim!
Se lhe é possível atrair-me, também terá atraído aqueles que, antes de mim, passaram pelo caminho da cruz! Desta forma, encontrarei um grande grupo de pessoas a seu redor! Como isto me alegraria! Pelo que me parece, isto está se tornando realidade; a zona estranha vem se aproximando mais clara e nítida! Vislumbro algo semelhante a pequeno morro rodeado de várias colinas! Graças a Deus! Desta forma alcançarei uma base mais sólida!”
CAPÍTULO 12
Surge uma criatura na zona iluminada. Será Jesus mesmo? Imensa alegria de Roberto nesta expectativa
Prossegue Roberto: “Oh, meu coração, alegra-te, pois aquela região já se acha bem próxima de ti! E, se minha visão não me en- gana, noto a figura de alguém em cima do pequeno morro e parece acenar-me!
Será o bom Jesus mesmo? É ele em pessoa! Agora compreen- do que, ao pronunciamento de seu nome, um raio projetou-se até mim! Será maravilhoso encontrar-me em companhia daquele espíri- to, cuja grandiosidade e sabedoria inigualáveis tantas vezes admirei!
Oh, pobres e tolas criaturas da Terra, que vos julgais supe- riores aos necessitados em virtude de vossos bens terrenos e de um nobre nascimento — digo-vos a todas que não mereceis trazer no cérebro os detritos dum pobre, pois neste caso saberíeis algo daqui! Desprovidas até mesmo disso, sois tão infinitamente tolas por vos julgardes algo excepcional, enquanto sois menos do que nada! Qual não seria a reação de um ricaço orgulhoso caso um honesto tra- balhador se atrevesse a pedir em casamento sua filha ‘nobre’? Ou, tendo ele um filho de boa índole que, se elevando acima da vaidade referente à família e ao dinheiro, almejasse unir-se à filha dum pobre operário? Ora, tal atitude seria um verdadeiro sacrilégio!
Mas, vinde aqui, idiotas semimortos! Sabereis o que sois pelo nascimento, antecedentes e fortuna! Nem um demônio vos libertará de vosso banimento eterno e trevoso; pois os que a Divindade vos enviou para salvadores, desde Adão, prendestes e assassinastes cruel- mente. Agora declaro, talvez do centro universal:
Vossa época chegou ao fim; dentro em breve estareis aqui e perguntareis pelos vossos antepassados orgulhosos! Mas o Espaço Eterno, vazio e trevoso, rodear-vos-á para sempre! Deus por certo não poderá construir uma casa de lesma, muito menos um mundo, de vossa índole atrasada! Por mim, Ele fará o que quiser! Estou so- bremaneira contente que meu mais caro amigo já se acha tão perto de mim, que até lhe poderia falar! Graças a Deus por esta surpresa!”
CAPÍTULO 13
Roberto grita por socorro. Pela primeira vez a alma desencarnada encontra solo firme
Diz Roberto: “A zona estranha se aproxima cada vez mais; o monte onde se acha o Grande Mestre da moral mais elevada é bem considerável. Mede talvez alguns cem pés e é íngreme e escarpado de um lado. Os outros montículos podem ser tomados por pequenas elevações de areia, das quais a maior mal medirá trinta pés. Veem-se apenas iluminadas as elevações, enquanto os vales são nublados, de um verde escuro, impossível de saber-se sua extensão.
Penso que desta forma se assemelham aos recém-construídos corpos cósmicos antes de começarem sua trajetória ao redor do Sol, como simples cometas.
Tais montes certamente terão uma ligação subterrânea, que o Grande Mestre da mais pura moral talvez saiba explicar! Já está bem perto e me ouviria, caso o chamasse em voz alta! Vou experimentar, pois o êxito será bom para mim e talvez para ele; e, caso eu o chame em vão, não será este meu primeiro, nem último grito baldado!”
A seguir, Roberto junta as mãos à boca, como funil, respira profundamente e grita com toda força: “Jesus! Grande Mestre de to-
dos os povos da Terra tola, se és aquele que vislumbro ao longe, vem cá, com teu pequeno planeta, se te for possível! Encontrarás em mim o maior e mais ardente adorador! Primeiro, considero-te em virtu- de de tua sabedoria simples, contudo elevada, pela qual ultrapassas todos os teus predecessores e sucessores. Segundo, prezo-te por ter sido idêntico nosso destino na Terra. Terceiro, porque foste e ainda és o primeiro a trazer luz a esta treva insuportável — por acaso ou premeditadamente — pelo que te serei eternamente grato.
Se fores realmente o meu tão estimado Jesus e puderes vir a mim, porquanto ouviste meu brado, vem, vem, e vamos nos conso- lar reciprocamente! Além disto, estou plenamente convicto de que me confortarás com tua enorme sabedoria! Vem, pois, vem, meu mais caro amigo e companheiro de desdita!
Ó Mestre do Amor, que fizeste do Amor a única lei universal; se este sentimento em ti perdura, como em mim, de modo íntegro, lembra-te disto e vem junto de mim com o mesmo amor que ensi- naste e que também te quero render!”
Após tal exclamação vibrante, o pequeno mundo luminoso se move rápido aos pés de Roberto, de sorte que, pela primeira vez após sua desencarnação violenta, ele pisa solo firme, precisamente ao lado direito de Jesus!
CAPÍTULO 14
Roberto e Jesus. Questão de importância vital
Assim apoiado, Roberto Me observa dos pés à cabeça e encontra o inegável Jesus que acreditava achar, no mesmo traje precário e com os estigmas, conforme ele Me havia imaginado tantas vezes.
Observando-Me assim, calado, as lágrimas lhe correm sobre a face. Quando mais calmo, diz, cheio de compaixão: “Caro e maior amigo da Humanidade, cujo coração foi capaz de perdoar até mesmo aos mais cruéis verdugos o mais infamante ultraje, porque aceitavas, em tua dignidade humana, a cegueira completa como justificativa.
Em compensação, quão inclemente deve ser a Divindade, Teu Pai, tantas vezes por ti honrado e louvado — se é que existe
porquanto deixou-te, a mais nobre e perfeita criatura da Terra, quase dois mil anos neste eterno vácuo e na mesma pobreza que te acompanhou desde tua infância!
Querido Mestre Jesus, mereces o maior amor! Como te amo e como sinto a maior compaixão para contigo em virtude de tua miséria que perdura! Se te tivesses apresentado apenas um pouco mais feliz, ter-me-ia aborrecido por um espírito semelhante ao teu após a morte não ter alcançado a máxima distinção, caso exista uma divindade justa!
Como te encontro tal qual viveste na Terra, a situação dos seres parece bem diversa da nossa imaginação. Assim, somente após épocas extensas poderemos realizar aquilo que condiciona nossa base de vida dentro da capacidade de conhecimento e vontade.
Considerando nossa existência aqui, é ela tanto mais lastimá- vel, porquanto a força realizadora daquilo que projetamos, em vir- tude dos conhecimentos adquiridos, dista muito do poder de nossa vontade. A fim de equilibrar a futura realização com a deficiente for- ça de vontade, possuímos, por sorte, certa indiferença, que também poderíamos denominar de paciência. Ela faz com que suportemos nosso estado; entretanto é, de quando em quando, posta a tais pro- vas, que poderíamos comentar até em eternidade!
Caríssimo amigo, fiz com isto minha confissão fiel e ver- dadeira. Caso me aches merecedor, peço-te externares teu parecer sobre nosso estado precário. Somente pela permuta de ideias pode- remos torná-lo mais agradável. Abre, pois, nobre amigo da Huma- nidade, tua boca santificada!”
Digo Eu, Jesus, estendendo a mão a Roberto: “Sê bem-vin- do, caro companheiro de desdita, e sê feliz por Me teres encontrado, e não te preocupes com o resto. Basta que Me ames e Me julgues, dentro de teus conhecimentos, o mais nobre e sábio. Deixa todo o resto por Minha conta e dou-te a promessa bendita que tudo cor- rerá bem, não obstante os acontecimentos vindouros! Nesta solidão
refleti sobre todos os assuntos e te afirmo que consegui, pela prática do poder da vontade, realizar tudo que penso e quero. Se, contudo, te causo impressão de abandono e isolamento, isto se baseia em tua visão imperfeita para este mundo; se, com o tempo, ela se tornar mais forte pelo amor a Mim, verás o poder de Minha Vontade.
Além daquilo que falamos, faço-te uma pergunta séria e im- portante, a qual me responderás sem restrição, de acordo com teu sentimento! Dá-se o seguinte, caro amigo e irmão: Quando estiveste na Terra, tua boa índole tencionava libertar teus irmãos da pres- são excessiva dos regentes tiranos, muito embora sem escolher os meios adequados! Considero, no entanto, apenas a finalidade e não o meio, que Eu aceito como justo, não podendo ser classificado de cruel! Pelo que sei, foste preso e executado, sem realizar o teu ideal. Acho também justo que tal resultado deplorável tenha feito vibrar teu coração de sentimentos vingativos! Se, porém, tivesses captura- do o marechal austríaco, inclusive todos os seus súditos, ele que te fez condenar à morte — que lhes terias feito? Responde-Me com sinceridade!”
CAPÍTULO 15
Boa réplica de Roberto
Diz Roberto: “Nobilíssimo amigo! Minha reação, no mo- mento em que aquele tirano me tratou qual reles criminoso, é per- doável para qualquer espírito justo. Os tempos, porém, mudaram e agora desejo para esse cego nada mais que luz e o reconhecimento de sua atitude para comigo, se foi justa ou não.
Se ele tivesse conseguido me matar, jamais eu poderia pensar em vingança. Assim, fuzilando-me para a vida, não mais poderá pre- judicar-me e, além disto, sendo eu mil vezes mais feliz do que ele em sua tendência dominadora, é-me mais fácil perdoar-lhe; porquanto, pela aparência, teve muito mais motivo em liquidar-me como sujei- to perigoso, do que, em tua época, o sumo sacerdote de Jerusalém o fez de modo tão cruel, meu nobre amigo!
Se te foi possível perdoar aos teus verdugos, na plena consci- ência das dores atrozes, quanto mais eu que, fisicamente, descontan- do alguns instantes, nada disto senti.
Por isto, se meu inimigo número um me aparecesse, eu só lhe diria o que disseste a Pedro, por ocasião de teu aprisionamento em Getsêmani, ao decepar a orelha de Malco. Sei que este meu desejo não se realizará, pois, se existe no Espaço Infinito um Deus de Justi- ça, Ele fará com que receba aquilo que merece. Se tal existência for um mito — o que agora não mais concebo — o tempo e a História lhe farão justiça, sem que eu seja obrigado a desejá-lo!
Se permites que te faça um pequeno pedido de meu coração e tu o puderes realizar, entrego-te minha pobre família e todas as pessoas de boa índole! Aos egoístas, que julgam ter feito tudo pelo zelo para si e seus descendentes à custa de outrem, faze com que sin- tam em vida o sofrimento dos que deles dependem! Considera isto não como uma exigência de minha parte, mas apenas um pedido para o bem deles. Por mim, já encontro em ti a recompensa por tudo que sofri e perdi!”
CAPÍTULO 16
O Senhor faz promessas dentro de certa precaução. Discurso veemente de Roberto
Digo Eu: “Tua resposta não podia ser melhor em assunto tão importante, uma vez que a deste tal qual a sentes em teu íntimo. De minha parte, asseguro-te que satisfarei teus pedidos de acordo com Meu Poder e Força.
Apenas não posso conciliar teus pensamentos humanitários com o prazer que manifestavas quando um aristocrata orgulhoso era exterminado pela plebe!
Lembro-Me que exclamaste numa assembleia, em Viena, sob aplausos estridentes, que na Áustria e em outros países as coisas não melhorariam antes de serem liquidadas umas cem cabeças proemi-
nentes! Falaste aquilo dentro de tua convicção, ou apenas para dar maior ênfase ao teu discurso?”
Responde Roberto: “Quando, na Terra, dedicava minha vida à felicidade e ao progresso da Humanidade pobre e oprimida, e ten- do feito a experiência de como os ricos aristocratas se regalavam com o suor e o sangue dos pobres, que lhes construíam tronos, burgos e palácios; quando depreendi de todos os partidos da Áustria que a dinastia fazia tudo a fim de induzir ao antigo absolutismo para alge- mar o povo, isto foi demais para meus sentimentos de fraternidade. Se tivesse cem mil vidas, eu as daria em prol dos irmãos; enquanto os potentados nem se perturbam com a morte de milhares, uma vez que aumentem seu próprio prestígio!
Se um coração cheio de amor ao próximo assiste a tais cruel- dades, não se lhe pode acusar se, numa revolta justa, é levado a cer- tas exclamações que jamais teriam passado pela sua mente numa situação normal. É bem possível que tudo isto se baseie no plano insondável duma eterna Providência — que desconheço — e que tudo aconteça conforme foi previsto. Mas, que sabemos nós e que temos a ver com leis secretas e incompreensíveis que um Ser Divi- no determina no Infinito? Conhecemos apenas tuas elevadas leis do Amor, que devemos cumprir à custa de nossa vida! O que passa daí não nos compete. Talvez existam outras, num mundo solar, mais sábias ou mais tolas do que aquelas que nos deste! Seria, porém, loucura se devêssemos organizar a nossa vida dentro de outras leis que, certamente por eternidades, nos serão desconhecidas! Temos e reconhecemos apenas umalei como divina e verdadeira, pela qual, a julgar logicamente, toda e qualquer sociedade poderá existir. O joio lançado por criaturas egoístas em teu campo de trigo merece ser arrancado e queimado!
Digo-te com sinceridade: enquanto o homem for homem dentro de tuas leis, merece todo respeito humano; elevando-se e pre- tendendo ser mais que seu próximo, à custa do mesmo, declaro nula tua lei; deixa de ser um irmão para se tornar senhor, e lida com a
existência alheia como se fora sua propriedade! Neste ponto sempre serei Roberto Blum e jamais cantarei louvores aos soberanos!
Bem sei que, atualmente, nas classes inferiores, muitos há que só podem ser mantidos dentro da ordem através do açoite. Quem tem culpa disto? Precisamente os que dominam o povo, au- mentando sua cegueira, a fim de nela escudar o próprio domínio! Meu amigo, jamais Roberto Blum — e muito menos Jesus de Naza- ré — cantarão hosanas a tais ditadores!
Existem alguns poucos, justos e equilibrados em seu regime, verdadeiros amigos dos súditos. Os tiranos e assassinos dos povos só posso comparar a demônios! Creio ter respondido sem rodeios e te peço que te pronuncies! Sou firme nas minhas convicções, todavia não irredutível, se me puderes convencer de coisa melhor!”
CAPÍTULO 17
O Senhor faz objeções. A Natureza Divina de Jesus
Digo Eu: “Caro amigo e irmão, em absoluto posso condenar teu modo de pensar e agir; onde existem situações entre regentes e povos conforme relataste, tens plena razão de agir e falar como fizes- te. Se as coisas, porém, forem diferentes do que pensas — qual será teu critério a respeito? Confessaste que as relações humanas eram por ti observadas sob o prisma de Minhas Leis de Amor e nada tinhas a ver com determinações transcendentes. Neste ponto não concordo, por muitas razões.
Uma é o mandamento, dado por Mim, pelo qual Eu Mesmo Me mostrei submisso ao poder mundano, enquanto tinha força de sobra para reagir a qualquer um. Outra é o fato que Eu no Templo determinei de dar-se a César o que lhe compete e a Deus o que é de Deus! Além disto falei, através de Paulo, em obedecer à autoridade, condescendente ou severa, pois que nenhuma tinha poder, senão do Alto! Que Me dizes a estes Mandamentos?”
Responde Roberto: “Amigo da Humanidade, observando este caso com certa ponderação, julgo que a necessidade daquela
época levou-te a externá-las para proteção de tua doutrina, tua pes- soa e do próprio Paulo. Pois se tivesses atacado os reis, como fez Jehovah pela boca de Samuel, tua moral elevada e imaculada dificil- mente teria sobrevivido sob o domínio mundano de Roma, cerca de dois mil anos, a não ser de modo sobrenatural. Certamente saberás melhor o que de verdade contêm, pois não fui, como tu, testemunha dos horrores dessa nova Babel!
Meu parecer é o seguinte: se fosse de tua intenção respeitar as autoridades mundanas, boas ou más, terias, pela prepotência deste mandamento, desistido da tua doutrina excessivamente liberal e sua propagação, e admitido ser preciso a pessoa continuar para sempre um pagão atrasado — uma vez que uma autoridade gentia, muito embora não maldosa, obrigasse um povo a persistir na religião dos antepassados, adorando os deuses e por nada deste mundo dando ouvidos à tua nova doutrina!
Afirmaste: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus; mas não marcaste os limites — o que cabe a César e a Deus — tornando-se fácil ao Imperador arrogar-se direitos somen- te cabíveis à Divindade, desconsiderando seus próprios deveres que determinam sua gestão.
Com tudo isso, tua expressão de antanho e dentro da neces- sidade da época é mais fácil de ser limitada do que o mandamen- to paulino, com forte demonstração de temor aos potentados, pelo qual até mesmo conviria renunciar a ser cristão, uma vez que tal regente ache perigosa tua doutrina em sua pureza e inconveniente
conforme a religião ateísta de Roma demonstrou no decorrer de vários séculos.
Talvez houvesse um motivo, até hoje não descoberto, que levou o bom Paulo a emitir tal preceito; do ponto de vista natural, não deixa de ser tolice. De um lado consta: ‘Sois todos irmãos e Um é vosso Senhor!’ De outro lado está o mandamento que recomenda fiel obediência às leis terrenas!
Amigo, isto não é possível! Ou uma, ou outra coisa! Sendo preciso seguir-se a ambas, servir-se-á a dois senhores — caso por ti
condenado. Ou a pessoa deveria aprender a externar dupla indi- vidualidade, pela qual faria externamente o que exige o Governo enquanto internamente amaldiçoaria tal atitude, fazendo em segre- do o que exige a parte liberal do Teu Ensinamento — fato não só mui difícil, como às vezes impossível e, no mínimo, extremamen- te perigoso!
Crê-me, nobilíssimo amigo, ponderei, como talvez poucos, todos os pontos de tua doutrina e penso estar orientado sobre o que ensinaste livremente, qual teu fito principal, e aquilo que tu e teus discípulos propagastes em virtude das circunstâncias ameaçadoras daquela época. Todavia, sou teu adorador, sei o que deduzir de teus ensinamentos e não contesto tuas palavras referentes à obediência às leis terrenas, porquanto tu mesmo te deixaste pregar à cruz por tal motivo!
Ultrapassa o meu atual horizonte de conhecimento se po- derias ter reagido através de uma força sobrenatural. Bem pode ser, e se tuas ações não foram incorporadas à doutrina como fábulas de se- mideuses, torna-se isto até mesmo certeza de que o maior sábio dis- punha de forças excepcionais, como conhecedor da Natureza. Tua paixão e crucifixão puseram em dúvida teu poder milagroso, provo- cando grande aborrecimento. Eu e muitos outros, porém, extraímos apenas a pureza da doutrina e excluímos tudo que se assemelhava a um mito posteriormente incluído.
Se nossa atitude foi certa ou não, espero ouvir de ti, como autor da doutrina, e se algo de verdade existe na tua divindade, en- sinada pela Igreja Católica e matematicamente provada por Swe- denborg no século dezoito. Um filósofo aceitará com dificuldade tal ideia, porquanto teria aspecto contraditório.
Imagina tu mesmo um Ser Supremo cuja Inteligência, Sa- bedoria e Poder são incontestavelmente ilimitados, de sorte a se tor- nar logicamente impossível concentrar-se o Infinito numa só pessoa, e te pergunto se existe a convicção, após reflexão profunda, que tu e a Divindade Infinita e Imutável possais ser idênticos? Como ‘Filho de Deus’ nada tenho que obstar, pois toda pessoa de boa índole
também poderá afirmar tal coisa de si mesmo. Deus e Homem a um só tempo, isto excede qualquer possibilidade! Aliás, não me opo- rei, caso me seja provado; pois já afirmei anteriormente ser possível existirem coisas entre Sol e Lua que ninguém jamais tenha sonhado; porque então não admitir-se, entre tais coisas extraordinárias, seres tu o Ser Supremo? Talvez a Divindade, até então adormecida, tivesse despertado e passado à clara consciência dentro de ti?
Quiçá ela sentisse em si a necessidade de se manifestar qual homem entre os demais, para por eles ser compreendida e vista, sem com isto perder algo de seu Poder Supremo e Universal? Tudo isto é admissível, mormente aqui, onde a vida assume um caráter extre- mamente misterioso.
Como e por que a Divindade manifesta em ti deixou-se condenar à morte por um grupo de judeus maus e loucos — e isto num dos planetas mais ínfimos — é algo incompreensível!
Penso que tu mesmo nunca o afirmaste, pois conheço tua resposta quando te perguntaram se eras realmente o Filho de Deus! Disseste o que somente caberia a um sábio: ‘Não eu, mas vós o afirmais!’ Creio ter considerado tua resposta dentro da compreen- são humana e deduzo que eras um verdadeiro arcanjo e nunca um semideus pagão.
Compreendo perfeitamente que se admita tua diviniza- ção como sábio número um, como até hoje não houve semelhan- te, numa época em que se acreditava no oráculo de Delfos e toda pessoa dotada de qualidades excepcionais era tida como semideus, onde o Tumim e Urim profetizavam e a vara de Aarão, com mais de mil anos de idade, verdejava dentro da arca. Os próprios romanos inteligentes, que intimamente não consideravam seus deuses, afir- mavam: ‘Não existe pessoa excepcional sem bafejo divino!’ Quanto mais isto não fizeram teus conterrâneos, porquanto efetuavas diante de seus olhos perplexos coisas que nunca sonharam desde Abraão! Que teriam dito, por exemplo, à vista duma locomotiva? Creio ter bem respondido e chega tua vez de falar. Saberei fazer-me ouvinte atento e respeitoso!”
Necessidade da autoridade terrena. Não pode existir comunidade sem orientação. Ordem e obediência
Digo Eu: “Meu caro irmão, quando se considera este caso sob ponto de vista e intelecto mundanos, e se satisfaz com qualquer tradução, desprovida de todo senso salutar, dos quatro Evangelhos e das cartas de Paulo, e tendo-se absorvido o espírito da filosofia mundana de vários ateístas alemães, as coisas não podem ser diversas de como acabas de falar.
Afirmo-te que se te tivesses dado ao trabalho de te aprofun- dares no Velho e Novo Testamento, por uma boa tradução de Lute- ro, a Vulgata ou a Bíblia Grega original, terias chegado a outras con- clusões do que pelo caminho ‘radical’, que de modo algum é radical, porquanto poucas raízes possui, com exceção de Hegel, Strauss, Ronge e Czerski. Tais raízes nada são, porquanto os ensinamentos daqueles filósofos e muitos outros representavam apenas parasitas na grande árvore do conhecimento. Como agricultor terreno saberás da constituição das raízes das parasitas e, assim, também saberás do valor que atribuo a teus predecessores!
Quando se traduz a Bíblia de acordo com os próprios prin- cípios, ressaltando aqueles textos que permitem sentido dúbio, não se torna difícil achar argumentos como os que proferiste. Tudo isto está errado. Primeiro, os textos referentes ao tributo de César, e o de Paulo na carta aos Romanos, 13º capítulo, e a Tito, não constam como tu os enunciaste. Além disto, nunca se pode falar de receio pe- los regentes manifestado por Mim ou por Paulo, porquanto provei, diante de Caifás, Pilatos e Herodes, se realmente temia os potenta- dos daquela época. Quem não teme a morte, por ser eternamente seu Senhor, muito menos motivo tem de recear os que espalham a destruição física! Assim como Eu não tive o menor motivo para temer os grandes da Terra, Paulo também não os teve! Sabe-se que Nero foi o mais cruel déspota romano; no entanto, Paulo procu- rou precisamente proteção com ele contra os judeus maldosos que
o perseguiam, e sempre a encontrou. Teria sido isto manifestação de medo dos judeus? Em absoluto; pois, muito embora soubesse de sua inimizade, foi a Jerusalém, contrariando a advertência dos amigos íntimos.
Daí poderás deduzir que tanto ele como Eu demos manda- mentos idênticos, de certo modo conselhos, não partindo do receio, mas unicamente em virtude de uma ordem imprescindível às criatu- ras. Compreenderás não poder subsistir uma comunidade sem guia, portanto urge demonstrar — como doutrinador — a necessidade de obediência aos teus guias!
Acaso julgas o contrário? Isto seria impossível e contra a or- dem natural, não só das criaturas, mas das coisas terrenas! A fim de que compreendas isto mais a fundo, levar-te-ei pelos diversos reinos naturais.”
CAPÍTULO 19
A obediência. Exemplos em a Natureza
Prossigo: “Todos os corpos cósmicos são dotados de certa in- teligência e livre noção, indispensáveis à sua finalidade, e flutuam no Espaço etéreo. Por que são tão teimosos e se movimentam há muitos milênios nas mesmas órbitas em redor de um determinado Sol, que por preço algum querem ou podem abandonar?
Naturalmente, certas rotações são piores que outras, como provam os anos bons ou maus de um planeta, mormente em perí- odos em que se dão consideráveis erupções no Sol. Não Me refiro a um período difícil como motivo de deserção de um planeta, pois pode ele suportar certas reações do Astro. Ocorrem, porém, várias destas rotações para um corpo cósmico.
Se tal enorme viajor sideral, após dez ou mais períodos, tivesse sido maltratado pelo Sol e no final se cansasse da mono- tonia, resolvendo abandoná-lo a fim de vaguear sozinho e inde- pendente pelo Espaço, qual seria a consequência inevitável de tal atitude?
Primeiro, um total endurecimento pela falta de luz e calor; em seguida, um fogo interno pela forte pressão do exterior; e, final- mente, a desintegração total de todas as partes planetárias, ou seja, sua destruição!
Os planetas o sentem intimamente; sua vida é-lhes uma ne- cessidade sensível. Por isto, continuam sob o regime do seu Sol, na ordem imutável de sua movimentação e não se perturbam quando ele os trata, vez por outra, mais economicamente.
Neste caso, um defensor igual a ti poderia dizer, sem inte- resse próprio: ‘Só posso elogiar planetas tão obedientes; o Sol, po- rém, tão caprichoso, eu castigaria, caso fosse o Criador!’ Levanta-se o Astro, dizendo: ‘Que dizes, cosmopolita tolo? Não vês não ter eu apenas de cuidar de um, mas de muitos planetas, grandes e peque- nos? Ignoras serem suas trajetórias diversas e que às vezes se acham em maior número de um lado, onde me ocupam mais do que do lado oposto, havendo então certa carência de minhas dádivas, geral- mente abundantes? Contudo, é ele de tal forma provido que pode subsistir e possuo provas que, de trilhões de viajores independentes dum outro sol imenso, jamais tenha perecido um planeta que se haja submetido à minha ordem. Se outros, vagueando livremente, pre- ferem sua independência à ordem fixa e assim perecem no Espaço Infinito — não me cabe a culpa. A um ser que pretende determinar sua própria conduta, sem depender de uma orientação mais sábia, nada de injusto sucederá; ter-se-á julgado a si próprio! Se tu, cos- mopolita liberal, queres castigar-me como regente planetário, pela minha conduta mutável em relação aos que me são sujeitos, tira-me luz, brilho, grandeza e poder! Observa, porém, de que forma os cor- pos subsistirão sem mim!’
Meu amigo, assim se manifesta a ordem natural nos primei- ros, maiores e mais potentes corpos cósmicos, pois sem ela não se pode pensar em subsistência. Se estes seres enormes e completamen- te livres necessitam de guia, quanto mais os menores e tolhidos, como os animais e mormente as criaturas dotadas dum espírito in- teiramente livre!
Irracionais de certa espécie possuem determinado guia; quando este se movimenta, todos são tocados como por uma des- carga elétrica. O pastor de um rebanho sabe qual dos animais é con- siderado pelos outros; por isto ele lhe dependura um sino. Quando à tarde quer levar a manada ao curral, basta prestar ouvidos ao som do sino para encontrá-la; guiando o principal, os outros o seguem automaticamente. O mesmo se dá com os suínos quando vivem ao ar livre, bem como as cabras, carneiros, cavalos, burros, etc. Fato idêntico observarás até mesmo nos insetos, pássaros, peixes e outros.
Explicar-te-ei o assunto em seu todo e te conduzirei à na- tureza aparentemente muda. Observemos a água, em si maleável, porquanto pode ser dividida em inúmeras gotas. Este elemento su- mamente importante e ocultando em si todos os germes primitivos da vida animal e vegetal, e ao mesmo tempo fecundado por forças por ti jamais calculadas, obedece, em estado livre, à lei do peso que nela reside. Em virtude desta lei, que ela observa por uma capaci- dade perceptiva toda peculiar, sente a mais suave inclinação de um terreno e começa a mover-se em direção do declive, não descansan- do até que tenha alcançado o mar. Além disto, tem este elemento a tendência estranha de se purificar somente após ter alcançado a margem marítima — demonstrando assim que o homem também só atinge a consciência plena da sua verdadeira finalidade quando em vida não almeja honrarias, senão a posição mais simples, isto é: a verdadeira humildade, tão recomendada por Mim, e que jamais poderá ser alcançada pela autoridade, mas pela obediência!”
CAPÍTULO 20
As cordilheiras e sua necessidade
Prossigo: “Recebeste, pela explanação dada, uma prova de que a água, como elemento passivo, contém uma inteligência própria pela qual rende obediência à lei puramente divina dentro dela até a última gota, muito embora contenha cada uma trilhões de germes!
Não paremos na observação da água e vamo-nos encaminhar ao local do seu nascimento, isto é, às montanhas, para analisarmos se não manifestam inteligência individual e por isto respeitam as leis que comportam, de modo milagroso!
Existem na Terra montanhas variadas. As enormes, ou seja, as de origem primária; em seguida, as de altura mediana, de forma- ção secundária; e, finalmente, as menores, que são mais montes do que montanhas e pertencem à terciária. Estás sorrindo de satisfa- ção porque descobres em Mim um geólogo moderno! Como não? Pois justamente na Geologia e na Cosmologia superior estou bem informado.
Temos, pois, três espécies de montanhas e vamos analisar pri- meiro a mais alta. Suas finalidades são diversas: primeiro, são elas reguladoras das correntes eletromagnéticas, que deste modo são de- vidamente distribuídas sobre o solo terráqueo. Segundo, elas evitam que o ar estacione enquanto se faz a rotação da Terra, o que provo- caria uma corrente contrária pior que qualquer furacão, impossibi- litando a vida sobre a mesma. Terceiro, absorvem as partículas de umidade provindas do oxigênio e hidrogênio, razão por que seus cumes geralmente estão nublados e invisíveis. Tais partículas unem-
-se ali à eletricidade abundante e caem como neve e gelo sobre os penhascos. Após maiores acúmulos, se arremessam como poderosas avalanches nas fendas e grutas onde formam as geleiras; estas, por sua vez, absorvem as partículas frias da atmosfera, protegendo as zo- nas cultivadas da geada destruidora. Ao mesmo tempo amenizam a eletricidade fortemente acumulada, do contrário as planícies teriam de suportar constantes aguaceiros.
Vês, portanto, a grande finalidade das montanhas e conjec- turas: ‘É isto mesmo, pois sempre que os homens se atreviam a mo- dificar a formação montanhosa, em breve recebiam o castigo dos elementos, jamais vistos.’ Tens toda razão, amigo! Agora vamos ao principal: A fim de que as montanhas possam cumprir sua impor- tante finalidade na manutenção do orbe e de tudo que nele se en- contra, já não é indiferente seu local; além disto, precisam — através
dos espíritos ou elementos que habitam tanto no centro quanto na superfície — ser donos de peculiar inteligência para executarem o que lhes cabe.
A esfera de ação é para elas, tanto quanto para nós, uma lei positiva que percebem pela inteligência; tudo isto podes acreditar, porquanto de Mim afirmaste ter sido Eu iniciado na escola egípcia nas forças da Natureza de modo mais completo que todos os inte- lectuais hodiernos.
Aceitando, pois, Minha explanação, aceitarás também ser so- mente possível a conservação de um planeta pelo fiel cumprimento das leis a cuja inteligência estão sujeitas as montanhas. Que seria caso elas se revoltassem contra tais determinações, dizendo: Não mais queremos ser soberanas elevadas, mas humilhar-nos em peque- nos montes frutíferos!
Enquanto as montanhas nada produzem por várias centenas de milhas quadradas, dando a impressão de inúteis — seria talvez aconselhável destronar tais regentes e transformá-los em planícies pro- dutivas? Respondes negativamente. Da mesma forma acrescento que os regentes da sociedade humana não podem ser aniquilados! Do con- trário, a Terra em breve terá o mesmo aspecto que as montanhas ar- rasadas! Como os reis da Terra devem cumprir sua finalidade, ela tem que ser idêntica às montanhas. Compreendes? Dizes: ‘Sim, e também percebo seres um sábio verdadeiro!’ Pois bem, ainda não chegamos ao fim; restam duas qualidades de montanhas, que vamos analisar.”
CAPÍTULO 21
Aparecimento das montanhas médias e pequenas e sua necessidade
Prossigo: “Quando o orbe ainda era deserto e necessitava alimentar plantas e animais — além dos tipos primários de todas as formas posteriores — as cordilheiras primitivas eram suficientes para fornecer os mencionados serviços ao planeta ainda informe. Mas, após inúmeros milênios, ele se havendo concentrado mais e
mais, sobre o mar se elevavam importantes grupos de ilhas e os ger- mens primitivos depositados na água começavam a se manifestar por várias espécies de vegetais. Era então chegado o momento de pro- duzirem-se novas elevações através de erupções internas, fornecendo mais terreno, alimento e proteção para seu desenvolvimento. Eis que houve tremendo e furioso rugir. Romperam-se as camadas subaquá- ticas, sendo levantadas pelas forças poderosas a alturas imensas!
Passaram-se milênios até que fosse concluída esta tarefa. Mas, para Deus, Meu amigo, pouca diferença faz; pois mil ou milhões de anos Lhe são idênticos a um dia! Bem, deste modo se formaram as montanhas de segunda categoria! Eram, no início, mais altas e escar- padas que hoje; o tempo e as tempestades baixaram-lhes as frontes, preenchendo as enormes profundezas e formando vales estreitos e largos. Como estes não facultassem livre passagem às águas, elas se acumulavam nas fendas mais vastas, onde formaram grandes e pe- quenos lagos.
Como tais lagos recebessem um constante acúmulo de água, tanto pelos poros do orbe como do ar — pela chuva, neve, saraiva e orvalho — tinham forçosamente de ultrapassar suas margens. No decorrer dos tempos se soltaram pequenas e grandes partes de terra, que preencheram as profundidades irregulares dos vales e até mesmo formaram, em época de inundações, verdadeiros montes e fileiras de colinas, o que até hoje ainda acontece; e, além disso, também sur- gem tais montanhas pelo fogo. A formação de colinas por meio de inundações é a terciária, condicionada pela secundária.
Por esta explicação é fácil deduzir-se como surgiu e ainda sur- ge a terceira categoria, quando não se perde de vista que, para a futu- ra produção, conservação e proteção de novos seres e na reprodução do que já existe, preciso é um solo vasto e fértil. O solo terráqueo é de tal forma organizado que nele pode surgir, viver e procriar toda sorte de criaturas. Esta organização foi e ainda é facultada pelas três categorias montanhosas.
As duas últimas formações parecem, à primeira vista, não ter semelhança com a primeira na sua finalidade; tanto a origem quanto
seu destino são diversos. Uma vez que entraram na fileira das mon- tanhas primitivas, isto é, dos regentes, têm de se submeter àquelas leis, sem reação, não obstante suas finalidades por elas determinadas. Não basta que montes e colinas preencham, com o supérfluo, vales e fendas, lá produzam campo fértil e formem agradáveis bosques; preciso é que desde o início de seu aparecimento assumam gran- de parte do peso e em tudo auxiliem as montanhas; do contrário, não poderão satisfazer sua finalidade, porquanto seu surgir requi- sitaria por demais aquelas forças, caso as montanhas tivessem que organizar tudo por si mesmas! Assim sendo, montes e colinas agem pela inteligência estimulante naquilo que os regentes montanhosos lhes incutem.
Existem, na realidade, alguns não dispostos à obediência; são então vergastados por tempestades poderosas até que se submetam ou sejam destruídos. Os antigos sábios os denominavam de ‘teimo- sos’, às vezes, ‘amaldiçoados’. Ultimamente chamam-se tais heróis de ‘soltos’, ‘inconstantes’ e ‘decompostos’. Existem muitos exemplos de montes castigados, tanto da antiguidade quanto de época recente.”
CAPÍTULO 22
Submissão gradativa entre os homens
Digo Eu: “Caro amigo, por esta exemplificação, tirada da Natureza, terás deduzido as condições submissas até nas coisas iner- tes e sem inteligência — a teu ver — portanto podemos declinar de outros exemplos. Teria fatos interessantes a te contar, caso te levasse a outros planetas, cuja ordem é muito mais rigorosa que na Terra, onde intencionalmente existe a maior desordem — e isto, a fim de que os espíritos livres nela pudessem ser educados para verdadeiros filhos de Deus, de modo independente e proveitoso à sua natureza.
Já que aceitas ser indispensável, na construção da Natureza, uma ordem de submissão gradativa a fim de garantir sua existência
considera uma pessoa dotada de um espírito absolutamente livre, encontrando-se na capacidade ilimitada de pensamentos, julgamen-
tos e desejos. Imagina qual seria o resultado se cada uma pudesse realizar tudo aquilo que sua índole, em seu recôndito invencível e fantástico, projeta da riqueza infinita e divina de suas ideias!
Afirmo-te que ninguém estaria seguro perto do semelhan- te. Primeiro, espíritos há cuja fantasia ou criação se ocupa, princi- palmente, com volúpia, na destruição de tudo que existe. Outros desejam matar de formas variadas; outros, ainda, destruir monta- nhas, perfurar a Terra, enchê-la de pólvora a fim de fazê-la explodir, fazer secar o orbe, inundá-lo, queimá-lo; outros, atar a Lua à Terra!
Além disso, há uma infinidade de espíritos sensuais cuja fan- tasia consiste nas ideias de gozo. Se não fossem retidos por leis, não haveria proteção para o sexo feminino, até mesmo para o masculino e os próprios animais! Conheço muitos de tais amigos da Natureza da espécie de Sodoma e Gomorra, que se entretinham no cruza- mento de várias raças para observarem o produto. Quando isto não mais satisfazia sua imaginação, dedicavam-se a experiências com ir- racionais, de onde surgiram figuras horripilantes, conforme agiam os pagãos.
Imagina uma grande sociedade de tais pessoas, não contro- ladas por leis morais e políticas! Que geração monstruosa não sur- giria? Em alguns séculos o orbe seria inundado de seres onde a vida humana não mais encontraria defesa! Por isto instituiu Moysés uma lei rigorosíssima e a morte como castigo para tais obscenos, pois ele, como filho adotivo do rei, era conhecedor das monstruosida- des egípcias.
Entre os espíritos sensuais houve — e ainda há — os que so- mente satisfazem seu gozo quando martirizavam a moça antes e du- rante o ato. Não pretendo revelar-te fatos especiais, pois não serias capaz de ouvi-los! Basta que saibas do resultado quando a sociedade se acha num estado anárquico.
Terceiro, existem espíritos que se têm em tão alto conceito a ponto de acharem tudo abaixo de sua dignidade; são orgulhosos e excessivamente dominadores; todos devem se ajoelhar no pó e sa- tisfazer apenas suas vontades. Calcula uma comunidade constituída
de tais pessoas! Tigres, leões e panteras viveriam em maior harmonia que elas, caso não fossem mantidas por leis morais e políticas!
Além disto, vivem entre os homens inúmeras aberrações de espíritos vários cujas fantasias e inclinações são de tal modo pervertidas contra qualquer ordem positiva e equilibrada, que não fazes a menor ideia! Se lhes fosse permitido fazer uso de sua liber- dade na milionésima parte, qual seria o aspecto do planeta? Res- pondes: ‘Tal seria um horror! Seria o inferno de todos os infernos sobre a Terra!’
Concordo e digo mais: o que, então, é necessário para impe- dir o inferno total na superfície terráquea? Vê, agora chegamos ao ponto de partida e onde Eu queria chegar! Reconheces o motivo por que Eu e Paulo recomendamos obediência à autoridade mundana os confessores da Minha Doutrina? Acaso ainda descobres um contras- senso nisto tudo e julgas a obediência justa e a humildade verdadeira como indignas de um espírito livre?”
CAPÍTULO 23
Roberto indaga do abuso do poder
Diz Roberto: “Que posso ainda dizer, caro amigo? Confes- so que me ultrapassas em ciência e sabedoria, portanto tens razão em tudo que me expuseste. Nada posso contrapor, uma vez que tu, iniciado nas forças ocultas da Natureza, possuis conhecimento mais completo que eu!
Tudo, pois, é verdade e se apresenta a necessidade férrea de uma lei em virtude da liberdade do espírito. Surge, porém, a ques- tão: podem os legisladores, de certo modo nomeados por Deus, ser excluídos do respeito às suas próprias leis e, mormente nesta época, tornarem-se déspotas e tiranos, deixando que milhares sejam ani- quilados por causa de um trono qualquer? Teria sido meu crime de tal espécie que um príncipe Alfredo, em nome de seu Imperador que lhe conferira plenos poderes, fez-me fuzilar e a outros tantos simpatizantes?
Se tal regente se exclui de suas próprias leis, resta saber quem o dispensa de tua Lei de Amor, válida no mundo inteiro, sem distin- ção de classe e caráter? Por que devem centenas de milhares sofrer as maiores misérias e, caso cometam o menor deslize em virtude de sua pobreza, terem de passar pelo rigor da lei, enquanto que os grandes podem fazer o que lhes apraz, pois não haverá juiz que os chame à responsabilidade?
Sou muito a favor de regentes sábios e bons; quanto aos que mal sabem o que são e muito menos o que devem ser, isto é, regentes que ocupam tronos para satisfazer suas tendências e sugam o sangue dos súditos quais vampiros, ao invés de guiá-los por sábias leis, dize-
-me se tal povo oprimido não tem direito de enxotar ladrões e ma- landros inconscientes desta ordem, para ocupar seus lugares como homens de inteligência e coração? É preciso que sua poltrona seja dourada, sua habitação um palacete suntuoso e seus rendimentos se elevarem a milhões? E tudo isto à custa do suor do povo? O pobre coitado nada tem de bom sobre a Terra; desde o nascimento até a morte é um joguete dos grandes, tem de lhes render vida e bens. Em compensação, procura um padre a fim de aliviar sua consciência, ouvindo o consolo duvidoso da eterna condenação! Assim confor- tado, volta ao lar onde faz estudos referentes ao desespero! Estará isto também positivado em a Natureza? Eu, Roberto, afirmo: eis o inferno e sua tentativa constante de transformar os pobres anjos em demônios miseráveis!
