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ROBERTO BLUM

Volume I

ROBERTO BLUM — 2 volumes

Recebido pela Voz Interna por Jacob Lorber

Traduzido por Yolanda Linau

Revisado por Paulo G. Juergensen

Direitos de tradução reservados

CopyrightbyYolanda Linau

UNIÃO NEOTEOSÓFICA

www.neoteosofia.org.br

Edição 2020

ÍNDICE

  1. A vida de Roberto Blum 15

  2. Chegada do fuzilado no Além e suas primeiras impressões. Despertar da consciência e explicação errônea desta sensação 17

  3. Roberto presume estar narcotizado 18

  4. Grito desesperador por Deus. Referência à pessoa de Jesus. Desejo da

não existência 19

  1. Tentativa de marchar e nadar no Espaço trevoso. Monólogo 20

  2. Calma externa, inquietação. O que é a vida? Desejo de paz oriundo da fé.

A lembrança da família leva-o à prece 22

  1. Respeitosa recordação de Jesus provoca fortes coriscos 23

  2. Despertar do amor à vida. Ira e vingança transformam-se em

pensamentos de perdão. Novo corisco e claridade permanente 25

  1. Toda a sapiência do mundo é fútil. Por isto Jesus recomenda a fé 26

  2. Bons pensamentos sobre Jesus. Novo corisco ilumina a situação de Roberto, de modo benéfico. Cresce a fé na imortalidade e em um Deus

de Amor. Aparece outro corisco 27

  1. Saudades de Jesus. A zona de luz se aproxima 29

  2. Surge uma criatura na zona iluminada. Será Jesus Mesmo? Imensa

alegria de Roberto nesta expectativa 31

  1. Roberto grita por socorro. Pela primeira vez a alma desencarnada

encontra solo firme 32

  1. Roberto e Jesus. Questão de importância vital 33

  2. Boa réplica de Roberto 35

  3. O Senhor faz promessas dentro de certa precaução. Discurso veemente

de Roberto 36

  1. O Senhor faz objeções. A Natureza Divina de Jesus 38

  2. Necessidade da autoridade terrena. Não pode existir comunidade sem orientação. Ordem e obediência 42

  3. A obediência. Exemplos em a Natureza 43

  4. As cordilheiras e sua necessidade 45

  5. Aparecimento das montanhas médias e pequenas e sua necessidade 47

  6. Submissão gradativa entre os homens 49

  7. Roberto indaga do abuso do poder 51

  8. Resposta extensa e confortadora. O castigo é causado pela maldade do homem, e não por Deus 53

  9. Razão e finalidade da vida terrena. Felicidade terrena ou eterna? Que trouxeste contigo à Eternidade? 55

  10. Resposta de Roberto: Devolvo minha simples existência àquele que ma

deu! Haverá um Deus de Amor que trate suas criaturas tão cruelmente? 57

  1. A emancipação do homem. Na educação aparentemente dura

manifesta-se a mais elevada Sabedoria do Amor 60

  1. A própria morte é um meio de salvação do Amor Divino 62

  2. O verdadeiro sentido do pronunciamento: “Afastai-vos de Mim,

malditos!” Pecado contra o Espírito Santo 64

  1. O rico e o pobre, no Além. Quem é causador do inferno? Somente a

maldade dos espíritos 66

  1. Quem é a Verdadeira Divindade? 68

  2. Roberto duvida da Divindade de Jesus; prontifica-se, porém, em nela

acreditar cegamente 69

  1. A fé verdadeira e a fé errônea. Perigos da vida nababesca 73

  2. Roberto externa suas noções de fé e de veneração divina 74

  3. As duas fontes de conhecimento do homem. A verdadeira fé provém da

luz do espírito 77

  1. Roberto se aborrece pela recordação de suas fraquezas carnais. Deseja

outras palestras em local mais agradável 79

  1. O perigo psíquico do elogio. O próprio arcanjo necessita de humildade

para sua evolução espiritual 81

  1. Roberto se admira de não ter sido suficientemente humilhado.

Recordação de sua vida passada 83

  1. Transformação benéfica em Roberto. Explicação acerca de João Baptista

como predecessor de Jesus 84

  1. Início de vida nova provinda do Espírito Divino. Orientação acerca de

uma prova de liberdade em grau evolutivo 87

  1. Roberto se prontifica a tudo 88

  2. O verdadeiro irmão. Tudo se organiza dentro do amor a Jesus 89

  3. O novo e maravilhoso mundo de Roberto 91

  4. Tarefa de Roberto no novo lar. A primeira visita 94

  5. Roberto dá testemunho de sua fé 96

  6. Estado psíquico dos antigos companheiros de luta 99

  7. A casa de Roberto. Interpretação espiritual dos andares. Intercâmbio

com o Senhor pelo coração 101

  1. O deslumbrante interior da casa. Cenas escandalosas provocadas pelos vienenses. O Senhor, pacientemente, cura os males psíquicos 103

  2. Um grupo de dançarinas humildemente pede acolhida 105

  3. Os vienenses pretendem requisitar algumas dançarinas. Roberto faz um sermão impetuoso. Salvação das almas à beira do abismo 107