Não deixa de ser verdade — o que confesso como alma viva após a morte — que a vida terrena é de provação para o alcance de perfeições elevadas e puramente espirituais, portanto não se pode aguardar felicidades maravilhosas e deslumbrantes. Um estudante é mais ou menos escravo de seu mestre; mas, quando fizer parte dos tiranos cruéis, cuja educação se restringe ao domínio, transforman- do a criatura verdadeira em animal ou demônio — qual é a opinião de uma ordem divina?
Continua neste caso a Divindade como único Senhor e Mes- tre, e seus confessores devotos, irmãos? Será isto amar a Deus so-
bre tudo e ao próximo como a si mesmo? Ou talvez ela ache justo deixar os povos perecerem sob regentes maus? Quando os povos alcançam a maior miséria física e moral, recebem do Alto o castigo em virtude de sua depravação. Desta forma surgem pobreza, fome, moléstias horríveis, peste, cólera e outras epidemias, tudo isto como ‘Graça Divina’!
Ao lado de tais dádivas se apresenta o desespero completo e, como final coroação, a condenação eterna no purgatório! Bravo, bravo! A vida é uma maravilha! Quem a inventou deve se alegrar com sua obra!
Não quero criticar ou recriminar o Ser Supremo, que cer- tamente terá coisa melhor a fazer do que se interessar pelos ver- mes no pó. O pior de tudo é que tais vermes têm sentimento e raciocínio e finalmente não podem ser aniquilados, conforme sou exemplo vivo!
Deverão as criaturas desta Terra — talvez por deferência es- pecial — ter a honra e a felicidade de serem as mais amaldiçoadas pela Divindade Bondosa, teu ‘santo pai’, que te deixou pregar na cruz, certamente por amor?! Quanto mais reflito, mais duvidosa me parece tal questão! Consegues interpretá-la melhor?”
CAPÍTULO 24
Resposta extensa e confortadora. O castigo é causado pela maldade do homem, e não por Deus
Digo Eu: “Caro amigo, teu critério dentro do raciocínio li- mitado é aparentemente justificável, e se as coisas andassem confor- me acabas de expor, a situação da Humanidade seria bem precária! Felizmente, tuas conjecturas se baseiam em fracas bases. Primeiro, a Divindade zela pela criatura desta Terra de modo tão extraordinário como se não houvessem outros seres que Dela necessitassem, con- duzindo-a em todas as circunstâncias de sua vida de provação de tal forma que quase todas têm de alcançar seu elevado destino, para o qual Deus unicamente as criou!
Naturalmente, muitos espíritos há que não se querem sub- meter à Vontade de Deus, não obstante todos os meios aplicados! É compreensível que Ele use para tais espíritos de meios mais rigoro- sos e drásticos a fim de levá-los ao justo caminho, e penso que teu julgamento quanto a Divindade é um tanto superficial, uma vez que Lhe atribuis resultados que somente cabem à vontade potente e orgulhosa da criatura!
Mencionaste a Providência Divina em relação aos regentes maus; nada disseste, porém, dos povos que se tornaram maus por própria culpa e não em virtude da política mal aplicada de seus re- gentes, o que exemplificarei mais tarde.
Segundo, a suposta condenação eterna dos homens, após a morte, como efeito daquele regime que os obrigou a serem maus sem própria culpa! Confesso sinceramente jamais ter deparado com tais fatos, não obstante conhecer bem todas as situações no mundo espiritual: em toda a Eternidade não existe um caso em que Deus tivesse condenado um espírito. Posso te citar inúmeros em que es- píritos detestam e amaldiçoam a Deus, em virtude de sua indepen- dência, e por preço algum querem depender de Seu Amor Infinito, porquanto se julgam senhores da Própria Divindade!
Como Deus só pode favorecer com Seu Pleno Amor os que queiram sorvê-lo, claro é não ser possível dele partilhar enquanto O desprezam, odeiam e ridicularizam.
Tais criaturas amam somente a si mesmas e odeiam tudo que se opõe ao seu egoísmo. O amor a Deus e ao próximo é-lhes um horror, uma maldição! Tomam a Deus como insipidez de sentimen- to beatífico, tolice de um intelecto deturpado e tolo em excesso; e o próximo, um vagabundo que não merece ser considerado!
Se espíritos livres perduram na teimosia e não podem ser cura- dos por meios livres, isto é, por si mesmos, e preferem submeter-se às amarguras e sofrimentos, ao invés de aceitarem um Mandamento sua- ve de Deus — poderá Ele ser responsável por tal condenação própria?
Se a Divindade isola tais rebeldes de seus amigos desencar- nados, felizes, pela Onipotência, Amor e Sabedoria, deixando-lhes,
porém, a plena liberdade em zonas de solidão — pode, por isto, ser classificada de impiedosa e ríspida?!
Afirmas que a maldade das criaturas e povos deriva da péssi- ma educação e ensino, cuja culpa cabe aos regentes, que Deus assim permitiu que fossem! Não contesto tuas ideias quanto à hipótese da culpabilidade dos regentes. Todavia, não poderás negar que a Justiça Divina não haja castigado os responsáveis! Pesquisa a História desde o início da Humanidade; apresentar-te-á inúmeros severamente pu- nidos em virtude de sua péssima conduta. Contudo, sempre se fez a experiência de que o povo em geral era mais obediente e compre- ensivo sob um regime tirânico do que num meigo. Razão por que a Divindade permite maus regentes para que os povos tenham um freio e açoite, obrigando-os à penitência e transformação da índole, e assim façam jus a um regime melhor, que a Divindade não deixará de lhes proporcionar.”
CAPÍTULO 25
Razão e finalidade da vida terrena. Felicidade terrena ou eterna? Que trouxeste contigo à Eternidade?
Prossigo: “Se um povo se tornar voluptuoso e sensual sob o regime de pessoas bondosas e meigas, dedicando-se somente ao que lhe faculta felicidade na Terra, Deus, que visa apenas o bem espiri- tual de cada um, não pode concordar com tal situação, porquanto produz a morte do espírito dentro da Ordem Divina. Assim como um adolescente, que desde o berço levou vida nababesca, não se interessará pelo desenvolvimento espiritual, o mesmo sucede a um povo que leva vida farta.
Penetra nos palácios dos ricos e informa-te a respeito da educação exigida por Deus, e verás que ela não existe, na maioria. Procura, em seguida, o lavrador em sua cabana e encontrá-lo-ás em meio da família, abençoando o escasso pão! Qual dos dois preferes? Respondes: o pobre em sua cabana; e Eu concordo contigo! Pois este ora em espírito, educando e elevando seus filhos a Deus. O deus do
rico é seu corpo, que ele adora e venera por toda sorte de prazeres. Da mesma forma educa seus filhos, e tal educação não pode ser do agrado de Deus, porquanto por ela jamais poderá ser alcançada a finalidade sublime para a qual Deus criou os homens.
O mesmo acontece com um povo: quanto mais abastado, tanto mais sensual se torna. Provido de tudo, não mais necessita de Deus, esquece-O finalmente, divinizando-se a si mesmo naquilo que mais agrada a seus sentidos. Foi esta desde sempre a causa do paganismo!
Conjecturas: ‘Para que servem, então, a Onipotência e Sa- bedoria Divinas, que não podem impedir tais coisas?’ Respondo-
-te: Se a Divindade condenasse os espíritos dotados de liberdade através de Sua Onipotência — adeus livre arbítrio! Neste caso, Ela formaria bonecos tolhidos, ao invés de espíritos completamente independentes e livres de Deus, que, em sua perfeição, se devem tornar deuses!
Quanto à influência da SabedoriaDivina, Ela produz preci-
samente tais estados sobre criaturas pervertidas que permitem ser de novo levadas ao destino determinado. Não deixa de ser um julga- mento e, de certo modo, uma obrigação, mas que toca apenas a cria- tura externa, a fim de que possa quanto antes despertar e assumir sua finalidade. A Onipotênciajulgaria e mataria a pessoa no seu todo!
Reflete, pois, se ainda te assiste o direito de culpar a Divinda- de como se nada fizesse em favor de Seus filhos, e quando o faz, seria apenas a manifestação de inclemência, falta de amor, portanto algo de ruim! Consideras ainda a vida terrena desprezível? E o Inventor, um Ser que não tivesse motivos para vangloriar-Se de Sua Obra?
Se possuis o menor vislumbre de inteligência adicionada à de Hegel, confirmarás, através de muitas experiências, que na Terra, onde tudo tem de ser passageiro, jamais se encontrará uma felicida- de verdadeira, porquanto se torna, pela ordem natural das coisas, com o tempo, mutável e, finalmente, perecível!
Quem, todavia, acumula tesouros dentro de Minha Doutri- na, indestrutíveis pela ferrugem e as traças, poderá falar da verdadei-
ra bem-aventurança; pois aquilo que dura eternamente, por certo será melhor que a matéria sujeita ao tempo!
Que conseguiste com as tuas aspirações à felicidade pura- mente terrena? Uma pequena dose de pólvora e chumbo finalizaram teus projetos elevados! Não vem ao caso se o mereceste ou não, pois Eu Mesmo passei por essa desdita, apenas com a seguinte diferença: Eu — para Deus e o Espírito; tu — em prol do temporário.
Poderás repetir as Minhas Palavras: ‘Senhor, perdoa-lhes; pois o que fizeram foi cegamente, julgando agirem pela justiça!’ So- bre isto nada mais há que dizer. Mas... que trouxeste contigo para a Eternidade? Vê, amigo, eis uma pergunta bem diversa! Acaso o mundo perdido te poderá dar algo? Medita sobre isto e dize-Me o que farás aqui!”
CAPÍTULO 26
Resposta de Roberto: Devolvo minha simples existência àquele que ma deu! Haverá um Deus de Amor que trate suas criaturas tão cruelmente?
Após certa reflexão, diz Roberto: “Prezado e mui caro amigo e irmão! No que diz respeito ao teu relato contra minha crítica da Divindade e a ordem de vida por Ela firmada, concordo contigo e confesso ter agido injustamente contra Deus — na hipótese de exis- tir um Pai Amoroso como tu e teus discípulos pretendíeis ensinar, porém nunca o reconheceram.
Quando, certa feita, exigiram que mostrasses teu Pai e não pudeste satisfazer tal pedido senão aproveitando a fé fraca dos que te seguiam, apresentando-te, tu mesmo, como Pai, querias, a meu ver, dizer apenas: ‘Oh, judeus tolos! Ignorais não existir Deus além do homem?! Ao me verdes, ou a algum outro, vossa exigência se cum- priu. Não concebeis que o Pai está em nós e nós Nele?! Portanto, não existe Deus fora do homem!’
Sendo esta minha compreensão, não sou de todo irredutível e me prontifico a aceitar uma Divindade qualquer, caso me possas
demonstrá-la. Se fosse possível, eu apostaria contigo um mundo de riquezas por não seres capaz de provar uma outra Divindade dentro de ti senão a que Hegel afirma! Não sendo admissível tais objeções, a não ser um deus dentro de nós, posso aceitar tua refutação, tan- to mais fácil quanto se refere à nossa ordem interna, que deve ser compreendida a fundo, antes que se exponha a um julgamento cri- terioso. Em outras palavras: ‘Criatura, conhece primeiro a ti mesma, para poderes julgar tua existência e todas as variadas condições que ela traz em seu bojo!’
Só me cabe te agradecer por ensinamento tão complexo, pois em meu solo estéril e fraco tais frutos levarão muito tempo para surgir. Muito embora aceite as sábias restrições da liberdade absoluta inerente ao espírito, à ordem natural e às condições imprescindí- veis à vida, vejo-me obrigado a dizer-te, com franqueza, não me ser possível coadunar a doutrina pela qual Deus é o Puro Amor e que nos compete amá-Lo sobre tudo e ao próximo como a nós mesmos, com o que me disseste até agora; e muito menos enquanto não me convenceres da verdadeira existência de Deus!
Antes de tudo, é preciso que Deus exista realmente e que Sua Natureza e Vontade sejam conhecidas; só então poder-se-á cogitar de obrigações para com Ele. Enquanto for uma entidade aceita pela fé cega, e nunca pela pura razão, cedo ou tarde todo ensinamento relativo a Deus, por mais metafísico e teosófico que seja, dissolve-
-se em nada.
Não contradigo tua explanação, pois reconheço sua veraci- dade; todavia, só se aplica no caso de existir realmente a Divindade que impôs tal ordem para a educação da criatura, como Ser Su- premo. Não havendo Divindade, torna-se inócua minha objeção, porquanto o assunto é contraditório, mesmo com seus princípios fundamentais.
À minha pergunta por que motivo o príncipe Alfredo me fez fuzilar, alegaste apenas não estar na hora de se tratar do caso; pois tu mesmo tiveste tal destino, com a diferença da finalidade: tu
para Deus e a eterna bem-aventurança das criaturas; eu — para
o mundo e a felicidade perecível! E agora devo dizer qual minha bagagem trazida de lá? Amigo, tal resposta não me proporcionará dor de cabeça!
A experiência milenária nos ensina que a Divindade, ao nos mandar ao mundo para frequentarmos a escola da pretensa liberda- de, nada mais nos proporcionou do que uma vida dura, desprote- gida, portanto tola! Assim, traz o homem o completo nada daquele mundo miserável! Dos bens terrenos, nada lhe pertence, porquanto os deixou para sempre!
O que, pois, poderia eu trazer comigo, além de mim mes- mo, sem que o desejasse?! Há uma diferença apenas: cheguei a este mundo como ser pensante e espiritualmente formado, enquanto minha chegada na Terra era extremamente desprotegida. Contudo, ainda prefiro minha vida passada, porque nada senti como criança, além de fome e alguma dor inconsciente. Na realidade, tais sensa- ções não existiam, pois me faltavam consciência e critério. Se minha pobre mãe não me tivesse dedicado tanto zelo, os camundongos e ratos certamente me teriam liquidado, não obstante toda dedica- ção divina!
A Divindade no coração de minha mãe cuidou de mim; mas a grande Mãe onipotente, alhures acima das estrelas, até o momento talvez ignore a existência do pobre diabo chamado Ro- berto Blum!
Se represento o produto miserável desta grande Divindade que me enviou por amor ao mundo de provação, tão fartamente provido — acaso poderá exigir maisdo que me deu para esta viagem cósmica? Creio que onde nada existe extingue-se todo e qualquer direito! Ou, quem sabe, existe no mundo do espírito uma jurispru- dência pela qual a pessoa se pode tornar devedora pelo puro nada?!
A existência nua e crua não é minha, porque não sou seu responsável. Trouxe-a um tanto enriquecida com alguma inteligên- cia e coberta de um uniforme, e ponho-a à disposição de quem ma deu, com o pedido de que eu, Roberto Blum, deixe de existir por toda Eternidade! Pois já deduzi de tuas objeções, se bem que sábias,
não ser possível falar-se de felicidade, mormente no meu caso. As- sim, será melhor não existir!
Para completar minha desdita aqui, faltava que tu, caro amigo, dissesses: ‘Afasta-te de mim, miserável, e joga-te no fogo eterno da Ira Divina, onde deverás arder em dores insuportáveis!’
e assim a vida e a glória seriam coroadas pelo amor divino! Se tal sentença inclemente e desprovida de todo amor te for insuflada pelo teu Pai Amoroso, nada de bom se poderá esperar do amor infinito! Penso, todavia, que condenação tão cruel jamais tenha passado pelos teus lábios, e foi certamente incluída mais tarde pelos amáveis Pa- pas, o porquê não sendo difícil deduzir-se! Agora fala, pois terminei minha defesa.”
CAPÍTULO 27
A emancipação do homem. Na educação aparentemente dura manifesta-se a mais elevada Sabedoria do Amor
Continuo: “Meu caro amigo, terás dificuldades para alcan- çar noções espirituais mais profundas, pois ainda estás muito pre- so à matéria, suas condições e aparências; eis por que julgas tudo por este prisma fictício e perecível, não podendo assimilar noções espirituais.
Acaso ainda não compreendes, como filósofo, que a Divin- dade, ao querer projetar um ser livre, forçosamente terá de fazê-lo numa independência completa e não tolhida — com exceção daqui- lo que está sujeito à condenação, por exemplo, a vida física, a fim de se positivar como receptáculo da centelha divina? Uma vez que esta tenha alcançado a necessária firmeza, ou caso Deus queira for- tificar um espírito ainda fraco para a vida terrena, sem submetê-lo à encarnação, Ele Mesmo o isenta do julgamento e o espírito, com isto, torna-se inteiramente livre, e tudo aquilo que deseja realizar se concretiza! Compreendes?
Pensas que Deus te manda descer ao inferno ou subir ao Céu? Não precisas preocupar-te com tais ideias! Afirmo-te que és
completamente livre, e aquilo que teu amor — ou seja, tua inclina- ção — desejar far-se-á! Deus te auxiliará no que há de melhor so- mente quando tu o desejares. Se pretendes rejeitar esse socorro, Ele não o atirará sobre teus ombros, porquanto possuis uma vida livre e independente de Deus, determinando tua própria vontade e, por isto, também és obrigado a cuidar do teu sustento sem ajuda divina; do contrário, tal existência não seria independente!
Se Deus permite que o homem nasça inteiramente despro- tegido e nu, fá-lo a fim de libertar sua existência e habituá-lo desde o nascimento a determinar sua própria resolução. Tal processo de afastamento tem de ser iniciado desde cedo, quando a criança ainda é incapaz de compreensão, ideias e dores conscientes; pois se tal afas- tamento ocorresse em plena consciência, a criatura não suportaria tamanha dor e tristeza. Se ela já se entristece quando a morte de um bom amigo rompe o laço de amizade, quanto mais não o faria uma separação consciente do Pai Celeste — fator que, no entanto, tem de ocorrer, porquanto sem ele não seria possível a emancipação individual.
Se amor e sabedoria mais elevados do Senhor provocam tal separação necessária num estado quase que insensível, dando-lhe uma existência exterior que oculta a precedente união com Ele — a fim de que o espírito se habitue mais facilmente a tal isolamento e encontre sua vida absolutamente livre de modo mais imperturbável
acaso a criatura poderia fraquejar ou negar a Divindade por fazer aquilo que Seu amor e Sabedoria Lhe ordenam?
Acredita-Me, se houvesse outro caminho possível para a ob- tenção da vida liberta, que fosse menos doloroso, Ela o teria incluído em Sua Ordem. Dentro das condições da existência humana não há outro meio melhor do que este; portanto, é bom e útil. Assim sen- do, o caso em si já é a maior prova da existência visível e patente de Deus, pois sem ela nada se cria e subsiste. Se, com isto, fica eviden- ciada a Sua Existência, como merece Ela ser insultada por pessoas inteligentes, conforme pretendes ser? Vê, amigo, a grande injustiça aplicada ao Senhor e Bondoso Pai!”
A própria morte é um meio de salvação do Amor Divino
Prossigo: “A morte das criaturas desta Terra é, para os sen- tidos, uma ocorrência triste e geralmente acompanhada de dores. O simples raciocínio considera-a dura e cruel por parte da Divin- dade Onipotente, que pretende ser plena de Amor e Misericórdia! Quantas vezes não foi Ela por isto praguejada e até mesmo negada por completo!
Eis, neste caso, a mesma necessidade como no nascimento: o espírito livre do homem só se pode libertar do julgamento, que im- pede sua liberdade, pelo afastamento de seu invólucro temporário, que lhe é dado até que se tenha isolado do Ser Divino, momento somente conhecido por Deus, como Criador da Vida. Desde que se tenha dado tal maturação, chegou a hora de tirar ao espírito o peso que lhe obsta sua liberdade.
Indagas, como muitos: ‘Por que não se efetua tal separação de modo indolor?’ E Eu te respondo: Se cada um vivesse dentro do Ensinamento de Deus, a morte lhe seria um prazer ou, no mínimo, indolor. Como as criaturas se entregam à contraordem dentro da matéria em virtude de sua liberdade, onde o espírito é preso com algemas fortes e o atraem ao amor mundano, o rompimento é tanto mais doloroso quanto mais o espírito se inclina à matéria.
No entanto, tal dor não é inclemência, senão puro amor di- vino, pois neste caso, se a Divindade deixasse de empregar certa violência, que naturalmente não pode ser agradável, o espírito se integraria à condenação plena, ou seja, à morte eterna e horrenda, representada pelo próprio inferno. Agindo desta forma para salvar o espírito nobre, merece a Divindade ser blasfemada e mesmo ne- gada? Infelizmente, muitos espíritos há que nada querem saber de Deus, uma vez alcançada sua liberdade; entretanto, Deus não deixa de conduzi-los à perfeição pelos caminhos adequados.
Na Era primitiva, as criaturas em geral alcançavam idade mais avançada e morriam de modo suave e sem sofrimento. Isto
porque seu espírito não podia com facilidade ser afastado de Deus, como hoje; em virtude do mundo não lhes ter proporcionado gran- des tentações, viviam mais introspectivamente e se achavam numa perfeita união com Deus.
Quando, no decorrer dos tempos, os homens descobriram outros atrativos externos, causando a separação de Deus, sua vida terrena se encurtava gradativamente. No final, esqueceram total- mente seu Criador pela sedução do mundo, atingindo o polo opos- to da Ordem Divina, onde a morte eterna os aguardava. Eis que se tornou necessário, por parte de Deus, aproximar-Se e revelar-Se de quando em quando, para salvá-los da perdição eterna. Muitos dei- xaram-se salvar, enquanto inúmeros outros não o quiseram de livre e espontânea vontade! Acaso deveria a Divindade apossar-Se deles pela Onipotência, uma vez que não queriam atender ao Seu Amor? Seria o mesmo que destruí-los!
O Eterno Amor, movido pela Sabedoria, poderá somente di- zer: ‘Afastai-vos de Mim, pois Me negastes e amaldiçoastes, e inte- grai-vos numa outra escola conservadora, que vos foi preparada para vossa possível libertação: o fogo da condenação da matéria terá que vos separar do mundo, do contrário estareis perdidos!’
Se a Divindade faz com que ocorram pragas externas na Ter- ra, a fim de impedir tamanha desgraça — acaso Ela não existe? Ou, admitindo Sua Existência, será Ela inclemente e insensível porque faz o que acha necessário? Como podes imaginar que Deus amaldi- çoe e condene Suas criaturas? Que benefício Lhe poderia advir daí?
Sendo de Sua Vontade dar plena independência aos seres, não deve ser Sua maior preocupação impedir que venham se atirar novamente nos braços de Sua Onipotência, onde sua liberdade seria anulada? Seria o mesmo que se apertasses teus filhinhos num abraço demasiado forte contra o peito, o que lhes custaria a vida. Mesmo se isto tivesses feito, não irias prevenir os demais de tua força indômita, evitando tal experiência prejudicial?
Deus não necessita da experiência, por ser Possuidor da Sa- bedoria Infinita. É Ele o Único e Verdadeiro Bom Pastor de todos os
cordeirinhos e pode protegê-los de Sua Onipotência, que usa apenas para a formação das coisas materiais; nunca, porém, na criação de es- píritos livres! Estes devem surgir unicamente de Seu Amor e Sabedo- ria, do contrário não será possível dar-lhes liberdade, portanto vida! A Onipotência Divina só produz julgamentos sobre julgamentos!”
CAPÍTULO 29
O verdadeiro sentido do pronunciamento: “Afastai-vos de Mim, malditos!” Pecado contra o Espírito Santo
Prossigo: “Se tivesses analisado gramaticalmente, ao menos como crítico, aquela sentença do Evangelho que te soa tão horrenda, terias percebido de um relance, pela sua formação, que a Divindade jamais poderia ou quereria pronunciar tal condenação contra os re- nitentes pecadores mortais.
Consta: ‘Afastai-vos de Mim, amaldiçoados!’ Portanto, a or- dem é dirigida aos que estão amaldiçoados. Do contrário, deveria constar: ‘Em virtude de terdes pecado de modo tão brutal e incorri- gível, Eu vos amaldiçoo, como Deus, para o eterno fogo do inferno!’
Como a Divindade dirige Sua Sentença aos que já se acham condenados, deduz-se que Ela não Se manifesta como Juiz, senão como Pastor que tudo organiza; tem, portanto, de indicar com rigor um outro caminho aos espíritos que Dela se afastaram, pois, se assim não fosse, cairiam nos braços da Onipotência, uma vez separados do Amor Divino, onde indubitavelmente estariam perdidos!
Resta saber quem os amaldiçoou! A Divindade não o fez, pois em tal caso estaria isenta de Sabedoria e Amor. Tudo que existe, inclusive o espírito, é de Deus. Se Deus agisse contra Suas Próprias Obras, não o faria contra Si Mesmo para destruir-Se, ao invés de elevar-Se de eternidades em eternidades, pela constante perfeição de Sua Obra, ou seja, Seus filhos?
Se, pois, a Divindade não Se apresenta como Juiz, mas uni- camente como Pastor que tudo equilibra — é evidente terem sido tais espíritos condenados por outrem! Mas... por quem? É fácil res-
ponder-se quando se possui tanto conhecimento individual para compreender que uma entidade, de um lado possuidora de espí- rito e vontade livres surgidos do Amor e Sabedoria Divinos, e do outro, tendo um corpo temporário condenado pela Onipotência e um mundo exterior com suas seduções materiais, portanto também julgadas — tudo isto para que possa isolar-se da Onipotência e tor- nar-se um indivíduo completamente livre — só pode ser condenada por si própria, e não por outrem. Esta condenação é o mesmo que a maldição, o total afastamento de Deus!
Deus não querendo tirar-lhe a vida, só Lhe resta chamar cada espírito desajustado de acordo com sua tendência e demonstrar-
-lhe, com rigor amoroso, o caminho que lhe faculte a salvação e a reunião com o Amor e a Sabedoria Divinos. Afora esta união, não existe liberdade absoluta, nem vida espiritual e eterna, sim, somente a Onipotência, onde a força do Amor e da Sabedoria de Deus, em união com a Mesma, perduram como Manifestação de Vida e a con- duzem. Todo e qualquer ser separado desta Origem tem de perecer, porquanto é impossível reagir contra Seu Peso Infinito!
Por isto soa: ‘Deus habita na Luz eternamente inatingível!’ Isto quer dizer: A Onipotência Divina, o Próprio Espírito de Deus, que preenche o Infinito, é inatingível à vida dos seres, caso devam subsistir, pois todo conflito com a Onipotência Divina é a mor- te do indivíduo! Por isto o pecado contra este Espírito Poderoso é apontado como mortal. Uma entidade, após ter-se isolado do Amor Divino, que pretende medir-se com tal Potência, é tragada por Ela e jamais poderá se libertar de seu peso, como verme soterrado pelo Himalaia! Como irias livrá-lo daquela massa colossal?”
O rico e o pobre no Além. Quem é causador do inferno? Somente a maldade dos espíritos
Prossigo: “Conjecturas no teu íntimo: ‘Estaria tudo certo caso a Divindade assim falasse aos que Dela se separaram devido ao seu livre arbítrio. Assim sendo, aquela sentença condenadora não pode conter em si o horror que inspira no primeiro momento. Ago- ra, qual é o sentido da parábola do pobre e do rico, em que este, embora implorasse perdão, não é atendido e padece no inferno sob dores indizíveis e lhe é mostrado um abismo intransponível que o impede de alcançar Amor e Graça Divinos? Como se pronunciam neste caso a Sabedoria e Misericórdia de Deus?’
Caro amigo, sabia que Me farias tal pergunta! Mas, ao in- vés de responder, indago de ti, quematirou o rico no inferno? Por acaso, Deus?
Teria aquele homem se dirigido à Divindade em seu de- sespero, suplicando Seu Amor e Graça para se livrar do mesmo? Sei apenas que pediu ao espírito de Abraão e não a Deus! Muito embora fosse perfeito o espírito do patriarca, não pode ser comparado ao de Deus; só Ele pode socorrer, e em tais casos é o único abismo intrans- ponível onde espíritos variados não podem e não devem estender suas mãos, pois aí agem somente Sabedoria e Amor Divinos mais ocultos e profundos!
Cabe a culpa à Divindade por achar-se o rico em grande afli- ção, onde se atirou por culpa própria? Que te parece: pode ser injus- to agir-se de livre vontade?”
Diz Roberto: “Tens toda razão! Sendo a Divindade plena de Amor — o que compreendo cada vez mais — surge a pergunta: Como podia Ela inventar tal estado onde um espírito teria de sofrer até que se apresentasse melhora qualquer, que lhe proporcionasse pequeno alívio? É preciso que exista o inferno? E os espíritos, devem sofrer? Não seria possível organizar tudo isto de modo menos cruel?”
Respondo Eu: “Por acaso julgas ter Deus inventado o infer- no? Que erro capital! Isto é obra dos espíritos primitivos e maus. Deus apenas o permitiu a fim de não lhes tolher a liberdade. A su- posição de ser o inferno obra divina não passa pela ideia de qualquer ser de todos os Céus; pois, se assim fosse, o pecado e a maldade seriam partes integrantes de Deus — coisa inteiramente impossível, porquanto Ele não pode agir contra Sua Ordem. Pode e tem de per- miti-lo, caso os espíritos criem estados de miséria em virtude de sua determinação contrária.
Em todo o Infinito não descobrirás um local que por Deus fosse determinado para inferno, pois ele só existe no próprio ho- mem. Que pode fazer a Divindade quando a criatura cria constante- mente um estado infernal pelo desrespeito à Palavra de Deus? Sendo Ele unicamente a Verdadeira Vida e a Luz de toda luz, portanto a completa felicidade de todos os seres, compreende-se não ser agra- dável um estado afastado de Deus!
Quem Dele se afasta e não se prontifica a voltar, terá, forço- samente, um inferno perfeito e verdadeiro dentro de si! Tal estado só pode trazer sofrimentos, que aumentam de acordo com a teimosia da criatura, e caso Deus dela Se apossasse pela Onipotência — mui- to embora ela reagisse com todas as suas forças — seria destruída no mesmo instante, fator contrário à Ordem Divina.
Se assim fizesse com um ser diminuto, tal seria o início da destruição total de todos os seres. Esta hipótese, portanto, sendo impossível, garante a todos a eterna existência e também a possibi- lidade de se tornarem extremamente felizes ou infelizes, de acordo com sua vontade!
Se alguém possuir uma vinha cheia de videiras de qualidade, não as cuidando mas até mesmo exterminando-as e replantando car- dos e abrolhos que mais lhe agradam, cabe a culpa a Deus se o tolo proprietário não consegue boa colheita e se torna pobre e infeliz?
O mesmo acontece com todos os espíritos que não se sub- metem à Ordem de Deus pelo desleixo com a vinha maravilhosa
dentro de sua alma! Se colhem apenas espinhos ao invés de uvas saborosas e se infelicitam, é disto culpada a Divindade?”
CAPÍTULO 31
Quem é a Verdadeira Divindade?
Diz Roberto: “Prezado amigo, que mais posso dizer após tua explicação clara? A Divindade não pode agir de modo diferente, porquanto deixaria de ser o que é e Suas Criações teriam chegado ao fim. Compreendo, também, caso o espírito pretenda ser verda- deiramente feliz, dever ele ter receptividade para as maiores venturas e bem-aventuranças e a mais delicada sensibilidade e percepção, de sorte a lhe impedirem a perda das mais sutis impressões. Esta susce- tibilidade, porém, lhe faculta de modo integral as noções maldosas, do contrário seria semimorto, fato impossível, em virtude de sua força de vontade e ação sempre identicamente livres.
Tudo isto aceito porque tiveste a bondade de me expor as relações entre Deus e Suas criaturas. Surge, no entanto, a questão capital: Ondeestá a Divindade? Onde Sua Região Eterna? Deve habitar alhures em Sua Plenitude! Possui forma? Qual? Talvez seja informe para Se tornar o compêndio de todas as formas? Aceitando eu a necessidade de um Ser Supremo, ‘onde’ e ‘como’ são de impor- tância máxima!
Confesso que preferiria Sua Existência, digamos, na forma humana; pois um Ser Infinito, de forma diferente da nossa, nem eu nem pessoa alguma poderia amar com todas as suas forças! Uma entidade invisível e jamais concebível, de forma mais ou menos as- sustadora, não pode ser amada! Matematicamente é a bola a forma mais perfeita; mas moralmente incompleta! As bolas celestes são ma- ravilhosas, em virtude de sua luz; seria admissível alguém amar tal corpo celeste? A tal pergunta meu sentimento se cala!
Por isto, caro amigo, já que pareces estar mais em contato com a Divindade do que eu, deixa de rodeios e fala sinceramente. Já não precisas usar de argumentos, pois me convenci de tua sabedoria
profunda e me prontifico a acreditar no que me disseres. Tira-me a dúvida, uma vez que recebi de ti esclarecimentos de sobejo em ou- tros assuntos referentes ao tema principal!”
CAPÍTULO 32
Roberto duvida da Divindade de Jesus; prontifica- se, porém, em nela acreditar cegamente
Digo Eu: “Ouve, Meu amigo, antes que a uva amadureça não deve ser tirada da haste; pois ainda não sazonada, continua ácida, e o suco produziria um vinho sem aroma e, mesmo o possuindo, seria de qualidade inferior.
Assim, também és qual uva não inteiramente amadurecida; portanto, seria prematuro revelar-te o que pedes. Dentro em breve saberás o porquê! Quando tiveres alcançado a maturação, teu pró- prio espírito te dirá o que desejas saber.
Antes disto, temos de resolver assunto muito importante e, se nossa contenda tiver bom desfecho, tua maturação se fará mais rápida do que imaginas; caso não se faça de acordo com a Ordem Divina, levarás muito tempo para tal fim.
Certamente sabes que a uva, para amadurecer, necessita do calor do Sol; o espírito humano também só consegue sazonar-se pelo justo amor a Deus! Não te sendo possível amá-Lo — porquanto O desconheces — ama a Mim, com todas as tuas forças, uma vez que não alimentas dúvidas quanto ao Meu Ser. Isto facilitará teu aperfei- çoamento, pois o amor ao próximo é idêntico ao amor a Deus e não haverá dúvida ser Eu aqui teu próximo! Se assim o fizeres, começarás a te aproximar de Deus!
Voltemos à nossa questão. Conhecedor das cartas de Paulo, dize-Me como interpretas suas palavras: ‘No Cristo habita a Pleni- tude da Divindade’. Teria ele concluído que em Cristo, isto é, em Mim, Se acha a Divindade, ou pretendia apontar apenas a extraor- dinária sublimidade do espírito contido em Minha Doutrina, pelo hábito daquela época em se divinizar tudo que fosse excepcional?”
Diz Roberto: “Caro amigo, eis uma pergunta capciosa! Como se poderia adivinhar o sentido daquele doutrinador pagão? Consi- dero presunção desmedida de certos intelectuais quando afirmam terem compreendido o sentido verdadeiro de um autor genial! Neste ponto sou modesto e deixo que outros julguem. Caso me agrade seu critério, concordarei; assim não sendo, procurarei o parecer de mais outros e agirei de acordo com Paulo, que disse: ‘Analisai tudo e guardai o que for bom!’ Posso apenas reconhecer e aceitar como bom o que mais se aproxima de minha convicção íntima. Se Paulo se referia à primeira tese — o que é bem possível — logicamente não podia ter em vista a segunda; e vice-versa! Por esta minha definição compreenderás ser eu obrigado a te ficar devendo resposta e te peço resolveres a charada!”
Digo Eu: “Sabia que falarias desta forma, por seres um ho- mem inteligente. Existe, porém, uma inteligência sobrenatural — que vem do espírito — pela qual Paulo só podia se referir a deter- minada coisa que de modo algum deixasse dúvida. Naturalmente não sabes como chegar a deduções espirituais, pois Hegel e Strauss, Rousseau e Voltaire, nada disto compreenderam; portanto, também não ensinaram. Como adorador desses sábios do mundo, não te era possível conhecer aqueles caminhos que lhes eram mais enigmáticos do que a América, Austrália e Nova Zelândia para os romanos.
Se, como alemão, tivesses preferido o estudo da Bíblia, de Swedenborg e outros teósofos de origem germânica, saberias per- feitamente o sentido das palavras de Paulo. Como adepto de Hegel, levarás tempo para chegares à compreensão espiritual. Ouve: se acei- tares o que te digo, ter-te-ás aproximado da meta final! Paulo consi- derou a Cristo, isto é, Minha Pessoa, o Ser Supremo, muito embora anteriormente fosse Meu adversário declarado. Qual teu parecer da fé e da sabedoria do apóstolo pagão?”
Diz Roberto: “Caríssimo amigo, eis outra pergunta de difícil resposta: primeiro, falta-me a mencionada inteligência especial; se- gundo, não é possível aceitar-se, sem provas concludentes, ter o inte- ligente Paulo acreditado naquilo que pretendia fazer crer aos outros.
Todos os antigos sábios, inclusive ele, certamente verificaram o solo instável em que se baseavam todas as teorias metafísicas e teosóficas, calculando o estado infeliz em que o Gênero Humano em breve se haveria de encontrar caso fosse esclarecido quanto à sua natureza perecível. Por este motivo, procuraram reconduzir as massas a uma fé mística, através de sentenças e discursos imperiosos, onde ao me- nos fosse possível estabelecer e conservar uma esperança numa vida de além-túmulo. Se eles assim fizeram e possuíam uma convicção segura e verdadeira daquilo que professavam — permanece a dúvida até que eu me tenha convencido da verdade, através do intelecto espiritualizado, ou pelo confronto com almas que isto divulgaram.
Posso aceitar-te como Deus até encontrar outro. Entre nós dois cabe a ti tal privilégio, porquanto, não obstante toda a minha sapiência filosófica, nada sinto de divino dentro de mim. Não me deves perguntar o porquê, pois não te saberia responder. A pessoa que em algo acredita fá-lo sem provas, porquanto a fé, em si, nada mais é que preguiça ou, às vezes, obediência do intelecto. Se o ra- ciocínio mais apurado exige provas de sua fé objetiva, satisfeita tal exigência, a fé deixa de ser fé e se torna convicção!
Não consigo, por enquanto, ter a convicção de tua Divin- dade, mas acreditarei no que me dizes. Se, no futuro, houver a pos- sibilidade de levar minha fé a tal evidência, ela deixará de ser fé, tornando-se verdade evidente! Se esta eventualidade existe, é algo bem duvidoso!
Sou como Tomé e faço questão de provas antes de aceitar qualquer coisa como verdadeira. Recomendaste-me a leitura da Bí- blia e das obras de Swedenborg. De que me adianta isto agora se não posso fazê-lo? Além disto, sempre haveria prós e contras; fiquemos, pois, na fé e, se te for possível, faze com que eu me torne um pouco mais ignorante para aumentá-la. Já reconheci que deste modo serei mais feliz!
Um ignorante leva mais vantagens acerca de uma vida feliz do que um espírito esclarecido; enquanto este pesquisa constante- mente, a fim de aproximar-se da grande e única verdade que poderia
tornar felizes milhares de criaturas, o crente reza o ‘Pai Nosso’ e se deita calmo e feliz, livre de preocupações. Na hora derradeira, não se aflige, desde que um padre lhe dê a absolvição no inferno e dispense o castigo no purgatório, após algumas missas bem pagas. Sua fé cega tudo aceita como verdade e ele morre na esperança de subir direto ao Céu! Feliz ignorância!
Digo mais: tolo e ignorante é quem dedica sua vida a pensar e pesquisar, porquanto não aumenta sua felicidade na Terra, tam- pouco no Céu! Pelo contrário, torna-se mais infeliz à proporção que anseia pela Luz e a Verdade, enquanto se convence não ter Deus previsto uma fonte confortadora para suas ânsias. Por isto, deixarei a trilha do intelecto, entregando-me aos braços amorosos da fé oca e ociosa. Talvez consiga assim realizar aquilo que se chama felicida- de terrena!
Quão feliz é, por exemplo, um cônego! Nada pensa, nada inventa! Vive na fé católica, na ordem preestabelecida de seu con- vento, saboreia os melhores quitutes, e quando à noite, após alguns cálices do melhor vinho, lhe vem o sono, toca a murmurar o ‘Pai Nosso’ e mentalmente um ‘GloriainexcelsisDeo’, deixando-se levar para a cama. Mal afunda nos travesseiros, os anjinhos — surgidos do álcool — lhe fecham os olhos! Dorme até o toque da missa matinal; se ainda estiver com sono, vira-se para o outro lado. Caso contrário, toca a campainha e os empregados, solícitos, ajudam o homem de Deus a se vestir. Em seguida murmura algumas preces matinais de seu breviário latino, celebra uma curta missa para depois se entregar a um bom desjejum — e assim vive até morrer! Meu amigo, eis a vida feliz que é facultada pela fé cega e tola! Quão tolo fui eu! Por isto, entregar-me-ei à fé que talvez me fará feliz. Creio, portanto, em tua Divindade. Ajo bem assim?”
A fé verdadeira e a fé errônea. Perigos da vida nababesca
Digo Eu: “Meu caro amigo, existe diferença enorme entre aquilo que chamas de fé e a verdadeira fé! Tua fé é apenas preguiça mental que se satisfaz com qualquer manifestação de crendice, sem finalmente saber discernir entre o bem e o mal que ela contém; en- quanto a verdadeira fé reclama todas as forças físicas, psíquicas e espirituais.
Como podes classificar um cônego de feliz quando engorda dentro de sua fé tola e, pela proteção privilegiada de Roma, à custa de seus fiéis? A vida terrena dentro dessa felicidade garantirá uma idêntica no mundo dos espíritos? De modo algum; pois quanto mais alguém servir ao corpo — como prisão do espírito — pelo cuidado e nutrição, facilitando-lhe tudo que almeja, tanto mais se terá unido a ele! Se, finalmente, se deu a libertação definitiva desse cárcere, quão dolorosa, difícil e dura não será? Não acontece o mesmo num parto complicado quando o feto se acha preso ao útero, fazendo-se neces- sário arrancar com violência alma e espírito de sua prisão carnal, a fim de separar, aos pedaços, essas entidades entrosadas uma dentro da outra? Poderá tal operação produzir sensação agradável ao corpo, alma e espírito? Esse martírio é tão forte que não pode ser com- parado a um sofrimento terreno, o que bem conheço! Sendo esta a consequência de uma vida feliz na Terra, pode ela ser realmente chamada de venturosa?
Quando Maomé fundou sua doutrina e seu reino, havia na Ásia uma superstição curiosa e cruel que, surgindo do ódio contra os cristãos, consistia no seguinte: deviam as mulheres islamitas in- gerir o sangue seco e pulverizado de jovens e gordos cristãos, caso quisessem produzir meninas bonitas. Para tal fim, prendiam jovens que de nada suspeitavam, pois eram bem tratados durante vários anos. Após terem engordado bastante, vinham os carrascos e lhes tiravam a roupa para submetê-los a um banho completo. Em se- guida atavam-lhes mãos e pés e os deitavam em cima de uma tábua
perfurada, que se achava presa por cima de uma banheira. Feito isto, tiravam punhais afiados ocultos em sua roupa, furando a carne dos cristãos, de onde brotava sangue por milhares de orifícios. A fim de aumentá-lo, depositavam, pouco a pouco, pesos consideráveis nos martirizados. Podes imaginar as dores que os pobres coitados sofriam durante horas até morrerem!
Pergunto-te: pode-se classificar sua vida anterior de feliz, em relação ao fim miserável? Se tal cristão não se deixasse tentar pela gula, teria permanecido magro e os islamitas o teriam solto. Mas como ele próprio achava prazer na engorda, teve de sofrer as consequências amargas. Contudo, ainda há coisa pior, pois todos os intemperados, egoístas, pervertidos e impudicos, que se condenam pela própria carne, terão de suportar dores atrozes na hora da morte! Por ela se inicia a mencionada ‘felicidade’ de um crente embotado! Se tal criatura chega completamente martirizada no mundo dos es- píritos, onde a sensibilidade se eleva ao Infinito, porquanto a alma anteriormente protegida pelo corpo aqui se acha desnuda, principia a fase da dor provocada pela fé tola. Almejando tal felicidade, podes obtê-la e Eu te garanto que em breve mudarás de ideia!
Se Eu Mesmo ensinei: ‘Tornai-vos perfeitos como vosso Pai Celeste’ e Paulo exigiu ser preciso analisar-se tudo e guardar o que for bom, dize-me, teria sido recomendada uma fé absurda que não é fé, ou a verdadeira que se sobrepõe a todo conhecimento? Julga tu mesmo se o que chamas fé merece tal denominação; depois explicar-
-te-ei seu verdadeiro sentido!”
CAPÍTULO 34
Roberto externa suas noções de fé e de veneração divina
Diz Roberto: “Amigo, deixas-me realmente perplexo se du- vidas de minha noção de fé; pois o puro saber não pode assim ser classificado! Visão, percepção e tato muito menos! Além do saber e da percepção real, provinda de nossos sentidos, nada conheço que o homem possa assimilar pela capacidade de conhecimento e critério.
Se a noção provinda dos cinco sentidos se chama fé, o que vem a ser aquilo que, até então, por tal considerei?
Crer, para mim, representa tomar algo por verdade, caso não colida com as leis da pura razão, muito embora os princípios não possam ser provados matematicamente. Uma vez que possam ser demonstrados, a fé terá chegado ao fim, assim como a esperança, filha da fé, termina quando se consegue aquilo que se esperava.
Não tenho outra concepção de fé senão a aceitação voluntá- ria de princípios e datas históricas enquanto se puder prová-los. Se isto não for fé, tinha vontade de conhecê-la.
Por vezes mencionaste algo aos teus discípulos do poder mi- lagroso da fé, quando falavas em se remover montanhas, mas eles certamente não entenderam melhor do que eu! Acaso te referes a tal fé? Então a minha de nada vale, porquanto nem um grão de areia se teria afastado, muito menos uma montanha!
Se eu na Terra tivesse alcançado tal crença, o bom Alfredo teria passado mal comigo! É ideia grandiosa poder se remover mon- tanhas, mas não deixa de ser apenas ideia! O axioma de Paulo de se analisar tudo e guardar o que for bom foi sempre meu lema. E a ideia de me tornar idêntico a Deus, o móvel mais poderoso de mi- nhas ações. Mas, que consegui com isto? Meu estado atual responde integralmente! Tu mesmo não pareces ter um solo debaixo de teus pés; com outras palavras: tua fé milagrosa não nos produziu montes de ouro! Mas, quem sabe, ainda virão?!
Se eu, por exemplo, aceito sem qualquer contestação seres tu o filho de Deus Vivo, ou o próprio Ser Supremo, na hipótese que exijas tal coisa, creio que assim seja; pois não tenho provas em contrário. E, assim, acredito apenas porque minha razão esclarecida não encontra objeção lógica; em virtude de tuas explanações, reco- nheci que a Divindade pode permanecer o que é em todas as suas manifestações, muito embora aceite diante de suas criaturas a forma visível. Se, com o tempo, chegasse a provas convincentes e palpáveis daquilo que creio seres, minha fé deixará de ser fé, dando lugar ao conhecimento experimental.
Naturalmente, poderias dizer: ‘Todos os verdadeiros crentes dobram os joelhos ao pronunciarem o Meu Nome e Me adoram. Se afirmas acreditar ser Eu a Divindade, por que não acompanhas a atitude dos outros?’ Tal objeção merece ser atendida, entretanto considero fraqueza intelectual tal veneração dirigida à Divindade. Pois aquilo que falta ao intelecto é suplantado pela fanática afir- mação de fé. Quem se positivar em alguma crença antes de ter dela provas verídicas é, a meu ver, tolo!
Tu mesmo — se fosses a Divindade — deverias pensar desta forma, do contrário serias um deus ambicioso e fraco, merecendo seres ridicularizado! Sei, porém, que tais fraquezas nunca te impor- tunaram, por isto também não me jogo a teus pés, o que certamente aborrecer-te-ia.
Também não o faria, mesmo convicto de tua Divindade, pois tal servilismo, caso me fosse rendido como homem cujo intelecto ultrapassou a estupidez, seria por mim considerado extremamen- te ridículo.
Considero o cumprimento consciencioso das leis de Deus a única e justa veneração exigida pela ordem imutável, sem a qual não haveria criaturas. O resto pertence ao paganismo, portanto é tolice!
Sempre respeitei teus ensinamentos, mormente os relacio- nados com orações judaicas; em compensação, tive de considerar a determinação de Paulo: ‘Orai constantemente’, por burrice capital
na hipótese de ter ele se referido às preces orais, suposição dificil- mente aceita por um homem tão culto!
Creio, portanto, seres Deus — ou no mínimo seu verdadei- ro filho, predicado que conferes a todos que cumprem os Manda- mentos e O amam. Decidi fazer tudo o que de mim exigires. Mas se tua exigência se estender à prosternação e à oração labial, assegu- ro-te, de antemão, que isto jamais farei, porquanto o considero um vilipêndio e nunca o respeito de teu Nome, que muito venero! Tem, pois, a bondade de me dizer se minha explicação é satisfatória!”
As duas fontes de conhecimento do homem. A verdadeira fé provém da luz do espírito
Digo Eu: “Meu amigo, enquanto a pessoa deduz pelo inte- lecto, não pode ter outra noção da fé e da prece do que a tua, pois ele desconhece outro caminho que o da visão material e do tato. Uma fé espiritual e cheia de vida pode tão pouco deitar raízes numa ín- dole sensual quanto um grão de trigo numa rocha de granito; como não possui umidade que desfaça o grão, libertando o gérmen, ele continua por certo tempo o que foi, para depois secar por falta de nutrição. De que te adianta todo teu saber e a obediência de teu in- telecto — que chamas de fé — se teu espírito não compartilha disto?
Cada pessoa tem dupla capacidade de conhecimento: uma externa, de certo modo a razão exterior da alma. Por esta nunca se poderá compreender e assimilar a Natureza Divina, porquanto foi dada à alma apenas para separar o seu espírito da Divindade, incu- tindo-lhe esta perda temporária. Se uma criatura, ou melhor, uma alma pretende achar Deus por esta capacidade negativa, ela se afasta à proporção que insiste neste caminho.
A alma possui, porém, ainda outro dom, que não reside no cérebro, mas no coração. Trata-se de uma força interior que consiste numa vontade própria, do amor e do poder de imaginação derivado desses dois elementos psíquicos. Quando ela tiver assimilado a no- ção da Existência de Deus, tal conhecimento é de pronto abarcado pelo amor e retido pela vontade — a fé.
Por esta fé viva é despertado o espírito, que começa a analisá-
-la; tão logo a reconhece e assimila, ele se eleva qual Luz poderosa de Deus, penetra a alma, transformando-a em Luz. Esta Luz é propria- mente a fé, pela qual toda alma chega à bem-aventurança.
Acaso já ouviste falar desta verdadeira fé? Respondes no teu íntimo: ‘Não, porque acho impossível pensar no coração!’ Realmen- te, deves considerá-lo irrealizável. Para se conseguir pensar pelo co- ração, é preciso certo treino que consiste no constante despertar do
amor a Deus. Ele fortifica e dilata o coração, soltando as algemas do espírito, de sorte que sua luz — todo espírito é uma luz de Deus — pouco a pouco se desenvolve livremente. Quando a luz do espírito começar a iluminar o recôndito vital do coração, surgem cada vez mais nítidos os inúmeros tipos primários, provindos de Deus, em formas espirituais, nas paredes do coração, a fim de que a alma os perceba. Tal visão psíquica no coração produz uma nova qualidade de pensar: ela chega a novas noções, a percepções vastas e nítidas; seu âmbito de visão se dilata de acordo com o pulsar, e as pedras de escândalo desaparecem à medida que cala o intelecto. Não se cogita mais de provas; pois a luz do espírito ilumina as formas internas de maneira a não mais projetarem sombras e, assim, o menor vislumbre de dúvida é banido para sempre.
Deste modo é a fé no coração verdadeira e viva. Verdadeira porque se origina na luz inconfundível do espírito; e viva, porque no homem só o espírito é vivo em verdade! Nesta fé reside a força extraordinária de que se fala nos Evangelhos.
A fim de se alcançar esta fé salvadora, preciso é dedicar-se com zelo rigoroso ao referido treinamento para se adquirir boa prá- tica. Pois se o homem dedicar-se excessivamente ao desenvolvimen- to intelectual, e por ele apenas cuidar de coisas terrenas, deve achar impossível pensar no coração, mormente quando se traz na cabeça Hegel, Strauss, Ronge etc.
Além disto, deve haver motivo da pessoa alegrar-se de uma pureza evangélica; não pode ser glutão e muito menos impudico; pois lascividade e impudicícia matam o espírito, impedindo para sempre o livre desenvolvimento de sua luz, razão por que tais obsce- nos, mormente na maturidade, se tornam completamente imbecis e só conseguem desfrutar momentos de prazer quando olham mu- lheres jovens.
Acaso não se deu isto contigo nos últimos tempos, porquan- to consideravas o sexo feminino destinado apenas à satisfação car- nal? Não classificavas tais prazeres impuros como única felicidade terrena, pela qual lutaste e morreste? E, agora, devendo ingressar na
vida puramente espiritual, não tens base para qualquer edificação. Tudo a teu redor é vazio, tão vazio como o teu coração e tão inerte como teu recôndito! Onde buscaremos a matéria para construirmos um novo homem dentro de ti?”
CAPÍTULO 36
Roberto se aborrece pela recordação de suas fraquezas carnais. Deseja outras palestras em local mais agradável
Diz Roberto: “Caro e estimado amigo: pelo que vejo, te tor- nas mordaz e mesmo injurioso. Tal inclinação é comum nos dou- trinadores, grandes ou pequenos. Em certas circunstâncias ficam grosseiros e às vezes dizem aos discípulos fazerem estes parte dos ruminantes, de grande semelhança com os intelectuais! Nunca a História registrou exemplos de terem esses animais estraçalhado um cordeiro, pois não são sequiosos de sangue, mas de palha e feno! Esse alimento imperfeito pouco ajuda na formação do cérebro; eis por que o cérebro dos burros possui pouca matéria cinzenta, quando no de Sócrates havia superabundância.
Já que me fizeste compreender que tanto dentro quanto fora de mim tudo é vazio como no cérebro do quadrúpede, que alimenta seu éter vital com feno e palha, não posso deixar de pedir-te que fales, sem rodeios, ser eu um burro!
Reconheço nunca ter professado tal fé íntima, conforme me explicaste de modo concludente. Mas que culpa me cabe, se nunca me foi transmitida? Se, no lugar de Hegel, algum outro me tivesse falado como tu, eu não me teria tornado filósofo e sim apresentar-
-me-ia qual Paulo.
Não havendo, pois, tal possibilidade e ninguém, a meu ver, tendo imaginado poder pensar no coração — talvez até o faça no joelho e calcanhar — tive de concretizar e dirigir meus pensamentos para onde a Natureza os havia determinado. Enquanto vivo, pensei o seguinte: Cada órgão tem sua finalidade e função; os pés não po- dem substituir as mãos; o traseiro — a cabeça; o conteúdo do estô-
mago não suplanta o do cérebro; as orelhas, o serviço dos olhos, e o coração o da língua. Se, por isto, aqui venho completamente vazio, que culpa me cabe?
Se começares a exigir de mim coisas que nunca pude conse- guir no mundo, és evidentemente — não obstante tua sabedoria — mil vezes mais ignorante do que eu e pouco poderás fazer por mim!
Além disto, é pueril de tua parte apontares aqui meus for- tuitos desvios carnais e classificá-los como razão para me encontrar diante de ti tão inepto. Se consideras tais prazeres pecaminosos, por que foram implantados na natureza do homem qual gérmen no grão?
O leão não é caçador de mosquitos porque a consciência de sua força disto o impede. Sendo tu um dos maiores sábios, senão a própria Divindade em Pessoa — segundo tuas palavras — não compreendo, como mera criatura, como podes lembrar-te de tais ninharias que eu não achei merecer um pensamento, mesmo em época de prazer!
O homem fisicamente é um animal de necessidades idênti- cas, cuja satisfação a natureza lhe dita, com mão férrea. Encontran- do dentro de si uma vontade invencível, por quaisquer objeções de ordem espiritual, torna-se dever imprescindível do espírito, dentro do corpo, deixar que este satisfaça suas necessidades para, em segui- da, poder se movimentar mais livremente em sua esfera.
Se, portanto, o espírito cede aos imperativos da carne em função do metabolismo, pelas vias urinária e alimentar, quando sa- tisfaz o instinto sexual tão perturbador a fim de conseguir horas de sossego — pode isto ser pecado? Mormente aqui, onde nós dois felizmente não mais seremos perturbados por tal apetite grosseiro, pois, sem corpo, não haverá futura exigência nesse sentido!
Falemos de outras coisas e deixemos nossas fraquezas passa- das onde estão! Poderíamos conversar algo acerca das estrelas, pois me trará maior ânimo do que aquela recordação!
Meu caro e muito estimado amigo, Deus e tudo que venhas a ser para mim! Realmente não me posso queixar de meu estado atu- al; não sinto fome, sede nem dor e tua companhia me satisfará para
sempre! Todavia, não faria mal caso pudéssemos descobrir um local mais agradável para os nossos debates, pois aqui prevalece o nada! Além destes montículos, coisa alguma descubro. Se encontrássemos um gramado com casinha de campo onde pudéssemos morar, seria mais proveitoso, ao menos para mim!
Muito importantes seriam explicações acerca de sóis e ou- tros corpos cósmicos! Nada mais, porém, das condições terrenas, que me encheriam de repugnância e ódio, de sorte que, finalmente, nem seria capaz de palestrar contigo!”
CAPÍTULO 37
O perigo psíquico do elogio. O próprio arcanjo necessita de humildade para sua evolução espiritual
Digo Eu: “Ouve, caro amigo e irmão, isto não é possível por- quanto aqui, no mundo dos espíritos, só pode surgir aquilo que a alma traz em seu coração. Achando-se espiritualmente vazio, con- forme acontece contigo — não obstante teus protestos — não pode surgir o menor gramado! Além disto, preferes que te fale dos astros em lugar dos teus erros. Não duvido, pois a alma prefere o elogio, muito embora mereça crítica.
Acredita-me que até mesmo o elogio merecido é veneno para a alma e nocivo ao espírito. Se fosse teu inimigo, louvar-te-ia para fazer-te perder. Sendo, pois, teu maior amigo, sou obrigado a te falar aberta e sinceramente. Todo bajulador torna-se inimigo perigoso, porque oculta um lobo voraz debaixo da máscara de amizade. Não haverá maior prejuízo do que te fazeres ressaltar, alegrando-te de tuas qualidades, pois tal atitude é idêntica à punhalada mortal em teu próprio coração.
Por isto recomendei, com rigor, a todos os Meus discípulos, não se deixarem louvar, mesmo havendo feito tudo que Deus exigis- se, pois conviria afirmar serem eles apenas servos imprestáveis. Falei desse modo por somente Eu saber o que seja preciso a alma fazer a fim de se libertar pela emancipação do espírito. Em todo o Infinito
só existe um meio eficaz para tal fim, que se chama ‘humildade do coração’, em toda a acepção da palavra!
A justa e perfeita humildade, unicamente útil à alma, exclui o elogio mais modesto e mesmo mudo, porque por ele o amor-pró- prio recebe alimento, isto é: incentivo para a perdição do espírito, ou seja, a morte psíquica.
Se Eu, portanto, elogiar-te — apesar de tuas fraquezas terre- nas merecerem Minha censura justa, e além disto existir dentro de ti grande desejo de louvor, pelo qual ainda queres elevar-te diante de Mim, a fim de que Eu reconheça teu saber e respeite tua sagacidade intelectual — que seria de ti?
Se teu intento fosse coroado de pleno êxito, qual seria o resul- tado? Teria de Me afastar de ti como vencido por tua força superior, o que, no mundo espiritual, significa ser tragado pelo oponente. Em consequência estarias novamente só e seria difícil achares outra com- panhia, pois se Eu abandonasse alguém, ele jamais poderia contar com algum convívio e a morte seria seu eterno destino!
Tal coisa, porém, é impossível! Ninguém pode enfrentar Mi- nha Sabedoria! Mesmo o maior sábio de todos os astros tem de se curvar diante dela até o recôndito de sua alma. O mais sublime ar- canjo tira proveito desta Ordem, porquanto todos devem ser humil- des caso desejem ser felizes, muito embora o brilho de sua sabedoria pudesse reduzir qualquer sol a uma bola oca, se dela se aproximasse.
Quanto mais careces tude uma justa humildade, por estares
despido de tudo que te pudesse facultar o menor vislumbre de um ser real. Considera, pois, toda e qualquer admoestação mais direta sem te aborreceres, mas confessa tua culpa diante de Mim e te hu- milha, que progredirás, em minutos, muito mais do que em milê- nios, por outras vias! Reflete e dize-Me o que farás, pois tomarei as medidas necessárias!”
Roberto se admira de não ter sido suficientemente humilhado. Recordação de sua vida passada
Diz Roberto: “Amigo, tuas palavras transbordam rigor e pa- rece teres boas intenções para comigo, pelo que te devo a maior gratidão. Todavia, é-me incompreensível julgares não ter sido eu bastante humilhado! Não fui, desde o nascimento, rebaixado por toda sorte de experiências dolorosas até a última gota de sangue?
Quando consegui elevar-me do pó da matéria, não obstante todos os empecilhos, irrompeu a revolução em meu Estado, que por mim foi abafada com boa vontade, sem deixar que o Governo por isto me enaltecesse! Após ter o levante se estendido sobre outros países fui, como deputado, a Frankfurt, onde representei o meu Estado, dentro de meus conhecimentos e noções. Nunca foi minha intenção preju- dicar alguém, mas ser útil aos povos de acordo com a minha compre- ensão daquela época. Se realmente teriam sido beneficiados, caso meu projeto fosse bem sucedido — eis outra pergunta. Penso, porém, que nem Deus me condenaria em virtude de minha boa intenção!
Quando, na Áustria, também se deu a revolta, julguei poder abafá-la, como fiz em minha pátria, e resolvi me dirigir para Viena. Lá chegando encontrei a situação bem diversa do que pensava: o povo estava oprimido e se queixava da falta de honestidade do seu regente. A opressão mais nefasta e gananciosa se estampava em todos os príncipes, aristocratas, comerciantes e judeus. Quem procurasse defender os direitos do pobre era preso como revolucionário e fuzi- lado, como tive a ‘honra’ de sê-lo! Que honra seria esta quando um homem culto e respeitado é levado, qual reles criminoso, diante da multidão, até a praça, onde recebe uma bala ‘por gratidão’?! Creio, portanto, ter sido bastante humilhado; ou, talvez, me engane? Acho-
-o impossível nesta minha situação, pois duvido existir alguém mais reduzido e miserável do que eu!
Nada possuo, com exceção de ti, meu prezado amigo! És tudo, meu consolo, minha maior riqueza, minha única recompensa
por todos os sofrimentos e vexames! E, ao invés de me consolares, despertas em mim novas reflexões dolorosas, apenas para aumentar minha miséria! Isto, meu amigo, é bem duro de tua parte!
Podes ter a melhor das intenções, e se me for possível fazer o que aconselhas, será talvez minha maior e eterna felicidade. Consi- dera, porém, ser eu uma criatura excessivamente infeliz, destituída de tudo que possa elevar o ânimo, e formularás teus ensinamentos de forma tal a não me assustares em demasia!
Também deixarei de elogiar-me, mesmo em pensamento. Todas as minhas ações deverão receber o cunho da maior torpeza e maldade e, caso o exijas, serei o ser mais desprezível de todo Infinito. Mas não me abandones, a fim de não aumentar minha infelicidade! Não pronuncies a ameaça de teu afastamento, mas fortifica-me com a segurança de que jamais me deixarás, e eu te prometo fazer o que exigires! Se na Terra pequei, castiga-me e me humilha o mais possí- vel, pois nunca deixarei de te amar!”
CAPÍTULO 39
Transformação benéfica em Roberto. Explicação acerca de João Baptista como predecessor de Jesus
Digo Eu: “Está bem, caro amigo e irmão! Ficaremos juntos, mas não na situação atual, irrealizável para o futuro, pois não seria útil para nós dois! Descubro dentro de ti boa transformação e te asseguro que melhorarás dentro em breve. Preciso é que assimiles o que te revelar e ajas pelo coração, facultando-te noção mais clara sobre diversos assuntos!
No Evangelho, por exemplo, João Baptista diz o seguinte: Não mereço desatar as correias das sandálias d’Aquele que vem; ba- tizo somente com água; Ele o fará com o Espírito da Verdade, o Es- pírito de Deus, para a Vida Eterna! Este meu Sucessor Elevadíssimo aumentará entre vós e dentro de vós; eu, João, diminuirei! — Qual seria o sentido das palavras do maior dos profetas?”
Diz Roberto: “Prezado amigo, se tal entendesse, jamais teria chegado ao estado atual. Precisamente esses textos, por mim não compreendidos, são culpados de ter duvidado de tua Divindade, razão pela qual me tornei neocatólico. Por isso, tem a bondade de esclarecer-me!”
Digo Eu: “Pois bem, ouve-Me: João Baptista é, na Igreja, o que no homem representa o intelecto mundano, que em todas as criaturas deveria ser tal qual o de João. Do mesmo modo como ele preparou o caminho para Mim, um intelecto bem equilibrado deve marcar o trajeto para o raciocínio do coração — assim como Eu também retirei do Meu Espírito a Sabedoria, deitando-A no solo do coração, qual bom Semeador, solo este que é o justo amor adubado pela humildade e meiguice.
Aliás, é João, também, a voz que clama no deserto, o que compete ao intelecto externo. Pois o mundo onde ele busca os pri- meiros conhecimentos é um deserto necessário a fim de que o ho- mem venha a se afastar de Deus, conforme já te expliquei. Sendo o mundo incontestavelmente um deserto, o raciocínio externo que, em parte, colhe deste deserto suas noções através de revelações dire- tas ou indiretas vindas do Céu, formando suas ideias e concludentes critérios, é a voz de um ‘clamor no deserto’ e ‘prepara’ pela fé ‘os caminhos’ para o entendimento do coração.
Este intelecto externo e justo batiza a alma com a água da humildade e da obediência; enquanto o raciocínio do coração, onde habita o Espírito Eterno de Deus, incontestavelmente batiza com o Espírito através de seu despertar, por ser Ele a verdadeira Luz, a Ver- dade Plena e mais Consciente, o Amor — portanto a Vida Eterna!
Subentende-se ser preciso que o raciocínio externo diminua e finalmente seja aprisionado e crucificado, enquanto o verdadeiro raciocínio do coração, representando a Minha Pessoa, aumenta no coração de cada indivíduo até se tornar uma árvore maravilhosa da Vida Verdadeira e Eterna, onde se encontra o conhecimento perfei- to. Claro é não merecer o raciocínio externo desatar as correias do
raciocínio do coração, como a luz de uma lamparina é insignificante em comparação à do Sol ao meio-dia!
Não mais mencionarei teus atos terrenos, justos ou injustos. Derivaram de teu intelecto externo, onde a voz do clamador não podia penetrar, porquanto o forte vozerio do deserto — o mundo isento de João — forçosamente tinha de abafar o próprio João, ou seja, Minha Doutrina revelada. Pois, se um grande tufão se levanta no deserto, fazendo rugir o trovão e desencadear os aguaceiros po- derosos, a voz do clamador é facilmente abafada e o julgamento e a morte festejam a sua colheita.
Eu, porém, para lá irei, a fim de salvar o que for possível, não pelo caminho preparado por João, mas qual raio que irrompe do Sul ao Norte, conforme aconteceu contigo. Quem aceitar a Luz do raio será salvo. Quem não o fizer, sucumbirá; ter-se-á dirigido a uma trilha por onde dificilmente alcançará a meta que Deus lhe impôs.
Tu aceitaste a Luz do Raio, por isso o Salvador, Pessoalmen- te, aproximou-Se de ti, conduzindo-te pelo caminho justo. Preciso é que O sigas e não Lhe oponhas dificuldades através de teu racio- cínio externo, do contrário adiarás a final conquista do teu destino, imposto pelo próprio Salvador. Que farás agora, após as explicações daqueles textos que, pela tua própria confissão, ocultavam Aquele que deverias reconhecer de modo integral?”
Diz Roberto, após meditar: “Oh, amigo, infinitamente mais que um amigo, começa a se fazer luz dentro de mim! Senhor, Senhor, Senhor! Como podes permanecer junto de mim, pois sou pecador! Qual foi o motivo que tirou minha visão, impedindo-me reconhecer-Te, muito embora meu grande amor para contigo me dissesse que eras mais do que meu raciocínio miserável podia ima- ginar! Um demônio, porém, ou seja quem for, obliterava cada vez mais minha visão! Só agora reconheço o abismo infinito entre mim e Ti. Só posso dizer: Senhor e meu Deus, sê misericordioso com este pecador miserável e tolo!”
Início de vida nova provinda do Espírito Divino. Orientação acerca de uma prova de liberdade em grau evolutivo
Digo Eu: “Caro irmão e amigo, teus pecados te são perdoa- dos por teres te humilhado a ponto de renunciares ao valor de teu intelecto externo, aceitando o raciocínio do coração. Por isto, jamais tocaremos em tuas falhas terrenas!
Acabas de iniciar uma nova época de vida e terás de passar por outras provas de liberdade. Terás ocasião para te despires do teu antigo e mundano ‘eu’, fazendo surgir o interno, provindo de Mim.
Até então não tinhas companhia, tampouco base onde colo- car teus pés. O solo que nós dois ainda pisamos corresponde estri- tamente aos princípios que absorveste, como neocatólico, de Meu Evangelho. Eu Mesmo Me apresentei como Me havias imaginado com auxílio de teu intelecto, isto é, apenas como sábio doutrinador da Antiguidade. Não era possível continuar desta forma e tive de te conduzir por vários ensinamentos ao ponto que te levou a reconhe- cer o que fui e serei por toda Eternidade.
Deves vivificar este conhecimento pelo verdadeiro amor ao próximo, e daí pelo amor a Mim, para ingressares no Verdadeiro Reino do Céu!
Por tal razão te levarei a determinado local, onde terás conví- vio com outros. Serás proprietário de um vasto terreno, com man- são confortável, numa das ruas principais e em zona aprazível. Terás também criadagem que executará todas as tuas ordens.
Muitos viajantes da Terra passarão por tua casa, onde pro- curarão teus conselhos. Encontrarás amigos e inimigos. Cuida de recebê-los com justo amor, facultando-lhes o que necessitam — por serem Meus filhos e teus irmãos. Deste modo anularás teus erros praticados na Terra, se bem que não por tua vontade, mas movido pela ignorância espiritual. Eu Mesmo voltarei para dizer-te: Como soubeste cuidar desta organização doméstica, terás uma incumbên- cia elevada!
Antes de tudo, preserva-te da ira, vingança e sentimentos im- puros, no que não te faltarão oportunidades; assim terás cumprido tua nova tarefa de vida, dando início à verdadeira e eterna felicidade!
Além disto, abstém-te da curiosidade; não melhora o espíri- to, mas leva-o à maldade e ignorância. Sempre que tuas forças fra- quejarem, entrega-me a questão, que receberás auxílio. Agora sabes de tudo. Estás contente com Meu Plano? Então poderemos nos en- caminhar para teu futuro lar.”
CAPÍTULO 41
Roberto se prontifica a tudo
Diz Roberto: “Ó Senhor, meu amor eterno e único! Concor- darei com tudo que determinares para mim, pobre pecador, pois será apenas Graça e Misericórdia! Que sou diante de Ti? Que vem a ser o pó perto Daquele que estende Seu Poder pelo Espaço Infinito e o preenche com inúmeros milagres de Seu Amor e Sabedoria? Como, pois, admitir não concordar eu com aquilo que determinas? Senhor, minha vida, Teu Nome seja Santificado e Tua Vontade Se faça!
Farei tudo que me for possível, pois Tu, meu Deus e Senhor, me ordenaste Pessoalmente! Teu possível afastamento, no entan- to, ser-me-á doloroso! Sendo, porém, Tua Vontade expressa, volta quando meu coração for mais digno do que agora e tenha ensejo de se livrar da vergonha pela grande cegueira em não Te reconhecer, enfrentando-Te ainda com interpelações sofísticas!
Ó Senhor, minha grande tolice paralisa minha língua tola, pois mal posso falar-Te! Por isso, se faça Tua Vontade Santíssima!”
Digo Eu: “Está bem, Meu caro irmão!”
Interrompe Roberto: “Ó Senhor, trata-me de pó— mas nun- ca de irmão! Como poderiam o pó e o nada serem Teus irmãos?!”
Respondo Eu: “Não te aflijas, pois sei melhor da maneira pela qual és Meu irmão verdadeiro. Vejo algo em teu coração que acaba de se formar; deste modo não estaremos afastados um do ou- tro durante tua próxima prova! Quando na pessoa se projeta o amor,
como ora acontece contigo, seu caminho poucas pedras de escânda- lo terá! Vê, caro Roberto, todos os teus pecados foram anulados e Eu te amo sobremaneira, porquanto Me dedicas todo amor! Como poderia abandonar-te? Nunca! Teu amor sincero Me obriga a morar contigo para, juntos, trabalharmos! E de muita coisa que terias de passar estarás isento: quem tem muito amor, muito será perdoado! Enfrentarás a prova a Meu lado! Esta proposta agrada-te mais que a primeira?”
CAPÍTULO 42
O verdadeiro irmão. Tudo se organiza dentro do amor a Jesus
Diz Roberto: “Senhor, não me trate de irmão; não mereço tal Graça!”
Digo Eu: “Deixa disso, pois dentro de ti vive Minha Seme- lhança e pelo teu amor estás em Mim e Eu em ti, unos pelo amor. Esta união é qual irmão justo. Muito embora seja cada qual um indivíduo perfeito, não obsta a mais íntima irmanação, ou seja, a união pelo amor. Existem apenas um amor e um verdadeiro bem; ambos são idênticos em todos os anjos e espíritos felizes, portanto também em Mim! Esta completa semelhança se chama ‘irmão’.
Em virtude de teu amor sincero para Comigo és Meu irmão verdadeiro, assim como na Terra tratei a todos que Me seguiam ati- vamente, não por mera cortesia, mas pela base verdadeira. Por isso, não te impressiones caso te chame assim; já sabes o porquê. Dize-Me apenas se preferes o Meu segundo conselho.”
Diz Roberto: “Ó Senhor, Pai Santíssimo e Bondoso de todas as criaturas e anjos, nada mais há que dizer, portanto exclui-se qual- quer comparação. O que determinares — seja o que for — será sem- pre o melhor, por seres a Bondade Infinita em Pessoa. Entende-se, naturalmente, agradar-me a segunda proposta mais que a primeira; pois sentir Tua Ausência, ainda que temporária, não pode ser do agrado de uma criatura que Te ama tão intensamente!
Já que és infinitamente misericordioso, peço-te, do fundo de meu coração, me dizeres o que devo fazer para me tornar mais digno de Teu Amor!”
Digo Eu: “Ouve, Meu irmão, na Terra certamente ouviste falar do esporte de ‘Tiro ao Alvo’. Afirmas que sim, e até mesmo foste detentor de um prêmio. Bem, se todos tiveram de depositar certa quantia para competir, por que foste tu o vencedor?
Respondes em teu íntimo: ‘Porque acertei na meta! O pró- prio organizador não teve lucro, porquanto as quantias deveriam ser revertidas a seu favor, caso eu não saísse vencedor. Contudo, alegrou-se com minha vitória.’
Continuo: Bem, Meu caro irmão, o mesmo acontece Co- migo. Sou o Eterno Benfeitor de todas as criaturas, mormente dos Meus filhos! O alvo é Meu Coração Paternal; os atiradores são Meus filhos; suas armas são seus próprios corações e o prêmio sou Eu Mes- mo e a Vida Perfeita e Eterna, surgida de Mim!
O que cabe aos filhos, qual o mérito a conquistar a fim de alcançarem seu prêmio final? Nada mais que carregarem seus cora- ções de amor e alvejarem o centro do Meu. Isto é fácil, porquanto já possuem a melhor provisão dentro do recôndito da Vida. Mérito mais fácil, todavia, dá-se em tal competição Comigo, porque não necessito de depósito em moedas, facultando a todos livre acesso.
De acordo com tua afirmação, foste no mundo atirador de escol, de sorte que também aqui conseguiste atingir o centro do Meu Coração pelo teu, e tens, portanto, tudo que exijo de ti, isto é, o verdadeiro amor. Só ele te dignifica em Meu Afeto, porque é por Mim considerado único mérito para tanto. Além deste, quais seriam os méritos necessários na conquista de Minha Graça? Acalma-te, pois! Se estou satisfeito contigo, que mais haverias de querer? Eu de nada sei, e desejava saber como poderias realizar coisas maiores e mais dignas de Minha Pessoa!
A maneira pela qual terás de transmitir Meu Amor aos teus semelhantes será tua conquista, no que, porém, não te cabe mérito. Tal aperfeiçoamento de tua natureza te é facultado apenas para te
tornares mais feliz, portanto em teu próprio benefício! Nunca, po- rém, poderás cogitar de um acréscimo de dignidade, por não te ser possível fazeres mais do que amar-Me sobre tudo, única exigência que te faço, como a todos. Sê, portanto, calmo e não penses em maiores méritos, pois deles não necessito; e agora presta atenção àquilo que surgirá diante de teus olhos!
Vê, ainda nos encontramos neste pequeno mundo e nada mais vislumbras além deste ponto de partida. Julgavas ser ele um pequeno cometa do qual em trilhões de anos surgiria um planeta pela força de atração de Minha Natureza, onde se acumulam átomos ao Meu redor, vindos do éter. Tal, porém, não se dá. Vê, este mundo pequeno e estéril surgiu de ti e corresponde ao teu estado íntimo, onde ainda Eu sou o Melhor. Teu solo psíquico é pequeno e fraco e Eu, Nele, apenas mera criatura!
Quando teu coração Me reconhecer e se inflamar por amor a Mim, este pequeno mundo se transformará imediatamente num maior, mais sólido e rico! Mantenho tua venda interna para impedir que a forte luz do teu espírito se projete na alma. No momento, porém, em que a afastar, como foi rasgado o Véu do Templo, liber- tando o Santíssimo — de pronto depararás um mundo diferente, extasiando-te com tudo! Presta atenção!”
CAPÍTULO 43
O novo e maravilhoso mundo de Roberto
Com grande atenção Roberto olha ao redor de si à procura de uma zona melhor; todavia, nada se apresenta. Forçando ainda mais a visão, olha para o alto na expectativa de que possa surgir algo do Céu! Mesmo assim, nada aparece! Decorrido algum tempo, ele se vira para Mim e diz: “Mestre Eterno e Criador do Infinito, meu santo e querido Pai! Meus olhos quase me saltam das órbitas, con- tudo nada vejo! Qual será o motivo? Esclarece-me e, se for da Tua Vontade, tira-me a venda dos olhos!”
Digo Eu: “Pois bem, Meu irmão, que se abra tua visão! Que Me dizes agora? De onde veio tal zona? Alegras-te com ela?”
Mal se contendo de alegria, Roberto depara planícies mara- vilhosas em perfeita nitidez; cordilheiras deslumbrantes circundam o horizonte; em meio aos vales ele vê colinas a cujos pés se estendem pequenas habitações de aspecto gracioso. Nas proximidades se acha uma grande mansão localizada em vasto jardim florido e horta exu- berante. Por cima desta zona admirável abaúla-se um céu azul cla- ríssimo, onde ainda não se vislumbra o Sol. Em compensação, está cravejado de inúmeras estrelas, das quais a menor brilha mais que Vênus em época de deslumbramento; razão por que a paisagem na luz de milhares de estrelas resplandece mais que a Terra ao meio-dia.
Roberto não para de extasiar-se e só depois de algum tem- po cai de joelhos, olha-Me embevecido de amor, exclamando com ardor intenso: “Senhor, meu Deus! Criador Onipotente de maravi- lhas jamais imaginadas! Como iniciar e onde terminar meu louvor e gratidão eternos? Quão imensas devem ser Tua Sabedoria e Força, porquanto fizeste surgir tal Criação por um simples aceno! No en- tanto, continuas ao meu lado na maior simplicidade; justamente isto Te torna mais Querido, Amável e Adorável, não aparentando mais que um simples homem! Quando, porém, falas e ordenas, inú- meros mundos, sóis, anjos e miríades de outros seres se projetam de Tua Boca numa Glória sem par!
Senhor, quem poderá assimilar e compreender Teu Amor, Sabedoria e Onipotência?! Meu Deus, sou apenas pobre pecador, e só posso amar-Te com toda minha alma! Mal sei o que fazer pelo grande amor que Me inspiras! Meu querido Jesus! Quem, no mun- do, poderia compreender seres justamente Tu o Ser Supremo e Eter- no? E Te encontras junto de mim, pobre pecador, amaldiçoado e julgado pelo mundo! Amor de todo Amor! Senhor, Pai e Deus! E me chamas de irmão! Teu Amor é demasiado grande! Como pode um condenado permanecer junto de Ti? Dá-me forças para que Te possa amar por tal Bondade e Simplicidade infinitas com o fogo de todos os sóis que abarca o Espaço Eterno!”
Digo Eu: “Mui querido irmão! Meu coração se alegra por Me louvares desta forma, em virtude de ter Eu tirado a venda de teus olhos, o que te faculta deparares uma paisagem mais extasiante que a mais linda do orbe e mais clara que o Sol da Terra Prometida!
Teu amor intenso é-Me o louvor mais agradável; pois somen- te por ele sou acessível como Pai de Meus filhos; pela Sabedoria, jamais! Todo o saber dos incontáveis anjos e espíritos é, diante de Minha Sabedoria Eterna, menos que uma gota de orvalho compara- da ao eterno mar do éter que preenche o Espaço Infinito!
Amando-Me dentro de Minha Ordem e expressando deste modo teu louvor, torna-se ele justo, mas desnecessário. Tudo que aqui vês é tua obra. Apenas também é Minha por seres tu mesmo Minha criação. Isoladamente é tanto tua realização quanto aquilo que fizeste na Terra.
Indagas em teu íntimo: ‘Senhor, como é possível? Se isto fos- se minha obra, deveria ter consciência que me revelasse o como; mas não tenho a menor ideia!’
É justo não compreenderes tal fato; contudo, não importa. Fizeste na Terra o mesmo pela procriação, cada qual mais maravi- lhosa que tudo que aqui vês. Acaso sabias que, pelo simples ato, realizavas milagres cuja grandiosidade longe estás de assimilar, e qual o plano que enfeixavam em si?
No entanto, foste tu, e não Eu, o criador de teus filhos! Sou o Causador Único do Plano e da Ordem pela qual surge uma criatura; todavia, deve ser efetuado o ato pela vontade dos homens. Por isso, não te admires quando afirmo ser esta tua própria obra, portanto tudo é teu; se ainda não fores capaz de assimilá-lo, o tempo espiritual te ajudará nisto. Agora, outro assunto.”
Tarefa de Roberto no novo lar. A primeira visita
Prossigo: “Vês aqui a grande e rica vivenda onde morarás? Temporariamente residirei contigo — fato que não te deve impres- sionar; pois sempre estarei presente quando Me chamares em teu coração, o que significa não afastar-Me de ti.
Além disto, não estarás só, ainda mesmo que não Me ve- jas perto de ti; encontrarás em tua casa uma assembleia tão grande como jamais poderias imaginar. De modo idêntico toda esta zona é habitada. Previno-te que há grupos formados por pessoas radicais e será tua incumbência levá-las à mesma trilha por onde Eu te condu- zi. Se tiveres pleno êxito, descobrirás maravilhas ignoradas por ti e penetrarás em teu próprio recôndito de tesouros e milagres.
Antes de tudo, tem cuidado em não Me denunciares perante os que aqui chegarem dentro em pouco. Ninguém Me conhece, por ser sua fé menor que a tua anterior! E se Me apontasses, sofreriam prejuízo ao invés de benefício. Segue-Me, pois, pelo jardim; no li- miar de tua casa encontrarás o que te falei.” Tomo a dianteira e Ro- berto Me segue cheio de amor, veneração e humildade!