  4. Os três companheiros de luta analisados pelo Senhor. As dançarinas,

gratas, como instrumentos de boa vontade 111

  1. A obra do bem no espírito de Roberto. A dedicação do Senhor o comove

e sua compaixão reverte em benefício das moças 113

  1. Os três revolucionários vienenses no Além. Seu parecer sobre Deus,

inferno e destino 114

  1. Jellinek prova aos amigos a existência de Deus 117

  2. Os heróis medrosos, Jellinek na vanguarda, vão sondar o terreno.

Surgem o Senhor e Roberto 119

  1. O coração de Jellinek se inflama pelo “amigo” de Roberto. O vinho

celeste. Brinde de Jellinek e resposta do Senhor 121

  1. Efeito do vinho celeste. Indagação por Cristo e Sua Divindade. Resposta

de Roberto 123

  1. Primeira prova para os três amigos de Roberto 125

  2. O Senhor fala do “fim que justifica o meio” 128

  3. Humildemente as dançarinas pedem esclarecimentos acerca de Deus.

Perigo das pesquisas externas 129

  1. Luta do homem contra os elementos impuros. Perfeição gradativa 133

  2. Os vienenses devassos, no jardim. Sua cura amarga, porém necessária 135

  3. Reação dos hóspedes diante das bailarinas. A heroína das barricadas. O

orador circunspecto 137

  1. O orgulhoso e circunspecto orador é admoestado por Roberto. A

heroína, bondosa, em vão procura convertê-lo 139

  1. Os vienenses e o húngaro desabrido. A heroína se dirige a Jellinek, que

lhe indica Jesus 140

  1. A heroína pede socorro para todos, junto ao Senhor, que lhe aconselha confissão plena 142

  2. Importante observação do Senhor acerca da finalidade desta

comunicação, aparentemente chocante 145

  1. A heroína ansiosa e o orgulhoso circunspecto. Admoestação do Senhor. Milagre ocorrido com Helena 146

  2. Discussões em torno da transfiguração de Helena. O sonho e a vida real. Comparação feita por Olavo 149

  3. Vida conjugal do libidinoso. O prestimoso general 151

  4. O horizonte conjugal do libidinoso se anuvia. A verdadeira índole de Ema 154

  5. Exigências de Ema. Tentativa de conciliação 158

  6. Crise de nervos e transformação de Ema 159

  7. Surpresas para o libidinoso. Bom conselho de Olavo 160

  8. Olavo intercede em favor dos amigos. Promessa do Senhor. O teimoso libidinoso 162

  9. O honesto engraxate e a Mira indesejável. Purificação psíquica do

libidinoso que abandona a Assembleia Celeste 165

  1. Olavo pede ao Senhor saciar as pobres almas 168

  2. Advertência acerca dos ignorantes. Revelação do Conselho Celeste em

vista do destino do orbe 170

  1. O venerável Conselho. Que deve acontecer à Terra? Falam Adão, Noé,

Abraão, Isaac e Jacob 173

  1. Prosseguimento do Conselho. Falam Moysés e David 178

  2. Crítica de Pedro a Roma e contestação de Paulo 181

  3. Roberto Blum e Jellinek se externam. Resposta do Senhor 187

  4. A Natureza do Gênero Humano é condicionada pela Terra e pela posição desta dentro do Universo 189

  5. Helena se recusa, mas finalmente se prontifica a falar 192

  6. O Senhor critica as propostas de Helena. A Terra não pode ser um Paraíso enquanto for campo de provação 197

  7. Conhecimento de Olavo. Um brinde celeste. A Nova Ponte de Luz e Amor

da Graça Divina 199

  1. A Ceia Celeste em benefício dos habitantes da Terra. Cena comovedora entre o Senhor e Helena. Um aparte de Adão. Vestido de noiva e coroa

de Helena, símbolos de seu amor puro e fervoroso 203

  1. Que vem a ser um justo beijo? O noivado Divino como prêmio do mais

puro amor a Deus 206

  1. A Terra e seus horrores. O espírito do anticristo. Uma alegoria na mesa do Conselho 208

  2. Prosseguimento do quadro, em cima da mesa do Conselho. Por que

Deus permite os horrores no mundo? 212

  1. Os contrastes são necessários à liberdade espiritual 214

  2. Luta dos seis animais. Efeito desse espetáculo sobre os homens-lobos e o

rei 215

  1. Amor-próprio e orgulho, raízes de todo o mal. A Vontade Imutável de

Deus como polo de equilíbrio 217

  1. Helena fala acerca do monstro de sete cabeças. Suas propostas de

melhoria 220

  1. Importante explicação do Senhor acerca do desenvolvimento de seres

livres e independentes. Chave-mor à compreensão da vida terrena 223

  1. A Obra de Salvação se destina principalmente aos filhos do mundo.

Parábola da árvore infrutífera 226

  1. Volúpia e orgulho. Difícil incumbência de Roberto Blum junto ao

libidinoso. Filosofia materialista 229

  1. O libidinoso faz justiça à verdade. Faz-se a luz da consciência,

demonstrando-lhe sua perversão diante de Deus 233

  1. Roberto encoraja o pecador, que hesita. Seus amigos o ameaçam.

Finalmente, acompanha o mensageiro de Deus 235

  1. Dismas confessa sua grande culpa, mas não pede misericórdia e, sim,

punição justa. Consequência de pedido tão errado 238

  1. Teimosia de Dismas. Críticas acerbas de seus amigos bem intencionados 241

  2. Perplexidade de Dismas diante da condenação geral. Dirige-se com sinceridade ao Senhor, pedindo Graça e Misericórdia 244

  3. Ema e Olavo perdoam a Dismas. O Senhor dá testemunho do forte

espírito “Paulino” em Dismas. Incumbência celeste ao convertido 246

  1. Dismas e seus amigos de antanho 248

  2. Obras do intelecto e obras do coração. Dismas conduz os renitentes ao Senhor 255

  3. Controvérsia entre o Senhor e Bruno. Humildade e prudência deste

atraem a Graça Divina 256

  1. Ceia celeste. Concorrência amorosa entre os convertidos. Bruno é

convocado à prova máxima do amor ao inimigo 258

  1. O herói do amor rodeado por inimigos no Além. O Amor do Cristo a tudo suplanta. Grande pesca de almas 261

  2. Espírito cordato entre as almas desordenadas. Inúmeros ignorantes vão

junto do Senhor. Bruno relata sua vida terrena 266

  1. O Senhor fala acerca da pescaria de almas. Pão, vinho e vestimentas

celestes, como dádivas fortalecedoras 268

  1. Bruno é feliz, porém faminto e sedento. O juiz dentro da criatura. A

ordem celeste 269

  1. Bruno orienta seus tutelados. Objeções de um oponente quanto ao renascimento e livre arbítrio 271

  2. Crítica acerca da deturpação da Religião pelo sacerdócio 275

  3. Bruno responde, inspirado pelo Senhor. Confronto entre a Doutrina do

Cristo e os sistemas humanos 277

  1. Crítica a Roma. Elucidação de Bruno quanto à utilidade da noite 280

  2. Deturpação da Doutrina pura em virtude do livre arbítrio. O Senhor ama

as ovelhas de Roma. O fim de Sua Paciência 282

  1. Os convertidos temem, em parte, a aproximação do Senhor. Humorismo

no Além 284

  1. Suscetibilidade de Bardo. Réplica de Nicolau 286

  2. A alma de Bardo é curada. Os Desígnios de Deus. Confraternização celeste .288

  3. Vestimenta no Além. O Senhor abençoa os recém-vindos. Bruno e seus amigos incumbidos da organização do refeitório 290

  4. Conselhos de amigos. Dismas acha a solução acertada. A bênção do

amor ao próximo 294

  1. Novas surpresas. Penetração de inúmeros guerreiros excitados. O chefe

pede uma prece 298

  1. Um padre quer oficiar missa por dinheiro. O general repele e critica

Roma. Roberto quer socorrer, quando o Senhor Se apresenta 301

  1. Alegria de Roberto pelo reencontro com o Senhor, que Se ocupa com o monge. Consórcio celeste 304

  2. Despertar espiritual do monge. Monólogo como ato introspectivo. Cristo

é a Aurora vital do náufrago 308

  1. O monge ouve a Doutrina de Jesus, o Crucificado. O espiritualmente

cego adquire a visão e reconhece o Senhor e Sua Graça Infinita 311

  1. Gratidão excessiva por parte do monge. A simplicidade do amor 316

  2. Tomás no Salão Celeste. Seu pedido a favor de seus oponentes. Sua

primeira tarefa, em companhia de Dismas 319

  1. Tomás e Dismas, em missão. Esclarecimento quanto à Pessoa de Jesus e

o caminho da salvação. O Senhor no limiar da Sala da Vida 321

  1. A grande multidão diante do Senhor. O General Teobaldo dirige-se a

Deus. O segredo da vida terrena é explicado 324

  1. A grande Ceia. O general e seu amigo discutem acerca dos milagres

Divinos. Tomás agradece pela cura. O inferno terráqueo 327

  1. Aproximação de uma falange de almas desesperadas. Filosofia acerca de carência de fé e amor 330

  2. O conde e o inescrupuloso. História de ambos 333

  3. Surge a vingança como consolo. O sofrimento ensina a orar 336

  4. Advertências espirituais feitas aos infelizes. Situação política de tal época 339

  5. Palestras a respeito de Jesus. Parábola do homem sem vestes nupciais e

das dez virgens 342

  1. O orgulho magiar rebela-se novamente, mas é abafado pelo inescrupuloso. O general e Roberto discutem acerca da contenda desses

espíritos. Grande Paciência do Senhor 347

  1. O conde continua hesitando em dirigir-se ao Senhor. Um homem do

povo toma a dianteira 350

  1. Faz-se a luz na alma do conde. Surgem uma cordilheira e um palácio maravilhosos. Aproximação de um mensageiro celeste 353

  2. Prosseguem as indagações acerca de Jesus e de Seu Paradeiro 358

  3. O franciscano discursa sobre o amor e critica o conde em virtude de seu

título. Miklosch interfere 360

  1. Prédica rigorosa do estranho contra a tendência da crítica 364

  2. Últimas dúvidas do monge. Os pecados mortais 368

  3. Estupefação diante da maravilha e grandiosidade da mencionada casa.

As almas anseiam por Jesus 369

  1. Encontro com velhos conhecidos. Surpresas! 373

  2. Momento supremo para o conde. O Senhor fala acerca da relação entre

Pai e filho 376

  1. Contrição do conde. A maturação para o Conhecimento de Deus. O

ignorante franciscano recebe orientação 378

  1. O franciscano recai em novas dúvidas. Seu pavor do inferno é curado

pelo Senhor 382

  1. O franciscano insiste no dogma católico. Finalmente derrete o gelo nesta

alma estarrecida 384

  1. O franciscano agradece ao Pai pelo alimento celeste. Abre-se o Reino de

Deus. A assembleia de espíritos felizes, na sala principal 388

S

eria ilógico admitirmos que a Bíblia fosse a cristalização de todas as Revelações. Só os que se apegam à letra e desconhecem as Suas Promessas alimentam tal compreensão. Não é Ele

sempre o Mesmo? “E a Palavra do Senhor veio a mim”, dizia o profeta. Hoje, o Senhor diz: “Quem quiser falar Comigo, que venha a Mim, e Eu lhe darei, no seu coração, a resposta.”

Qual traço luminoso, projeta-se o conhecimento da Voz Interna, e a revelação mais importante foi transmitida no idioma alemão durante os anos de 1840 a 1864 a um homem simples chamado Jacob Lorber. A Obra Principal, a coroação de todas as demais, é “O Grande Evangelho de João” em 11 volumes. São narrativas profundas de todas as Palavras de Jesus, os segredos de Sua Pessoa e sua Doutrina de Amor e de Fé! A Criação surge diante dos nossos olhos como um acontecimento relevante e metas de Evolução. Perguntas com relação à vida são esclarecidas neste Verbo Divino, de maneira clara e compreensível. Ao lado da Bíblia o mundo jamais conheceu Obra Semelhante, sendo na Alemanhaconsiderada“Obra Cultural”.

ObrasdaNova Revelação

O Grande Evangelho de João – 11 volumes A Criação de Deus – 3 volumes

A Infância de Jesus

O Menino Jesus no Templo

O Decálogo (Os Dez Mandamentos de Deus) Bispo Martim

Roberto Blum – 2 volumes A Terra e a Lua

A Mosca

Sexta-Feira da Paixão e A Caminho de Emaús Os Sete Sacramentos e Prédicas de Advertência Correspondência entre Jesus e Abgarus Explicações de Textos da Escritura Sagrada Palavras do Verbo

(incluindo: A Redenção e Epístola de Paulo à Comunidade em Laodiceia)

Mensagens do Pai

As Sete Palavras de Jesus na Cruz (incluindo: O Ressurrecto e Judas Iscariotes) Prédicas do Senhor

Cenas Admiráveis da Vida de Jesus – 2 volumes

ROBERTO BLUM

Volume I

CAPÍTULO 1

A vida de Roberto Blum

    1. Este homem, de origem alemã, veio ao mundo em circuns- tâncias precaríssimas, e teve, com exceção dos últimos anos de sua vida, de lutar constantemente com a miséria mundana, por motivos bem fundamentados, todavia desconhecidos para ele. Sua alma e espírito se originavam do planeta Urano, do qual sabeis, pela reve- lação do “Sol Natural”, serem seus habitantes capazes de remover montanhas através da persistência, de sorte a realizarem, até mesmo como espíritos, o que não lhes foi possível fazer em vida.