Ao chegarmos à porta que dá para um vestíbulo ricamente ornamentado, é ele invadido por inúmeras pessoas de ambos os sexos a gritar: “Viva o nosso estimado Roberto Blum, o maior amigo dos povos da Europa! O primeiro e maior alemão do século dezenove! Mil vezes bem-vindo, guia corajoso de milhões de amigos contra os adversários da liberdade humana! Há quanto tempo te esperávamos e tu não aparecias, muito embora soubéssemos que nos havias pre- cedido! Ansiamos vingar o teu e o nosso sangue naqueles bárbaros déspotas, que nos fizeram fuzilar como cães! Até então carecíamos de chefe. Agora és o indicado, porquanto entendido nas leis da Na- tureza e do mundo espiritual. Organiza-nos de acordo com nossas capacidades e leva-nos aonde possamos saciar nossa vingança!”
Diz Roberto: “Amigos, dai tempo ao tempo! Antes de tudo, meu agradecimento por tal recepção e graças ao Senhor que
me permitiu encontrar-vos aqui! Para iniciar, afirmo apenas que também aqui tudo tem seu tempo. Para que nos atirarmos sobre aqueles que se julgam senhores do mundo? Deixemo-los em tal ilu- são por mais alguns meses! Quando aqui vierem, será oportuno dis- cutir. Entendestes?”
Gritam eles: “Sim, pois ainda és o mesmo homem inteligente neste mundo, que para nós é enigmático, pois nem sabemos como aqui chegamos. A zona é realmente maravilhosa, um verdadeiro pa- raíso, e sabemos somente ser esta casa, com tudo que deparamos, tua propriedade, porquanto alguns homens amáveis disto nos informa- ram. Perguntamos se as estrelas eram tuas e responderam afirmativa- mente. Em seguida, nos aconselharam que esperássemos a tua vinda em companhia de um grande amigo. Vós ambos determinaríeis nos- sa futura atitude.
Aguardamos este momento em absoluto silêncio, nos vastos recintos de tua casa; quando vos vimos aproximar, interrompemos a calma reinante. Tem, pois, a bondade de indicar nossa futura ação!”
Diz Roberto: “Muito bem, far-se-á o que desejais. Alegra-me bastante serdes bem intencionados, fato que vos trará maiores bene- fícios que na Terra. Deixai-me, primeiro, penetrar em minha casa para, como dono, analisá-la. Devo ainda pedir-vos não me saudar- des com o ‘viva’ — coisa tola aqui, onde iniciamos uma vida eter- na, jamais acompanhada pela morte. Por que tal exclamação, se já recebemos a própria Vida pela Graça e Misericórdia de Deus? Vossa futura saudação será: ‘Louvado e amado seja Deus, nosso Senhor em Jesus Cristo, que até então julgávamos simples criatura, sendo, entretanto, desde Eternidades, Deus Único e Criador do Infinito!’ Se assim fizerdes, tereis motivo de vos sentirdes felizes por uma vida perfeita — porquanto as honrarias mundanas a mim prestadas em nada vos melhorarão!
Lembrai-vos disto, sabendo não ser Roberto um tolo, por- tanto sem base para vos revelar o que ele mesmo duvidou em vida. Sou, tanto aqui quanto na Terra, vosso amigo sincero e, assim, ser-
-vos-á fácil assimilardes minhas palavras. Não é isto? Crede no que
vos transmito, sabendo que eu nada aceito de modo fácil, mormente em se tratando de religião e fé!”
Dizem eles: “Aceitaremos incondicionalmente tudo que nos ensinares; também nos disseste a verdade em Viena ao aconselhar-
-nos desistir da luta, porquanto o inimigo era demasiado forte, e fraca a defesa! Não te demos crédito e te lançamos em rosto seres covarde! Então te alteraste, exclamando: ‘Blum jamais considerou a vida como dádiva sublime; não teme dez mil demônios, muito menos esses mercenários! Às armas quem tiver coragem para morrer ao meu lado!’ Infelizmente, reconhecemos tarde demais teres falado a verdade! Agora, tudo acreditaremos e te pedimos seres nosso chefe e orientador!”
CAPÍTULO 45
Roberto dá testemunho de sua fé
Diz Roberto: “Muito me alegro com o fato de aceitardes, de tão boa vontade, o que vos aconselho. Da minha parte, asseguro-vos que transmitirei as ordens mais equilibradas, pelas quais alcançareis infalivelmente a vida eterna e indestrutível, enquanto for assistido por este amigo, que também é vosso. Naturalmente, tereis de passar por várias provas antes de vos tornardes aptos para o destino sublime determinado pelo Santo e Eterno Causador de todas as coisas e seres, com a finalidade de se tornarem Seus filhos! Tende coragem, persis- tência e amor verdadeiro e perfeito para com Ele, nosso Pai Eterno! Deste modo ser-nos-á fácil vencermos todas as vicissitudes futuras e atingirmos o grau necessário que nos permita aproximarmo-nos Dele, em Espírito e Verdade!
Meus irmãos, eu, vosso amigo sincero, vos digo: O que na Terra não me foi possível imaginar, desdobra-se aqui diante de meus e vossos olhos de modo tão maravilhoso, impossibilitando a pessoa mais loquaz de transmitir o que Deus reserva àqueles que O amam! Tudo isto que ora vedes não representa uma gota de orvalho diante do Oceano!
Um sábio no mundo após ter, por longos anos, pesquisado o reino da fantasia, com profunda veneração, exclamou, empolgado: ‘Que riqueza, que fonte inesgotável de Céus infinitos é deposita- da no pequenino coração de quem na Terra se chama ‘homem’. Se lhe fosse possível realizar suas ideias pelo divino ‘Que assim seja’, quão grandiosa seria a criatura! Nessa riqueza fantástica, porém, não existe o menor vislumbre da plenitude, profundeza e nitidez que o conhecimento humano poderia conceber de Deus!’
Se aquele sábio pagão, revestido do pó da instabilidade, con- cebia ideia tão grandiosa do homem e daí concluía a Sublimidade Divina, quanto mais direito temos nós em dedicar-nos a tais conjec- turas; porquanto, primeiro, nos achamos, pela Graça Divina, acima do pó da decomposição; segundo, por sermos cristãos, destinados a ingressar no Reino de Deus!
Infelizmente, não merecemos tal classificação e muitos de nós dela se envergonharam, no que cabe a culpa a Roma e à nossa própria ignorância. Isto será modificado. Será a maior honra para nossos corações pertencermos inteiramente a Cristo!
Afirmo-vos: Cristo é Tudo em tudo! É o Eterno Alpha e Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim! Ele somente é a Verdade, o Caminho e a Vida de todos os seres, criaturas, espíritos e anjos! Em Suas Mãos jazem todos os Céus, os mundos e tudo que neles vive! Por Ele e Seu Verbo Santo e Eterno podemos nos tornar filhos de Seu Infinito Coração Paternal! Sem Ele não existe Vida, portanto bem-aventurança! Acreditais nisto?”
Respondem todos: “Sim, muito embora não o compreenda- mos, cremos por sabermos que não ensinarias algo que não fosse por ti aceito integralmente. Por isto, louvado seja Deus nas Alturas por ter-te proporcionado tanta compreensão e entendimento. Principal- mente nos agradou o que disseste do Cristo, pois sabes que muito O venerávamos. Era vergonhosa a maneira pela qual os padres cató- licos O deturpavam, reduzindo Sua Ação pelo seu conceito. Não se pode imaginar um deus mais caprichoso, teimoso e irado do que a Figura do Cristo apresentada por esses monges! Alegavam exigir Ele
as preces do rosário, as fatigantes ladainhas, as orações dos santos, os exercícios, a adoração das relíquias, a confissão sem fim, as missas pagas e outras tantas tolices necessárias à conquista do Reino do Céu! Não era possível aceitar-se isto no século dezenove, mormen- te quando se tinha — como pobre operário — oportunidades de sobra para ver como esses servos de Deus — certamente de tanto jejum — não conseguiam virar-se de frente para o Altar, de tão gor- dos que eram!
Aceitamos com grande alegria o Cristo que nos descreveste. Poderia até mesmo ser Deus em Pessoa, pois é, a nosso ver, bom, sábio e bastante poderoso para tal, especialmente se Suas Ações Mi- lagrosas não foram contos de fada. Qual será teu parecer e de teu amigo tão simpático, que até agora nada disse, se um dia formos merecedores de ver ao menos de longe o Cristo Verdadeiro? Irmão, se isto fosse possível, tal qual aconteceu com Madalena e com os discípulos no caminho de Emaús — nossa felicidade seria imensa! Não poderíamos exigir que Ele Se apresentasse a nós, tão impu- ros somos!”
Diz Roberto: “Caros amigos, afirmo-vos ser o Verdadeiro Cristo o Ser Supremo e Santíssimo, o Mesmo que foi na Terra! Con- sidera somente quem no mundo foi simples e desprezado, e os per- seguidos são Seus amigos e irmãos! Todos que o mundo chama de grandes e importantes são-Lhe um horror!
Por isto, alegrai-vos, pois O vereis não só uma vez, mas por toda a Eternidade, pelo amor que Lhe dedicais! Crede-me, Ele Se acha muito mais perto de vós do que podeis imaginar, e se me fosse permitido, indicar-vos-ia onde Se encontra. Entretanto, ainda seria prematuro e poderia prejudicar-vos. Esperai, pois, até que vos tor- neis mais aptos para tanto. Estais satisfeitos?”
Exclamam todos: “Perfeitamente! Por ora também não se- ria de nosso desejo encontrá-Lo, sabendo não merecermos tama- nha Graça. Tudo faremos, porém, para tal fim! Lembra-te de nossa atitude condenável em Viena e, se os padres católicos divulgaram a centésima parte do inferno real, não faríamos jus senão à eterna
condenação! Sendo a Graça Divina, isto é, do Cristo, maior do que foi proclamada, temos esperanças de alcançá-la! Deste modo, agra- decemos a ti e a teu amigo por tal promessa!”
CAPÍTULO 46
Estado psíquico dos antigos companheiros de luta
Diz Roberto: “Sabia ser fácil tratar convosco, o que me causa verdadeira alegria! Continuai deste modo, sede sensíveis e mansos de coração, que a meta determinada por Deus pouca dificuldade vos trará!
Agora, outro assunto. Onde se acham os três companheiros de luta: Messenhauser, Jellinek e Dr. Becher? Analisei vosso grupo, um por um, encontrando muitos amigos estimados; aqueles, porém, não vejo! Também ainda não os descobristes ou ficaram em outra zona? Informai-me a respeito, para poder entrar em minha casa na companhia deste prezado amigo.”
Respondem alguns: “Como podes indagar por esses patifes? Não se acham conosco, tampouco lhes aconselhamos que nos apa- reçam, pois seriam mal recebidos! Julgas terem tido eles a tua boa intenção? Ora, aqueles três, que se davam tanta importância como se pudessem dominar o mundo com o mindinho, apenas visaram lucros monetários. Uma vez conseguindo encher os bolsos, ter-se-
-iam evadido para a Suíça, deixando-nos entregues à lei marcial! Esse plano foi, porém, frustrado, tendo eles o mesmo destino que nós!
Principalmente Messenhauser, que foi o maior traidor! Ne- gou-nos munição e indicou os pontos mais vulneráveis da defesa de Viena, deixando livre passagem aos adversários! Por certo quis fazer papel de salvador dos vienenses, enquanto pretendia entregá-los ao príncipe Alfredo, de quem esperava boa recompensa! Outros, po- rém, foram mais ligeiros ao encontro do Marechal, que não hesitou em mandar despachar Messenhauser para cá. Não sabemos por onde anda; felizmente não está em nosso grupo. Tampouco temos notí-
cias de Jellinek e Dr. Becher, peritos oradores, cabendo-lhes a culpa de muitos outros terem a mesma sorte que eles.
No mais, não nos preocupa sua situação; continuamos a vi- ver após a morte e não temos motivos para queixas. Nossa existência na Terra, cheia de corrupção, felizmente terminou. Mas, se tivésse- mos oportunidade de encontrar aqueles três, far-lhe-íamos um bom sermão em dialeto vienense, pois sua traição foi por demais infame! Eis tudo que sabemos; pessoalmente, tu os conheces melhor do que nós, porquanto tiveste várias oportunidades de lhes falar, principal- mente com Messenhauser.”
Diz Roberto: “Caros amigos, sinto imenso não se encontra- rem eles convosco; além disto, abstende-vos aqui — no Reino da Paz Eterna, do amor e da meiguice — de qualquer julgamento, seja de quem for! Jamais poderíamos ter dado algo que não tivéssemos recebido. Se tudo demos do que havíamos recebido, ou seja, bens e vida, não é possível tacharmos os outros de ladrões, porquanto receberam somente um empréstimo que nos havia sido concedido! Se sua atitude foi justa ou não, deixaremos a critério do Grande Doador, Único e Verdadeiro Juiz sobre Seus Bens.
De nossa parte, procuraremos agir como Cristo — o Senhor
nos ensinou: fazer o bem aos nossos inimigos, abençoar aos que nos maldizem e receber com amor quem nos odeia! Desta forma, apresentar-nos-emos como filhos de Deus, e Sua Graça estará co- nosco para sempre!
Não externamos em nossa prece: Senhor, perdoai as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores? — Se assim agirmos, Ele nos perdoará os pecados! Tão logo tenhamos perdoado, de tudo seremos remidos! Estais satisfeitos?” Dizem todos: “Perfei- tamente!” Diz Roberto: “Então, deixai-nos entrar!”
A casa de Roberto. Interpretação espiritual dos andares. Intercâmbio com o Senhor pelo coração
Em seguida, Roberto entra, em Minha Companhia, na casa majestosa de três andares, além do térreo, tudo em cores diferentes: o térreo verde-claro com friso branco e vermelho; o primeiro andar inteiramente branco e decorações em amarelo-claro e azul; o segun- do, azul-claro e enfeites violeta e cor-de-rosa. E o terceiro, vermelho qual aurora, sem ornamentação alguma.
Admirado, Roberto Me indaga em surdina: “Senhor, qual o motivo dessa variedade de cores? Representam apenas o gosto es- pecial dos construtores no Além? Em Viena, Dresden, Berlim ou Frankfurt, esse estilo que aqui é deslumbrante seria tachado de chi- nês, ou coisa que o valha! Desejava explicação de Tua parte, caso fosse de Teu Agrado!”
Digo Eu: “Primeiro, Meu irmão, deves, quando em presença de teus amigos hóspedes, falar somente em teu coração, para não Me denunciares antes do tempo; pois, se Me reconhecessem, teria de Me afastar, porque ainda são fracos para suportarem Minha Presença. Caso desejes falar-Me a fim de lhes proporcionar maior conhecimen- to, trata-Me de amigo e irmão, mas nunca de Senhor, e em breve te- rás progredido com eles, o que também constitui Meu maior desejo!
No que diz respeito à tua segunda pergunta, és entendido na interpretação de cores e flores e sabes o que representam. Assim, tua indagação foi fútil, mormente em presença de todos. Tem cuidado quando, no futuro, a conversa se referir à Minha Pessoa; do con- trário, teriam prejuízo em vez de benefício! Não te deves basear em suas afirmações como se estivessem perto da perfeição, só porque concordam contigo. Dá-se justamente o contrário.
Vê, sei de muitos, aqui e na Terra, que se encontram melhor informados sobre a Minha Pessoa do que tu. Entretanto, sou-lhes tão indiferente qual velho paletó, e seu amor para Comigo é tão for- te que uma garota dotada de atrativos sensuais o destruiria. Minha
tarefa não é pequena para evitar que Eu seja completamente esque- cido por tais confessores.
O mesmo acontece com teus amigos; são todos vienenses, isto é, sensuais e desordeiros! Se lhes apresentássemos uma série de pequenos milagres, como fazem os escamoteadores, proporcionan- do-lhes farta mesa, raparigas voluptuosas, em cuja companhia se po- deriam divertir, de acordo com sua forte sensualidade, seríamos seus amigos dedicados e, até mesmo, indispensáveis. Nada, porém, de as- suntos mais sérios, pois poderias observar como nos abandonariam um a um! Existem entre eles criaturas tão devassas que facilmente re- nunciariam aos Céus, caso pudessem se apossar de uma jovem; neste ponto, ainda teremos oportunidade para conhecê-los mais de perto, dando-nos muito trabalho! Será preciso administrar-lhes o primeiro grau do inferno para se libertarem da voluptuosidade! Antes, porém, tudo será feito dentro de seu livre arbítrio; se tal medida não surtir efeito, teremos de aplicar meios mais drásticos! Sê, portanto, pru- dente e não Me denuncies, mesmo por gestos; trata, antes de tudo, de chamar-lhes a atenção sobre a sensualidade e suas consequências para obtermos os resultados indispensáveis. Serão tratados também por Mim, e não devem saber por muito tempo Quem Sou.
Agora vamos à explicação do colorido dos diversos andares de tua casa: o térreo, num verde viçoso, representa o estado espiri- tual da Natureza, cujo principal é a esperança, revestida da fé e do amor. O primeiro andar corresponde à fé pura e verdadeira, envolta na serenidade e constância. O segundo, à atividade amorosa surgida da fé pura, idêntica à cor celeste, pela qual se revela a constante ação do amor sobre os corações compreensivos. Por isso, é esse andar ornamentado, ou melhor, coberto de profunda sabedoria celeste — violeta — e do amor ao próximo desinteressado — cor-de-rosa. O terceiro aponta pelo vermelho, virgem, o Céu do Amor e da Inocên- cia, de certo modo o Verdadeiro Céu, onde habito com todos que Me amam sobre tudo. Por tal razão é ele sem enfeite, porquanto a natureza de seu colorido contém todas as perfeições imagináveis, sendo Eu a única decoração.
Tens aí a interpretação do colorido de tua casa. Nada mais perguntes, pois à medida que subires os andares, tudo aquilo que não compreendias te será revelado.
Entremos, pois, no térreo a fim de nos prepararmos para o primeiro andar. Quem quiser poderá nos acompanhar; com- preendeste?”
Diz Roberto: “Sim, meu irmão; e tudo será por mim res- peitado. Estranho haver entre essas simpáticas criaturas pessoas tão renitentes e volúveis!”
Digo Eu: “Meu amigo, terás ainda motivo de sobra para te admirares da índole das almas deste mundo! Encontrarás as mais atraentes cobertas de lã alvíssima, entretanto são, no íntimo, lobos, leões, hienas, ursos e tigres! Mas, que Me dizes da entrada do térreo?”
CAPÍTULO 48
O deslumbrante interior da casa. Cenas escandalosas provocadas pelos vienenses. O Senhor, pacientemente, cura os males psíquicos
Diz Roberto: “Oh! Amigo e irmão! Que maravilha! O ex- terior da casa não dava impressão de conter salas tão vastas e des- lumbrantes! E que vista magnífica se tem das janelas enormes! E o jardim! No horizonte as montanhas majestosas! As casinhas que circundam os vales!
Mas, que vejo da primeira janela? Não é possível! Que falta de compostura! Um grupo de moças se entretém com os homens! Isto é demais! Temos de enxotá-los!”
Digo Eu: “São os teus vienenses, que anteriormente con- cordaram com tuas palavras! Preferiram ficar lá fora para se diver- tirem a seu gosto! Vês que nenhum nos acompanhou, pois aquelas meretrizes lhes agradam mais que nós e teus conselhos, e assim con- tinuarão por muito tempo.
Se lhes fizeres um sermão, de novo te prestarão ouvidos — aparentemente! Não existem pecadores mais difíceis de se converter
do que os impudicos, porquanto se apresentam acessíveis, desde que não sejam tolhidos em suas tendências. Tão logo lhes fores proibir tais indecências, ficarás atordoado com as reações. Deixemo-los sa- tisfazer suas bestialidades para, em seguida, perguntar-lhes o motivo por que não nos seguiram. Ouvirás as desculpas que apresentarão! Antes, porém, permitirei a aproximação de algumas mulheres depra- vadas e te certificarás a que ponto chega a impudicícia.”
No mesmo instante, doze cortesãs entram pelo jardim. Ime- diatamente se ouve uma forte gritaria de regozijo e os homens se atiram sobre elas quais tigres às suas presas. Roberto quase explode de irritação e quer intervir. Precavido, Eu consigo detê-lo, e assim fica a Meu lado, lançando vez por outra um olhar pela janela.
Decorrido algum tempo ele se vira para Mim, dizendo: “Se- nhor, basta! Não suporto mais este quadro! Contudo, não melhoro esses patifes através de meu aborrecimento e reconheço ter agido tolamente.
Por certo poderias modificar essa situação, se Tua Sabedo- ria o julgasse justo e bom. Como és a máxima Paciência, Amor e Meiguice em Pessoa, assistes a esses escândalos com tal calma como se jamais pudessem aborrecer-Te. Por que, então, devo alterar-me? Nada farei no futuro, mesmo se agirem de modo mil vezes pior!
Apenas não compreendo como pode tal indecência tornar-se paixão em pessoas educadas! Também fui homem com inclinação sexual, e a satisfazia de vez em quando; nunca, porém, levei o ato até a paixão! Sempre me envergonhei, recriminando-me da seguinte maneira: ‘Roberto, que estás fazendo? Deves ser em tudo um ho- mem íntegro, entretanto és um animal! Basta deparares com uma cara bonita e seres provocado por olhares convidativos, e lá se vai tua dignidade!’
Eram assim minhas autorreprimendas, motivadas geralmen- te após o abuso do álcool. Mas esses aqui fazem-no com verdadeira volúpia, envergonhando os próprios animais. O que mais me intriga é serem os velhos os mais atirados! Observa aqueles três debaixo da figueira! Essas obscenidades não terminam?”
Digo Eu: “Um pouco de paciência! Mandar-lhes-ei mais algumas moças, mais provocadoras pelo físico, porém retraídas, e verás a atitude de teus conterrâneos!”
Diz Roberto: “Não será preciso ser onisciente para prevê-lo! Pois seus gestos serão piores do que até agora! Nem mais olharei para lá quando começar a caçada! Senhor, quando isto terá fim? Não ficarão enojados? Ou se transformarão em verdadeiros animais?!”
Digo Eu: “Calma, de tudo isto receberás orientação! De- ves, apenas, fazer-te de expectador sereno! Quando for abrindo tua visão, compreenderás como aqui se deve agir para transformar tais suínos em criaturas! O que o amor não conseguiu, será incumbência do inferno, ou seja, da condenação própria de cada alma! Silêncio, pois aí vêm elas!”
Virando-se para a janela, Roberto observa o grupo de mo- ças recém-vindas e diz, após curta pausa: “Essas vinte representantes do sexo feminino, falando mundanamente, nada deixam a desejar! As três na vanguarda estão vestidas de dançarinas e talvez executem um pas de trois, a fim de aumentar a volúpia desses homens! Tinha vontade de avisá-las não ser isto preciso, pois eles não necessitam de estímulos! A meu ver, seria melhor que uma caterva de leões tomasse o lugar dessas dançarinas, pois sua aparição teria outro efeito sobre meus amigos! É estranho como se contêm diante dessas estrelas do palco, que lhes parecem impor respeito!”
CAPÍTULO 49
Um grupo de dançarinas humildemente pede acolhida
Mal Roberto termina, entram vinte e quatro belezas femini- nas em nossa sala, fazem uma reverência graciosa e indagam se nesse palácio existe um teatro onde possam dar algumas representações.
Diz Roberto, apontando para Mim: “Eis o Senhor, dirigi-
-vos a Ele. Há poucos minutos tornou-me morador aborrecido desta casa, da qual só conheço este recinto. É realmente curioso que vos preocupeis com artes escandalosas no mundo dos espíritos, onde so-
mente se deveria procurar Deus, o Senhor, praticando o amor para com Ele, a fim de se tornar espírito perfeito! Para mim tanto faz! Se for do agrado do Proprietário desta casa, fazei o que quiserdes!”
Dizem as três primeiras: “Mas... como? Lá fora alguém nos disse seres tu o proprietário, portanto senhor do palácio! Agora afir- mas isto de teu amigo!”
Responde Roberto: “Já disse: Ele é o senhor! E quem falou o contrário é tolo e ignorante! Dirigi-vos a Ele ou desaparecei!” Em seguida, as moças Me fazem a mesma pergunta.
E Eu respondo: “No mundo dos espíritos cada qual é senhor, isto é, proprietário de seus bens. Sendo ele Meu amigo e irmão, é Minha Posse e Eu sou seu Senhor, com tudo o que é seu. O mesmo poderá ele afirmar de Mim. O fato de conhecer Eu melhor esta casa do que ele tem seus motivos; além disto, já Me encontro aqui por muito mais tempo que Meu amigo.
Assim sendo, vos afirmo não existir teatro ou salão de dança e ginástica neste casarão, salvo uma sala de conferências, na ala extre- ma do Norte, munida de um alçapão, onde se pode fazer desaparecer espíritos impuros que não querem se submeter à Ordem Divina! Se quiserdes executar vossas danças para os hóspedes que se encontram no jardim, podereis dispor daquele recinto. Tende cuidado em não serdes atiradas ao alçapão, donde será difícil sairdes! Entendestes?”
Respondem elas: “Caro amigo, não podemos enfrentar tal perigo; não poderias permitir que apresentássemos nossa arte eleva- da no jardim?”
Digo Eu: “Pois não, lá podeis pular à vontade que não nos oporemos. Pois, aqui dentro isto não seria possível!”
Adianta-se uma dentre elas: “Amigo, quando em vida, pas- samos muito bem como verdadeiras deusas das metrópoles. Todos os que tiveram ocasião de nos assistir ficaram extasiados. Além dos favores de reis, juntamos grandes fortunas que facilmente nos teriam suprido por muito tempo. Mas nos aposentamos para saborear o fruto dos nossos esforços e fomos acometidas por uma moléstia fa- tal, redundando na morte!
Há trinta anos estamos neste miserável mundo espiritual, onde muito sofremos. Não existe meio de vida e sempre ouvimos a mesma resposta dada por vós. Amigos, a fome é dolorosa! Não que- remos ganhar o sustento de modo imoral, por sermos coisa melhor! Mormente nada queremos com gente igual à que está lá fora, pois nunca satisfizemos os desejos de príncipes, muito embora nos asse- diassem! Ninguém quer nos suprir com apenas um pouco de água; poderás, assim, calcular o nosso estado de miséria!
Não te seria possível fornecer-nos acolhimento e pão para ao menos saciar a nossa fome devoradora, em troca de qualquer ser- viço? Imploramos-te com todo o fervor!”
Digo Eu: “Minhas estimadas atrizes, isto não depende de Mim. O verdadeiro proprietário desta casa, como de tudo que vedes se estender pela zona longínqua, é Meu amigo e irmão. Não Me oporei, caso satisfaça vosso pedido; pelo contrário, muito Me ale- grarei com isso. Todavia, não o convencerei ou obrigarei! Dirigi-vos a ele!” A oradora vira-se para Roberto, que se adianta, dizendo: “Mi- nhas amigas, até hoje soube apenas serem vossos pés mais elásticos que os de outros. Vosso olfato, porém, supera vossos pés! Se fosse por mim, apontar-vos-ia a porta. Se puder proporcionar alegria ao meu amigo, atender-vos-ei, acolhendo-vos em Nome de Deus! No canto desta sala existe uma pequena mesa com pão e vinho. Ide e saciai-vos; em seguida veremos que tarefa vos poderá ser dada.” Ime- diatamente as dançarinas obedecem à ordem.
CAPÍTULO 50
Os vienenses pretendem requisitar algumas dançarinas. Roberto faz um sermão impetuoso.
Salvação das almas à beira do abismo
Insatisfeitos com a demora das dançarinas, os amigos de Ro- berto chegam à porta, reclamando: “Quanto tempo pretendem essas bailarinas de Paris e Londres permanecer convosco? Talvez queiras reservá-las para ti e teu amigo?! Seria ótimo guardares o melhor,
enquanto podemos nos satisfazer lá fora com os estrepes! Por seres o Blum, entremos num acordo: Uma dúzia fica contigo; a outra terás de nos entregar imediatamente, do contrário faremos uma ba- rulheira infernal e, caso ela não chegue a satisfazer nossos desejos, arrebentaremos tudo aqui!”
Reage Roberto: “Afirmo-vos: Tão certo como existe um Deus Eterno e eu me chamo Roberto Blum, nenhuma dessas moças sairá deste burgo onde Deus habita!
Foram por mim acolhidas, famintas e miseráveis. São, por- tanto, minhas hóspedes e, como tais, desfrutam de segurança e res- peito que exijo de cada espírito honesto! Se realmente pretendeis transgredir tal prerrogativa, podeis fazer uma tentativa e veremos quem leva vantagem!
Pelo que observei da janela, creio que satisfizestes vossa vo- lúpia! Não conheço animal que tivesse mostrado instinto tão perver- tido quanto vós, humanos e dotados de inteligência, demonstrastes no Reino de Deus! Não basta terdes pecado até o centro do último inferno, identificando-vos com os demônios; não bastou que vossa volúpia miserável tornasse ainda mais infelizes aquelas moças do que já eram, ao invés de socorrê-las! Não bastou, repito, terdes ultrajado este solo divino e puro com a sanha pervertida da impudicícia e per- versidade infernais! Não, tudo isto ainda é pouco para vossa volúpia insaciável!
Também a estas pobres criaturas — que durante trinta anos sofreram fome, sede e outras misérias, pelos Desígnios do Al- tíssimo, aceitas por Ele Pessoalmente, e que agora estão saboreando o primeiro pedaço de pão, agradecendo com lágrimas a um Pai que desconhecem — a estas também pretendeis atirar no inferno! Que atrocidade desmedida!
Sabeis quem são aquelas pobres criaturas por vós ultrajadas, de modo inclemente, que agora gemem e choram de dores, quase que semimortas?! São vossas próprias filhas! Algumas aqui chegaram vítimas de moléstias que ocorrem comumente na Viena alegre, e outras pelo tiroteio da revolução. Isentas de qualquer educação es-
piritual, não sabiam para onde se dirigir. Por Misericórdia de Deus foram informadas de que vós — seus progenitores em vida — vos encontráveis nesta zona. Cheias de esperança de melhorar seu des- tino, aqui vieram. Quando vos reconheceram e fizeram menção de vos abraçar — como filhas — vos atirastes, quais hienas, sobre as mesmas, praticando o incesto! Em vão gritaram: ‘Pelo amor de Deus! Que fazeis conosco? Somos vossas filhas! Jesus, socorro!’ Nada disto ouvistes! Olhai pela janela! Como poderia classificar vossa ação degradante? Realmente, não encontro palavras!
Quando aqui cheguei, em companhia de meu amigo, muito me alegrei, encontrando todos vós na soleira de minha casa, mor- mente por sentir vosso desejo de poderdes fitar Cristo, o Senhor, ao menos de longe! Assegurei-vos que tal não só se daria uma vez, tão logo O tivésseis aceito pelo amor — sentimento este que purificaria vosso coração — mas O veríeis por todo o sempre! Isto vos tocou de perto e confessastes não terdes mérito para tanto, o que muito me sensibilizou.
É incrível, porém meu amigo me preveniu do contrário, di- zendo: ‘Não deposites muita confiança em suas palavras; eles são puramente sensuais! Será difícil melhorá-los e alguns terão de descer ao inferno!’ Eu acrescento: Não necessitais vos dirigir para lá, pois já vos encontrais em pleno inferno! Vossa insaciável volúpia, provin- da de sentimentos imundos, não poderá ser exterminada nem por Deus, a não ser pelo julgamento do Inferno, por serdes inteiramente diabólicos!
Falo-vos insuflado por Deus! Sabeis de vossa ação horripilan- te e o que pretendeis, podendo imaginar as consequências! Fazei o que vos agradar! Ainda sois livres; dentro em pouco o Julgamento Divino vos atingirá, dando-vos o que mereceis! Isto não só se dará convosco, mas com todos os que ainda vivem na Terra e não querem aceitar as inúmeras advertências de Deus!
Se eu mesmo, em vida, tivesse aberto ouvidos e coração às inconfundíveis Chamadas de Deus, não teria caído na condenação! Como segui aquilo que meu intelecto orgulhoso e altivo me inspi-
rou, tive que suportar um julgamento penoso! Visei, no entanto, apenas o bem, e mesmo assim fui condenado! Que será de vós, que- rendo conscientemente praticar o mal?”
A este sermão incisivo, os vienenses, perplexos, se retiram, um a um. Ninguém tem coragem de responder; entre eles, julgam estranha a atitude de Roberto, pois sua severidade era qual trovão impetuoso! Alguns, então, começam a refletir, e um pavor tremendo os invade, a ponto de se arrependerem do que tinham feito.
A seguir, Roberto se dirige a Mim e diz: “Senhor, meu San- to e Eterno Pai! Perdoa se me expressei em termos fortes aos meus amigos! Conheces o meu íntimo e sabes que eu lhes desejo somente o bem, e minha reprimenda visava apenas impedir fossem condena- dos para o inferno! Por certo é um sermão severo incalculavelmente mais suave que a menor fagulha infernal! Abençoa minhas palavras, pois talvez consigam causar o efeito desejado!”
Digo Eu: “Meu caro amigo, irmão e também filho! Não pronunciaste umapalavra a mais ou a menos do que Eu Mesmo te insuflei no coração! Por isto, não precisas repreender-te, como se fosse demasiado severo com as pessoas isentas de qualquer educação espiritual! Pois tais almas, à beira do abismo, que se inclinam para se atirar no mesmo, têm de ser arrancadas de lá com violência; só assim será possível levá-las a um caminho melhor, sem medidas infernais.
Verás, em breve, o bom efeito de teu sermão, muito em- bora procurem se evadir e tentem mostrar-se melhores do que são em verdade. Não importa! Uma vez que a maior parte se converta, a minoria terá de se submeter, porquanto não haverá outra solução. Deixemo-los descansar e fermentar um pouco, da mesma maneira como se procede com o espírito do vinho antes de ser despejado no vasilhame de destilação. Quando estiverem aptos para serem leva- dos à destilação, cujo receptáculo é aquecido pelo fogo constante de nosso amor, será fácil separar-se o espírito da matéria! Mudemos, porém, de assunto!”
Os três companheiros de luta analisados pelo Senhor. As dançarinas, gratas, como instrumentos de boa vontade
Prossigo: “Há pouco mencionaste teus amigos Messenhauser, Jellinek e Becher. A informação que recebeste foi um tanto grosseira, todavia contém algo de verídico: eram eles movidos por índole di- versa da tua, pois visavas uma boa finalidade, conforme conseguiste em teu país. Eles, porém, agiram apenas pela conquista do Absolu- tismo ou, caso falhassem, queriam ao menos encher os bolsos para, numa ocasião propícia, se evadirem para o estrangeiro.
A deusa Fortuna não lhes sorriu. Por certo tempo apresentou ao primeiro o corno da abundância. Ele, porém, não percebeu ocul- tar o mesmo uma bala que tão incisivamente adverte a inconstância da felicidade terrena! Assim, Messenhauser foi liquidado!
Aos outros dois, a deusa, evidentemente, não dedicava muita simpatia, não obstante tudo terem feito para tal fim, por meio da pena, atacando, sem piedade, os mencionados filisteus reacionários. Entretanto, ninguém morria em consequência das feridas por eles aplicadas pela pena. Irritados com isto, atiraram para longe a pri- meira arma e pediram outras a Marte, pretendendo efetuar ações aniquiladoras, na expectativa de conquistar simpatia da deusa. O efeito, porém, foi contrário, porque atirou-lhes tantas balas sob os pés e fez o solo tão escorregadio que lhes tirou a estabilidade. Desta forma, sua conquista com a deusa finalizou-se.
Esses três heróis ingressaram, como tu, neste mundo eterno, sob inúmeras maldições dos que os despacharam para aqui, e não se acham distantes.
No teu íntimo, conjecturas: ‘Não duvido; mas, onde estão? Acaso ainda perambulam entre Céu e Terra, ou se ocul- tam alhures?’
Respondo: Nem no éter, tampouco próximo de tua casa, idêntica ao íntimo de teu coração. Encontram-se realmente presen- tes em teu lar, na mesma maneira que estão em teu coração pelos
pensamentos de carinho que lhes dedicas! Estás separado deles ape- nas por uma porta. Tão logo a abramos, tu os encontrarás como deixaram a Terra. Quando este momento chegar, não te deves dirigir a eles e sim ouvir, a Meu lado, o que resolvem entre si; só depois será oportuno falar-lhes.
Antes, porém, trocaremos algumas palavras com as dançari- nas, a fim de prepará-las para as necessidades futuras. Não imaginas como ainda nos serão úteis! Vamos, pois!”
Incontinenti dirigimo-nos às moças, que nos recebem com amabilidade, agradecendo pelo bom trato que lhes foi dispensado e pela proteção contra os que mantinham intenções condenáveis para com elas. Além disto, pedem perdão a Roberto, que supunham um homem intransigente, enquanto demonstrou ser justo e caridoso.
Roberto, embora não desgostoso com o elogio, se controla e diz com sua seriedade habitual: “Ouvi-me, minhas pobres irmãs! Não vos precipiteis com tais louvores, pois estais longe de saber Quem seja o Verdadeiro Doador!
Eu apenas sou um servo rude, mas honesto! Todavia, não importa a quem externais vossa gratidão, pois não aceito o que não me cabe e passo-o fielmente ao meu Senhor! Mudemos de assunto. Ainda pretendeis realizar vossas produções artísticas ou tereis desis- tido dessa ideia maluca?!”
Dizem elas: “Amigos da pobre humanidade! Tal pretensão seria imensa tolice, pois queríamos apenas ganhar o suficiente para saciar nossa fome voraz! Encontrando acolhida, independente de nossa arte — porquanto estamos convictas ser ela um horror aos vossos olhos puros — agradecemos de todo coração!”
Responde Roberto: “Muito bem; mas, se por acaso, mais tarde, pedir a realização de uma dança para uma boa finalidade, continuaríeis fiéis à decisão louvável de jamais pretender dançar?”
Afirmam elas: “Amigos, faremos tudo que desejardes, sa- bendo que visais apenas o bem.” Diz Roberto: “Ótimo! Preparai-
-vos, porque a oportunidade vem aí!”
A obra do bem no espírito de Roberto. A dedicação do Senhor o comove e sua compaixão reverte em benefício das moças
Digo Eu a Roberto: “Caro amigo, irmão e filho: tens real- mente um coração meigo, o que muito Me alegra. Falas como se fosses tu mesmo, entretanto sou Eu quem fala por ti, e isto é algo de bom no Reino dos espíritos, quando o amigo transmite o que de justo e verdadeiro se passa no coração do próximo. Teu coração percebe nitidamente Meus Pensamentos, e Minha Vontade não lhe é estranha! Eis a Obra do Meu Espírito desperto em ti.
Teu espírito, provindo de Mim, pode penetrar em Minhas Profundezas, ver e pesquisar Meus Pensamentos e Minha Vontade. Tal fato já ocorre contigo de modo evidente; por isto, ouves no co- ração o que penso e quero como se fosses há mil anos entendido nesta arte abençoada! Continua assim e serás, em breve, um instru- mento hábil!
Uma vez as dançarinas orientadas no que fazer, podemos abrir a porta e encontraremos o trio heroico de Viena em debate. Antes, devo perguntar-te se achas as moças bonitas, ou conviria au- mentarmos sua beleza?”
Sorri Roberto: “Senhor, como és bom, meigo e solícito! Falas comigo não como Senhor Eterno no Infinito, mas qual amigo e como se realmente necessitasses de meu conselho! Isto Te eleva pe- rante minha alma infinitamente mais do que se fosses criar exércitos de novos mundos e céus. Seja como for! Quanto ao embelezamento das dançarinas, submeto-me ao Teu Critério. As primeiras nada dei- xam a desejar: sua vestimenta é selecionada e seu físico atraente. As outras, mormente as que estão lá atrás, são magras e sua roupa me lembra os saltimbancos que executam suas peripécias na via pública. Não faria mal se as pudesses favorecer um pouco — desde que não se tornem mais vaidosas do que são!”
Digo Eu: “Caro Roberto, far-se-á de acordo com teu desejo! Precisamente do lado onde se encontram as mais magras está um armário cheio de roupas. Abre-o e chama as moças para mudarem de vestimenta.”
Roberto executa Minha Ordem e elas se vestem ligeiro. Ele, porém, se extasia com a transformação e Me diz: “Que coisa extraor- dinária! Como os vestidos modificaram seu físico! E as fisionomias, o rosto, os braços! Nunca vi tanta perfeição na Terra! E ainda bem, pois teria me deixado seduzir! Aqui, a Teu lado, não me impressio- nam! Acontece, todavia, que muito se destacam das primeiras baila- rinas e terás de beneficiá-las um pouco!”
Digo Eu: “Por que não? Abre o armário, onde estão ainda vestidos em profusão.” Roberto repete sua incumbência e as bailari- nas pulam de alegria e se tornam ainda mais extasiantes com a troca de roupas.
Diz Roberto: “Senhor, não haveria espírito capaz de ima- ginar o Teu Poder! Que simpatia, beleza e graça externam estas moças! Realmente, se forem tão amáveis quanto bonitas, pode- rão seduzir...! Não...! Qual nada! Roberto Blum não se deixa ten- tar! Senhor, poderíamos procurar os três heróis?” Digo Eu: “Sim, acompanha-Me!”
CAPÍTULO 53
Os três revolucionários vienenses no Além. Seu parecer sobre Deus, inferno e destino
Ao chegarmos à porta, ela se abre e vemos os três amigos sen- tados a uma mesa redonda, entretidos na procura de um documento importante. Após certo tempo de pesquisa infrutífera, diz Messe- nhauser: “É como digo: o papel mais importante para provarmos nossa inocência extraviou-se durante os últimos acontecimentos. Que adianta procurar? Se um bom gênio não nos salvar desta pri- são, estaremos perdidos! Pois aguardar justiça humana seria maior loucura do que supor-se um bando de tigres não atacar um homem
indefeso! Encontramo-nos nas mãos de verdadeiros demônios, que não cogitam de misericórdia! Vereis como, em breve, entrarão o juiz militar e o carcereiro para transmitir-nos a pena de morte com uma indiferença estoica, como se fôssemos simples vermes! Afirmo-vos que seremos fuzilados!”
Diz Jellinek: “Amigo Messenhauser, asseguro-te que aquilo que temes já se efetuou! Parece um pesadelo, mas não é! Vejo ainda como me conduziram àquela vala horrenda onde fui fuzilado, mas imediatamente me achei aqui neste cárcere parecido com o outro, encontrando-vos da mesma forma. Somente não posso precisar se o amigo Becher veio antes ou depois de mim! Continuamos após a morte numa vida psíquica, e nosso medo do fuzilamento é inútil!