    2. Foi preso e executado em virtude de sua audácia, inclina- ção que demonstrava desde a infância. Muito embora Eu Mesmo lhe impusesse empecilhos eficazes, tão logo tentasse erguer-se, isto teve pouco êxito neste mundo. A constante insistência de seu es- pírito abriu finalmente um caminho, pelo qual conseguiu ação mais dilatada.

    3. Partindo deste princípio, fez mil planos e os executou na medida do possível. Antes de tudo, seu coração se apegava ao bem dos povos e não mediu sacrifícios! Se tivesse tido todos os tesouros da Terra, os teria arriscado, com a vida, na realização de tão ele- vado ideal!

    1. Este conceito ele devia à Escola de Religião Mundana, de Ronge (escritor e fundador do Catolicismo alemão, independente de Roma, 1813–1887). Não possuía propriamente uma religião, nem igreja, e jamais as terá, porquanto nega a Mim, o Senhor, redu- zindo-Me a um homem comum e doutrinador da Antiguidade. Esta pretensa “Igreja Pura” rejeita a pedra fundamental, construindo o seu edifício sobre areia. Por tal motivo, sua existência será duvidosa.

    2. Quanto ao bem dos povos, a igreja de Ronge se coadunava com as ideias de Roberto Blum, sem base: o que vinha do mundo era ínfimo e sem força. Somente em sua oratória via o poder capaz de destronar todos os regentes.

    3. Neste ponto sua convicção era tão forte que impedia qual- quer reflexão. Mesmo Eu advertindo-o intimamente, quando em empreendimentos mais audaciosos, não o impedia de realizar seu projeto. Seguia um lema: um alemão poderia sacrificar tudo, menos uma ideia por ele projetada.

    4. Alguns sucessos fortaleceram ainda mais sua ideologia; deste modo, atreveu-se a “subir o Himalaia”, porque fora bem sucedido na demolição de alguns montes políticos, ganhando a confiança de todo o país.

    5. Esta confiança determinou-lhe a queda.

    6. Em Frankfurt, numa Reunião Nacional, experimentou o po- der de sua oratória. Compartilhando com o próprio espírito, rego- zijou-se com a vitória. Confiante, dirigiu-se rapidamente a Viena, cujo povo acatava suas ideias. Lá pretendeu matar trinta regentes de um só golpe, sem refletir que Eu — embora nada representasse para ele — tinha o direito de manifestar-Me antes que seu intento se consumasse!

    7. Baseava-se na Minha Doutrina, de que a pessoa deveria ser perfeita como o Pai Celeste, somente um é o Senhor — todos os outros, irmãos, sem distinção de classe e sexo. No entanto, não acre- ditava Naquele que era exemplo para o aperfeiçoamento. O Senhor, a seu ver, era ele próprio, pelo poder da retórica! Esqueceu-se de que os regentes são criaturas possuidoras do Meu Poder, e que também

consta na Minha Doutrina: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. “Submetei-vos à autoridade boa ou má, pois não haveria poder sem concessão do Alto!” Só a prece e uma conduta justa dentro do Meu Verbo podem lutar contra tal poder; jamais um usurpador político.

    1. Este homem foi preso naquela cidade onde queria concreti- zar o seu ideal popular, pelo poder das armas e de sua verbosidade. Após curto processo, em 9 de novembro de 1848, como indivíduo perigoso ao Estado, foi fuzilado. Deste modo, finalizou-se sua car- reira na Terra.

CAPÍTULO 2

Chegada do fuzilado no Além e suas primeiras impressões. Despertar da consciência e explicação errônea desta sensação

  1. Agora resta saber de que maneira sua alma e espírito chega- ram no Além, qual sua posição e o que fazem.

  2. É preciso observar que a maioria dos que perderam a vida de modo violento, em virtude de uma condenação, chega ao mundo dos espíritos quais fugitivos cheios de ira e vingança e, por certo tempo, sujeitos a delírios. Verdadeiras criminosas contra os Man- damentos de Deus, essas almas são atiradas ao inferno, para, no seu elemento, abrandar a sede de vingança. Conseguindo isto, voltam ao mundo dos espíritos para iniciarem uma prova de libertação, condicionalmente limitada.

  3. Almas como Roberto, que chegam como criminosos políti- cos, contraventores das leis terrenas, não obstante estarem em co- nexão com as de Deus, são no início levadas a um estado trevoso, como cegos, sem avistar outros seres, impedidos de dar vazão à ira. Raiva e vingança já produzem a cegueira na Terra, quanto mais no Além. Nesse estado permanecem até que a vingança se tenha torna- do impotente, levando a alma a verter lágrimas. Este pranto ainda é consequência da raiva, mas aos poucos se abranda.

  1. Na Terra, Roberto podia apenas salvar a honra, após ter che- gado à conclusão de tudo estar perdido; razão pela qual mostrou-se tão destemido no momento da execução, desprezando a morte. Não era verdade, pois como neocatólico, não acreditava na sobrevivência da alma, sentindo então o pavor da morte.

  2. Cerca de sete horas após a execução, quando sua alma co- meçara rapidamente a se concatenar, convenceu-se da futilidade de sua fé terrena ao ver que continuava a existir. Esta convicção da continuidade individual levou-o a outra descrença: afirmava ter sido levado à praça de suplício a fim de passar pelo pavor da morte, e aparentemente fuzilado. Com tal propósito, os oficiais haviam ven- dado os seus olhos. Aturdido pelo medo, fora levado sem sentidos a um cárcere escuro, de onde seria libertado por um protesto de seus conterrâneos.

  3. Incomoda-lhe somente a escuridão. Julga-se em um cubícu- lo, sem umidade e mau cheiro. Verifica não estar algemado e tenta analisar o seu cárcere, imaginando a possibilidade de haver por perto uma sessão de julgamento secreto.

  4. É grande sua estupefação, não vendo solo nem paredes, nem mesmo uma rede que lhe desse a sensação de estar suspenso sobre uma catacumba.

CAPÍTULO 3

Roberto presume estar narcotizado

  1. A situação lhe parece estranha e grave. Analisa seus sentidos, julgando seus membros adormecidos. Com fricções e beliscões, se convence estar o seu corpo astral bem vivo.

  2. Após certificar-se de que não está encarcerado, que é apenas uma noite de escuridão total, pergunta a si mesmo: “Onde estou? Que diabo, o que fizeram comigo esses carrascos sanguinários? Não me fuzilaram, estou vivo! Também não me prenderam, não vejo solo, nem paredes, e meus pés e mãos estão livres de algemas! Os sentidos também não me faltam; tenho olhos, mas nada enxergo!

Que coisa pavorosa! Aquele inimigo da Humanidade, que me fuzi- lou ‘pró-forma’, certamente me aplicou um narcótico desconhecido que me atirou neste estado. Ai de ti, carrasco, quando eu me livrar deste torpor; vingar-me-ei de ti, tão logo volte a Frankfurt.

  1. Esta situação não pode durar eternamente. Toda a Saxônia reclamará a minha liberdade. Chegando lá, vingarei o ultraje feito a um deputado do ‘Reichstag’! Eu, toda a Alemanha e até mesmo a França, não descansaremos até que esta infâmia seja punida!

  2. Se, ao menos, pudesse despertar desta narcose! Clamo por vingança e nada posso fazer! Paciência, isto é passageiro!”

CAPÍTULO 4

Grito desesperador por Deus. Referência à pessoa de Jesus. Desejo da não existência

  1. Após tais palavras, ele se mantém calmo por algum tempo. Esfrega os olhos de vez em quando, para libertar-se do torpor. Não conseguindo melhor visão, desespera-se: “O que sucede? Que mal- dita situação é esta? Acaso não existe Deus, mais poderoso e justo do que os justos da Terra? Meu Deus, se existes, estende o Teu Braço e vinga-me! Eu lutava pela causa justa das criaturas, Teus filhos, a fim de levá-los ao destino almejado por Jesus, o incompreendido doutrinador que, pelo esforço e sacrifício a bem da Humanidade, foi preso pelos miseráveis esbirros e morto no lenho mais vergonhoso daquela época.

  2. Deus, se existes, sou tanto Teu filho quanto ele! Se Tua Exis- tência perdurar apenas na consciência humana, como também a Tua força, minhas palavras são ocas, infrutíferas. Fui torpemente engana- do e para todo o sempre! Por que fui obrigado a me tornar um ser vivo consciente? Por que uma ideia amorfa no Espaço Infinito deve- ria transformar-se em uma entidade individual? Porventura surgi na vida, com plena consciência, para ser fuzilado? Maldito acaso que me projetou no mundo! Se existem demônios cuja perversidade ultrapas- se a imaginação humana, que destruam o poder que me fez surgir!

  1. Pobres criaturas do mundo! Deixai de procriar! Não implan- teis no orbe outros seres para sofrerem de maneira atroz! E vós, que ainda tendes filhos, matai-os, para que tudo fique vazio! Potentados, estrangulai vossos súditos, dividi entre vós a Terra amaldiçoada para satisfazer vossa tendência dominadora! Meu desespero é em vão! O que poderia uma gota alcançar contra a força do mar revolto?! Ca- la-te, fraca manifestação de minha mente! Compete a mim finalizar minha existência miserável!”

  2. Roberto tenta estrangular-se, suas mãos não encontram apoio e nem sente asfixia! Perplexo com este fenômeno, perturba-se mais ainda. Resolve caminhar, concluindo “não ser possível haver naquele ambiente local ainda mais trevoso e incerto, não havendo motivo para temer um abismo e muito menos um julgamento secre- to! Talvez alcance alguma luz ou, então, a própria morte?!

  3. Que feliz estado deve ser o da morte total! Que feliz fui antes de ser, sem a consciência para trair-me! Ah, se fosse possível o ani- quilamento! Que seja! O aniquilamento total é lucro e a morte um néctar; nada mais haverá para temer! Por isto, avante!”

CAPÍTULO 5

Tentativa de marchar e nadar no Espaço trevoso. Monólogo

  1. Começa a fazer movimentos para andar, mas não encontran- do solo, tem a impressão de balançar os pés, como se estivesse sen- tado em um banco. Pensa, então, em outro meio e diz: “Tentarei nadar, pois para me locomover preciso de solo firme; sem este, res- ta-me nadar ou voar, mas faltam-me asas! Céus, que triste esportista! Convém armazenar energias para sair daqui!”

  2. Começa a fazer movimentos de natação, sem êxito. Pros- segue, no entanto! Quanto maior esforço empreende, maior é sua decepção.

  3. Por isto, para e diz: “Que tolo eu sou! Por que me canso? Encontro-me no nada; para que prosseguir? O nada contém a maior calma; à calma me entregarei para com ela identificar-me! Talvez seja

o caminho certo para a total destruição! Se ao menos tivesse a certeza de que fui fuzilado! Tenho a impressão de ter ouvido o estampido dos fuzis. Neste caso, estaria morto!

  1. Talvez exista de fato uma vida após a morte? Sinto o meu corpo e minha roupa! Se a alma possui corpo, meu paletó terá alma? Isto levaria um homem igual a mim a ridicularizar o infinito! Ah, ah! A imortalidade de um paletó soaria pior que o poder milagroso do Manto de Cristo exposto em Trier, pelo Bispo Arnoldi! Mas..., se sou alma, o paletó me acompanha?

  2. Nunca! Não sou alma! Sou Roberto Blum! Deputado do Rei- ch, em Frankfurt, para formar nova Constituição a que a Áustria não quer se submeter! Soube em Viena das intenções deste país: as suas aspirações pendem para o Absolutismo! Como um tigre lu- tei contra isto. Os canhões adversários foram mais poderosos e tive de desistir, a ponto de deixar-me prender e, finalmente, fuzilar — aparentemente! Bonito prêmio para um coração devotado à pátria! Maldita vida e maldito quem ma deu!

  3. Se existe Deus, que prazer poderá sentir em Sua Onipotên- cia quando as criaturas, demonstrando verdadeira fraternidade, são cruelmente abatidas em virtude de um regime e meras discussões políticas? Se acontecem na Terra coisas tão horrendas, não emana- das de Deus — o puro amor — concluo não existir Divindade; ou, então, só pode ser má, fatalidade que merece a maldição, já que considera as criaturas bonecos de seu capricho! Repito: amaldiçoo a entidade responsável pelas criaturas infelizes!