O que me impressiona neste estranho estado é a incerteza de onde estamos e o que nos aguarda. Se finalmente houvesse algo de verdadeiro nas prédicas dos liguristas (seita que divulga o culto de Maria), nosso destino não seria invejável! Para completar nossa infelicidade falta a condenação por parte do Ser Supremo! Conso- lo-me, porém, com a certeza de que, se Deus existe, deve ser me- lhor do que todas as pessoas bondosas em conjunto. Ao menos deve ser mais condescendente que o Marechal Windischgrätz, que nos mandou fuzilar com a maior calma. Se houvesse um meio de nos vingarmos desse tigre, seria a maior satisfação que posso imaginar! Concordais?”
Responde Becher: “Sim, pois pareces ter razão em tudo! O amigo Messenhauser acha-se como que aprisionado, julgando pade- cer num cárcere em Viena. Nesse ponto concordo contigo, pois não se trata de um sonho, mas da pura verdade termos sido fuzilados, se não me engano, em novembro ou dezembro! Não posso precisar o dia, porquanto perdi a noção do tempo em virtude de não existir aqui nem dia, nem noite. Também não importa, pois estamos defi- nitivamente mortos!
Só não creio no inferno, na hipótese que Deus exista. A con- cepção de Deus é demasiado sublime, pura, santa e sábia, de sorte a impossibilitar-nos a ideia da criação do inferno como expressão da
imperfeição total. Se, porém, não existir Deus, mas apenas forças mecânicas e inconscientes, como poderiam criar um inferno?”
Diz Jellinek: “Muito fácil, pois se Deus existe — o que não podemos duvidar — como poderia criar, por exemplo, um tal Alfre- do Windischgrätz? Representa esse homem-tigre o inferno comple- to e é, tanto quanto a víbora, obra divina! Excluindo-se a existência de Deus, surge a pergunta: como as forças da Natureza se deixam tentar pelo mal a ponto de criarem aquele Marechal? Vemos, pois, que — com ou sem Deus — existem o bem e o mal, tornando-se fácil a pessoa ser atraída pelo inferno, como ocorreu conosco!”
Diz Messenhauser: “Tens razão e sinto ter sido fuzilado logo após o bom amigo Blum. Fiz umas tantas observações que vos trans- mitirei, já que terminastes a palestra. Observai a mesa onde se acha- vam nossos documentos: quem os fez desaparecer? Além disto, per- cebi de repente uma porta aberta na direção sul, onde anteriormente só víamos uma parede lisa. Nosso cárcere se transformou num quar- to agradável, com várias janelas, que parecem proporcionar maior claridade, permitindo vislumbrar alguns objetos. Isto tudo me con- vence estarmos realmente num mundo de fantasia ou espiritual. Será, pois, difícil prevermos nosso destino!
Mencionaste, irmão Jellinek, constituir imensa felicidade po- deres vingar-te do Marechal. Neste ponto não concordo, por ser fa- talista. O destino semeia sobre a terra veneno e bálsamo, na mesma proporção. Que culpa tem o tigre de ser feroz? E a cascavel? O mes- mo poderia se dizer do Windischgrätz: foi apenas um instrumento do destino, que o criou assim, de sorte que tanto merece compaixão quanto nós, suas vítimas.
Nós, graças a Deus, já passamos pela morte, enquanto ele ainda terá de enfrentá-la, e quem poderá dizer ser seu destino mais feliz? No final, tudo se nivela, e não vem ao caso o tempo que se pisou o pó da Terra e se o corpo foi entregue aos vermes no patíbulo ou numa cama estofada!
Estou vivo e continuo sendo o Messenhauser; não sinto do- res, nem fome ou sede! Tenho meus bons amigos e o quarto se torna
cada vez mais claro e bonito! Que mais havemos de querer? Se isto continuar, só teremos motivos para nos congratularmos! Penso que tudo melhorará e, mesmo piorando, não será novidade!
Aceitarei tudo que vier, pois nada posso modificar! Con- vém dependurarmos nossos desejos num prego, porquanto nunca nos trouxeram vantagens! Não é isto?”
CAPÍTULO 54
Jellinek prova aos amigos a existência de Deus
Diz Jellinek: “Concordo com tudo, menos com a fatalidade!” Diz Messenhauser: “Por quê? Explica-te melhor!”
Responde o outro: “Devagar, meu irmão! Sabes que tais coi- sas não se explicam em poucas palavras, mas tentarei tirar da tua cabeça tal ideia. Vê, durante tua vida, nunca te interessaste pelas ciências, satisfazendo-te com o curso secundário. Em suma, eras um estudioso superficial, sem te aprofundares na base científica, razão por que te era vedada a natureza das coisas. Deste modo, nunca pu- deste alcançar uma noção que te facultasse conceberes a ordem ma- ravilhosamente equilibrada das coisas, seus efeitos e reações. Ficaste agarrado apenas à casca externa, que, à primeira vista, dá a impressão de obra do acaso. Isto, porém, não se dá!
Porventura viste surgir, por mero acaso, uma habitação com todos os apetrechos? Como, então, poderia ele criar um planeta onde encontramos inúmeras coisas maravilhosas, das quais a mais ínfima apresenta uma construção tão sábia? O acaso nunca faria isto!
Observa apenas a organização extasiante dos planetas; quão rigorosamente semelhantes se apresentam durante milênios em sua espécie e utilidade! Quão infinitamente artística deve ser a forma sistemática de uma semente que absorve da Terra os elementos ne- cessários à multiplicação! Nem quero mencionar a natureza trans- cendental dentro do grão, pois não é possível assimilar-se o cálculo puramente divino pelo qual o grão comporta miríades de outros, não só em sua forma, mas também na planta que produz!
Toma, por exemplo, a glande do carvalho: uma vez plantada, produzirá uma árvore que durante anos dará inúmeras bolotas. Se as semeares todas, terás uma floresta de milhões de carvalhos a produ- zirem a mesma espécie!”
Diz Messenhauser: “Realmente, irmão Jellinek, confesso seres um verdadeiro teósofo e tua simples explicação da glande me esclareceu mais do que todos os sofismas intelectuais que abarrota- vam meu cérebro! Deve existir um Deus pleno de Poder e Sabedo- ria — isto minha alma e razão não podem negar! Mas, onde está e Quem é? Poderá ser visto e compreendido pela criatura? Lembro-me de que, quando frequentava o quinto ano ginasial, tive de estudar a História Sagrada e encontrei o seguinte texto: Ninguém poderá ver Deus e continuar vivo! Consta ter Moysés ouvido isto através de uma nuvem de fogo quando pediu que Deus lhe aparecesse. Con- fesso ter eu, em virtude dessa passagem, mantido uma certa fé na Divindade. Quanto à crença de que Jesus comporta a Plenitude Di- vina, devo esclarecer-vos ser eu ainda verdadeiro ateísta.
A Doutrina pura de Jesus, isenta das fábulas, contém os mais perfeitos princípios ligados à natureza humana e exige um verda- deiro antropologista para elaborá-los de modo prático. Mas, que o inventor de tais princípios deva ser um Deus — isto ultrapassa o horizonte de minha razão e fé!
Sua Doutrina só pode ter origem humana e dispensa o Ser Divino, pois se cada autor de um ensinamento fosse um deus, o mundo estaria inundado deles. Euclides, como inventor das figuras geométricas; o inventor dos aparelhos de lavoura, dos números, dos navios etc. Como esse exército de descobridores de coisas importan- tes e úteis nunca fez questão de classificação divina, o autor da moral mais simples também poderia declinar de tal privilégio. Ao que me consta, Jesus nunca fez questão disto! Se, naquela época, pessoas supersticiosas e tolas quiseram divinizá-lo por ser mil vezes mais in- teligente que elas, isto não nos deve levar ao mesmo erro! Julgo que a Humanidade atual deveria finalmente reconhecer não ser possível o Infinito tornar-se finito, sendo Deus eternamente Deus, e o homem
limitado. Deixemos, porém, tais controvérsias; interessa-me saber Quem é a Divindade e onde está!”
Diz Jellinek: “Caro irmão Messenhauser, eis uma questão capciosa que resolveremos tão pouco quanto aquilo que externaste sobre a Divindade. Para poder compreender Sua Natureza Infinita deveríamos primeiro limitá-La, coisa inteiramente impossível! Sugi- ro dirigirmos nossa atenção para outro assunto.”
Declara Becher: “Tens toda razão! Querer assimilar a Natu- reza Divina seria o mesmo que pretender-se encerrar o mar numa casca de noz! Mudemos de conversa! Qual será, por exemplo, o des- tino de nosso amigo Blum neste mundo e o que estará fazendo nos- so inimigo Windischgrätz na Terra? Quem sabe breve aqui chegará, quando será por nós devidamente recebido!”
Responde Jellinek: “Quanto ao Blum, concordo! Deixai-
-me, porém, em paz com o outro, que não desejo defrontar! Mas, atenção! Parece-me ouvir vozes por detrás da porta aberta! Veremos o que lá se passa!”
CAPÍTULO 55
Os heróis medrosos, Jellinek na vanguarda, vão sondar o terreno. Surgem o Senhor e Roberto
Finalmente os três se levantam e se encaminham de passos lentos para a porta. Em lá chegando, descobrem, como que desper- tando de um sono, existir ainda outra sala, muito maior e confortá- vel. Receosos, começam a bisbilhotar pela porta, sem contudo passar por ela. Como nada de maior descubram — porquanto Me acho com Roberto afastado da sua visão e as dançarinas se encontram mais na retaguarda — diz Jellinek, baixinho: “Caros amigos, nada de perigoso deparo nessa sala; pelo contrário, vejo naquele canto uma mesa com uma garrafa de cristal contendo um vinho de bom aspecto e alguns pedaços de pão. Se no Reino dos espíritos podemos saciar-nos com pão e vinho, acho não ser preciso tanta cautela, por- quanto parece serem destinados a nos facultar melhores ideias e con-
cepções. Que me dizes?” Responde Messenhauser: “Irmão Jellinek, estou contigo! Devo apenas confessar-te e ao Becher que em tais oportunidades prefiro ser o último, pois poderia ser preciso fazer- mos uma retirada estratégica, quando seria eu o primeiro!”
Diz Jellinek: “Será possível, meu irmão? Pelo que vejo, és me- droso! Como pudeste ser comandante de Exército? Agora compre- endo muita coisa! Quem sabe se Viena não teria sido vitoriosa caso tal entusiasmo bélico tivesse te levado a combater num campo aber- to, ao invés de teres permanecido no escritório? Mas, deixemos isso de lado! Peço-te apenas, por tua própria honra, que não sejas fujão!”
Diz o outro: “Caríssimo amigo e irmão — aparentando cora- gem de um verdadeiro Napoleão — que tal se fosses à nossa frente? Não me aborreço com tua crítica, pois nunca fui dado a heroísmos; todavia, não receava a morte. O mesmo acontece agora. Não temo qualquer perigo; sinto inexplicável receio desta sala, como as crian- ças quando as amas lhes apontam recintos supostamente mal-as- sombrados! Tenho a impressão que passaremos por grandes aconte- cimentos e podereis atestar se me enganei ao atravessarmos o limiar! Não levarás isto em conta, irmão Jellinek?”
Responde este: “Como não, meu amigo! Pois isto é bem di- ferente e, na realidade, tenho o mesmo pressentimento. Contudo, não nos deve perturbar! Quanto mais fixo o meu olhar no vinho e pão — e o meu estômago espiritual começa a manifestar forte von- tade para saciar-se — mais desejo estar àquela mesa do que em vossa companhia temerosa! Avante, pois!”
No mesmo instante em que Jellinek pretende dirigir-se à mesa, é ele abordado por Mim e Roberto, que lhe diz bruscamente: “Alto lá! Nem mais um passo, antes de vos identificardes conve- nientemente!”
Assustado, Jellinek recua; reconhecendo, porém, o amigo, diz admirado: “Oh, Blum! Roberto! Por onde andaste? Deixa-me abraçar-te e beijar-te! Não te lembras de nós?”
Responde Roberto: “Como não! Sois meus companheiros de luta, tal como na Terra! De há muito sabia serdes meus hóspedes;
vós o ignoráveis. Percebendo vosso temor ridículo, enfrentei-vos energicamente para afastar vossa fraqueza. Animai-vos e vamos à mesa, que já atraiu muitos olhares de Jellinek!” Cheios de alegria, os três passam à outra sala, abraçam Roberto com efusão para, em seguida, dirigirem-se à mesa.
CAPÍTULO 56
O coração de Jellinek se inflama pelo “amigo” de Roberto. O vinho celeste. Brinde de Jellinek e resposta do Senhor
Dirigindo-Me seu olhar amável, Jellinek diz: “Caro amigo de nosso irmão e amigo Roberto Blum, não te queres dar a conhecer? Deves ser bondoso e nobre, do contrário não estarias junto dele.”
Digo Eu: “Dentro em pouco ser-te-á revelado o que ainda não compreendes! Acompanha-me à Mesa do Senhor e te fortifica para desvendares o enigma. Vem, pois, caro amigo e irmão Jellinek!”
Diz este: “Oh, amigo! Tua voz é extremamente amável e cada palavra tua enche o meu coração como jamais senti! Deves ser um anjo celeste! Sabes, ficarei a teu lado porque, muito embora preze o Blum, quero-te muito mais desde que me falaste! Tomemos um copinho para selar nossa amizade eterna! Pois suponho não haver aqui gente igual a Windischgrätz e Radetzki, capazes de formarem um Conselho de Guerra?”
Digo Eu: “De modo algum! Deixa este temor! Vê, os outros já nos fazem um brinde de saúde! Vamos!”
Messenhauser se encaminha para Jellinek com uma taça de cristal cheia do melhor vinho e diz: “Meu irmão, eis a verdadeira essência dos melhores vinhos que já provamos em vida! Bebe à saúde de amigos e inimigos, mesmo de Windischgrätz, pois esse instru- mento cego dos dominadores terrenos talvez consiga um dia chegar a uma noção melhor!”
Alegre, Jellinek toma da taça e diz: “Caros amigos! Deste modo me regozijo mais convosco do que anteriormente nos deba- tes infrutíferos, onde Messenhauser ainda aguardava, desesperado,
a pena de morte! Acontece ter eu escolhido o amigo do Blum para amigo do peito e tereis de me perdoar se não tomo uma gota deste néctar enquanto ele não se servir desta taça!”
Todos concordam, com ênfase, com o desejo de Jellinek, que Me diz com visível simpatia: “Caro e distinto amigo! Não rejeites esta taça da mão de um pobre pecador e traidor político! Que prazer não seria dar-te coisa melhor como prova de minha devoção e res- peito! Assim, sou obrigado a dizer como Pedro ao aleijado, à porta do Templo: ‘Caro amigo, não possuo ouro nem prata!’ Dou-te, por isto, o que tenho; isto é, esta taça e um coração afetuoso que te saúda e abraça! Aceita-o, pois! Por certo é um atrevimento de minha parte agir deste modo, por ser merecedor do inferno, no critério de um anjo; todavia, te amo com este meu coração maldoso, porque tanto bem me fizeste com as poucas palavras que me dirigiste! Sendo ainda um espírito impuro, fecha um pouco teus olhos tão meigos, pen- sando: ‘Ele não o entende melhor!’ Sabes, sou ainda muito terreno e não sei lidar com espíritos como tu! Asseguro-te apenas externar o que sinto, e te peço não levares a mal meu atrevimento!”
Amavelmente, tomo um gole da taça de Jellinek e digo em seguida a Roberto: “Irmão, no armário de comestíveis se acha uma garrafa de Meu Vinho Particular; traze-o aqui para que Eu demons- tre a este novo amigo como prezo sua amizade!”
Solícito, Roberto apanha uma garrafa com brilho de diaman- te, cheia do mais delicioso vinho e a entrega a Mim com visível emo- ção. Encho, pois, a mesma taça e digo a Jellinek: “Toma, caro amigo e irmão, e convence-te o quanto Me agrada tua amizade! Por que falas de pecados? Quem poderia classificar de pecaminoso um cora- ção tão cheio de amor desinteressado? Afirmo-te seres puro diante de Mim, pois tua dedicação anula teus erros terrenos! Seria Eu um mau amigo se não te aliviasse e assumisse a remissão de tua culpa! Bebe, pois, à nossa amizade eterna!”
Com os olhos rasos d’água, Jellinek diz: “Amigo divino! Como és bondoso! Se me fosse possível, tiraria o meu coração para depositá-lo em teu peito!” e, após tomar o vinho, exclama: “Irmão
Celeste, se tua amizade corresponde a este néctar, então não és um anjo, mas Deus Mesmo! Todo o Infinito não poderá apresentar coi- sa mais divina que o seu aroma! Provai, irmãos, e dizei-me se te- nho razão!”
CAPÍTULO 57
Efeito do vinho celeste. Indagação por Cristo e Sua Divindade. Resposta de Roberto
Roberto, Becher e Messenhauser experimentam o vinho e se extasiam diante de seu aroma realmente celeste, e o último toma da palavra: “Tua observação se justifica! Que vinho! Roberto, penso que deveríamos nos estabelecer em tua casa, pois cuidas magnifica- mente de teus hóspedes. Se se apresentasse um pobre pecador igual a nós, recebê-lo-íamos ainda mesmo se fosse um dos nossos piores inimigos! Qual é vosso parecer?”
Diz Roberto: “Amigo Messenhauser, falaste muito bem, por- que deste oportunidade ao teu coração para se manifestar, e não ao teu intelecto. Eu mesmo confesso: se o próprio Marechal Alfredo Windischgrätz aqui chegasse como alma sofredora, encontraria me- lhor trato do que nos proporcionou em vida!”
Exclamam os três amigos: “Bravo! Para se tornar verdadeiro cristão é preciso pagar-se o mal com o bem, pois quem ainda sentir o espírito da vingança está longe da perfeição espiritual, sofrendo grande atraso na libertação de sua alma. Quem, no entanto, puder dizer — como fez o maior e mais sábio doutrinador dos judeus: Senhor, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem! — terá atingido a máxima liberdade em sua vida! Poder-se-ia até mesmo afirmar ser tal pessoa um deus, dando o maior testemunho da Divindade do Cristo, ainda por poucos aceita.
Onde, porém, estará Jesus, cuja existência terrena não dei- xa dúvidas? Foi realmente o maior amigo da Humanidade! Amigo Blum, não tiveste oportunidade de colher informações sobre esse homem extraordinário?”
Responde Roberto: “Amigos, asseguro-vos ter sido justamen- te Ele meu primeiro contato neste mundo!”
Exclamam os três: “Como? Onde foi? Que disse Ele? Con- ta-nos algo!”
Diz Roberto: “Deixemos isto para ocasião mais propícia, porque temos outra coisa a fazer. Posso, no entanto, adiantar que espero em breve Sua visita, quando podereis conhecê-Lo de perto.”
Insiste Jellinek: “Dize-nos apenas se abordaste a tese de Sua Divindade, aceita por muitos fracos na fé. Ele aprovou tal crença?”
Responde Roberto: “Foi justamente o assunto discutido e acrescento, dentro da verdade por vós ainda não compreendida: Cristo é o único Deus Verdadeiro de todo o sempre! É o Criador de céus e mundos! É só o que posso dizer; os pormenores sabereis por Ele Mesmo!”
Diz Jellinek: “Não necessito de provas, pois confesso que se ele agora me chamasse, incontinenti vos abandonaria! Amo-o acima de todas as criaturas, como o homem mais perfeito! Quanto mais o amarei — e já o faço — se realmente for o Criador! Não me preocupa a maneira de seu ser divino. Li, certa feita, o seguinte: Deus é o Amor! Se algum dia teu coração for tocado por grande afeto, considera estar Deus neste sentimento! — Eis meu barômetro para a existência Di- vina no homem e no povo! Por tal razão, também estimo este irmão celeste, porque deve alimentar muito amor a Deus! Tenho razão?”
Responde Roberto: “Como não? Somente o coração e ja- mais o intelecto compreende Deus! Falemos, pois, de outra coisa. Como estamos tratando de amor, vamos analisá-lo.
Se bem que o amor seja a única prova palpável da Existência de Deus, sabemos existir também o sexo feminino, que muitas vezes nos enche o coração a ponto de nos incapacitar para o amor mais elevado e puro a Deus! Achais possível Deus habitar também na expressão do amor sensual?”
Diz Jellinek: “Claro, se a meiguice divina não estivesse na mulher, quem poderia amá-la? Não resta dúvida tal amor também exceder-se.”
Acrescenta Roberto: “Se, como experiência, agora surgis- sem várias beldades em extasiantes trajes de bailarina, com a maior amabilidade para convosco, e ao mesmo tempo o simples, severo — conquanto bondoso — Jesus, qual seria a manifestação de teu senti- mento, Jellinek? Lembro-me terem sido perigosas as tais bailarinas!”
Responde Jellinek: “Irmão, mencionaste minha maior fra- queza! No entanto, posso afirmar-te, com segurança, que mesmo as- sim não trocaria dez mil dançarinas por um fio de cabelo do Cristo! O amor a Deus por certo será mais forte do que a atração de uma moça de palco. A atração pelas mulheres só poderá enfraquecer o amor a Deus, caso não se acredite Nele ou imaginando-O dentro de uma hóstia! Mas, se Ele está na Pessoa de Jesus, e eu puder vê-Lo, reconhecê-Lo e falar-Lhe, deixa-me em paz com tuas dançarinas! Sem Cristo, naturalmente, um grupo de garotas produziria certa vibração no meu íntimo.”
Diz Roberto: “Queres ver algumas?” Diz o outro: “Se as tiveres à tua disposição, apresenta-as para vermos o perigo que nos acarretam! A experiência ensina!”
CAPÍTULO 58
Primeira prova para os três amigos de Roberto
Imediatamente Roberto se dirige à porta mais afastada do recinto, onde se encontram as vinte e quatro dançarinas ocultas por detrás de um reposteiro, que havia sido confeccionado após a troca de roupas e a seu especial pedido — por preço barato — através de Minha Vontade. Abrindo a cortina, Roberto diz às moças: “Pronto, chegou a hora de demonstrardes vossa arte aos três hóspedes! Caute- la em tudo que fizerdes!”
Antes de executarem suas piruetas, a primeira dançarina diz a Roberto: “Pedimos-te não nos acusar se nos tornarmos perigosas pelo nosso físico voluptuoso! Se prevês tal possibilidade, preferiría- mos não dançar, pois seria lastimável se agíssemos para o mal, quan- do pretendemos o contrário!”
Diz Roberto: “Caras irmãs, muito me alegra o vosso re- ceio, pelo qual deduzo serdes todas de boa índole! Não vos preocu- peis, pois aquele amigo cuidará de tudo a fim de não surgir dano para vós ou para eles. Executai vossa dança, que apenas visa um benefício!”
Ouvindo tal promessa, as dançarinas se dirigem rapida- mente para a frente da sala e começam a desenvolver seus gestos graciosos e decentes. Roberto, que se havia juntado aos outros, diz a Jellinek: “Então, meu amigo, que tal esta troupe? Acaso viste coisa tão perfeita em vida?”
Por certo tempo Jellinek observa as dançarinas atentamente e diz, após profundo suspiro: “Ah, meu irmão, não sei explicar; pois minha reação em ocasiões como esta é sempre a mesma! Confesso que, em verdade, nunca senti verdadeiro prazer; pelo contrário, sen- tia-me entristecido ao deixar o teatro! Muito meditei a respeito, sem poder compreender meu estado de alma. Agora começo a receber uma noção verdadeira, alegrando-me mais do que este número tão bem apresentado! A razão consiste em reconhecer a total inutilidade desse desconjuntamento artístico de pernas e braços! Qual seria a utilidade desta arte? As outras, como a música, a poesia, pintura e es- cultura, bem podem — quando aplicadas com nobreza — se trans- formar num benefício para a alma, porquanto enobrecem e apazi- guam o coração e, não raro, transformam uma pessoa rude numa agradável e meiga, despertando o verdadeiro amor. Deixemos que a dança interprete atitudes puras e nobres que, todavia, despertarão os sentimentos mais impuros dentro da alma, deixando a natureza do homem muito mais sensual e desejosa. O rico não hesita em gastar boa importância a fim de conseguir aquilo que almejou durante a representação; o menos abastado, cujo bolso não permite juntar o gozo ao estímulo, volta aos penates e banca o filósofo. Caso isto não lhe ocorra, procura a primeira meretriz e pratica, por alguns centa- vos, aquilo que preferiria fazer por milhões com a primeira bailarina!
Julgo merecer consideração meu ponto de vista, muito em- bora não seja a razão de minha tristeza em tais ocasiões. A verdadeira
causa era o pensamento humano pelo qual vislumbrava tal dançari- na voluptuosa como anjo caído!
Quantas vezes pensei o seguinte: ‘Oh, criatura! O que não serias para o meu coração se o teu compreendesse o que te desejo! És um anjo caído e jamais reconheces o valor de um coração que tanta vontade tem de elevar-te do lodo da perdição a um verdadei- ro anjo! O dinheiro do mundo é teu deus. Qual cega, pisas o teu próprio coração com os pés que deveriam habitar um templo solar, caso reconhecesse o valor de tua alma, enquanto estimulas, através deles, a volúpia e castigas o pobre inconsciente de sua natureza com muitas noites em claro — e coisa ainda pior! Que te importam os tolos que te admiraram e aplaudiram? Teu coração é de mármore! Não os conheces, nem queres conhecê-los! Que te importam os co- rações atingidos pelas setas venosas que teus pés de fada lançaram com desprezo?’
Vê, amigo Blum, tais pensamentos sempre me acompanha- vam, deixando-me cheio de melancolia! Se é esta a verdade, achas poderem estas dançarinas — que felizmente terminaram sua pro- dução artística e parecem escutar a nossa conversa — se tornarem perigosas para mim? Ou aos amigos Messenhauser e Becher? Não o creio! Não vejo perigo para mim, tampouco para este amigo carís- simo, que ouviu meu relato com visível emoção! Por isto afirmo-te, Blum, que estas moças encantadoras não alteraram meu afeto para com Jesus! Pelo contrário! Elevou-se este amor abençoado, pois sinto verdadeira compaixão para com esses pobres anjos caídos e daria metade de minha vida, caso fosse possível erguê-las de sua ínfima posição moral! Deixemos, porém, este assunto. Em vida, muitos de meus desejos se desvaneceram; por que não deveria isto suceder aqui? Externai-vos, Messenhauser e Becher!”
Dizem ambos: “Bem, a representação não foi tão ruim assim! Todavia, se torna isto um tanto ridículo! Na Terra as excentricidades da tolice humana são suportáveis; mas, aqui, no Reino dos espíritos, vais nos desculpar, Blum — essas aberrações do zelo humano to- mam aspecto ridículo! Calcula se, ao voltarmos à Terra, contássemos
aos amigos termos assistido a um ballet celeste! Gostaria de ouvir as gargalhadas! Como chegaste à ideia maluca de manter aqui um verdadeiro harém com algumas dúzias de bailarinas? Foram por ti contratadas? Ou será isto o céu dos neocatólicos? Vai-te embora com teus anjinhos e vê se arranjas outra garrafa do último vinho! Uma gota dele vale mais do que todas essas garotas!” Sorrindo, Rober- to obedece.
CAPÍTULO 59
O Senhor fala do “fim que justifica o meio”
Jellinek vira-se então para Mim e indaga se o ballet Me agra- dou. Eu lhe digo: “Caro irmão, devo esclarecer-te que em tais ocasi- ões dirijo Minha atenção unicamente à finalidade. Pode o meio ter aspecto estranho que não importa, contanto que se consiga, em toda a linha, um fim bom e nobre. Aqui, no Reino dos espíritos, a boa finalidade abençoa todos os meios! Essa apresentação artística não tem a menor importância; mas, para se conseguir um benefício útil e bom, tem ela grande valor.
Vou elucidar-te materialmente este provérbio de timbre je- suítico, para compreenderes seu sentido espiritual. Consta: O obje- tivo justifica todos os meios. Veremos, através de vários exemplos, se está certo.
Admitamos que um trabalhador tivesse a infelicidade de que- brar a perna, tornando-se necessária uma operação imediata para não prejudicar seu estado geral. Para o bem dele, todos concorda- riam com isto. Qual seria, no entanto, a atitude do extremoso filho, caso viesse uma pessoa má, tomada de ira, e decepasse o pé com um machado? Ele certamente se atracaria com o malfeitor para vingar-se da maldade praticada contra seu pai! Vê, o meio, por si só, sem rela- ção com determinado fim, seria uma crueldade. Visando, no entan- to, uma utilidade, torna-se um benefício. No caso da operação feita pelo médico, o filho certamente será grato ao operador que salvou a vida do pai, sem o que ele teria morrido de gangrena.
Vejamos outro exemplo: Que farias com a pessoa que te arrebentasse um dente com um soco? Chamá-la-ias perante a jus- tiça, exigindo considerável indenização. Se, no entanto, tiveres um dente infeccionado que te causa fortes dores, procurarás um dentista e pagarás para que ele o extraia com cuidado. Quem poderia louvar um dentista que procurasse arrancar dentes por mero prazer? Se, porém, fizer isso para aliviar as pessoas do sofrimento, a extração — mesmo dolorosa — obteve um fim útil!
Assim, veremos outros casos: O assassínio é o pior dos pe- cados da humanidade. Suponhamos que pai e filho caminhem por uma floresta. Um salteador, calculando que o velho tenha muito dinheiro, atira-se sobre ele, tentando matá-lo. Prevendo o grande perigo, o filho toma da espingarda e mata o salteador! Teria sido sua atitude pecado? Não, pois tua própria razão te diz que tal ato somente seria pecado se visasse uma ação maldosa; mas, sendo em legítima defesa, justifica-se!
Todas as ações humanas ou espirituais se enquadram nos exemplos acima. Uma vez que a ação se apresenta como único meio para se alcançar uma finalidade justa — após sábia reflexão — justi- fica-se pelo fim alcançado!
Assim, caro amigo, terás de fechar um olho quanto às baila- rinas que dançaram para atingir um fim útil e, em breve, te conven- cerás do resultado. Devemos nos aborrecer com elas — ou conviria oferecer-lhes um copinho da segunda remessa?”
Diz Jellinek: “Ah, naturalmente! Isto é claro! Achegai-vos, queridas! Sereis recompensadas!”
CAPÍTULO 60
Humildemente as dançarinas pedem esclarecimentos acerca de Deus. Perigo das pesquisas externas
As bailarinas se curvam, respeitosas, e as três primeiras di- zem: “Caros amigos, sois muito bons e condescendentes para conos- co; pois nossa arte fútil e condenável é a pior de todas, a ponto de
não merecer respeito da parte de espíritos como vós. Se ainda nos achássemos na Terra e encontrássemos pessoas tão bondosas, teriam grande ascendência sobre nós; pois a uma verdadeira amizade e a um amor desinteressado se farão os maiores sacrifícios! Somos, porém, pobres, tanto psíquica quanto espiritualmente, e nada possuímos além daquilo que vossa bondade nos proporcionou. Por isto, só nos cabe respeitar-vos e amar-vos de todo coração. Se esta dedicação for um desagrado por não a merecermos, deixai-nos seguir e chorar os nossos pecados terrenos, que nos tornaram indignas de vosso afeto!”
Diz Jellinek: “Minhas queridas, peço-vos não serdes tão ne- gativas! Onde estaria Deus que classificasse o amor como crime? Digo mesmo que se um demônio me amasse em verdade, eu tam- bém o amaria. Como poderíamos vos desprezar porque nos consi- derais? Não nos temais, pois falamos o que sentimos, sem qualquer subterfúgio! Espero, pois, saber quais vossas intenções; almejamos somente vosso puro amor e amizade!”
Deste modo animadas, as bailarinas novamente se curvam e dizem com feições radiantes: “Somos vossas servas! No mundo pou- cas ocasiões tivemos — também não as procuramos — de conhecer o Ser Supremo e aqui chegamos inteiramente cegas neste assunto tão importante do saber e da fé.
Muito embora fôssemos bailarinas, cumprimos tudo que a Igreja Católica prescreve. De que nos adiantou isto para a vida atual? O jejum, a confissão e a comunhão não nos levaram ao verdadei- ro conhecimento de Deus. Morremos no decorrer de dez a quinze anos e aqui nos reencontramos, por acaso. De modo algum foi-nos possível adquirir noção do Ser Supremo, não obstante sabermos ter sido Ele o Doador bondoso, sábio e onipotente de nossa existência. Ficaríamos imensamente gratas caso nos achásseis dignas de uma compreensão maior.
A noção que recebemos de Deus, na Terra, nos incapacitou para uma compreensão verdadeira; pois consiste Ele de três pessoas, cada qual um Deus perfeito, donde se conclui que são três deuses. No entanto, esses três deuses representam somente Um Único, cada
qual com sua incumbência: Deus-Filho depende de Deus-Pai e só pode fazer e ensinar o que Este permite. No entanto soa: Pai e Filho são unos! A ação do Espírito Santo é ainda mais complicada: sur- gindo de ambos, apresenta-se qual pomba! Além do mais, existem as incontáveis hóstias, cada uma Deus perfeito! Amigos, poderia al- guém deste modo alcançar uma noção acerca do Ser Divino? Escla- recei-nos, pois isto nos será mais útil que o vinho!”
Diz Roberto, oferecendo uma taça cheia: “Caras irmãs, tomai este vinho, em Nome de Deus — o Senhor e Criador do Infinito
pois não é igual à bebida terrena, na qual habitam os espíritos da impudicícia, conforme diz Paulo, apóstolo dos pagãos. Nestereside o espírito do eterno e puro Amor de Deus, semelhante à chama de luz pela qual, em breve, encontrareis dentro de vós o que ora pedis.
Vosso desejo é nobre e nem um anjo de Deus nele encon- traria mácula; no entanto, não deveis procurar seu cumprimento exteriormente, e sim dentro de vós, que recebereis benefício eterno! Se receberdes o ensinamento por nós, tereis uma posse estranha, trazendo-vos vantagem externa e temporária, mas no íntimo um prejuízo irreparável!
Vede, um simples ensino externo só se pode transmitir aos elementos psíquicos, cujo sentido é material e onde produz uma revolução, obrigando-os, vez por outra, a aceitá-lo. O espírito in- trínseco percebe-o e se dirige aos elementos, ou seja, à alma, alegran- do-se com a semeadura abundante, e isto na expectativa da colheita maravilhosa que surgirá. Precisamente nessa ocasião dá-se o desas- tre, quase inevitável; pois enquanto a centelha divina se regozija com a semeadura e se afasta de seu recôndito, encaminhando-se aos ele- mentos da natureza, os maus e impuros ainda existentes na alma se juntam e invadem o recôndito espiritual, dificultando e até mesmo impossibilitando sua volta! Quando o espírito perde a verdadeira morada de sua vida, procura erigir outra entre seus melhores ele- mentos psíquicos, onde habita qual inquilino. Não podendo final- mente pagar o aluguel, porquanto despojado de quase todos os seus bens, o proprietário o penhora, tirando-lhe tudo que lhe restava e fá-
-lo prisioneiro ou escravo de seu domínio — e o verdadeiro espírito é obrigado a se unir aos elementos mais ínfimos e puxar a canga pela corrente do vício. Neste caso, ocorre a morte espiritual da criatura, pois Satanás terá erigido seu trono e transformado o próprio senhor da vida do homem em escravo de sua volúpia infernal!
Por tal motivo, não vos deixeis tentar por um ensinamento externo, que de nada vale quando o espírito não o aceitar na maior humildade, organizando imediatamente sua vida nesta ordem, ta- refa difícil para todos. Salomão, o mais sábio rei de Israel, falhou, não obstante sua sabedoria, porque seu espírito, sentindo-se bastan- te forte, arriscou-se um dia a abandonar sua morada interior para organizar seus elementos psíquicos. Fazendo-o antes de seu renasci- mento, que sempre deve ocorrer de dentro para fora e não vice-ver- sa, foi ele preso pelos instintos de sua alma, que não mais o deixaram voltar ao seu recôndito, tornando-se em breve um antro do vício, prevaricação, impudicícia e idolatria! Do mesmo modo, Judas traiu seu Senhor e Mestre, porque aceitou a Doutrina da Salvação apenas pelos elementos exteriores, localizados na mente, que surgiram por toda sorte de desejos. Assim, conseguiu afastar o espírito de vida de seu pouso, para abri-lo a Satanás. O efeito desta ação não necessita ser mencionado!
Tomai, pois, o vinho que despertará o verdadeiro amor de Deus, fortificando e desenvolvendo vosso espírito. Quando ele, por esta evolução, penetrar em todos os seus elementos psíquicos, sem deixar sua morada primitiva, encontrará dentro dele mesmo tudo aquilo que pretendia receber exteriormente. Compreendestes-me?”
Luta do homem contra os elementos impuros. Perfeição gradativa
Dizem as bailarinas: “Sábio amigo, entendido nas qualida- des do vinho, compreendemos-te perfeitamente, porquanto exem- plificaste aquilo que muitas vezes apenas pressentíamos. Como agradecer-te?
Privamos na Terra com pessoas de educação aprimorada que, mormente na Religião, tinham fama de santidade, sendo hon- radas por todos; em suma, criaturas que manifestavam traços inde- léveis de elevada inspiração pela palavra e atitude. Precisamente estas nos procuravam para convidar a orgias chocantes, e não podíamos satisfazê-las em virtude de suas moléstias contagiosas! Naquela épo- ca tais fatos nos eram enigmáticos e nos tornaram descrentes das virtudes cristãs. Agora compreendemos a razão disto e te agradece- mos de coração! Dá-nos, pois, a taça da humildade, que sorveremos o vinho da vida até a última gota!” Com grande satisfação Roberto lhes dá o vinho, que as enche de alegria.
Os três amigos muito se admiram do conhecimento de Ro- berto, e Jellinek lhe diz: “Francamente, nunca duvidei de tua in- teligência, mas não te supunha portador de noções tão profundas e estou inclinado a afirmar que tuas explicações às moças não são de tua autoria. Mas, não importa; pois até mesmo eu recebi um esclarecimento peculiar, que me leva a interpretar os fatos de modo diverso. Tenho a impressão de que todos os atuais acontecimentos políticos e outros males na Terra se fundamentam nessa causa.
Começo a conceber o motivo pelo qual as bailarinas dança- ram à nossa frente! Acaso não teriam elas procurado aliciar nossos elementos impuros da morada usurpada de nosso verdadeiro eu, ajudando-o a lá voltar?”
Diz Roberto: “Atingiste quase o ponto nevrálgico, Jellinek. Entretanto, tua introspecção foi mui supérflua supondo terem sido teus elementos impuros atraídos para fora da habitação de teu es-
pírito simplesmente pela dança, permitindo-lhe dela apossar-se de novo! Como podes imaginar tal coisa?
Afirmo-te dar-se precisamente o contrário convosco! Espe- cialmente vossosespíritos encontram-se em seu justo recôndito, do contrário não estaríeis nesta casa, mas numa onde jamais penetra- ram luz e calor de vida.
Vossa centelha divina foi apenas sitiada pelos espíritos da Natureza, impossibilitando-lhe movimento e visão — fato que se deu convosco no primeiro recinto. Somente pela ajuda extraordi- nária do Alto os sitiantes de vosso espírito foram atraídos para fora. Deste modo ele conseguiu mover-se e desenvolver maior luz, dila- tando seu âmbito restrito. Assim, descobristes a porta aberta e essa mesa com o vinho da vida.
Contudo, sobrou tão grande quantidade daqueles elemen- tos ao redor da habitação de vosso espírito, que ele não conseguia ver com clareza, mas numa suave neblina. Tratando-se de elementos teimosos e de origem sensual a envolverem o espírito, têm eles, de certo modo, a maior semelhança com o Espírito Verdadeiro do Puro Amor a Deus em nosso coração, de onde dificilmente são afastados, porquanto muito presos à vida, que temem perder por tantos pra- zeres lhes facultar.
Esses elementos teimosos só podem ser afastados da habita- ção do próprio espírito através de uma tentação externa, quando ele então consegue dilatar seu território e com isto alcançar mais luz e liberdade. Deu-se tal tentação pela produção artística das bailarinas, enquanto vosso eu se libertou algo mais e tornou-se mais lúcido. Eis por que este meu amigo te disse que conviria não deveres considerar o meio, mas o bom propósito, ao estranhares o ballet!
Não necessito esclarecer que essas moças ainda não são an- jos puros somente porque cooperaram numa boa finalidade para vosso benefício! Tudo faremos, porém, para se tornarem aquilo que nós também ainda não somos!
Galguei apenas um único degrau, no que consiste minha vantagem! A escada de nossa evolução é infinita e facilmente pode
acontecer nivelarem-se nossas atuais diferenciações, com exceção da- quele amigo e irmão, que tão longe está de nós espiritualmente, que jamais O alcançaremos! O porquê vos será demonstrado quando tiverdes travado conhecimento com Ele.
Temos outra tarefa importante a resolver, do contrário não será possível nos movimentarmos à vontade nesta casa!”
CAPÍTULO 62
Os vienenses devassos no jardim. Sua cura amarga, porém necessária
Prossegue Roberto: “Observai pela janela o jardim maravi- lhoso que circunda a casa, a longa distância. Dizei-me o que vedes!”
Os três amigos olham pela janela, recuando horrorizados, e Jellinek diz: “Pelo amor de Deus, que vem a ser isto? São criaturas, animais ou diabos? Parece tudo misturado! Nunca haveria de supor existirem tais coisas perto desta casa, pois essas obscenidades lembram os horrores da mitologia! Peço-te, Roberto, fechares as portas, do con- trário correremos perigo de sermos estraçalhados por aquelas fúrias!”
Diz Roberto: “Não vos preocupeis! Não são tão horrendos como parecem à primeira vista. A impressão assustadora provém da ira que sentem contra Messenhauser, porque julgam ter sido ele o traidor junto ao Marechal! Tão logo se convençam do contrário, sua impressão será outra. Trata-se de indivíduos vienenses que tomba- ram na luta pela liberdade com as armas do Império. Caso alguns não se deixem converter, o Senhor saberá separar os bons dos maus, para impedir que venham a prejudicar os outros!
Por esse motivo permitiremos sua entrada e procuraremos levá-los a um caminho melhor, com a ajuda do Senhor, uma vez que muita culpa cabe aos nossos discursos e ordens que determinaram sua atual miséria! Vamos, pois, em Nome do Senhor!”
Rodeado por Messenhauser e Becher, Roberto vai ao jardim onde ainda se encontram os vienenses com suas filhas ultrajadas. Eu e Jellinek os seguimos.