  4. Agora, calma. Se pretendo encontrar a destruição dentro deste nada, afasto-me do aniquilamento com o despertar de novas energias. Calma, muita calma!”

CAPÍTULO 6

Calma externa, inquietação. O que é a vida? Desejo de paz oriundo da fé. A lembrança da família leva-o à prece

  1. Quanto mais Roberto se entrega ao silêncio, tanto mais vibra o seu coração, o que o aborrece, pois sente maior sensação de vida e consciência mais dilatada, aumentando o desespero e a raiva, com- preendendo não poder livrar-se da vida que lhe é desagradável. Co- meça a falar novamente: “Em nome do diabo, desejava saber o que vem a ser esta vida nojenta, da qual a pessoa não consegue livrar-se? Vi milhares morrerem! A decomposição era o final! Teriam uma vida idêntica à minha?!

  2. Não consigo compreender a morte! Quem me conserva esta vida abjeta? Tu, ó responsável pela minha execução, teus verdugos não entendem do ofício! Não me fizeste fuzilar para morrer, mas, ao contrário, para viver! Se teus auxiliares produzem tais resultados, poupa teu esforço! Afirmo-te daqui, de minha noite trevosa: usando pólvora e chumbo, apenas vivificarás os teus inimigos. Aplicaste-me grande injustiça: tencionaste tirar-me o que jamais poderás me res- tituir! Pretendias matar-me; estou vivo! E tu, que julgas viver, estás mais morto do que eu, tua vítima!

  3. Tudo estaria bem, se houvesse um vislumbre de luz! Que o diabo carregue esta escuridão total! Que horror, permanecer assim por toda a Eternidade! Talvez eu já seja um espírito, o que seria uma deplorável surpresa! Não, não creio na vida eterna! No entanto... tenho a impressão de terem passado muitos anos nesta escuridão! Necessito de luz, luz!

  4. Confesso a mim mesmo: preferia ser um sujeito bem tolo que acreditasse no Filho de Deus, no Céu e na morte eterna, no diabo e no inferno. Com tal superstição, morreria com a consciência tranquila. No entanto, encontro-me na treva total e meu raciocínio é claro! Que culpa me cabe? Sempre procurei a verdade, creio tê-la encontrado. De nada me adianta, se não recebo luz. Já que é assim, que assim fique!

  1. Minha intrepidez e completa ausência de temor ainda me valem. Se eu fosse como a maioria das criaturas, medroso, cairia em total desespero.

  2. Sinto em meu coração a tristeza e aflição de minha mulher e filhos, por minha causa. Coitados! O que posso fazer por eles? Nada! Poderia orar, tenho tempo de sobra! Mas, a quemorar, e o que deveria pedir? O menor desejo para que sejam felizes já é uma boa e verdadeira prece. Caso não os auxilie, não será prejudicial. Com exceção do Pai Nosso, Ave Maria e outros exercícios linguísticos, desconheço outra prece. Com tais tolices, minha boa e culta família agradeceria admirada, caso percebesse que eu faço tal coisa para o seu bem! Mas, será possível saberem o que faço aqui?”

CAPÍTULO 7

Respeitosa recordação de Jesus provoca fortes coriscos

  1. Prossegue Roberto: “Entre todas as preces, o Pai Nosso é a melhor. Assim o sábio doutrinador Jesus ensinou os discípulos a orar. Esta oração, infelizmente, nunca foi bem compreendida. É o resumo das necessidades principais de cada um, devendo ser re- petida, para que a criatura conheça suas verdadeiras carências. No entanto, é pronunciada como remédio para todas as necessidades e condições. Católicos e protestantes atribuem-lhe um poder mági- co contra todos os males, inclusive moléstias de animais! Isto, para mim, é insuportável!

  2. Ó bom mestre Jesus! Se o teu destino é semelhante ao meu, certamente já te arrependeste por teres feito tanto bem à Humanida- de maldosa! Dois mil anos nesta treva, posso imaginar como é duro!”

  3. Mal Roberto pronuncia com dignidade e sentimento o Nome de Jesus, vê um forte raio, com o qual se assusta, mas ao mesmo tempo sente alegria, percebendo que não está cego. Come- ça a refletir sobre a origem do fenômeno e procura lembrar-se das explicações referentes à eletricidade. Não chega a uma conclusão satisfatória para o enigma. Ele pensa: “A eletricidade necessita de

condições naturais, negativas e positivas. Aqui, no absoluto nada, isto não pode acontecer. Sou alguém, como indivíduo consciente, mas não posso sustar o nada!

  1. Agora me veio uma ideia! Oh, maravilhosa filosofia germâ- nica, fonte inesgotável de verdadeira sabedoria! Única e mais segura conselheira e guia nas situações mais estranhas! Trazes a luz a todos os que te abraçam com amor e dedicação! Se é possível encontrar-se um indivíduo no reino do nada, é lógico existirem outros! É ad- missível então a existência de elementos produtores de eletricidade, sem que isto altere o nada! Estou rodeado por vizinhos de espécie e forma diversas. Não estou só; isto causa-me bem-estar.

  2. Se eu tivesse me dedicado à filosofia, certamente estaria em condição vantajosa. Perdi-me em crítica religiosa sobre o grande sábio e mais nobre doutrinador Jesus, entregando-me à compai- xão inútil!”

  3. Novamente aparece o raio, mais forte ainda. Alarmado, Ro- berto não se conforma com a intensidade da luz, embora de curta duração. Parece-lhe ter visto contornos de objetos a longa distância, mas a luminosidade não permitiu defini-los.

  4. Após prolongado silêncio, consegue concatenar seus pensa- mentos: “Ah, já sei! É uma tempestade que se estende sobre Viena! Estou acordando, aos poucos, de um atordoamento provocado pelo medo mortal e volto à vida. Certamente a atmosfera carregada de eletricidade me será favorável; voltarei a mim sob uma trovoada em boas condições! Não ouço trovões, certamente ainda não começou o desencadear dos elementos!

  5. Talvez eu esteja surdo! Ouço meus pensamentos como pa- lavras, o que prova não estarem em pleno funcionamento os meus órgãos auditivos! Talvez os recupere nesta ocasião? Não consigo compreender a estranha sensação do nada que me envolve. Que im- porta? Existo e vi coriscos, não estou cego! O melhor é esperar que a tempestade passe para não alterar a minha situação, que parece durar há cem anos! Acaso será também um engano? Se ao menos trovejasse para modificar esta monotonia!”