Quando Roberto lhes indaga de seu estado atual, gritam quase todos: “Estamos muito mal! Ajuda-nos ou finaliza esta vida abjeta! Imagina as experiências estranhas que aqui fizemos no Rei- no dos espíritos! Confessamos termos sido excessivamente sensuais; mas sempre fomos assim, porque não tivemos outra educação, no que cabe a culpa somente ao Regime. Assim nos divertimos como Adão e Eva, que deram origem ao fratricida Caim, cujo exemplo teve inúmeros seguidores. O que, porém, mais nos revolta é que fomos todos contaminados! E isto, como espíritos! Bonito Paraíso, este! Vê se nos podes ajudar, ou acaba com nossa existência — caso te seja possível! Aliás, quem são teus companheiros? Um deles co- nhecemos como anfitrião desta casa e um justo homem de Deus! Os outros desconhecemos!”
Diz Roberto: “Meus pobres amigos, acaso sois tão cegos a ponto de não reconhecerdes Messenhauser, Jellinek e Becher?”
Exclamam alguns: “O quê? Os tais patifes? Poderíamos es- perar tudo — isto nunca! Mormente o Messenhauser! Sorte a dele encontrar-nos tão esgotados, do contrário lhe mostraríamos nossa ‘gratidão’ pela chefia militar em Viena! Incapacitados que estamos para tanto, pode ele consolar-se, por enquanto, com a classificação que lhe damos de maior traidor e trapaceiro, desejando-lhe aquilo que ele mesmo jamais desejaria!”
Diz Roberto: “Dizei-me, estais contentes por terdes insul- tado estes meus amigos?” Dizem eles: “Não propriamente, mas o mereceram e bem sabes o porquê!”
Responde Roberto: “Deixemos isto de lado; o que passou, passou! Nenhum entre nós — com exceção de meu grande amigo que ora palestra com Jellinek — pode afirmar jamais ter pecado! Creio até mesmo que todos nós ultrapassamos a escala de todos os pecados mortais não só uma, mas várias vezes, com preponderância individual numa ou noutra fraqueza. Seria tolice de minha parte inocentar os por vós acusados. Têm vasta culpa no cartório; e nós? Não causaria grande dificuldade ao Eterno Mestre da Vida analisar quem dentre nós mais merece o inferno! Já que não temos, perante
Deus, o valor que por Windischgrätz foi tachado no campo da exe- cução, seria melhor não nos acusarmos e sim estendermos as mãos ao perdão, fundando neste reino de vida recente uma nova colônia de amigos e irmãos! Com isto obteremos melhores resultados do que com constante acusação recíproca, quando carregamos nos ombros a medida completa de culpas. Qual vosso parecer?”
Exclamam todos: “Tens toda razão e muito nos agrada tua proposta. Mas, e a saúde? Precisamos de nossa saúde! Pois sabes que um homem ou espírito doente não pode chegar a conclusões saluta- res, muito menos um vienense!” Diz Roberto: “Está bem, está bem! Vinde comigo a casa; lá encontraremos os meios de cura. Aqui, no Reino do Espírito, nada se consegue por meios externos, porque todos os males devem ser curados no íntimo! Vinde, pois, ao meu lar, provido de tudo!” Todos se levantam, inclusive as moças, e se arrastam para a sala, que pode acolher milhares de pessoas.
CAPÍTULO 63
Reação dos hóspedes diante das bailarinas. A heroína das barricadas. O orador circunspecto
Ao chegarmos à sala, um dos vienenses avista as bailarinas e diz: “É isto que nos falta em nosso atual estado de saúde!” Diz um outro: “Papagaio! Vê só, que pernas! São qual sobremesa num domingo de Páscoa! Se tivesse saúde, me dirigia à do centro da- quele grupo!”
Adverte o vizinho: “Chico, tem juízo! Acaso ignoras não es- tarmos na Terra?” Responde o primeiro: “Claro! O que não impede de serem muito bonitas! Seria preciso não se ter sentimentos para ficar-se indiferente!”
Diz um terceiro: “Mas, se o Chico ingressar no inferno com seu temperamento?!” Responde este: “Acaso estamos no céu? Já viste o inferno para saberes que não fazes parte dele?!” Retruca o outro: “Ora, neste caso devíamos ter sido condenados para podermos ver o fogo infernal! Creio, contudo, que se não desistirmos de nossa ten-
dência pelo sexo oposto, aqui no Além, será mais fácil ingressar-se no inferno do que em vida!”
Acrescenta o primeiro: “Tens razão; mas, se pretendo não pe- car, não posso mais pensar à vontade!” Diz o outro: “É isso mesmo! Não sabes que primeiro surgem os pensamentos, depois os desejos, a seguir as ações e, no final, o inferno? Penso o seguinte: como esta- mos no Além, devemos ser calmos e obedientes a tudo que o Blum disser; só assim poderemos melhorar!”
Diz o Chico: “Está bem; não és tão tolo como pareces!”
Responde ao lado uma heroína das barricadas: “Essa é boa! Esses dois diabinhos pretendem analisar as situações do inferno! Ah, Ah, Ah! Como se já não estivessem condenados!” Diz o Chico: “Ca- la-te, primeira meretriz de todos os estudantes de Viena! Espera, que te dou uma bofetada diante do Céu, que a própria Virgem Santís- sima dará um ai! Pretende ela ver-nos condenados ao inferno! Tem cuidado para não seres a primeira a voar para lá!”
Vem um outro e diz, em tom circunspecto: “Amigos, consi- derai onde estamos! Isto aqui não é o Prater ou a Brigittenau (praça de diversões) onde o populacho vienense se torna mais rude que em outra qualquer parte! Estamos no mundo espiritual e convém assu- mir uma atitude séria e equilibrada para se evitar a eterna condena- ção!” Diz a heroína: “Oh, oh! Para que esse excesso de zelo, seu tolo! É claro que Deus não pode aplicar misericórdia a um beberrão de sua marca!” Responde o orador circunspecto, arregalando os olhos: “O que? Que disse esta bruxa? Não haveria aqui um sujeito desclas- sificado, pronto a torcer o pescoço desta criatura imunda?” Diz ela: “Oh, que gentileza! Necessitando de um homem abjeto, não haverá melhor do que o senhor! Que conceito tem o senhor de sua pessoa? Estão lhe faltando, para a felicidade eterna, um chope duplo e uma tal de Mira, não é isto? Mas é preciso que o senhor se console, talvez ela venha para cá e, então, Deus será certamente mais benigno!”
Diz o circunspecto: “Amigos! Deixemos esta criatura nojen- ta, que contamina todo o ambiente!” Responde a heroína: “Seria uma vergonha caso o senhor não fosse mais limpo do que eu, por-
quanto se lavou, em vida, com alguns milhares de barris de cerveja! Se eu fosse Deus, saberia como fazer a felicidade do senhor: Trans- formaria o Danúbio em cerveja preta e clara, misturadas, e o faria sentar-se no local onde o rio desemboca no Mar Negro, com a Mira ao seu lado!”
CAPÍTULO 64
O orgulhoso e circunspecto orador é admoestado por Roberto. A heroína, bondosa, em vão procura convertê-lo
O circunspecto deixa o grupo, vai para junto de Roberto e lhe informa respeitosamente haver espíritos desclassificados ultra- jando sua casa, convindo afastá-los.
Responde Roberto: “Prezado amigo, isto não é possível! Quando encarnados, almejávamos a igualdade entre as criaturas e, em tudo, o direito pleno! O que lá não conseguimos nos é facultado aqui, de modo completo, o que representa uma verdadeira dádiva por parte do Ser Supremo! Caso o senhor pretenda ser realmente feliz nesta Constituição Liberal, não deve superestimar seu próprio valor, considerando que todas as criaturas de ambos os sexos que aqui se encontram têm o mesmo Deus por Criador e Pai. Só as- sim conseguirá o senhor amá-los em verdade, recebendo em troca o mesmo afeto, única felicidade de todos. Deste modo o senhor, no futuro, não necessitará recorrer a juízes a fim de queixar-se dos ofensores; seu próprio coração lhe facultará a melhor e mais valiosa justificativa nos corações de seus irmãos! Além disto, não precisa o senhor se preocupar com a possibilidade de ser minha casa contami- nada por essas pobres criaturas! Confesso que gosto daquela heroína mordaz! É vienense e tem bom coração! O senhor é um daqueles que se deixam tratar por ‘senhor’, sem considerar que somos todos irmãos! Responda-me, quem deve ser mais idôneo: o senhor ou ela?”
Curvando-se diante de Roberto, diz o circunspecto: “Sendo, aqui, esta a linguagem moral entre homens honrados, peço licença para retirar-me, pois o ambiente exala mau cheiro, rudeza e plebe!”
Diz Roberto: “Amigo, esta casa não tem prisão, nem algemas, a não ser as do amor! Não querendo submeter-se, ninguém o prende aqui dentro! Acrescento apenas tornar-se difícil, caso o queira, sua volta a este lar de amor! Pode até mesmo acontecer que ele desapare- ça tão logo o senhor faça o primeiro passo ao ar livre! Estando, pois, orientado, saberá o que fazer!”
O circunspecto hesita, sem se definir. Eis que a heroína se aproxima e diz: “Ora, deixa de ser tolo e fica! Vê, já voltei às boas! Aborreci-me porque o senhor pretendeu contestar todo Amor e Mi- sericórdia de Deus e externei apenas minha opinião! Se tivesse sido possível, o senhor me teria estraçalhado de ódio! Mas, deixemos es- ses aborrecimentos! Façamos as pazes! Somos todos cheios de defei- tos e convém termos um pouco de paciência com os outros! Venha cá, pois o velho Chico, seu engraxate, já nos espera! Estaria o senhor aborrecido comigo?”
Diz o circunspecto: “De modo algum! Isto não me honraria, pois, a bem dizer, nada és perto de mim! Não posso voltar ao vosso meio, onde existe a maior baixeza; ficarei no círculo das honorabi- lidades! Recua!” Responde a heroína: “Tenha cuidado para que eles não venham a ter náuseas perto do senhor! Que ideia é esta? Sou uma vienense alegre, mas não maldosa. Caso seja muito desprezível para o senhor, basta escolher outra! Lá estão algumas! Experimente a sorte, e elas lhe dirão do seu valor!” A heroína volta ao seu grupo, enquanto o circunspecto faz como se ela não existisse.
CAPÍTULO 65
Os vienenses e o húngaro desabrido. A heroína se dirige a Jellinek, que lhe indica Jesus
Ao voltar para junto de seu grupo, Chico vira-se para ela e diz: “Então, Mira! Expuseste, em dialeto, tua opinião àquele presun- çoso?” Diz ela: “Claro! Ele pensa ser um cavalheiro! Pena não teres ouvido o Blum, pois o outro lhe foi fazer queixa de mim! Não desejo mal a ninguém, nem a ele; mas seu orgulho tinha de ser reduzido!”
Responde o Chico: “Agora estás me agradando; se, porém, voltares a me atacar, não faço questão de teu convívio!”
Diz ela: “Ora, não somos húngaros para brigarmos duran- te sete anos! Conheci um que me teria estraçalhado depois de três anos, caso tivesse tido oportunidade!” Responde o Chico: “Mira, não fales tão alto! Nunca se sabe se alguém nos escuta e os boêmios têm as orelhas e os dedos mais compridos, razão por que fazem parte da polícia!”
A essas palavras se levanta um homem rude, forte e corado; respira profundamente e diz ao Chico: “Meu camarada! Quem tem orelhas e dedos compridos? Sou um espírito, mas poderei in- formar-te a respeito!” Diz a heroína: “Cruzes! Vamos dar o fora, Chico, pois mal se fala no diabo e ele aparece! Este dá a impressão de ser amigo dos russos!” Diz o boêmio: “Cala tua boca imunda! És uma rameira, mas minha gente é boa!” Defende-se ela: “Caros vienenses, se não nos encontrássemos numa casa tão respeitável, tudo faria para enxotar este sujeito! Vamos embora, do contrário haverá barulho!”
Rápido, ela se dirige, em companhia de alguns vienenses, para junto de Mim e Jellinek, e lhe diz: “Ora, seu doutor, quase não o reconheci! Como está passando e o que faz por aqui?”
Responde Jellinek: “Vou bem e muito melhor que na Terra! Meu desejo mais ardente seria ver-vos tão contentes quanto eu; assim deixaríeis de discutir! Não podeis continuar deste modo! Aprendei conosco como se deve ter paciência com as fraquezas do próximo, a fim de vos entenderdes melhor! Ao passo que se continuardes a vos criticar, insultar e ameaçar uns aos outros, o amor cristão não reinará entre vós como única felicidade de criaturas e espíritos.
Tornai-vos, portanto, razoáveis e meigos, e deixai de discutir; do contrário, tereis ainda muito que sofrer. E, caso sejais socorridos, a ajuda corresponderá à amizade e amor recíprocos! Lembrai-vos sermos todos iguais perante Deus e que ninguém tem privilégios, a não ser na sua máxima humildade e amor para com Deus e seus irmãos! Compreendeste?”
Diz ela: “Como não? Mas nossa língua é um desastre, pois não se cala por pouco! Não seria possível curar-se isto, aqui no Reino dos espíritos? Nossa índole não é má, mas a língua é de trapo!”
Responde Jellinek: “Veremos o que se pode fazer. Em todo caso, convém esforçar-vos no domínio da língua, que tudo melho- rará. Pede ao Senhor, junto de mim, pois ele pode muito e propor- cionará verdadeira ajuda!”
Diz ela: “Será que compreende o dialeto vienense? Tinha co- ragem de falar-lhe, porque é tão simpático!”
Diz Jellinek: “Ele entende e fala todos os idiomas, mormen- te a linguagem do coração e, até mesmo, o que a pessoa pensa no seu íntimo! Experimenta e verás que tenho razão!”
Responde a heroína: “Será?! Neste caso deve ser meio pa- rente de Nosso Senhor! Deve ser engraçada a palestra com alguém que, de antemão, sabe o que se quer dizer! Fá-lo-ei, contudo, e basta saber como se chama!”
Acrescenta Jellinek: “Cara amiga, bates na porta errada; presumo ser ele um poderoso arcanjo de Deus, destinado a nos dou- trinar e encaminhar. Eis tudo que sei. Uma coisa é certa: É o único que pode socorrer, porquanto possui força para tanto!”
Diz ela: “Ah, já sei! Quem sabe se não é um apóstolo, talvez Pedro ou Paulo! Que me dizes?”
Responde Jellinek: “Querida, é bem possível! Dirige-te a ele e saberás quem é. Para mim, é algo mais que Pedro ou Paulo!”
CAPÍTULO 66
A heroína pede socorro para todos, junto ao Senhor, que lhe aconselha confissão plena
A essa orientação de Jellinek, a heroína Me fita por certo tempo, em seguida vem ao Meu lado, porquanto Me havia afas- tado durante sua palestra com o amigo de Roberto, e diz: “Perdo- ai, senhor, se me torno importuna com um pedido! O Dr. Jellinek me mandou falar-vos, porque sois poderoso e capaz de ajudar, seja
no que for. Eu e esses vienenses somos muito necessitados. Fomos criados como animais e chegamos aqui bem enfermos; nossa tolice equivale ao estado moral! Sede, pois, bem gentil e ajudai-nos para agirmos melhor!”
Digo Eu: “Poderia ajudar-vos, mormente a ti! É, porém, necessário confessares abertamente o que te falta. Se fores doente, convém esclareceres onde, como e por que contraíste tal moléstia. Acreditando em tua tolice, deves dizer-Me por que te achas ignoran- te. Faze um exame de consciência sobre todos os teus atos, externan- do-te a respeito, que o resto ficará por minha conta!”
Responde ela: “Mas, que maçada! O senhor seria pior que um liguriano caso exigisse que tudo lhe contasse! Certa feita me confessei com padre dessa seita; não queira saber das perguntas que me fez! O pior pecador teria de enrubescer até os cabelos! Se fosse lhe contar o que fiz em vida, causar-lhe-ia arrepios! Além disto, na frente de tantas pessoas, não saberia que fazer de tanta vergonha! Que lhe parece, não lhe é possível verificar simplesmente o que pre- ciso, sem submeter-me a tal vexame? Faça o favor de experimentar!”
Digo Eu: “Minha querida, como não te envergonhaste no momento de teres pecado? Costumavas te encontrar em sociedade e não tinhas o menor pejo quando, numa orgia, te despias e fazias ges- tos obscenos diante de homens que te olhavam embevecidos, para depois fazeres não sei o quê! Sei que numa ocasião te portaste de modo tão indecente, após teres bebido em demasia, que teus com- panheiros lascivos ficaram enojados! Conheço ainda outras pecinhas tuas e não compreendo a vergonha que aparentas, pois presumo não afetar tua dignidade se Me confessares a maneira pela qual chegaste a este estado de miséria e impudicícia!”
Responde a heroína, perplexa: “Por esta não esperava! O se- nhor seria capaz de envergonhar alguém de maneira a não se poder reabilitar até o fim da vida! Se não fosse tão simpático, poderia abor- recer-me! Falando com sinceridade, só me envergonho do senhor! Com essa gente de Viena não me incomodo, e se me for permitido falar mais livremente, poderia citar algumas peripécias!”
Digo Eu: “Pois não! Mas nada deves ocultar, compreendeste?”
Responde ela, pigarreando: “Pois, em Nome de Deus, ou- ça-me, já que é preciso! Aos quatorze anos perdi minha virgindade, precisamente na segunda-feira de Pentecostes, e se não me engano, foi um tal Antônio, que trabalhava no Prater. Era um rapaz boni- tão, e como me havia persuadido de modo incisivo, disse para mim mesma: ‘Não podes continuar eternamente virgem e algum dia terás que fazer essa experiência!’ Como não fosse desagradável, repetimos a dose! No entanto, não teria me prejudicado se tivesse ficado grá- vida, pois o Antônio me havia prometido casamento. Julgando ser eu estéril, o malandro me abandonou e casou-se com outra! Deses- perada, segui o caminho iniciado e pensei: ‘De qualquer maneira irás para o inferno!’ E vivi a meu gosto! Nunca vi meu pai, e minha mãe — que Deus a tenha em boa paz — não foi melhor do que eu! Assim, fui muitas vezes contaminada, e outros por mim. Apareceu então um médico homeopata que me curou; em troca, tive que tra- balhar para ele, e é fácil compreender-se não ter o mesmo rezado ladainhas comigo!
Quando irrompeu a revolução em Viena, o meu doutor to- mou parte; e eu, corajosa como sou, também ajudei e fui atingida por uma bala. Agora aqui me encontro como pobre alma, porque na Terra fui demasiado alegre! Contei-lhe tudo que fiz! Sabendo, pois, do que necessito, peço-lhe, em Nome de Jesus, que me ajude!”
Digo Eu: “Bem, estou satisfeito com tua sinceridade e verei como ajudar-te. Além disto, digo-te, com a mesma honestidade, que somente teu bom coração e a educação péssima que tiveste poderão
no que não te cabe culpa — salvar-te do inferno! Se tua índole fosse pior ou tua educação tivesse sido mais cuidadosa, estarias no inferno, padecendo sofrimentos atrozes! Pois consta: ‘Impudicos e adúlteros não entrarão no Reino do Céu!’ Em virtude dos motivos mencionados, não serei tão rigoroso! Dize, porém, que pensas de Jesus, o Salvador?”
Responde a heroína: “Oh, quero-o muito! Pois salvou a adúltera e não condenou Madalena, muito embora fosse tão grande
pecadora! Tampouco apavorou-se com a samaritana! Por isto, creio que, se eu lhe pedisse, certamente não me torceria o pescoço!”
Digo Eu: “Muito bem, querida! Falarei secretamente com Ele, pois está perto daqui. Talvez faça contigo o que fez a Madalena! Espera um pouco, com calma!”
CAPÍTULO 67
Importante observação do Senhor acerca da finalidade desta comunicação, aparentemente chocante
Atenção! O motivo de ser transmitida essa cena tal qual ocor- re no Além — e não podendo ser de modo diverso em virtude de costumes, linguagem, paixões e os variados graus de educação de um povo — se baseia na prova evidente a ser facultada ao leitor e confes- sor da Nova Revelação de que o homem, após a morte, é o mesmo que foi em vida com referência a seu modo de falar e opinar, em seus hábitos, usos e inclinações, paixões e atitudes; isto é, enquanto não tiver alcançado o pleno renascimento do espírito.
Por isso, denomina-se “espiritualidade natural” o primeiro estado após o desenlace, enquanto que o espírito renascido se encon- tra na “pura espiritualidade”.
A diferença entre a vida terrena e a do Além consiste, em almas materialistas — mormente quando de índole simples — ape- nas na apresentação do local como indício de sua natureza íntima. Entende-se, porém, que tal aparição favorável ao renascimento es- piritual, negligenciado, somente é proporcionada àquelas pobres al- mas que em vida passaram verdadeira miséria material e espiritual. Almas dos aquinhoados com bens terrenos, cujo coração a isso se agarra qual pólipo no fundo do mar, encontram tudo que deixa- ram na Terra, podendo permanecer durante séculos em tal estado de atraso, e dele não serão afastados antes que venham a sentir desejo por algo mais elevado e perfeito.
Sabeis, portanto, por que essa cena importante é revelada pa- lavra por palavra! Vamos prosseguir, pois nossa heroína já se inquieta
e aguarda, esperançosa, a orientação que lhe prometi de Jesus Cristo! Deveis, no entanto, considerar que tal cena muito útil ocorre pre- cisamente agora, no mundo espiritual, exercendo grande influência sobre acontecimentos da época atual! (Em novembro de 1848). De todas essas palestras de timbre trivial podeis, com alguma perspicá- cia, deduzir a situação e as ocorrências na Terra, destacando-se clara- mente na sequência dessa cena. Não vos escandalizeis! Tudo tem de vir conforme acontece!
CAPÍTULO 68
A heroína ansiosa e o orgulhoso circunspecto.
Admoestação do Senhor. Milagre ocorrido com Helena
A heroína, impaciente, aproxima-se, acanhada, de Mim e in- daga se Eu já falara secretamente com Jesus a seu respeito.
O circunspecto, tendo encontrado no grupo vários de sua índole, se aborrece com o fato dessa vienense miserável se tornar tão atrevida, molestando a Mim, o anfitrião! Por isso, dela se acerca com mais outros e diz: “Ó criatura repugnante, por quanto tempo pre- tendes importunar este respeitável senhor com teus latidos?! Acaso não tens educação!”
Responde a heroína: “Ora, seu idiota! Isto é de sua conta? Vai andando, senão lhe digo seu nome em alemão genuíno! Ora veja! Não lhe agrada que gente como eu venha a falar com esse senhor! Acaso pensa ser melhor que nós, só porque usou o sabre, socialista e anarquista aposentado?! Sorte nossa não estar Cristo, o Senhor, em nosso meio; pois ficaria escandalizado com sua atitude presunçosa! Saia daqui com seus olhos de crocodilo e pés de bode, senão lhe acontece algo!”
Vira-se o circunspecto para Mim e diz: “Caríssimo amigo, peço-lhe, pelo amor de Deus, proibir a essa criatura usar tão bai- xo calão contra homens de reputação e honra! Ela expõe os outros como se fossem sapateiros! É verdade não haver no mundo dos es- píritos diferença de classes; a diversidade de inteligência e educação,
porém, não pode terminar até que na Terra as potências humanas, desleixadas, tenham alcançado educação e humanização, pelas quais se podem tornar agradáveis e interessantes a uma sociedade boa! Peço-lhe, pois, informar tudo isso a essa vienense desbocada!”
Retruco: “Meu caro amigo, lastimo não Me ser possível aten- dê-lo pelo simples motivo de ser um horror, diante de Deus, tudo aquilo que a boa sociedade julga e preza como elevado, ilustre e belo! Deus é sempre o Mesmo e nunca sente prazer em tais ho- mens honrados, que determinam o valor do próximo pelo número de ancestrais, sua posição no Governo ou na fortuna que possui, classificando de canalha quem não faça jus a tais prerrogativas. O Pai só considera aquele que no mundo é simples, sem importância e desprezado, de sorte que confesso — como Amigo mais íntimo de Deus — ser justamente a vienense, por vós desclassificada, milhões de vezes mais agradável que vós, amigos nobres! Todavia, fostes mui- to úteis a essa pobre criatura, pois, a partir de agora, atraí-la-ei para junto de Mim. Dar-lhe-ei uma educação tão elevada que imporá respeito aos próprios anjos! O futuro mostrará onde vós, homens respeitáveis, vos encontrais! Solicito, a bem de vossa salvação, não mais importunardes essa coitada, pois é Minha!” Virando-Me para a heroína, digo: “Então, querida Madalena, estás satisfeita?”
Responde ela: “Jesus, credo! E como não? Prefiro-o dez mi- lhões de vezes a esses orgulhosos que consideram os pobres como animais! Aborreço-me quando nos tratam como párias. Que Nosso Senhor lhes perdoe, pois não sabem o que fazem!”
Intervém o circunspecto: “Ótimo! Ouvi, meus camaradas! Se no mundo dos espíritos as coisas são tão desenxabidas, torna-se ele uma surpresa desagradável como consequência da vida amarga que passamos! Lá, o homem educado ainda podia se defender contra ata- ques dessa ralé através de sua posição, função ministerial e abastan- ça; aqui, crescem mais alto do que os outros e, finalmente, deve-se considerar especial graça ter tal criatura nos fitado! Para completar essa insipidez social é preciso que esse homem, de aparência honra- da, se interesse por aquele estrepe, levando-a em linha reta ao Céu!
Alega ser amigo íntimo de Deus! A julgar pela atração manifesta- da pela vienense ordinária, deve ser tal Divindade um verdadeiro superlativo de imoralidade! Essa prostituta exala impudicícia e ele pretende educá-la para joia desta casa! Ah, Ah, Ah!”
Diz a heroína para Mim: “Ouça só, como pragueja! Conviria dizer-lhe as verdades!”
Respondo Eu: “Não te incomodes! O futuro demonstrará as vantagens de tais insultos! A fim de que seu orgulho encontre uma pedra de escândalo em nós, deves, como Minha Amada, tratar-Me por tu e procura te desvencilhar do dialeto! Faze uma tentativa, se és capaz!”
A heroína sente estranha sensação de bem-estar, que produz efeito mui favorável em seu físico. Admirada e feliz com tal meta- morfose, pois não sente mais dor, alegremente ela Me diz: “Ó ele- vado amigo celeste, que felicidade sinto ao teu lado! Minha rudeza se desprendeu de mim, qual escama! Meu modo de pensar e falar se transformou qual borboleta surgida de uma lagarta! As dores desa- pareceram qual neve ao Sol! Como me sinto feliz! E a quem devo isto? Unicamente a ti, amigo abençoado pelo Altíssimo!
Já que conferiste tamanha graça a uma pobre pecadora, que jamais poderá retribuir, dize-me como deverei agir a fim de manifes- tar minha eterna gratidão!”
Respondo: “Minha queridíssima Helena — eis teu nome celeste — estamos quites! Agradas-Me muito e tens um coração que Me ama, como Eu também te quero! Que mais precisamos? Esten- de-Me tua mão como prenda de teu afeto e dá-Me um beijo fervo- roso na Testa! O resto deixa por Minha conta!”
A esse convite, Helena se incendeia de amor, entrega-Me sua mão e beija-Me com um carinho indescritível! Essa cena comove Roberto, Messenhauser e Becher, mormente Jellinek, até às lágri- mas. Ela, entretanto, tem expressão transfigurada e todo seu físico se torna esbelto e nobre, qual criatura celeste, com exceção de sua vestimenta, que é todavia limpa e modesta. Prontamente Roberto indaga se deve apanhar nova roupa para essa flor deslumbrante e Eu respondo: “Daqui a pouco, quando Eu pedir!”
Discussões em torno da transfiguração de Helena. O sonho e a vida real. Comparação feita por Olavo
A transformação de Helena, porém, é também observada pelo circunspecto e seu grupo. Um dentre eles lhe diz: “Amigo, nada percebes? Aquela rameira de Viena transfigurou-se de tal forma a extasiar o observador! Seria o amigo do Blum uma espécie de mago do Egito?!”
Retruca o circunspecto: “Realmente, tens razão! No entanto, é fato conhecido que a pessoa apaixonada se transforma! Lembro-me ter visto na Terra criaturas que, em suas ocupações caseiras, eram mesmo assustadoras; mas, quando aos domingos iam passear com o namorado, tornavam-se irreconhecíveis. Eu mesmo tive, certa feita, uma cozinheira que em dias úteis era tão suja que causava nojo! Mal acabava o serviço, em dia de saída, transformava-se em beleza! Com essa criatura certamente se dá o mesmo; o amor produz, tanto aqui como na Terra, tal embelezamento surpreendente! Tira-lhe o amor, e ela voltará a ser o que era!”
Opõe o outro: “Até certo ponto tens razão; devemos, po- rém, considerar ter-se ela tornado bonita demais e, além disto, fala o idioma perfeito, sem sombra de dialeto! Deve haver uma influência mais alta e incompreensível para nós! Observa apenas a tez rosada, a linha delicada de braços e nuca, o cabelo louro dourado, face oval e o pezinho aparecendo por debaixo do vestido! Concordarás não ser beleza comum!”
O circunspecto queda perplexo, porquanto vê que o outro tem razão. Um terceiro se levanta e diz: “Caros amigos, estais todos errados! Tal transformação tem sua base natural, pois todos nós esta- mos no mundo dos espíritos. Nossa vida é um jogo de nossa fantasia produzindo certas cenas que, aos sentidos da alma, se apresentam como realidades objetivas. Compreendestes?”
Retruca o primeiro: “Amigo, se assim fosse, tua explicação também seria sonho sem fundamento! Acaso pretendes afirmar ser
teu aparte uma exceção? Quantas vezes sonhei em vida! Todavia, existe grande diferença entre sonho e realidade! Lá estava sempre passivo; aqui, estou ativo e consciente. Nunca tive recordação de um sonho, a não ser algo confuso e imperfeito. Aqui a lembrança é tão nítida que passam diante de meus olhos os fatos mais corriqueiros de minha vida! Seria isto sonho?!
Naquele estado jamais senti dor, fome ou sede; e as pessoas que me apareciam eram sempre de forma imprecisa e se revezavam de modo tão rápido a não deixarem vestígios da anterior aparição; portanto, não havia sequência lógica. Neste ambiente tudo ocorre numa trilha determinada, contudo milagrosa, levando o observador mais calmo a extasiar-se!
Que lógica profunda revela qualquer palavra proferida pelo Blum e seus amigos! E quão arquitetonicamente perfeita é esta sala! Tudo tem um cunho especial! Isto não é sonho nem fantasia, mas uma realidade sublime e abençoada! Faremos bem se conside- rarmos mais profundamente o que nos rodeia! Assim, tenho a im- pressão de ser a transformação da vienense muito mais importante do que parece! Que me dizeis?”
Diz o circunspecto: “Concordo plenamente! Não compreen- do como é possível a pessoa aqui enfatuar-se por algo e até me abor- reço de minha atitude desconcertante junto daquela moça trans- formada. Quando procurei proteção e justificativa com seu amigo e amado, dele recebi o que não esperava! Estava magoado e ofendi- do até a alma, coisa que um homem de honra não pode aceitar de modo indiferente! Considero um enigma a possibilidade de a pessoa se ofender e enraivecer no Reino dos espíritos! Podes esclarecer-me a respeito?”
Responde o outro, chamado Olavo: “Meu amigo, esse caso é muito simples e evidente! Que vem a ser uma ofensa ou insulto? Nada mais que uma tendência psíquica pela qual a alma se considera a única privilegiada e todo o resto sem valor algum! Quando essa ideia predileta é bruscamente contrariada, a alma, procurando equi- librar-se em sua posição, sente uma dor que a aflige e comprime,
porquanto observa que outros não a consideram da mesma forma que ela própria! Tal estado psíquico é ilógico e tem de tomar outra direção, caso deva surgir uma verdadeira felicidade para a alma!
No mundo há pessoas que se julgam melhores que outras, empregando os mais variados meios para fazer valer sua presunção. Aqui, porém, onde não existem fortuna, nobreza, exército e canhões, tal fraqueza psíquica não se justifica, pois é injusto uma criatura querer se elevar acima de outra e, além disto, essa ânsia é uma tolice!
Se a lógica e a experiência me dizem ser mais feliz aquele que faz as menores exigências ao próximo, é contrassenso procurar a felicidade da alma onde ela jamais se poderá encontrar! Dize-me o que é, a teu ver, melhor e mais útil: o zelo pela conquista de inú- meras necessidades que vicejam na alma, qual erva daninha, ou a redução delas ao mínimo?”
Responde o libidinoso: “Evidentemente, a segunda condi- ção de vida. Quanto menos se necessita para ser feliz, tanto mais fácil isto se torna.”
Diz Olavo: “Certo. Assim é e será para sempre. De que adianta a um pretendente propor casamento a uma jovem cujos pais se têm em conceito demasiado elevado? Dificilmente será aceito. Mesmo conseguindo, terá chegado ao fim de seu sonho de felici- dade. Ao passo que cortejando a filha de pessoas que se julguem inferiores a ele, com facilidade será feliz. Façamos o mesmo, e não haverá vienense desbocada que nos perturbe.”
CAPÍTULO 70
Vida conjugal do libidinoso. O prestimoso general
Diz o libidinoso: “Falaste bem e tal qual a vida nos ensina. Fui na Terra apenas fidalgo de nascença. Meus pais nunca fizeram parte dos ricos e só me podiam dar a educação por eles mesmos des- frutada. Quis o destino que eu ingressasse na Escola Militar, onde tive a felicidade de cativar a simpatia do coronel. Fez-me entrar na Escola do Regimento, na qual em breve me tornei um dos mais
aptos, e a consequência foi minha carreira militar. Decorridos sete anos, tornei-me oficial. Era jovem, alegre e ágil, e podes imaginar minhas inúmeras conquistas com o sexo oposto.
Por infelicidade conheci, durante um baile, uma das filhas de um aristocrata: ele, imensamente rico, e ela, baronesa de nascença. Agradou-me a moça, e eu, conhecido como o homem mais vistoso do Regimento, percebi seu grande entusiasmo por mim. Imagina: o pobre criador de suínos ao lado do barão, pois eu era pobre qual camundongo de igreja, e apenas pelo físico, não pelo mérito, desfru- tava aquele cargo de oficial. O verdadeiro amor, porém, não indaga de títulos e dinheiro.
Loucamente apaixonados, nosso único desejo se concentrava no casamento. Mas como? De que modo conseguir o consentimen- to do pai aristocrata, que sempre se vangloriava dos vinte e quatro ascendentes? Como induzi-lo ao depósito da caução prevista? Fiz tudo nesse sentido e o resultado foi a proibição, com gentileza, de frequentar a casa. Que fazer? Tal pergunta nos perseguia dia e noite.
O coronel, que me estimava qual filho, aborreceu-se e acon- selhou-me a pedir exoneração do cargo de oficial; em seguida, devia tratar do passaporte, viajar para a Inglaterra e comprar um importan- te posto militar, para o que ele me adiantaria o dinheiro necessário. Compreendi seu intento e obedeci. Dentro de meio ano tornei-me capitão de um navio de guerra, incumbido de zarpar para a índia. Não me faltava bravura e em breve conquistei os conhecimentos náuticos, inclusive a arte de me tornar herói.
Não levou tempo e tive mil oportunidades para me destacar como general: todas as operações foram por mim brilhantemente executadas, proporcionando-me condecorações valiosas. Decorridos quatro anos, voltei para a Inglaterra, imensamente rico e com tí- tulo de nobre. Procurei aposentar-me, sem ter sido atendido; em compensação, foi-me concedida licença de seis meses, que aproveitei para tratar de meu casamento.
Voltando à pátria, encontrei pais e irmãos com saúde. Após tê-los abraçado, fui à cidade, onde meu velho amigo se encontrava
como brigadeiro. Que felicidade poder estreitá-lo em meus braços. Minha preocupação girava em torno da dívida, mas ele não quis aceitar o pagamento, pois dissera, no momento em que colocava a importância na mesa: ‘Meu amigo, sou solteirão e considero-o o herdeiro de minha fortuna. Aceite essa bagatela como pequeno adiantamento e não me fale mais no assunto.’
Fiquei comovido até as lágrimas. A seguir, perguntou-me se me havia correspondido com a baronesa. Contei, então, ter escrito três vezes, sem obter resposta, razão pela qual não insisti. Minha visita à pátria tinha a finalidade de me apresentar como futuro gen- ro do barão.
Satisfeito com minha firmeza de caráter, o brigadeiro con- tou-me que o barão manifestava ainda maior orgulho com a filha, não obstante ser ela de maioridade. Grande fortuna não o impres- sionaria, muito menos o mérito de um plebeu, mas somente a alta nobreza. Por tal motivo declinou do título de conde, conferido pelo Imperador, porque teria assim se tornado o mais jovem conde, en- quanto, como barão, era o mais antigo.
Esse relato não podia ser do meu agrado, que tanto havia arriscado a fim de conquistar a benevolência daquela família. Tor- nara-me nobre; mas onde estavam os indispensáveis ascendentes, porquanto a linha de nobreza se iniciava comigo? Contudo, o bri- gadeiro opinava dever eu visitar o barão e relatar-lhe minhas aven- turas na Índia, conseguindo, talvez, conquistar o coração do velho extravagante.
Segui o conselho de meu amigo, que me acompanhou. Ten- do sido recebido com deferência, julguei ser de bom augúrio, mas o futuro me convenceu do contrário. O melhor de tudo era que Ema me dedicava o mesmo afeto. Recebera minhas cartas, sem que lhe fosse possível respondê-las. Usei de todos os meios para convencer seu pai de nosso amor, mas tudo em vão. Depois de três meses, en- contrava-me no mesmo ponto da primeira visita.
Indeciso, pedi conselho ao brigadeiro. Após ter refletido, disse-me: ‘De modo algum pretendo dar-lhe má orientação; queren-
do alcançar o seu objetivo — que é o que também desejo — preciso é usar de estratagema. A moça já conta seus vinte e cinco anos; é por- tanto de maioridade e pode dispor de seu livre arbítrio. Se ela quiser desposá-lo sem o consentimento paterno, convém não fazer rodeios. Certamente será deserdada e acompanhada da maldição aristocrata, restando saber se ela suportará tal golpe. Tendo ela mesma mencio- nado a fuga, posso concordar. Caso fracasse, em virtude da astúcia do velho, que poderia convencer os padres a não efetuarem a ceri- mônia, é melhor fugir e casar na Inglaterra. Esse golpe não se enqua- dra na lei, todavia é o único possível para a realização de seu sonho. Certamente o senhor será perseguido. Deixe por minha conta, pois que saberei orientá-los. Uma vez na fragata, adeus barão.’
Esse conselho agradou-me sobremaneira e escolhi a segun- da modalidade, quinze dias mais tarde, por se terem apresentado dificuldades insuperáveis na execução da primeira. Fui perseguido, mas meu amigo soube manobrar a fuga. Mal embarcamos, consegui que o capelão do barco efetuasse a cerimônia, tendo ocorrido tudo bem em relação ao matrimônio.”
CAPÍTULO 71
O horizonte conjugal do libidinoso se anuvia. A verdadeira índole de Ema
Prossegue o libidinoso: “Com a realização do casamento pre- sumia encontrar-me no paraíso; no entanto, em breve surgiram as nuvens conjugais. Minha esposa começou a se mortificar por ter abandonado seu genitor. Arrependeu-se, dia e noite, do passo dado, aumentando tanto sua saudade, que temi uma crise em sua saúde. Fiz tudo para lhe proporcionar outras noções da vida, porém sem êxito. Assim, após um ano, resolvi exonerar-me do serviço e voltar a Viena, recolhendo-me à vida privada. Quando lá chegamos, fomos à casa do meu sogro para pedir-lhe perdão. Ele, porém, havia mor- rido, talvez de desgosto.
Esse choque foi demais para Ema. Seus irmãos orgulhosos lhe fizeram as mais acerbas reprimendas, acusando-a de criminosa. Ela adoeceu, obrigando-me a gastar uma fortuna. Após recuperar a saúde, fazia-me às vezes exigências que só podiam ser satisfeitas com sacrifício, não recorrendo eu ao seu auxílio monetário. Quis o destino que seus irmãos falecessem de tifo, tornando-se ela herdeira universal de grande fortuna. Era de se supor que tal situação a fizesse mais alegre, porquanto anteriormente andava triste porque, como filha do mais rico barão, tornara-se pobre por ser minha esposa, fato que não a impedia de fazer livre uso de meus haveres quando queria aparecer como baronesa.
Somente após a herança conheci a sua verdadeira índole. Sua tristeza se transformou numa insaciável luxúria. Quando lhe fiz ver, com delicadeza, ser tal vida fora da ordem e que, finalmente, tinha sido a causadora da minha infelicidade, porquanto concordara com a fuga e que eu poderia ser almirante se não tivesse abandonado mi- nha carreira de oficial, ela explodiu! Foi ao quarto e trazendo papéis de valor de duzentos mil florins, disse-me: ‘Recebe, meu marido, criador de suínos, aquilo que porventura te custei. Deixa esta minha casa e leva em tua companhia esses trambolhos de filhos. Não posso ocupar-me com criaturas geradas por um camponês. Passa bem.’
Com essas palavras bateu a porta e eu esperei com minhas duas filhas durante uma hora, certo de que ela voltaria às boas. Seu camareiro, porém, informou-me ser desejo da baronesa que eu deixasse imediatamente a casa, do contrário ela se veria obrigada a fazê-lo. Desesperado, chamei o meu servente e mandei procurar uma pensão apropriada, conforme sua vontade. Enquanto arrumava minhas malas apareceu meu amigo brigadeiro. Informado de mi- nha situação, não sabia se deveria rir ou chorar. A seguir, conso- lando-me, conseguiu convencer-me ter tido sorte em libertar-me, de modo tão decente, de uma esposa por demais incompreensível. Conviria, porém, guardar os valores por ela oferecidos, em benefício de minhas filhas.
Enquanto palestrávamos, apareceu, repentinamente, o cama- reiro da ilustre, transmitindo-me o recado de não aceitar a devolu- ção da importância e, caso fosse pequena, estaria pronta a dar-me ainda mais. Revoltado, não fui capaz de responder. O brigadeiro dis- se julgar muito maior o valor da honra de um oficial; por isto devia a baronesa recompensar devidamente o nome ultrajado de homem de bem. Além disto, não deveria alimentar a esperança de ser mais tarde aceita pelo seu filho, porquanto me declarava herdeiro único de sua fortuna.