CAPÍTULO 8

Despertar do amor à vida. Ira e vingança transformam-se em pensamentos de perdão.

Novo corisco e claridade permanente

    1. Roberto continua a monologar: “Será que tais coriscos sur- giram apenas em minha fantasia, provando que em breve minha existência terá chegado ao fim? É bem possível, pois como comecei a me interessar por esta vida isolada..., é fato conhecido: quem preza a vida, a perde. Quem chama a morte não é atendido; quem a teme, desejando prolongar a existência, em breve terá de deixá-la. Convém clamar pela morte e desejar com ímpeto a minha destruição. Assim, estarei certo de que não morrerei tão cedo.

    2. Eis o meu caso: atirei-me aos maiores perigos por amor aos meus conterrâneos, para finalmente ser transportado para aqui, com chumbo e pólvora! O príncipe Alfredo, chefe do Estado Maior de Viena, pensou ter determinado a minha execução! Acontece que es- tou vivo! Eu, Roberto Blum, vivo para a tua condenação, Alfredo, e a queda de tua dinastia.

    3. Por enquanto estou fraco, é claro! Mas sinto que em breve estarei forte para vingar o meu sangue, infames verdugos! Em vida só contava comigo mesmo; agora, vivo nos corações de milhares, razão pela qual não desanimo!

    4. Enquanto a ira e a vingança estão no apogeu, seria melhor que a força me voltasse; com a maior calma poderia assistir ao martírio de meus assassinos, por dez mil anos. Se minha revolta se abrandar nesta treva, prefiro continuar sem forças, deixando agir o destino.

    5. É curioso não poder manter minha vibração de ira e vingan- ça. Às vezes se transforma em uma espécie de perdão, o que muito me aborrece. Refletindo um pouco, reconheço ser esta tendência bem germânica! Somente o alemão sabe perdoar! O perdão é uma virtude inerente às almas abnegadas!

    6. Quem poderia dizer ao próprio assassino: ‘Amigo, fizeste-

-me grande mal, mas eu te perdoo, de coração!’ Só um alemão po-

deria fazê-lo, e eu o faço! Roberto o fará! Alfredo, criminosamente me mandaste fuzilar; eu te perdoo, não me vingarei e mil vezes per- doaria! Toda a Alemanha deve ouvir e saber que Roberto perdoou o crime do príncipe Alfredo!

    1. Agora sinto-me aliviado! Admiro a minha nobreza, é um ín- timo lenitivo! A lenda conta o mesmo sobre o grande Mestre que na cruz perdoou a todos os inimigos. Certamente sua alma era alemã, caso contrário outra seria a manifestação de caráter. Os orientais jamais o fariam! É isto, o grande Mestre Jesus era alemão!”

    2. Ao pronunciar o nome de Jesus, um raio se estende de Oeste a Leste, perdurando um vislumbre peculiar que causa espanto a Ro- berto; sua hipótese de tempestade desmorona.

CAPÍTULO 9

Toda a sapiência do mundo é fútil. Por isto Jesus recomenda a fé

  1. Pensativo, Roberto observa aquele vislumbre e não sabe como explicá-lo. Após certo tempo, refaz-se da surpresa e, mais cal- mo, diz: “As nuvens se tornaram mais claras após o terceiro raio. Percebo agora que estou flutuando, sem qualquer base. Antes, em completa escuridão, esta sensação estaria sujeita a engano; agora, é a plena verdade.

  2. Sei que morri fisicamente; não é admissível que um corpo pe- sado se mantenha por tanto tempo no ar. Nada vejo, só a mim mes- mo. Devo estar longe de qualquer planeta! Tudo isto é muito curioso!

  3. Ó sábios da época, vossa sapiência parece fracassar! Onde es- taria a alma universal, na qual, de acordo com vossa afirmação, a criatura se integra após a dissolução corpórea?! Onde está a divinda- de que deveria surgir no homem, e onde sua consciência?! Eu morri, encontro-me em completa solidão: nem sombra de divindade, tam- pouco minha integração na alma universal!

  4. Pretensos sábios, todavia humanitários! Vossa visão é bem turva e o será ainda mais; nunca imaginastes sensação tão estranha

após a morte. Enganastes-vos, o que ainda fareis no futuro! Por serdes alemães, tudo vos será perdoado! Se tivésseis outros conhecimentos, certamente não os teríeis omitido aos vossos adeptos! Sois justos!

  1. Vosso zelo não é de utilidade para estemundo; lançastes, no

entanto, a ideia de uma ordem. No que diz respeito a esta vida de além-túmulo, tão discutida — na hipótese que todas as criaturas passarão pelo meu estado atual — ela dispensa leis. Quais seriam, no momento, as minhas obrigações? Certamente as mesmas de uma nuvem impelida pelo vento! De nada me valeriam a sabedoria de Salomão ou a força de um gigante.

  1. Seria melhor viver e morrer com a superstição de Roma, na fé cega de que a alma teria de continuar sua existência, boa ou má, eternamente, do que, como adepto de Ronge, perder toda a sensa- ção de vida, o que desperta pavor, como experimentei. Prefiro mil vezes esta escuridão, do que passar novamente por esse sofrimen- to horrível!

  2. Ó doutrinadores, ensinai os vossos adeptos a terem fé; eles morrerão mais felizes do que eu, com toda a minha intelectuali- dade! Agora compreendo por que o Grande Mestre sempre reco- mendou a fé!”

CAPÍTULO 10

Bons pensamentos sobre Jesus. Novo corisco ilumina a situação de Roberto, de modo benéfico. Cresce a fé na imortalidade e em um Deus de Amor. Aparece outro corisco

  1. Prossegue Roberto: “O mais sábio doutrinador dos povos, igual a mim, nasceu de pais pobres e, através de privações, deveria elevar-se ao mais alto cume da sabedoria. Por parte do sacerdócio ju- daico teve de suportar as piores perseguições! Deveria ter sido difícil atingir tal cume entre os seguidores de Moysés e Aarão!