Mal o camareiro se retirara, a baronesa se atirou junto ao brigadeiro, pedindo-nos que lhe perdoássemos, balbuciando, qual desvairada, que fora vítima de precipitação. O brigadeiro, deixando-
-a terminar, disse calmamente: ‘Tal pai, tal filha! A senhora faz jus a seu progenitor. Eu e meu filho somos condes, mas nunca sonhamos em nos orgulhar como faz sua família com o simples título de barão e baronesa. Como não tenho filhos, consegui o consentimento do Imperador para reconhecer esse meu amigo como filho adotivo e, caso eu morra, ele será conde. Deste modo tornar-se-á muito rico e dispensará suafortuna. Seu descalabro foi, porém, uma ofensa à minha honra. Exijo, assim, meio milhão de florins como indeniza- ção.’ Interveio a baronesa: ‘Caríssimo sogro, dou-lhe toda a minha fortuna na esperança de seu perdão e na permissão de poder ficar em companhia de meu querido esposo.’
Protestou o brigadeiro: ‘Sabendo ser esse um ‘tratador de suínos’ — como teve o atrevimento de classificar meu filho — a senhora pretende amá-lo. Isto é impossível. Tenha a bondade de se recolher aos seus aposentos, pois tenho assuntos importantes para revelar a ele.’ De modo ainda mais incisivo Ema pediu desculpas, afirmando preferir viver toda a vida ao lado do camponês do que abandonar-me. Meu amigo respondeu: ‘Muito bem, veremos como passará em tal prova. Fiz apenas aquela assertiva para observar sua reação e convencê-la da miséria de seu orgulho aristocrático. Quan- do lhe afirmei ser seu marido um conde, a senhora mudou de tática.
Que fará se eu revogar minhas palavras, continuando seu esposo apenas ‘tratador de suínos’?’
Ao ouvir minhas palavras, Ema saltou, exclamando: ‘O quê? É deste modo que se trata a filha do rico barão? Meu esposo não é, portanto, conde, mas simplesmente campônio e eu baronesa de primeira! Ele será indenizado condignamente como tratador de su- ínos.’ Respondeu o general: ‘Não é preciso, caríssima. A prova não surtiu efeito em seu benefício. A senhora é o que é; este meu filho também é o que afirmei anteriormente.’
A essas palavras Ema, virando-se, diz: ‘Alteza, é possível não ter me saído bem, ao menos em sua opinião. Observo que essa cena, por mim engendrada, representa somente um estratagema para sa- ber se meu esposo realmente me ama. Confesso sinceramente ter ele manifestado, há ano e meio, tal indiferença que me tornou infeliz. Fiz tudo para lhe agradar sem ser, porém, correspondida. Refletindo demoradamente, verifiquei sua injustiça, uma vez que eu havia dei- xado a casa paterna, levada pelo grande amor que lhe dedicava. Sua indiferença deveria ter motivo e eu deveria descobri-lo.
Dispondo de grande fortuna, comecei a frequentar a socie- dade, dar bailes, festas e deixando-me cortejar. Enganei-me, julgan- do assim despertar seu ciúme, pois parecia gostar daquela situação. Suportei essa humilhação quase dois anos, resolvendo fazer tal ence- nação para verificar se realmente ainda gosta de mim.
Até esta tentativa foi infrutífera. Nada mais farei nesse sen- tido. Falo a verdade, Alteza. Enquanto não era rica, ele me amava de todo coração. Nem bem me tornei herdeira de fortuna considerável, supondo assim ser esse fato motivo de estreitar nossa união, pois me daria oportunidade para premiar seus grandes sacrifícios, deu-se pre- cisamente o contrário. Desprezava meus bens, alegando terem sido uma maldição para nosso lar. Considerai minha situação para poder julgar, com justiça, se realmente mereço a atitude de meu esposo’.”
Exigências de Ema. Tentativa de conciliação
Prossegue o libidinoso: “Com essa dissertação ficamos admi- rados e me cabia apenas exclamar: Meaculpa,meamaximaculpa!E meu amigo disse para Ema: ‘Se as coisas andam nesse pé, vejo-me obrigado a lhe pedir desculpas e fazer um sermão ao meu filho.’ Respondeu ela: ‘Alteza, exijo apenas o amor de meu esposo, e tudo lhe será perdoado.’
Interrompi: ‘Meu caro progenitor, meu afeto para com ela nunca foi alterado, desde nosso conhecimento. Se ela vê espectros onde não existem, não sou culpado. Não demonstrei ciúmes ao vê-
-la cortejada porque não quis ser indelicado. Só eu sei o que sofri. Quanto à sua fortuna, confesso não lhe ter dado atenção, sabendo ser uma vida luxuriosa um horror para Deus. Se Ema tivesse distri- buído entre os pobres as importâncias vultosas que gastou em festas, teria causado dupla felicidade. Ela só pensava em aborrecer-me, com o que não posso concordar.’
Desarmada com minhas palavras, ela não sabia o que respon- der. Irritada, foi ao aposento contíguo e apanhou um enorme pacote de papéis de valor. Ao lhe perguntar sua intenção, porquanto julgava ter feito as pazes com ela, sorriu maldosamente e disse: ‘Antes disso, tenho que indenizar-te a ofensa praticada.’ Respondi: ‘Querida, em virtude de meu grande amor, não posso guardar rancor para conti- go. Além do mais, não foi por mim estipulada a indenização, e sim da parte de meu pai adotivo que, penso, te perdoará. Guarda esses papéis e sê a mesma que anos atrás.’
Perplexa, Ema não sabia o que responder. Após alguns ins- tantes, prosseguiu: ‘Se me amas como afirmas, tem a bondade de guardar esses valores, pois sabes que não tenho prática na sua admi- nistração.’ Ao que respondi: ‘Com o maior prazer. Em compensa- ção, estende-me tua mão como prova de tua amizade, que poderá ser selada por um beijo.’ Disse ela: ‘Para isso ainda teremos tempo. Antes devo chamar-te a atenção para um pequeno lapso. Por diver-
sas vezes te falei para não me chamares de Ema e, sim Kunigunde. Por que não usar esse nome da velha nobreza, adotado também por minha mãe e avó? Se me amares realmente, chama-me pelo nome que mereço.’
A essa exigência tola, eu e meu pai adotivo desatamos a rir, em virtude de uma peça de teatro onde uma tal Kunigunde é ridicu- larizada com seu amado. Por isso, disse-lhe: ‘Querida, se não o fiz foi apenas por respeito à tua pessoa. Cada vez que pronunciava aquele nome lembrava-me da canção desrespeitosa da tal peça teatral. Fa- lei-te, na ocasião, a esse respeito e até concordaste comigo. Se fizeres questão, voltarei a te chamar de Kunigunde. Penso não haver outro motivo que nos impeça de fazer as pazes.’
Pisando forte, ela respondeu em tom estridente: ‘Não que- ro!’, acompanhado por um mar de lágrimas. Em seguida fez uma pausa e cheia de revolta simulou uma vertigem, soltando, por fim, uma legião de nomes contra a minha pessoa. Terminando essa série, ainda gritou: ‘Estamos quites! Nada mais quero saber e ouvir. Estás pago e nada tens a reclamar. É o que me faltava, ser por ti ridicula- rizada. Afasta-te!’
O general virou-se para mim, dizendo: ‘Deixa-a, meu filho. É doida completa. Talvez o tempo a corrija. Guarda os papéis, pois poderá vir época em que proporcionarão bons serviços a ela mesma, pela maneira que vive e esbanja sua fortuna. Eis que vem teu empre- gado a quem mandaste procurar uma pensão para ti e tuas filhas’.”
CAPÍTULO 73
Crise de nervos e transformação de Ema
1. Prossegue o libinoso: “Meu servo comunicou-me, então, ter encontrado uma ótima casa com todas as dependências necessárias, por um preço razoável. Precavido diante da situação do casal, ele não mencionou o bairro, pois havia passado por fase semelhante àquela com sua digníssima contraparte. Nesse relato ele se excede, redu- zindo a baronesa ao mesmo nível de sua classe. Ema, fortemente
irritada, deu meia volta e lhe vibrou uma bofetada. Surgiu uma cena que, de modo algum, fazia jus à alta linha de minha esposa. Desta maneira, julguei por bem mandar embora o empregado, pois sen- tia meu controle extinguir-se. Nem bem terminara de dar minhas ordens, dizendo também querer deixar a casa, ela se coloca à minha frente, gritando: ‘Acaso mereço ser abandonada? De fato! Além de me reduzires diante da criadagem? Esperava que não levasses a sério meu mau humor. Teu coração tornou-se pedra. Nem percebes meu estado doentio. Por que me deixas? Que te fiz eu? Minha doença fez com que te maltratasse e reconheço ter sido minha atitude condená- vel, porque vejo tua intenção de me deixar. Querido, faze o que qui- seres, mas não me abandones.’ Abraçando-me com efusão, ela chora copiosamente. A criadagem, arregalando os olhos de espanto, me pergunta qual a atitude a tomar. Para encurtar: Meu amigo resolveu passar uns tempos conosco, os servos continuaram nos seus afazeres e Ema, há pouco um demônio, tornara-se um anjo.”
CAPÍTULO 74
Surpresas para o libidinoso. Bom conselho de Olavo
Manifesta-se Olavo, dizendo: “Caro amigo, teu relato conju- gal está se estendendo sobremaneira. Deixemos a continuação, por- que o conheço tanto quanto tu. É preciso saberes ser eu o mesmo general e amigo que na Terra te protegeu. Aquele que há pouco ain- da tomava as aparições ocorridas com a heroína das barricadas por mera fantasia, é precisamente o barão, cuja filha desposaste contra a vontade dele. Se quiseres também conhecer tua própria esposa, com a qual brigaste em vida perto de vinte anos, observa aquela criatura quase desnuda e macérrima que por trás do barão está te olhando, e tens com isto, diante de ti, o conjunto de tua última encarnação. Agrada-te a solução de teu caso?”
Responde o libidinoso: “Quando poderia ter imaginado tal coisa! Tenho a impressão de que minha vida conjugal vai iniciar o segundo ato de seu drama. Que me dizes?”
Retruca Olavo: “De minha parte creio que devemos nos dei- xar guiar apenas por aquele homem, caso queiramos aguardar algu- ma melhora. Durante o teu relato fiz-me de observador silencioso e nada se passou despercebido aos meus olhos. Imagina que Hele- na recebeu vestimenta nova e se assemelha a um verdadeiro anjo; e quanto mais afeto manifesta àquele personagem singular, tanto mais linda e sábia se torna. Isto não se dá apenas com ela. Vejo que muitos, ao se aproximarem dele, mudam de aspecto e de índole. Eis milagres verdadeiros na acepção da palavra.
Lá no fundo, num palco espaçoso, vês umas vinte bailarinas de aspecto deslumbrante. Junto à mesa, provida de pão e vinho, se encontra o conhecido democrata Blum, em companhia de Messe- nhauser, Dr. Becher e o redator Jellinek. Expressam uma serenidade quase celeste e suas palavras são plenas de sabedoria.
Aquele homem simples, que no momento se entretém com Helena e parece falar apenas de amor, é o causador disto tudo. Eles lhe perguntam algo e ele tudo ordena, continuando tão despreten- sioso e amável que faz com que eu o ame como ao melhor ami- go. Tenho mesmo vontade de abraçá-lo e rodeá-lo constantemen- te. Não sentes o mesmo? E tu, amigo barão, junto com tua filha Kunigunde?”
Responde o libidinoso: “Confesso ter a mesma sensação. Quanto aos sentimentos de meu sogro e Ema, não posso responder. Ela talvez o faça, porque percebi ultimamente alguns vestígios de inclinação religiosa. Sobre ele só posso dizer serem suas noções de nobreza um impedimento, caso as tenha trazido para aqui.”
Reage o barão: “Por que não procura varrer a soleira de sua porta? Se quisesse discutir com o senhor, eu levaria vantagem. Per- doei-lhe, porém, o que me fez em vida, apesar de ter raptado minha filha, que representava tudo para mim. Caso tenha algum proveito nesta vida quimérica, transforme em amizade o mal que me fez na Terra. Não convém apontar meus ascendentes de alta nobreza, mas ajudar-nos, a mim e a Ema. Esse meu amigo poderá dizer se falei com justiça.”
Responde Olavo: “Precisamente, e tenho a convicção de que o seu genro concordará, pois sempre manifestou boa vontade. O que vos falta é a sua aplicação. Espero em Deus que ao menos um dentre nós seja socorrido, podendo assim ajudar aos amigos.” Diz o barão: “Agradeço sinceramente. Há vinte anos — que me parecem dois mil — sofro no maior abandono. Nem uma ajuda, conforto ou luz. O sr. é o primeiro a me auxiliar na extinção desse pesadelo. Peço-lhe terminar sua obra, e meu coração ser-lhe-á grato para sempre.”
Responde Olavo: “Caros amigos, também a sra., cara Ema, segui-me para junto daquele homem extraordinário, que no mo- mento palestra com Jellinek. Prosternar-me-ei diante dele para que nos ajude. Convém usar de muita sinceridade, pois além de bondo- so, é tão sábio que impossibilita possamos ocultar qualquer pensa- mento. Vamos.”
Intervém o libidinoso: “Que tal servires como intermedi- ário? Tenho realmente um especial temor dele.” A tal pedido, jun- tam-se o barão e sua filha. O general, então, diz: “Está bem, irei só. Enquanto isto meditai, pois pressinto estar em breve de volta.”
CAPÍTULO 75
Olavo intercede em favor dos amigos. Promessa do Senhor. O teimoso libidinoso
Com tais palavras, Olavo se dirige a Mim, curvando-se res- peitoso: “Amigo sábio e amável! De todos os acontecimentos aqui ocorridos, percebi seres a causa; parece-me depender de ti o fato de alguém ser feliz nesta casa. Quem puder te conquistar terá ganho tudo. Baseando-me nessas observações e confiando na tua bondade, tomei a liberdade, apesar de indigno, de pedir-te com o coração facultares tua graça, amor e amizade àqueles três. Encontram-se no mundo dos espíritos — assim como eu — ainda presos à matéria. Estamos, porém, animados da melhor boa vontade e tudo faremos para nos tornarmos mais dignos de tua atenção.”
Digo Eu: “Podes trazê-los junto a Mim; pois onde estaria um pai capaz de fechar ouvidos e coração aos filhos que lhe pedem socorro? Isto não faria na Terra um pai severo; muito menos Eu, que encerro a Plenitude do Amor do Pai Celeste. Por isso, vai buscá-los.”
Diz Olavo, com grande alegria: “Ó amigo, sabia não serem infrutíferos meus passos junto a ti. Agradeço-te desde já, pois ve- jo-os chorarem de satisfação.” Interrompendo, digo Eu: “Amigo e irmão, esperava algum pedido em teu próprio benefício. Não desejas ser um pouco mais feliz?”
Retruca Olavo: “Amigo celeste, já me sinto feliz ao observar a ventura alheia. Sempre fui assim; por isso não consegui felicidade para mim, pois tudo que tinha e fazia era em benefício do próximo. Não interpretes minha atitude como se não necessitasse de ajuda. Espero para mais tarde, quando os outros estiverem satisfeitos.”
Digo Eu: “Não perguntei por mera casualidade, pois sabia de teu coração e de tua harmonia Comigo. Desejava apenas preparar-te para algo que no momento não serias capaz de suportar. Eu Mesmo, porém, capacitar-te-ei. Vai e traze os que prezas, deixando que ou- tros mais sejam tocados pelo teu sentimento, pois te asseguro serem todos por Mim aceitos.”
Após curvar-se diante de Mim, Olavo volta ao seu grupo e o barão indaga como havia sido recebido. Responde ele: “Da melhor maneira possível; não só vós, mas todos que se juntarem ao nosso grupo serão aceitos. Vamos saber se outros querem aderir a nós.”
Diz o barão: “Caro amigo, junto de Ema estão minhas filhas mais velhas com seus maridos e alguns domésticos, talvez também sejam admitidos.” Responde Olavo: “Que venham, pois tenho sua promessa divina. Vamos ver ainda outros.” Aduz o libidinoso: “Sei de um meio eficaz: faremos um apelo geral e quem quiser poderá vir, pois não devemos obrigar ninguém.”
Diz Olavo: “Ninguém falou de obrigação; mas é preciso ex- plicar-lhes por que desejamos sua adesão, que não poderá ser clas- sificada de imposição.” Opõe o libidinoso: “Depende de cada caso.
Uma imposição calculada e firme é tanto uma obrigação quanto qualquer outro poder, e a vontade da pessoa deixa de ser livre.”
Diz Olavo: “O sr. está se excedendo, pois se tudo fosse obri- gação, aquilo que leva as criaturas a outras ideias, noções e determi- nações deveria ser banido. Se a imposição derivante do ensino pelo qual ele alcança a liberdade do espírito só pode ser útil ao homem, não vejo por que um esclarecimento possa trazer prejuízo ao livre arbítrio no Reino espiritual. Não se preocupe. Caso esteja errado, responderei pelo erro perante Àquele que me deu Sua Autorização Divina. Fica calmo, enquanto estender minha rede entre esses pei- xes. Seja qual for o resultado, tudo sairá bem.”
Assim falando, Olavo se dirige à multidão e lhe faz um dis- curso bem fundamentado. Vinte pessoas aderem a ele, ao passo que os outros resmungam não ser necessário ele se fazer de importante, pois sozinhos também achariam o caminho. Ouvindo tal observa- ção, Olavo volta com o produto de sua pesca ao grupo anterior e diz cheio de alegria: “Vê o bom resultado de meu esforço? Vamos imediatamente para junto Dele, Único que poderá nos ajudar, pois deu-me Sua Palavra Divina.”
Intervém o libidinoso: “Não compreendo por que sempre fala de sua ‘palavra divina’. Como pode um espírito humano, em- bora perfeito, proferir tal palavra? Acaso é algum ser divino?” Res- ponde Olavo: “Sim, digo com sinceridade: Ele ou ninguém! Suas Palavras infinitamente sábias calaram fundo em minha alma e ela me assegura ser ‘Ele’ o Único! Meu coração indaga se compreendo Seu Poder, e meu espírito me diz: Sim, amas Aquele que o merece! Agora, vamos.”
Interrompe o libidinoso: “Peço perdão por não acompa- nhá-lo. Julgar ser um simples homem o Deus Único? É forte demais. Nada tenho a obstar contra sua sabedoria, poder e amabilidade, pois a heroína se transformou, sob sua influência, de modo fantástico. Quanto à sua divindade, protesto! Disse Moysés: Deves crer somen- te em umDeus! Ninguém pode ver Deus e continuar vivo! — E o sábio judeu Jesus, por muitos considerado Deus, disse no Evangelho
de João: Ninguém viu a Divindade. Mas quem ouvir, aceitar e agir dentro de Seu Verbo terá aceito o Espírito Divino que, então, nele habitará. — Pelo que se vê, conheço a Bíblia, e nela não consta que um homem ou seu espírito, ainda mesmo sendo de Deus e manifes- tando Seus Atributos Divinos, deva ser o Ser Supremo, que habita na Luz Eterna. Não poderei acompanhá-lo se quiser esposar esta tese sobre aquele personagem.” Diz Olavo: “Pode fazer o que lhe agradar; há pouco protestou contra um dever a cumprir, portanto não quero coagi-lo.”
CAPÍTULO 76
O honesto engraxate e a Mira indesejável. Purificação psíquica do libidinoso, que abandona a Assembleia Celeste
Enquanto isto, se aproxima Chico, o fiel engraxate do libidi- noso e diz àquele: “Dr., somos aqui todos iguais, mas o senhor con- tinua o mesmo que foi em vida, e isto não me parece justo. Na Terra foi muito rico, em virtude da fortuna de sua digníssima. Aqui isto não adianta, pois estamos no Além, compreende o senhor? Convém ser humilde; parece-me que aquele general tem boa vontade em au- xiliar-nos. Venha conosco. Não será o senhor prejudicado. E veja só: a Mira também está aqui. Lembra-se daquela que o senhor manti- nha ao lado da esposa? Estando ela presente, nada lhe poderá faltar.”
Responde o outro, indignado: “Caramba! Eis o purgatório, e o inferno certamente ainda virá. É preciso que a Mira e a minha patroa estejam aqui! Ótimo! Tendo Ema nos últimos anos de vida ficado muito beata e desencarnado alguns anos antes de mim, julga- va que estivesse em cima de uma nuvem celeste. Mas não! Está aqui, e cem vezes mais infeliz que antes de sua morte. E agora me aparece também a Mira, cuja língua é tremenda. Só me faltava procurar, na companhia dessas duas, aquele homem que me aconselhou muita humildade. Saberei contornar tal situação. Quem me diria ter a pes- soa que enfrentar tais aborrecimentos no Além. Olavo apresentou-se como meu amigo terreno, informado de todos os meus segredos.
Além disto, meu sogro, com toda a sua família. É provável que ainda apareçam algumas das pequenas que me acompanhavam em certas ocasiões!”
Tais conjecturas faz o libidinoso de si para si. Os outros ou- vem-no e sua esposa se adianta e diz com meiguice: “João, sabia a vida que levavas e foi esse o motivo de nossas desarmonias. Perdoei-
-te tudo. Procura, portanto, recompensar-me aqui, diante de Deus, o que fiz por amor a ti. Não receies minhas reprimendas, pois nada farei. Segue Àquele a Quem, na Terra, pretendias ser fiel. Quan- tas vezes me acusavas e à minha família pelo orgulho aristocrático! Enquanto aqui, no Reino da humildade, o és muito mais que nós outros. Como se explica isto?”
João, perplexo, resmunga algo, sem responder em definitivo. Eis que Mira se aproxima e diz a Ema: “Peço-lhe desculpas pela ligação que mantive com seu esposo. Fui sempre moça direita. Co- nheci-o numa festa e me deixei seduzir, pois me havia prometido casamento, por escrito. Ele, porém, enganou-me ano após ano, sem confessar ser casado. Pode a senhora se alegrar pelas verdades que pretendo dirigir a esse patife.”
Virando-se para o libidinoso, Mira começa: “Seu patife meio anglófilo — quem pensa ser? Fale, se tiver coragem! Está lembrado das suas conversas a respeito do seu estado civil e do muito dinhei- ro que possuía? Se tivesse sido um senhor honrado, como desejava aparentar, não poderia nunca ter agido daquela maneira. Por acaso sua esposa soube dos bonitos vestidos que mandou fazer para mim, apresentando-me de uma feita como se fosse uma turca, de outra, uma espanhola, em seguida como francesa e sei lá mais o quê? E as atitudes que encenou? Também nada contou das orgias praticadas em companhia de outras pessoas, onde o senhor era o mais lascivo? Contarei tudo a ela, pois estou com raiva por ver sua mulher tão boa e honesta.”
Ouvindo tais acusações, Olavo interrompe Mira e diz a João: “Então amigo, que histórias são essas? Agora compreendo muita coi- sa e percebo o motivo pelo qual tanto receia aquela heroína. Certa-
mente tomou parte naquelas ‘festas’? É claro não lhe ser agradável acompanhar-me junto de pessoas que o conhecem melhor do que eu. Lembro-me nunca ter sido possível combinarmos encontro aos domingos à tarde. Alegava sempre ser obrigado em tais dias fazer seus cálculos importantes. É deveras interessante o que ora se de- senrola e em que circunstâncias. E pretende ainda, com tudo isto, ser um homem de bem. Peço-lhe não nos acompanhar junto da- quele amigo dos homens. Poderá fazer o que quiser. Saberei evitar seu convívio.
Pobre Ema, se soubesse na Terra com que espécie de esposo lidavas, minha atitude teria sido diversa. Vamos procurar contato com aquele grande benfeitor da Humanidade. Junto dele teremos a recompensa pelas injustiças sofridas.”
Apresenta-se o barão: “Nunca poderia ter esperado isto des- se homem! É, portanto, certo dizer-se que o depravado continuará sendo assim, e tarde ou nunca se elevará do lodo de sua baixeza inata. Não o julguemos, mas não serve para nossa companhia. E virando-se para o libidinoso: Afaste-se de nosso grupo! Lá, entre a ralé, é seu lugar apropriado, onde, talvez, encontre algumas das divas de suas orgias.”
Reage o outro, furioso: “Proíbo-lhe tais insinuações! Minha esposa não dava suas festas aos sábados? Não é de se esperar que em tais ocasiões se entregasse a preces. Além disto, ninguém pode deter- minar minhas ações. Não necessito de tutor. Sei perfeitamente o que fazer. Aliás, é desnecessário alegar ser desprezível para me tornar um dos membros de família tão nobre. Agradeço a Deus ter-me livrado de tal súcia. Por sorte vejo, lá atrás, alguns conhecidos que me pres- tarão mais honra que vós, orgulhosos.” Incontinenti se dirige para lá; Ema procura retê-lo, mas ele a repele.
Diz Olavo: “Deixai-o em paz. Talvez se encaminhe para sua salvação ou queda. Pediremos ao Senhor que seja misericordioso para com ele.”
Olavo pede ao Senhor saciar as pobres almas
Alguns se encaminham com Olavo para junto de Mim e ele, curvando-se, diz: “Meu Senhor e amigo, cumprindo Tua Ordem, trouxe esse grupo que consegui convencer. Um outro não quis to- mar parte, por envergonhar-se diante de pessoas conhecedoras de sua vida passada. Julgo não ser ele, por isto, um perdido. Tu és o Senhor desta casa e quem a tiver penetrado não se perderá. Ele não é propriamente mau; sua principal fraqueza foi o sensualismo, e como dispunha de meios, deixou-se tentar por toda sorte de dese- jos, que de pronto saciou. Confesso não concordar com isto, pois não honra o seu espírito. Mas, que fazer? Foram praticados. Assim sendo, creio que passará por estados tais, que o levarão a melhorar e humilhar-se, mas por isto não deve ser condenado e punido. Além do mais, externo apenas minhas ideias e opiniões. De modo algum pretendo adiantar-me. E diante de Ti, digo: Senhor, que se faça a Tua Vontade.”
Respondo: “Teu parecer é bom e útil. Todavia, aquele espíri- to terá de passar por vicissitudes até conseguir alguma compreensão e consequente melhora. Não quero mencionar sua vida excessiva- mente impudica, conquanto fosse capaz de fazê-lo perder a vida eterna. É, além disto, cheio do orgulho mais abjeto e da ousadia mais perniciosa. Tais tendências são muito mais perigosas para o seu espírito do que julgas.
À sensualidade pode ser imposto um freio. Ao orgulho e à intrepidez é muito difícil, ou mesmo impossível, levar-se pelo livre arbítrio. Todavia veremos o que se poderá fazer. Como se deve agir com essas pessoas? Dize-Me sinceramente.”
Responde Olavo: “Senhor, tudo que achares por bem, dentro de Tua Bondade ilimitada! Tua Sabedoria está acima de tudo. Teu Amor desconhece fronteiras; e, diante de Tua Vontade, os mundos se reduzem a pó.”
Digo Eu: “Caro amigo, depois de ouvir tuas palavras, su- ponho Me considerares o Ser Supremo. Quando adquiriste tal fé? Acaso ignoras não ser possível alguém ver Deus e continuar vivo?”
Responde Olavo: “Senhor, Tua Própria Palavra Santa e Divi- na levou-me a tal compreensão. Não é possível existir espírito cria- do capaz de proferir Palavras plenas de Verdade, Poder, Sabedoria e Amor. Bem sei que ninguém pode vislumbrar a Divindade em Seu Ser Intrínseco. Ela, porém, falando através de Moysés, ensinou, após vários séculos pelo Homem-Deus ‘Jesus’, que disse: Eu e o Pai somos Um; quem Me vê, vê também o Pai. — Se isto Ele ensinou e Seus discípulos O viram e O escutaram sem perder suas vidas, não vejo por que se deva imaginar Deus na Luz eternamente inconfundível. Acresce a isto a certeza de seres o Mesmo Jesus que nos transmitiu Ensino tão elevado. Deste modo, quanto mais Te fito, com olhos e coração, em vez de sentir perder a vida, sinto-me muito e muito mais pleno de vida. Não é isto?”
Respondo: “Vejo seres firme e inabalável em tuas afirmações. Por enquanto tenho que considerá-las. O futuro te esclarecerá al- gumas dúvidas. Asseguro-te Meu Amor e Amizade eternos. E vós não sentis fome e sede?” Exclamam todos: “Ó caro amigo, muito mais do que o necessário para se morrer na Terra. Não seria possível saciar-nos?”
A um sinal Meu, Blum, Jellinek, Messenhauser e Becher dis- tribuem pão e vinho entre os outros. Assim confortado e grato, Ola- vo se vira para Mim e diz: “Ó Senhor, não existe dúvida seres o Úni- co merecedor de nossa veneração e amor!” Tais palavras são repetidas pelos recém-vindos. — Roberto e seu grupo sorriem de alegria pela rápida conversão de Olavo. Helena, por sua vez, cai aos Meus Pés.
Advertência acerca dos ignorantes. Revelação do Conselho Celeste em vista do destino do orbe
Por motivos bem fundados, advirto-os nada revelarem so- bre aquilo que acabam de perceber por especial graça. Eles Me en- tendem e silenciam, enquanto seus corações se empolgam cada vez mais. Mormente Helena custa a se conter. Jellinek então lhe diz: “Minha irmã, intimamente podes te entusiasmar; modera-te, po- rém, em virtude de não serem atingidos pelo julgamento os ignoran- tes ainda existentes. Formaremos um grande Conselho, conforme o Senhor anunciou confidencialmente. Precisamos nos manter calmos para que os outros não percebam estar o Senhor de toda a Vida tão próximo.”
Indaga Helena: “Que vem a ser tal Conselho Secreto e qual sua finalidade? Meu Deus, pressinto algo de grande importância.” Responde Jellinek: “Por certo. Digo mais: Ai de todos os orgulhosos, dominadores, assassinos, verdugos e dos que ocupam tronos. Há pouco vi inúmeros anjos revoltados se atirarem com espadas, em direção à Terra, acompanhados de uma voz trovejante que assim di- zia: ‘Esgotou-se Minha Paciência! Não mais cogito de Piedade, pois os potentados não procuram salvação em Deus, mas em suas armas. E os povos que choram e rangem os dentes não se dirigem a Ele, o Único que os pode socorrer. Em virtude dessas ocorrências será convocado um Grande Conselho para o qual todas as forças celestes serão movimentadas.’ Calma, muita calma!”
Diz Helena: “Já estou quieta. Mas que horror! Que acon- tecerá?” Responde Jellinek: “Aqui as coisas são bem diversas das de Viena, quando ainda nos encontrávamos entre os revolucioná- rios. Trata-se aqui da Verdade Inabalável. Vida ou morte, Céu ou inferno. O Senhor do Infinito, o Onipotente Criador de Céus e mundos, Se encontra entre nós, e miríades de servos celestes aguar- dam Seu Aceno Divino. Daí concluirás quão santo e importante é este recinto enorme em que Ele tomará entre nós, Seus amigos
mais recentes, resoluções tão importantes das quais dependerão as épocas futuras.”
Diz Helena: “Nem posso conceber sua importância trans- cendental. Não assimilo como pode Nele existir Onipotência, abar- cando com um golpe de vista o Espaço Infinito, porquanto não apresenta o menor vestígio para tanto. Dá-se em nosso meio, como se fossemos os únicos que Dele dependessem. Amigo, que imensa afabilidade!
Que diferença entre Ele, o Senhor do Infinito, e os potenta- dos de nossa Terra. Enquanto Ele, em tudo, é pleno de humildade, nunca Se elevando diante de Suas criaturas, os poderosos da Terra querem ser e possuir tudo, não cogitando das sutilezas do coração. Em tais circunstâncias se compreende transformar-se a Terra tão lin- da num verdadeiro inferno, onde ninguém poderá ser salvo para a Vida eterna.”
Responde Jellinek: “Julgas acertadamente. Considera, po- rém, que para Deus tudo é possível, e assim terás mais serenidade diante daquilo que vier. Seu Poder Infinito Se equilibra na Imen- sidade de Seu Amor. Não é preciso algo temer em virtude de Suas Determinações.”
Diz Helena: “Agradeço-te por este ensinamento. Tiraste-
-me uma pedra de cima do coração. Dize-me, quando começará o Conselho?” Responde Jellinek: “Dentro em pouco. Vê, neste mo- mento Roberto leva a multidão de proletários vienenses, ainda ig- norantes, ao recinto ao lado. Estarão presentes ao Conselho as vinte e quatro bailarinas, Blum, Messenhauser, Becher, eu, você, Olavo com o grupo dos vinte, o tal anglófilo e alguns aristocratas.
Daquele outro recinto surgem doze homens de aspecto mui- to sábio, acompanhados de mais sete; com certeza tomarão parte no Conselho. Além disto, vejo também uma grande mesa no centro desta sala, que parece estar aumentando. Alegra-te, que a Reunião vai ter início.”
Com esta informação, Helena, contrita, se vira para Mim, sem conseguir pronunciar uma palavra, tal o seu medo. Segurando-a
pelo braço, digo-lhe: “Filha querida, que expressão é esta? Por que estás tão atemorizada? Estou ao teu lado.”
Responde ela: “Meu Senhor e meu Deus! Realmente não tenho motivo para me assustar, sabendo estares de bem comigo. Mas se me lembro de Tua Divindade Eterna e Santa, da qual nenhum pe- cador pode se aproximar, tenho a impressão ser possível condenares pessoas como eu, mormente se Te aborreceres. Anteriormente não me impunhas tanto temor, pois ignorava Quem eras em Verdade. Considerava-Te um Santo qualquer e, isto, porque Tu Mesmo ale- gavas seres Amigo íntimo de Deus, capaz de interceder junto Dele a meu favor. Mas agora — que decepção horrível! És o Altíssimo em Pessoa! Quem não teria pavor diante Dele? Além disto, convocarás um Conselho, certamente para o Dia do Juízo Final. Meu Deus, acaso não deveria temer-Te, como grande pecadora que sou?”
Respondo com entonação carinhosa: “E isto te perturba? Se alimentares tal pavor diante de Mim não serás capaz de amar-Me. Que farei se desistires do amor por ser Eu o Altíssimo? Ora, Heleni- nha, dize-Me se ainda Me queres como antes, quando Me tomavas por São José ou Pedro?”
Responde ela, mais calma: “Que pergunta! Tratando-se de meu amor para Contigo, podes pesquisar o meu coração e verás se ele comporta mais alguém além de Ti. Amo somente a Ti, e ao su- posto José ou Pedro queria-os por Tua Causa. Não receio meu afeto para Contigo e, sim, o Teu para comigo.”
Digo Eu: “Então, Heleninha, estamos quites. Que tal se Me abraçasses e beijasses?” Confusa, ela esfrega os olhos e diz com voz trêmula: “Hum, como não haveria de querê-lo! Pena seres tão Santo e Poderoso.” Respondo: “Ah, isto não vem ao caso. Faze o que man- da teu coração e te convencerás que Minha Santidade e Onipotência não tirarão a pontinha de teu nariz.”
Vendo Minha Simplicidade, Helena perde o receio e atira-
-se aos Meus Braços, beijando-Me. Em seguida, diz: “Meu Deus, como isto me faz bem! Se me fosse possível ficar assim por toda Eternidade!” Finalmente levanta a cabeça e diz: “Como é possível
seres tão afável? Nunca me teria atrevido a pensar nisto. És tão bom, humilde e amoroso! Não é admissível que exista alguém que não se desvaneça com o Teu Amor!”
Digo Eu: “Vê, assim estamos na melhor ordem, e isto Me alegra. Vem Comigo à Mesa do Conselho, onde ficarás ao Meu lado, dando-nos teu parecer quanto ao destino da Terra.” Opõe Helena: “Isto é que não! Eu?! E para opinar?! Sairia boa coisa...” Respondo: “Heleninha, nossa exigência não será tão severa. Quando te lem- brares de algo razoável, falarás Comigo e Eu, já que não te atreves, transmitirei o teu parecer.”
Ela exclama: “Ao ouvir-Te e ver-Te tão simples, nem tenho a impressão de que és o nosso Querido Senhor e Deus! No entanto, meu afeto para contigo é muito mais poderoso; nem sei o que fa- zer. Gostaria de ver a pessoa que, tão logo Te reconhecesse, não Te amasse com toda sua alma! Perdoa minha expansão provocada por Ti Mesmo.”
Respondo: “Podes amar-Me com todas as tuas forças. No entanto Meu afeto para contigo é muito mais poderoso. Mas não importa. Eu, como Deus, devo poder amar mais fortemente que tu. Acreditas?” Defende-se ela: “Peço não seres tão Magnânimo, do contrário não resistirei a tanta afeição.” Digo Eu: “Não te preocu- pes, querida. Mesmo te tornando, às vezes, um pouco fraca, tenho inúmeros recursos para confortar-te. Vamos à mesa do Conselho e senta-te ao Meu lado.” Modestamente Helena Me acompanha e enrubesce ao ver os outros também tomarem assento. Dentro em pouco começa a ambientar-se e presta atenção aos fatos.
CAPÍTULO 79
O venerável Conselho. Que deve acontecer à Terra? Falam Adão, Noé, Abraão, Isaac e Jacob
Após algum tempo de silêncio geral, Helena pergunta: “Se- nhor, quem começará a falar? E quem é o homem tão respeitável ao meu lado?” Respondo, também em surdina: “Eu Mesmo serei
Primeiro a falar, tão logo as almas dos presentes se tenham acal- mado. Junto de ti se acha o próprio Adão, tal qual viveu há uns seis mil anos, como primeiro habitante da Terra. A seguir vês Noé, Abraão, Isaac e Jacob. Mais além, Moysés e David. Os doze que se seguem são os conhecidos apóstolos. Mais para trás estão outros dois: na vanguarda Paulo e, atrás deste, Judas que Me traiu. Os de- mais já conheces.
No final da reunião saberás da tarefa de cada um. Já estão bastante calmos e poderei tomar da palavra. Não te deves assustar se, vez por outra, Eu usar termos fortes e fizer surgir várias aparições desagradáveis. Segura-te a Mim, que serás confortada.”
Em seguida digo à Assembleia: “Como vosso Verdadeiro Pai, Deus, Senhor e Criador do Universo, indago: Agrada-vos a Terra? Que destino desejais que Eu lhe dê?” Responde Adão: “Senhor, a Terra jamais foi tão maldosa quanto agora; Teu Amor, porém, nun- ca foi tão Poderoso! O mar, o seu olho poderoso, tornou-se cego. Deposita nele um fogo forte e deixa que se faça luz nos abismos através de sua labareda impetuosa para assustar e dizimar todos os monstros, que receberão o prêmio final para suas obras nefastas. Eis
o que vejo, como primeiro homem da Terra.”
Diz em seguida Noé: “Senhor, sempre orei a Ti e mantive minha fé e amor em Tua Pessoa. Quando, há quatro mil anos, meu irmão Mahal deixou-se tentar e projetou sua atenção aos vales pro- fundos, abandonando as montanhas para fazer uma viagem à cidade de Hanoch, onde Drouit e Fungar-Hellan reinavam na maior con- fusão e uma filha de Mahal se tornara rainha, chamaste-me e me en- sinaste como construir uma grande arca para salvar minha família e inúmeros animais, que Teu Poder atraiu de todas as regiões da Terra.
Obedeci às Tuas Ordens, e o futuro mostrou-me e aos meus como fiz bem em seguir-Te. Naquela época a humanidade era má e perversa, ultrajando a Obra de Tuas Mãos; todavia, os aconteci- mentos obedeciam a uma ordem certa e limitada. A mentira, o or- gulho e o domínio satânico não impulsionavam os homens como hoje em dia.
Eram também cruéis e certas ações suas, inéditas. Agora, as criaturas se tornaram hienas e tigres, praticando crueldades que fa- zem estremecer o Universo. Naquele tempo mandaste o dilúvio so- bre os mortais, afogando os malfeitores. Que farias agora, Senhor? Sei da Imensidade de Teu Amor e não ignoro o Teu Arrependimento por teres deixado perecer as criaturas no dilúvio, pois entre elas havia muitas crianças de tenra idade. Não Te arrependerás ao purificar a Terra, mil vezes mais imunda, através de um fogo abrasador, a fim de se tornar digna para receber-Te?”
Levanta-se o velho Abraão e diz: “Senhor, mil ou dez mil anos são, aos Teus Olhos, como um só dia. Tempo e Espaço surgi- ram de Ti, mas Tu estás acima de ambos e tanto o passado quanto o futuro mais distante são o mesmo que a ocorrência de um dia. O Amor é Tua Natureza, e a máxima Bondade, Tua Sabedoria. Suave, como a lã, é Tua Alma, e Meigo, como a brisa noturna da primave- ra, Teu Coração. Teus Caminhos são plenos de Misericórdia, e Teus Desígnios a Justiça Eterna.
Quando, em Canaan, discuti com meu irmão, observaste o meu coração pronto para a renúncia. Minha alma foi por Ti influen- ciada e disse a Lot: ‘Irmão, deves escolher livremente. Imensa é a Terra. Por que deveríamos disputar sua posse passageira? Vai ou fica. Se fores ao norte, irei ao sul, a fim de que a paz reine entre nós e os nossos descendentes. Se quiseres ficar, basta apontares com a vara a região que hei de habitar. Não podemos viver juntos, porquanto não queres caminhar na trilha da paz.’
Aceitando minhas palavras no coração, Lot disse: ‘Mano, es- colhi o norte e podes decidir se queres viver na região da meia-noi- te, do meio-dia ou da manhã. Seja tua decisão qual for — não te esqueças de Lot!’ Abençoamo-nos e partimos, ele para o norte e eu para o sul.
O povo de Lot em breve se tornou poderoso naquela re- gião. Construiu Sodoma e Gomorra, caindo de loucura em loucura. Enviei vários mensageiros, sem algo conseguir. Alguns foram assas- sinados e os poucos que voltaram traziam informações inquietan-
tes. Novamente tocaste o meu coração e o achaste justo perante Ti. Por isto me mandaste procurar por mensageiros do Alto, que me informaram de Tuas Intenções em relação a Sodoma e Gomorra. Assustado, pedi clemência pelos justos. Descobriste apenas um: Lot. Este foi salvo, Senhor. Sodoma e Gomorra foram destruídas pelo fogo do Céu.
Quando as duas cidades, inclusive homens e animais, es- tavam soterradas, Teu Coração virou-Se para lá. E vê, novamente sentiste arrependimento do severo julgamento e fizeste um pacto comigo, dando-me a grande Promessa, como garantia de Tua Imen- sa Misericórdia.
Cumpriste tudo, até hoje; todavia, Tua Indulgência Se exce- de. Senhor, lembra-Te de Teu Pacto, porquanto os povos se encon- tram na maior das convulsões. Conheces os inimigos de Teus filhos, sua ganância e vontade indômita. Não percebes os inúmeros lobos, tigres e hienas a roerem e dilacerarem, sem consciência e pejo, as vís- ceras de Teus cordeiros? Se castigaste Sodoma e Gomorra, atira-Te sobre aquelas feras e abate-as como expiação pelos males praticados em Teus filhos. Protege somente o sangue dos justos.”
Levanta-se em seguida Isaac e diz: “Ó Senhor! Sou a primei- ra folha que brotou da imensa árvore da vida de Tua Promessa feita a meu pai Abraão. Achava-se a árvore, naquela época, completamente ressequida no Éden do amor, enquanto a serpente preenchia a Terra com sua raça. Observando a esterilidade da árvore da vida de Teus filhos, Tu a vivificaste da raiz até a copa, inoculando-lhe seiva aben- çoada. E vê, fui a primeira folha que brotou.
Abraão alegrou-se, esperançoso, com seu rebento. Tu achas- te por bem turvar-lhe a alegria e experimentar sua fé. Mandaste que ele me matasse para oferecer-me em holocausto no altar. Assim fi- zeste para demonstrar à serpente quão forte era a fé de Teu filho Abraão. Quando ele provou, pela obediência, a força da fé, condu- ziste pelo arvoredo do monte um bode — efígie de Satanás e de sua tendência e domínio. A sarça, símbolo do mundanismo, envolveu
seus chifres, prova de sua teimosia, desobediência, orgulho e ganân- cia. Aquele animal foi sacrificado em meu lugar.
Senhor, se naquele tempo impeliste o bode do mundo para dentro da sarça, deixando que fosse sacrificado como testemunho da justa penitência, faze-o agora em realidade. Lá ele era apenas um símbolo — assim como eu mesmo sou o prenúncio de Tua Vinda ao mundo e da segunda Criação através de Tua Grande Obra de Salva- ção — que cresceu em verdade a uma altura que eleva seus cornos até os Céus. Por isto, convém erigires o grande Altar de sacrifício so- bre a Terra. Agarra esse animal perverso, que se emaranhou com seus chifres na sarça do mundo. Aniquila-o e atira-o no fogo poderoso!
Não mais hesites, Senhor, e não deixes que as inúmeras fo- lhas na árvore da vida sejam comidas pela voracidade do animal, mas cumpre Tua Promessa. Extinguiu-se a oportunidade e Teus fi- lhos gritam em altos brados: Pai, levanta-Te! Pega a arma da Tua Jus- tiça e destrói o bode, cujos chifres já tocam o Firmamento. Amém.”
Pronuncia-se em seguida Jacob: “Senhor, lutaste comigo e não me deixaste seguir caminho, e quando Te agarrei, deste-me uma pancada que me fez claudicar a vida inteira. A pancada não doeu porque lutei por amor. Todavia ficou como herança para todos os descendentes, que por sua vez sentiram a dor. Mas, agora, o gol- pe e a dor atingiram o máximo grau. Deves, portanto, libertar os Teus filhos.
Durante quatorze anos servi à divina Raquel, e Tu me deste Lia, isenta de beleza. Aceitei-a sem murmurar. E outros quatorze anos trabalhei e sofri perseguição por causa de Raquel. Então ma entregaste, porém estéril, de sorte que fui obrigado, finalmente, a recorrer a outra. Ó Senhor, quão severo foste comigo!
Retém Teu Rigor. Tira a fecundidade de Lia e transfere-a a Raquel, a fim de que a Terra se liberte da raça de víboras, permitindo que seu solo seja pisado somente pelos filhos de Raquel, e que José e Benjamin se tornem filhos verdadeiros da mesma, fazendo secar a fonte de Lia.”
Prosseguimento do Conselho. Falam Moysés e David
Nessa altura, Helena diz em surdina: “Meu querido Jesus, há pouco afirmaste seres Tu o Primeiro a falar e que não me assustasse com aparições aterradoras. Até agora só falaram os outros e também nada vi de mais. Como se explica isso?”
Respondo: “Cara Helena, tem paciência, pois tudo te será es- clarecido. Já fui o Primeiro a Me manifestar quando fiz a importante indagação. Eles têm de se externar para, depois, Eu tomar a palavra. Posso falar quando quiser, que serei sempre o Primeiro, bem como Meu Discurso. Presta atenção no que Moysés vai falar. As visões surgirão quando Eu Me pronunciar.”
Helena se aquieta e Moysés começa: “Senhor, quando Teu Povo padecia sob o jugo da tirania egípcia, despertaste-me para sal- vá-lo. Vivia na corte do faraó e conhecia as maldades e planos que aquele homem cruel engendrava. Sua perversidade não se satisfez com o afogamento dos primogênitos de Teu povo. Muitas vezes orei para o libertares de jugo tão horrível, mas naquela época ouvias ain- da menos do que hoje.
Quando percebi que a ira do rei aumentava de hora em hora, e assistindo ao açoite de um pobre israelita por um cortesão, re- voltei-me de tal maneira que matei o miserável, enterrando-o na areia. Ciente do fato, o faraó mandou que me prendessem e estran- gulassem, o que não aconteceu por ter fugido para Midian. Lá dei de beber aos carneiros do sacerdote Reguel, pai de sete filhas. Mais tarde casei-me com uma delas, Zipora, e me tornei pastor de Jetro, irmão do sacerdote.
Quando levava os animais ao pé do Monte Horeb, apare- ceu-me um anjo e me mandou que o seguisse, porquanto havia ali uma sarça em fogo. Então Tua Voz ordenou que eu tirasse os sapatos, por ser sagrado aquele local. Em seguida deveria partir para o Egito e salvar o Teu povo, dando-me uma vara para bater sete vezes no faraó, cujo coração havia endurecido por não querer confirmar-Te.
Agora, Senhor, existe mais que a dureza do faraó nos co- rações dos regentes, pequenos e grandes. Não somente sacrificam os primogênitos em honra de seus tronos, mas enviam milhões de soldados aos campos de batalha, deixando que se estraçalhem de maneira mais horrenda do que faziam os pagãos. São todos bati- zados em Teu Nome e têm a Tua Lei: Não matarás! Entretanto, as- sassinam constantemente, e são cegos e surdos à voz dos aflitos e à miséria do pobre.
Senhor, quanto tempo assistirás a tal horror de devastação? Dá-me novamente a vara com que castigaste o faraó, para salvar o Teu povo. Eu, Teu velho e fiel Moysés, estou pronto para, a um aceno Teu, descer à Terra, abater os teimosos e socorrer Teus filhos. Ouve o pedido de Teu velho servo e de Teus filhos. Teu Nome seja santificado e Tua Vontade Se faça, hoje e sempre, na Terra e nos Céus.”
Após Moysés, levanta-se David e diz: “Senhor, em épocas remotas Teu Espírito Se dirigiu a mim, falando: Senta-te à Minha Direita, até que Eu tenha subjugado teus inimigos aos teus pés!, e tudo que Ele me revelou se cumpriu. Somente a completa vitória sobre teus inimigos, a final destruição do orgulho e tudo que emana dele — o que Teu Espírito também me revelou — não se cumpre. As criaturas ainda são as mesmas: Nove décimos são maus e um décimo mais ou menos bom.
Levado pela ira, Senhor, deste um rei ao Teu povo que, sobre- carregado de pecados, juntou mais este erro. E esta Tua ira perdura, pois todos os povos têm seus reis e até mesmo imperadores pela compreensão pagã, servindo à multidão como símbolo do orgulho e altivez. Quando tirarás dos homens a maior praga da Terra, implan- tando Tua Instituição patriarcal, antiga e santa? Vês perfeitamen- te que bajuladores covardes e inescrupulosos rodeiam os regentes, espargindo-lhes incenso adulador em prol de seu lucro egoístico, condenando à morte o honesto que se atreve a dizer as verdades ao soberano, mais úteis que a luz de seus olhos!
Quando de meu regime, as coisas andavam mal, mas não péssimas como hoje. Elogiava a todo sábio que me transmitisse a
verdade, enquanto bania os bajuladores e castigava com a morte os mentirosos. Agora, tudo é inverso. O sábio é perseguido qual fera; mas os mentirosos e aduladores são condecorados.
Isto não pode continuar assim. O inferno só deve existir onde tem suas bases. Nunca lhe deveria ser permitido estabelecer seu regimento na Terra. Por isto, pedimos-Te que finalizes seu reinado. Se for necessário, haja reis, mas que sejam como fui, a fim de que as criaturas não se tornem demônios e Teu Nome não seja tão horrivel- mente ultrajado. Quem poderia louvar-Te no inferno, Senhor? Er- gue-Te e destrói os nossos adversários. Tua Vontade Se faça. Amém.”
Impressionada com as palavras de David, Helena não se contém e lhe diz: “Bravo, sr. David! Se todos os reis fossem como o sr. o foi, seriam felizes os seus súditos. Ultimamente deixaram de ser homens, portanto perderam a noção do gênero humano, julgando a si próprios uns ‘deuses’ que, além de extorquirem do povo impostos exorbitantes, exigem verdadeira adoração. É fácil imaginar-se a situ- ação de tais povos, pois os cães ainda levam vida mais independen- te. Se dependesse de mim, pediria a nosso Senhor Jesus Cristo que mostrasse a tais dirigentes as consequências de suas ações egoísticas. O sr. concorda?”
Responde ele, amável: “Cara Helena, jovem descendente de meu povo; elogio tua inteligência, pois desejas apenas o que é justo e razoável. Os monarcas já ungidos devem permanecer, todavia é preciso que desçam de seus tronos para junto do povo, demonstran- do sua igualdade. De modo idêntico as nações só deveriam fazer exigências que pudessem ser cumpridas. Mas quando, de ambos os lados, se estica as cordas além da medida, elas forçosamente terão que se partir. Os reis castigarão o povo, e este se vingará.
Contudo, ainda existe, entre reis e povos, nosso Senhor, Jehovah Zebaoth, que bem pode mudar tudo para melhor. Só nos cabe opinar; a Obra é unicamente Sua. Eis como andam as coisas.” Aduz Helena: “O sr. é realmente um rei sábio.”
Crítica de Pedro a Roma e contestação de Paulo
Em seguida, levanta-se Pedro e fala em nome de todos os apóstolos: “Senhor, em Roma, na velha capital dos pagãos, surgida aos poucos — quando Troia, o ninho de víboras foi transforma- da num montão de escombros, e Babel e Tiro começaram a ficar abaladas — reina há mil anos uma hierarquia composta de pagãos, judeus e de Tua muito reduzida Doutrina. É ela encabeçada por um Papa que se diz representante de Deus na Terra, meu sucessor, e seu trono, meu assento. Na realidade, nada mais é que um regente pagão de um pequeno país. Afirma, no entanto, ser senhor do Poder e da Força de Teu Espírito Santo, jamais procurando proteção junto de Ti, e sim com os potentados da Terra, quando se vê perturbado pelas inquietações mundanas. Este Papa ora se acha em apuros e pede, em público, socorro à Virgem Maria, a seu ver, única auxiliadora na breve reconstrução de seu poderio. Mas, como não crê em tal so- corro, faz vir ainda outro auxílio, contra o qual levanta leve protesto para demonstrar ao mundo ter a necessária proteção do Alto. Caso os potentados insistam em ajudá-lo, é claro terem sido insuflados pela Rainha Celeste a proteger a Igreja de Deus na Terra, porque o inferno a ameaça dominar. Que dizes, Senhor, a essa Comunidade?
Paulo a organizou verdadeira e pura, e ela assim se manteve por alguns séculos. Há mil anos, porém, enterrou-se num paganis- mo abjeto e mau, cobiçando ouro, prata, grandeza e domínio ab- soluto sobre todos os povos, enviando para tal fim os mais astutos missionários a todas as regiões. Quando terminarão tais maquina- ções, Senhor?
Os povos, que de há muito se deixaram conduzir paciente- mente por essa pretensa ‘filha do Céu’, se atreveram a lhe arrancar a luminosa máscara. E qual não é sua revolta ao verem a sua verda- deira face! Usa, porém, todos os meios para consertar os rasgos dessa
máscara. Senhor, Tua Vontade Se faça! Mas conviria riscá-la da lista dos vivos.
Se permitires que ela se refaça, não melhorará nem fará peni- tência, mas aumentará suas maquinações de ludíbrio, de sorte que também os que ainda acreditam em Ti serão por ela atraídos e cor- tejados. Finalmente, nada mais Te restará fazer com ela senão aquilo que aplicaste a Sodoma e Gomorra.
É bem verdade ter a Igreja gerado uma quantidade de filhos bons, motivo por que mereceu, cerca de mil anos, Tua grande Paci- ência e Indulgência. Eu e meus irmãos nos alegramos com este fato. Agora, tornou-se estéril, em virtude de sua perversidade. Por este motivo julgo ter chegado a hora de dar-lhe o prêmio que merece.”
Digo Eu a Paulo: “Irmão, dize-Me, como doutrinador dos pagãos, se concordas com essas propostas, pois, em relação aos gen- tios, tens voz ativa, e depende de vós julgar os povos da Terra, con- forme profetizei.”
Paulo se curva e diz: “Senhor, observei os pagãos e lhes trans- miti Tua Palavra, aceita com grande ânsia e alegria, tornando-os me- recedores de Tua Graça; entretanto, eram filhos do pai da mentira e do orgulho. Os descendentes de Abraão, porém, crucificaram o Enviado de Deus e não O reconheceram. Por isto, pergunto: quem, entre os dois, tem mais responsabilidade? Qual o privilégio do judeu diante do pagão? Para que fim serve a circuncisão? O judeu afirma ser ela algo de relevante, porque demonstra ter Deus Se dirigido unicamente a seu povo. É isto um privilégio ou uma Graça de Deus? Acaso crê o judeu ter a Divindade Se dirigido aos seus antecedentes? O que importa isto? Deveria a descrença sustar a fé? Penso que não. Nada vejo entre os judeus e pagãos que pudesse ser classificado de justiça e mérito. Por isto é melhor afirmar que unicamente Deus, nosso Senhor e Pai, é Verdadeiro e Justo. Todas as criaturas, judeus ou pagãos, que ora se dizem cristãos, estão erradas e sem mérito perante Deus.
Se a injustiça dos gentios louva a Justiça Divina, que pre- tendemos nós julgar? Acaso Te aborreces por isto, Senhor? Creio que
não. Se assim fizesses, serias injusto. Quem conservaria o mundo se Deus pensasse qual homem na Terra?
Falarei como antigamente: Se a Verdade Divina for glorifi- cada através de minhas mentiras, conviria Deus julgar-me pecador? Conhecendo pela lei ser isto ou aquilo um crime, mas se o prati- cando surgisse algo de bom, acaso seria justa minha condenação? Qual é nosso mérito ao exclamarmos: Senhor, vê as ações criminosas de Teus povos! — Digo-vos: nenhuma. Sabemos perfeitamente que diante de Deus todas as criaturas são pecadoras e não existe umaque seja justa perante o Senhor. Assim sendo, como nos atrevermos a convidá-Lo a um julgamento, como se fôssemos sempecado?
Dizei-me qual o mérito daquela deslumbrante criatura que possa justificar a sua posição ao lado do Senhor? Todavia, Sua Graça o permite. Qual foi a minha justificativa quando persegui os que Nele acreditavam? Fui um malfeitor e a injustiça personificada. Deus não Se polarizou com meus pecados, mas chamou-me, como se fora um justo. Segui a Sua Voz e, de pronto, fui justificado pela Sua Graça. Acaso pretendeis acusar a Deus de injusto porter sido
Misericordiosocomum pecador?
Quem de vós poderia afirmar perante Ele ser compreensi- vo e sábio? Nenhum. E mesmo assim tencionamos forçá-Lo a um julgamento? Jamais alguém indagou: Quem e o Que é Deus?, ainda assim pretendemos dar-Lhe conselhos. Quem poderia afirmar nun- ca se ter desviado de Deus e trabalhado sempre em Seu benefício? Afirmo de plena consciência não existir entre nósum melhor que o outro, entretanto reclamamos: Senhor, castiga a maldade humana.
Que seria se Ele Se erguesse e repetisse as palavras dirigidas aos judeus quando Lhe apresentaram a adúltera em Jerusalém? Não seríamos obrigados a nos afastar, cheios de vergonha? Não há umentre nós com o direito de afirmar: Senhor, fiz apenas o bem e não me lembro ter pecado! — Somente um tolo poderia repetir a frase do fariseu que louvava a Deus por lhe ter permitido ser tão justo. Sabemos que o Senhor não aceitou sua justificativa e escolheu o publicano.
Se tudo isto sabemos, por que Lhe pedirmos para agir den- tro de nossa compreensão, como se fossemos mais sábios que Ele? Isto não é justo de nossa parte. Se tudo que possuímos nos foi dado por Ele, por que nos vangloriarmos e enchermos Seus ouvidos como se Ele fosse surdo e cego, ignorante e fraco? Amigos, quais os cami- nhos que não foram traçados por Ele? Se possuímos tudo por Ele, e tudo que fomos e somos depende apenas da Sua Vontade, como afirmarmos: Senhor, cumpre finalmente o que prometeste e aniquila os malfeitores na Terra! — Penso ser muita presunção nossa.
Os lábios humanos sempre foram sepulcros abertos: pro- ferem mentiras e o veneno das víboras está em suas palavras. Seus pés estão prontos a levarem, rápido, a morte ao próximo, e todos os seus caminhos estão cheios de desgraça, tristeza, sofrimento e atri- bulações. O verdadeiro caminho da paz em sua plenitude ainda não foi descoberto pelos mortais, pois o temor de Deus é-lhes um mito.
Sabemos existir a lei para os que a ela estão sujeitos e não para os que se encontram acima ou dela jamais ouviram falar, a fim de que o mundo seja, finalmente, obrigado a se calar, reconhecendo que todos somos e seremos eternos devedores de Deus. Compreen- dei bem: Não existe criatura que possa ser justificada pela lei diante de Deus, mesmo que a cumprisse até a última vírgula. Pela lei surge o conhecimento do pecado, e quem reconhece o pecado se encontra dentro dele.
Todavia recebemos uma Nova Revelação — como anterior- mente pelos profetas e suas leis — pela qual nos é demonstrado ser possível às criaturas alcançarem a Verdadeira Justiça sem o auxílio da lei, que somente tem mérito por Deus. Por que exclamais: Senhor, julga-os e dá-lhes o prêmio merecido; apaga seus nomes do Livro da Vida e entrega-os à morte?! — Amigos, isto não é justo de vossa parte. Se bem que acreditais: Apenas Tua Vontade Se faça!, isto não desculpa vossos maldosos corações. Realmente, preferiria morrer a pedir a Deus que faça isto ou aquilo. Acaso destes alguma faculdade de sentir a Ele, ou não fomos aquinhoados, com todos os sentidos, pela Mão do Pai? Entretanto, falamos como se Ele necessitasse de
nossa orientação. Se filhos imaturos assim agissem, poderiam ser perdoados; mas os velhos cidadãos do Céu — presumo eu — já deveriam saber o que são e Quem é o Senhor.
Julgais ter o pecado alguma importância diante de Deus? Enganai-vos. Foi sempre sem valor algum, seja qual for. Quem pre- tender condenar o erro terá de estar isento de qualquer falha, pois não é possível a um pecador julgar outro. Se assim fizer, será injusto, porquanto não existe justiça no pecado. Se diante de Deus todas as criaturas são pecadoras, compartilhando do erro e da injustiça, que direito lhes assistiria?
Possuímos, sim, uma justiça válida perante Deus, mas não em decorrência de nosso conhecimento do pecado, da lei e de seus efeitos, senão pela fé Nele e pelo puro amor para com Ele. Tal justiça se chama ‘Graça e Misericórdia Divinas’.
Perante Deus não há diferença entre as criaturas, de qual- quer forma contaminadas pelo pecado e destituídas do mérito a que deveriam fazer jus. Se, pela fé, forem aceitas por Deus, tor- nam-se justas sem mérito, apenas pela Graça que emana de Suas Próprias Obras da Salvação. Se não ajudamos Deus na Criação do Universo, muito menos podemos Lhe ser úteis na Realização da Salvação. Se nada fizemos por sermos os próprios libertados, como pretendermos compartilhar da função de Juiz, que compete unicamente a Deus?
Conheceis, acaso, o verdadeiro Trono da Justiça Divina? É o Cristo! Nele habita fisicamente a Eterna Plenitude da Divindade. O Trono de Deus, porém, tornou-Se um Trono da Justiça através de Suas Próprias Obras, podendo transmitir Graça e Misericórdia a quem quiser. Onde fica, pois, nossa glória? Em parte alguma! Quais seriam as obras da lei que a garantissem, uma vez que não existe lei sem pecado e vice-versa?
No entanto, temos uma glória e uma justiça que, todavia, não provêm da lei de suas obras, senão de Sua Graça, da qual com- partilhamos através da fé que Nele depositamos e das Obras de Sal- vação. Tal justiça não nos dá o direito de assisti-Lo no julgamento,
porquanto continuamos os mesmos pecadores, muito embora agra- ciados de modo sublime.
Se nossa justiça se fez através da fé em Deus, e não pelo cumprimento da lei, deveria a fé sustar a lei? De modo algum. Pois a fé edifica e dá vida à lei, enquanto a lei aniquila a fé, caso não seja antes vivificada. A manifestação da fé é o amor, e a lei viva é a ordem desse amor. Quando a fé é justa, tudo está justificado. A fé sendo falsa, também o será o amor, tornando-se um sentimento desordenado.
Mas a quem cabe a culpa quando alguém recebe uma fé er- rônea através de uma doutrina falsa? Digo-vos: Quem crer conforme foi ensinado possui uma fé sem dolo e receberá a Graça. Mas ai dos responsáveis por uma doutrina falsa! São malfeitores e perturbam a Ordem Divina. Mas somente ao Senhor cabe julgá-los.
Quando o maior e mais puro de todos os anjos lutou contra Satanás no monte Sinai pelo corpo de Moysés — fato que tu, Moy- sés, deves te lembrar — o espírito poderoso não o condenou, mas disse: O Senhor te julgará! — Se o arcanjo Miguel não se arrogou tal direito, como queremos julgar nossos irmãos ou convencer o Senhor a fazê-lo?
Digo mais: Ele age e julga sem esperar pelo nosso parecer. Mas se Ele vos disser: Fazei isto ou aquilo, vossa natureza deve ser pura ação, pois a Palavra do Senhor é ação plena em vosso cora- ção. Agradeço-Te, Senhor, por teres posto tais palavras em minha boca e permite trazerem elas os melhores resultados na Terra como em todos os Teus Céus. Toda Glória e Honra são eternamente Tuas! Amém.”
Digo Eu: “Paulo, és o Meu Braço Direito e Minha Visão Justa. Foste por Mim escolhido como instrumento, e o serás para sempre. Falaste certo em tudo. No entanto, ainda perguntaremos a esses recém-vindos qual seu parecer, e depois adotaremos a solução certa. Fala, Roberto Blum, que faremos à Terra, sugadora de tan- to sangue injustamente derramado? Qual deve ser a penitência que merecem, ela e os poderosos que te justiçaram?”
Roberto Blum e Jellinek se externam. Resposta do Senhor
Diz Roberto: “Senhor, no que me toca, já não tenho con- tas a ajustar com a Terra, portadora de criaturas mais cegas do que maldosas. Se posso fazer um pedido, ele deve apenas soar: Senhor, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem. Deposita em seus corações paz, humildade e amor e, deste modo, a Terra maravilhosa beijará novamente seus filhos, sustentando-os através de Tua Graça e Mise- ricórdia. Eis tudo que poderia pedir-Te.
Todavia, não deposito nesse meu pedido ou desejo uma exi- gência determinada, porquanto presumo não estar sazonado assim como eu não estou amadurecido. Penso, de coração, ser mau quem pretenda fazer mais do que pode; pior, quem enterra seu talento. Se alguém, no entanto, desejar o que seu coração julga bom para o próximo e até mesmo procura realizá-lo, só posso considerá-lo bom e justo, porquanto deriva do puro amor ao semelhante.
Pode acontecer que, em vez de benefício, seja o contrário para ele. Sei, por exemplo, de um doente para o qual tenho remé- dio que já curou muitos; assim, seguro do seu efeito e movido pelo amor, dou-lhe o remédio que, entretanto, piora seu estado. Acaso não deveria ter agido deste modo? Como não! Pois não devo me abster de desejos e fazer aquilo que julgo bom e justo, de acordo com minha consciência, pois o êxito não está em mim, senão em Teu Poder, Senhor. Esta foi minha intenção em Viena: conseguir o melhor para os oprimidos. O resultado de meu esforço foi negativo; todavia, creio não ter falhado, porque queria apenas o que julgava certo. Assim haverá muitos. Deviam por isto passar pelo julgamen- to? Transmite-lhes, Senhor, a justa compreensão e apazigua seus co- rações, que estarão livres de todo mal.
Existem criaturas obstinadas que preferem arrasar o mundo que desistir de seus princípios, a seu ver, dentro da justiça. Tu, Se- nhor, terás meios para derreter como cera a rocha mais dura, e uma fagulha desse fogo, depositada nos corações desses teimosos, fá-los-á
mais brandos e compreensivos. Eis minha opinião e meu melhor desejo. Até que ponto podem ser bons aos Teus Olhos, não tenho medida segura em meu coração. Por isto Te entrego tudo, Senhor!”
Digo Eu: “Caro amigo e irmão, também atingiste o ponto nevrálgico, pois a verdade plena e fiel jorrou de tua boca, e serás futuramente um bom instrumento de luta para Mim. Teu pedido foi bom e nobre, e te asseguro de antemão: adotarei tua medida e sempre a aplicarei. Contudo, deve Meu amigo Jellinek expressar-se, para vermos se concorda contigo. Fala, Jellinek.”
Responde esse: “Ó Senhor, tanto Roberto Blum quanto o grande Paulo falaram como sente minha alma. Que mais direi? Tua Vontade Se faça, Senhor — e a ordem mais maravilhosa abençoará a pobre Terra. O que anteriormente foi dito pelos patriarcas ultra- passou, de certo modo, meu horizonte de conhecimentos. Natural- mente são bem intencionados, porém de outra forma. Apenas me parece estranho exigirem de Ti o cumprimento de certas promessas, acusando-Te de indecisão. Mas como já disse, não o entendo. Além do mais, sinto imensa alegria por conhecer pessoalmente aqueles de cuja existência duvidava. Sua expressão é deveras impressionante.”
Digo Eu: “Aqui no Reino da Bem-aventurança todos vós podeis dizer com facilidade: ‘Senhor, Tua Vontade Se faça!’ Mas na Terra as coisas têm aspecto diverso. Na matéria humana habitam os mesmos espíritos e almas imortais como aqui e também almejam desenvolver-se livremente, portanto não suportam a escravidão sob o cetro férreo dos monarcas. Por isto se levantam em toda parte, num esforço supremo para romper o poderio monarquista. Os re- gentes, por sua vez, arregimentam seus súditos para um poder béli- co, ameaçando de morte os rebeldes, mandando matar aos milhares, sem piedade. Os oprimidos clamam a Mim vingança aos reis incle- mentes, e estes Me pedem socorro na vitória contra os rebeldes.
Que devo fazer? A ambos os partidos não assiste direito jus- tificado, no que diz respeito às atuais circunstâncias, pois tanto um quanto outro quer dominar, e ninguém se submete à obediência. A questão é a seguinte: Se Eu ajudar aos monarcas, eles estende-
rão a antiga cegueira sobre os povos, onde espírito algum poderá se desenvolver livremente e o ódio contra os opressores aumentará. Socorrendo o povo, ele se vingará nos superiores e, finalmente, ba- nirá Minha Doutrina suspeita, em virtude da ação de Roma, e criará uma puramente mundana, no feitio da de Ronge (neocatólico).
Vede, Meus amigos, estarem as coisas na Terra de tal modo a impossibilitar-Me qualquer medida. Se deixar tudo conforme está, os dois inimigos jamais chegarão a um acordo, em virtude da ira recíproca. Ajudando ou não — estarei errado. Que fazer?
Jellinek bem pode dizer: Senhor, que Se faça a Tua Vontade! Mas, em tal situação? Roberto Me aconselha depositar uma fagulha de meiguice celeste nos corações dos monarcas, que os tornaria mais mansos, melhores e sábios. Está certo. Mas será que os povos, exces- sivamente excitados e revoltados, neles confiarão? De modo algum. Nada é tão difícil reconquistar como a confiança abalada.
Opinas ser necessário lançar tal fagulha também nos cora- ções dos indivíduos. Seria realmente uma solução fácil. Neste caso, tanto os regentes quanto os povos deixariam de ser criaturas livres. Cairiam em julgamento, sendo transformados em animais nobres, de semelhança humana, e não haveria possibilidade de movimenta- ção espiritualmente livre. Enquanto quisermos conservar os homens como tais, não deveremos impor certo rigor, pois, se assim agirmos, a Humanidade deixaria de existir, caindo no poder eternamente in- vencível como escravos e animais. Vês, portanto, não se justificar tal medida. Que achas razoável fazermos, amigo Becher, para socorrer os povos oprimidos da Terra?”
CAPÍTULO 83
A Natureza do Gênero Humano é condicionada pela Terra e pela posição desta dentro do Universo
Meneando a cabeça e dando de ombros, Becher diz: “Se- nhor, Onipotente e Sábio, se não vês saída para a atual confusão terráquea, como poderemos encontrar solução? Não havendo meio
interno, convém empregar externos, tais como: fome, peste e alguns fenômenos no Firmamento, que todas as criaturas se submeterão. Se tais medidas não forem aplicáveis, em virtude da liberdade do espírito — então que se estraçalhem até dizer ‘chega’! Julgo ser ex- cessiva nossa preocupação com a raça humana, pois ela não vale uma bala de canhão. Melhor seria acabar-se com ela e depositar no orbe uma melhor. Tanto os grandes quanto os pequenos são do diabo. E de que modo se dominará a perversidade satânica? Não vejo meio adequado. Por isto, convém acabar-se, de uma só vez, com tudo. Externo apenas minha despretensiosa opinião.”
Respondo: “Caro amigo Becher, seria coisa muito cômoda caso fosse possível aplicar-se tuas medidas, que de maneira alguma podem ser adotadas de um modo geral, pois redundariam na maior desgraça, não só para a Terra, mas para todo o Universo.
O Gênero Humano deriva da Terra e tem sua natureza e qualidade. Teria, portanto, pouco resultado a completa extinção de todas as criaturas terrenas e seríamos obrigados a fazer surgir outras da matéria telúrica, que em breve se assemelhariam às atuais, como os frutos de uma árvore.
Em tal caso, teríamos de eliminar todo o orbe e colocar outro em seu lugar, o que seria um golpe ainda maior contra Minha Or- dem. De uma árvore que produz frutos deteriorados pode-se tirar a casca e alguns galhos e ramos, e ela produzirá novamente frutos fres- cos. O cerne e as raízes, porém, não devem ser destruídos. A Terra é justamente o Cerne da Vida da Árvore do Espírito e principal raiz do Universo. Se nela iniciássemos uma obra de destruição, entrega- ríamos não só ela, mas toda Criação à final desintegração, o que seria prematuro por alguns decilhões de anos terráqueos. Não posso, de modo algum, aceitar tua proposta, Becher. Veremos se, neste meio tempo, o amigo Messenhauser se lembra de algo prestável. Que Me dizes, amigo?”
Responde este: “Ó Senhor, atiras-me num grande embaraço. Que poderia aconselhar, quando os primeiros espíritos da Terra se fizeram ouvir, sem resolverem o problema? Eu certamente apresen-
taria uma tolice ainda maior do que a Dinastia Austríaca, que dei- xou de aceitar a coroa imperial da Alemanha porque alguns eslavos ignorantes viram neste ato uma degradação da soberania. Agora sim é que tal aceitação seria um maior aviltamento, porquanto terá de submeter-se ao domínio russo caso pretendesse algum resultado, ou ser destruída pelo câncer, que já iniciou sua devastação nas pró- prias vísceras.
Meu parecer, Senhor, seria idêntico, caso quisesse orientar-Te para o equilíbrio das confusões da Terra. Bem sei que tens ao Teu dispor os melhores e mais eficazes recursos, em maior número do que as estrelas existentes no Espaço. Usa o menor que, pela Tua Von- tade, da noite para o dia tudo melhorará. Proporciona aos monarcas a luz verdadeira e aos súditos, meiguice e paciência no porte da cruz e algum terreno abençoado — e todos estarão satisfeitos. Caso os cornos de Satanás tenham crescido em demasia, corta-os por alguns raios bem dirigidos. Isto aliviará, a meu ver, o orgulho dos grandes da Terra, inclusive o do príncipe Alfredo Windischgrätz — o que lhe será muito salutar. Existindo no mundo muitas pessoas de boa índole e intenções, por que razão deveriam ser castigadas quando fores reduzir os cornos dos orgulhosos e, como vejo, já o fazes? É uma humilhação para aqueles cuja classificação começa com a no- breza. Não desejo mal a ninguém, mas apenas que os grandes reco- nheçam serem também criaturas aquelas que julgam ser alimento para canhões.
Sem regentes e leis sábias não poderia subsistir uma sociedade; os responsáveis deveriam compreender que existem para bem servir o povo, e não ser este, qual mercadoria, manobrável a seu bel pra- zer. De modo idêntico devem usar a espada da justiça, mas somente na defesa desse povo contra seus inimigos. Com as armas do amor alcançarão muito mais das multidões. Sabes, Senhor, ser isto mero desejo de minha parte. És o Senhor, cujos Desígnios e Caminhos ocultos são insondáveis. Estou certo de que encontrarás a solução justa. Talvez seja necessário romperem-se as comportas, do contrário não haverá modificação. Tua Vontade, porém, Se faça, Senhor.”
Digo Eu: “Teus desejos não são destituídos de valor e poderão ser aproveitados. A transmissão de luz aos regentes e a meiguice a ser dada aos povos não se aplica. Para tal fim será pregado o Evangelhoa todos eles, recebendo cada um a Água Viva do Poço de Jacob. Caso queiram Luz, Conhecimento e Verdade Plenos, basta sorvê-los na- quela fonte. Não o querendo, é impossível obrigá-los a tanto usando o Meu Poder, pois tal medida prejudicaria, ao invés de beneficiar. Isto não nos é possível fazer, mesmo pelo amor a toda a Vida.
Outra coisa seria se os reis e as nações Me fizessem tal pedido, pois receberiam tudo em Meu Nome. Meus Ouvidos, porém, nada disto percebem. Ouço, vez por outra, gritarem: Senhor, protege nos- so trono, cetro e coroa e deixa-nos vencer a todos que se levantam contra nós! — Da parte do povo, em geral, nada se ouve, e algumas pessoas isoladas nada representam.
Cadaindivíduorecebeoquepede,aospovosnãopodeser dado
oquepoucossuplicam.Por isto, amigo Messenhauser, seremos obri- gados a tomar outras medidas, a fim de conseguir harmonia entre as nações. As cordas estão tensas; porém, como já deves ter percebido, não de modo suficiente. Já foram despertados novos elementos que farão sua incumbência. De fato, será feita uma grande limpeza até que se consiga separar o joio do trigo. Falta, porém, ouvirmos nossa amiga Helena. Então, Minha filha, que sugeres que se faça para a melhoria da Terra? Talvez teus conselhos sejam melhores?”
CAPÍTULO 84
Helena se recusa, mas finalmente se prontifica a falar
Diz Helena: “Ó Senhor, Flor deslumbrante de minha alma e vida! Analisa o meu coração que Te ama sobre tudo — e Tua Oni- presença verá o que penso e sinto. Meu querido, mais sábio, pode- roso, amável e maravilhoso Jesus! De tanto amar-Te, não posso falar. Lá atrás estão muitas pessoas: o general Olavo, o barão, sua esposa e filhas, Ema, em vida casada com um infiel, vários domésticos, o en- graxate e a célebre Mira. Talvez conseguissem pronunciar algo me-
lhor do que eu, que me sinto fraca para fazê-lo. Basta calculares ter sido uma plebeia vienense que agora se encontra a Teu lado, Senhor de Céus e Terra! Além disto, todos os patriarcas e apóstolos. Isto não é brincadeira. Peço-Te deixares falar primeiro os outros, talvez mais tarde me lembre de algo razoável.”
Obtempero: “Querida, bem sei e muito Me alegro por sen- tir-Me tão amado por ti. Os demais hóspedes desta casa também fa- larão, mas primeiro tu, porque estavas Comigo antes deles e por Me amares tão profundamente. Além disto, perdeste tua vida na luta em Viena, o que não foi de teu agrado. Tens que te externar em assunto que tanto te tocou. Fala, que saberei escolher o melhor.”
Diz ela: “Que maçada! Não deixa de ser justo e necessário acontecer aquilo que quiseres. Saberei encontrar uma saída. Lem- bro-me ter o apóstolo Paulo, por insuflação Tua, afirmado que mu- lher alguma deveria se pronunciar numa assembleia de homens. Certamente quiseste experimentar minha tendência para a tagareli- ce. Mas Helena se tornou mais inteligente e não cai nessa!”
Respondo: “Julgas não Me ser possível pegar-te. Provar-te-
-ei o contrário e serás até obrigada a falar pela ordem de Paulo e den- tro de Meu Mandamento. Em uma Carta aos Romanos, no capítulo 16, ele recomenda Febe, a serviço na Comunidade de Kencrea, Pris- cilla, uma certa Maria, Trifena e Trifosa e sua querida Persida que muito laboraram em Meu Nome, pela palavra e ação.
Portanto, Paulo não impôs um freio a tais mulheres, mas apenas àquelas que pretenderam, por orgulho, ter assento na Co- munidade sem possuírem e compreenderem o Meu Espírito, e mes- mo assim queriam se externar, como se soubessem tanto quanto os renascidos. Se uma mulher se tornou plena de Meu Espírito, tanto nela como no homem o mesmo, deve ser até obrigada a se pronun- ciar, dentro daquilo que o espírito exige.
Meus apóstolos formaram, portanto, a melhor Comunidade do mundo, porque fundada por Mim. A quemEu Mesmo enviei para anunciar aos irmãos Minha Ressurreição quando no terceiro dia surgi da tumba? Uma mulher, mais ou menos de tua constitui-
ção moral. Se o posterior mandamento de Paulo devesse ser aplicado a todas as mulheres tagarelas — como uma Madalena poderia se atrever a se arvorar em apóstolo?
Além disto provei, de certa feita, aos saduceus, terminarem no Reino dos espíritos todas as divergências terrenas, isto é, os direi- tos de sexo. São todos iguais aos anjos de Deus e desfrutam de umsó privilégio: tornarem-se filhos do Pai. O mesmo acontece contigo, Helena. Muito embora Me alegre tua modéstia, terás de falar, e isto porque possuis o mesmo direito que Adão, ao teu lado. Anima-te!”
Diz Helena: “Vejo ser impossível escapar-Te. Coisa estra- nha Tua Sabedoria em comparação à nossa. Mas, um pedido bem formulado não Te faria vacilar na Tua Exigência?”
Respondo: “Sim, muito se consegue Comigo por um pedido justo, mas nem tudo. Se, por exemplo, alguém na Terra Me pedis- se, de todo coração, deixá-lo viver eternamente, porque muito lhe agrada a vida, não poderia satisfazê-lo porquanto seria contra Minha Ordem. De modo idêntico não poderia aceder ao teu pedido; por isto, abre tua boca bem feita e fala o que te vai n’alma.”
Diz Helena: “Pois bem, em Teu nome, meu Amado Celes- te, falarei! Se, por acaso, alguma coisa imprópria escapulir de minha língua, dá-me um sinal para que não faça fiasco diante de Ti e dos dignos representantes da Terra! Eis o meu parecer:
Na Terra, algumas pessoas estão num nível elevado e são muito ricas, enquanto a maior parte é plebeia e nada possui. Por isto, os primeiros desprezam os de classe inferior, porque existe o espectro da possibilidade de os pobres se reunirem para avançarem no supérfluo dos grandes e ricos. Estes não pestanejam em usar qualquer meio para evitá-lo. O espírito tem de ser oprimido, seja como for: por mistificações dos padres, amordaçamento da impren- sa, proibição de livros bons, inclusive a Bíblia! Os renitentes são castigados de tal modo a lhes fazer perder o fôlego! Quem, nessas circunstâncias, poderia alcançar o despertar do espírito?
Além disto, tudo que possa contribuir para o aniquilamen- to espiritual é permitido. Haja vista as diversas formas de prostitui-
ção. As aparentes medidas de policiamento não produzem o menor efeito nessa calamidade. Se as ditas mulheres forem apanhadas pela polícia, através da denúncia de um cidadão de cérebro atrofiado, obedecendo ao pedido de moradores que ameaçam se mudar caso as coitadas não sejam despejadas da vizinhança, elas dormem uma noite na delegacia e às vezes são levadas por quinze dias à Casa do Trabalho; isto em nada altera a situação, pois são mandadas para a rua, podendo mais tarde voltar, mormente quando ainda jovens; as velhas não são tratadas com deferência! Afora isto, permite-se farrear à vontade, mesmo que a impudicícia prejudique o espírito! As co- médias imorais também são autorizadas, desde que não contenham críticas ao Governo.
Mesmo assim, serão empregados meios drásticos se alguém quiser se levantar e demonstrar ser de origem divina! Dr. Becher e seus amigos são testemunhas da maneira pela qual os grandes pre- zam toda manifestação espiritual em público! Quem se atrevesse a lhes dizer a verdade receberia o título de ‘escória da Humanidade’, determinando-se bom preço pela sua cabeça e, caso fosse preso, seria melhor não ter nascido!
Assim, Senhor, andam as coisas na Terra e não é de se ad- mirar que as criaturas se levantem e se vinguem naqueles que, há séculos, foram seus verdugos e vampiros! Eu, mulher, confesso aber- tamente ter a pobre Humanidade direito a tal rebelião e está em tempo de se arrancar o ofício de assassino aos grandes, destituídos de amor para com o próximo! Devem os ricos dividir sua posse com os pobres, e de seus enormes castelos se farão asilos! Os pobres devem frequentar escolas dirigidas por professores formados pelo Teu Es- pírito; do contrário, não haverá melhoria na Terra, tudo piorando. Tanto a maldade dos grandes quanto o ódio dos pequenos aumenta- rão qual avalanche a se despencar da montanha! Se não empregares medidas drásticas, Senhor, os países que conheço estarão perdidos!
Acaso