  2. Certamente teve oportunidade de chegar ao Egito em com- panhia dos progenitores — que na própria pátria poucos meios de

vida teriam encontrado — ou com alguma caravana qualquer, des- pertando a atenção de algum sábio em virtude de seus talentos ex- cepcionais e inatos. Deve ter frequentado a escola e se iniciado em todos os segredos e, empregando-os sabiamente, deve ter causado a maior sensação em meio de seus conterrâneos. Talvez até chegasse à escola dos essênios — naquela época a quinta-essência da sabe- doria mundana — e deste modo era natural apresentar-se ele qual deus diante dos judeus ignorantes: um consolo da pobre Humani- dade, muito embora causando aborrecimento ao sacerdócio rico e orgulhoso!

  1. Regozijo-me ainda hoje quando me lembro da maneira como admoestou os sacerdotes, incapazes de conterem sua raiva! Infelizmente, tornou-se no final uma vítima de sua intrepidez e da infâmia das feras do Templo, enfeitadas com prata, ouro e pedrarias.

  2. Mas... acaso tive mais sorte? Oh, não! Também sou um már- tir de minhas mais nobres aspirações: tencionava libertar a Huma- nidade das algemas da escravidão, e o prêmio foi a morte mais es- túpida em Brigittenau! A Humanidade toda está perdida, pois mata seus maiores amigos, e aos adversários mais infames ela faz ovações e passeatas com banda de música!

  3. Seja como for — estou livre de tudo, com a convicção tirada da História de que todos os benfeitores dos povos não tiveram me- lhor sorte do que eu que, não obstante minha melhor boa vontade, longe estou de ser um Jesus!”

  4. Ao pronunciar este nome, surge um raio poderoso junto de Roberto, deixando uma espécie de luz crepuscular e uma zona ao Norte que ele bem pode vislumbrar.

  5. Conquanto também o surpreenda o raio, ele não mais se assusta e reflete da seguinte maneira: “Realmente, muito estranho! Agora o corisco atravessou-me o corpo e, pela primeira vez, senti uma aragem agradável e confortadora! Sua maior projeção de luz me causa sensação de conforto ao coração e olhos. Ao que me pare- ce, vejo uma zona nublada, o que me convence de estar realmente flutuando no ar! Noto, também, pés e mãos e até mesmo a roupa

que usei na hora da execução! Oh, quem no mundo não daria boas gargalhadas se alguém afirmasse que, após a morte, não só a alma, na ulterior figura humana, mas até a roupagem se torna imortal.

  1. Shakespeare tinha razão quando dizia: ‘Entre Lua e Sol ocor- rem fatos que o intelecto humano jamais imaginou’. Oh, Shakespea- re, desses fatos faz parte a imortalidade da roupa terrena! E — o que mais me intriga — ter sido justamente minha farda, como a do má- ximo vexame aos olhos dos inimigos, levada comigo à liberdade! Isto só pode ter sido obra de um Deus amoroso e justo! Agora acredito, não obstante a filosofia de Hegel e Strauss, existir um Deus Verda- deiro, que não precisa indagar deles se permitem Sua Existência!

  2. Algo estranho é a observação de que ao pronunciar o nome do grande oriental surge um raio! Haveria algo de verdadeiro ser ele mais que um Filho de Deus? Se até mesmo as fardas são imortais, por que Jesus — hum, novo raio, e desta vez mais forte que antes! Estranho, muito estranho!”

CAPÍTULO 11

Saudades de Jesus. A zona de luz se aproxima

  1. (Roberto Blum): “Talvez se encontre, igual a mim, nesta zona e corresponde-se comigo, seu semelhante, de maneira inteiramente inofensiva, como reminiscência terrena? É isto! Pois era perito na magia egípcia, pelo conhecimento das forças da Natureza, o que explica também seus milagres, deturpados com o tempo — uma vez que os turcos queimaram a grande Biblioteca de Alexandria!

  2. Assim como mantive a filosofia de Hegel e Ronge, ele conser- vou seu grande tesouro de sabedoria, de onde transmite, por meio de raios, estar na minha proximidade e desejar encontrar alguém neste vácuo. Não deve ser brincadeira satisfazer-se com sua própria pessoa — mesmo sendo o espírito mais lúcido do mundo — no decorrer de 1840 e alguns anos!

  3. Oh, maior amigo da Humanidade! Não mereço, diante de tua grandeza, desatar tuas correias; mas, de que adianta aqui a gran-

diosidade mundana?! Desvanecem brilho e celebridade terrenos! Teu nome — e no futuro também o meu — serão louvados e admirados! Que nos adianta isto? Podemos apenas nos comunicar reciproca- mente por meio de coriscos.

  1. Se fosse possível aproximarmo-nos, tal companhia seria su- ficiente para toda a Eternidade! Duas almas afins jamais haveriam de sentir carência de assuntos maravilhosos, encurtando deste modo o tempo ou o Infinito, tornando-o mais atraente! Que vale, porém, qualquer desejo? Quem poderia realizá-lo?

  2. Assim como nós, quantos estarão flutuando? Os corpos cós- micos, em eras remotas, foram o que hoje somos? Após trilhões de anos, se agruparam inúmeros átomos ao seu redor, dando origem aos corpos, em cujo centro ainda habitam os mesmos espíritos ou almas!

  3. Talvez, meu grande amigo, te transformaste, no decorrer de cerca de dois mil anos, num pequeno cometa, e assim consegues emitir raios de tua própria esfera? Eu, por certo, precisarei de muita paciência até que alcance a projeção de uma pequena atmosfera! Tal- vez estejas lá onde percebo uma zona nublada? E, quando te tiveres tornado um planeta, eu serei teu satélite? E, quando fores — em mi- ríades de anos — um Sol, eu serei, talvez, teu planeta mais próximo, como o atual Mercúrio?

  4. Tais esperanças se projetam no Infinito e convém esperar com paciência. Na Terra, as esperanças passageiras deveriam erguer o ânimo das criaturas sofredoras; por isto, convém aqui — no Reino da Eternidade — empregar os meios adequados, caso não se queira cair em desespero!

  5. Mas... que é isto? Aquela zona turva está ficando mais clara e parece aproximar-se! Isto seria ótimo e tal qual eu imaginei!

  6. Meu grande amigo Jesus — hum, eis o corisco! Mas, não importa! O que ia dizendo? Ah, sim! Meu grande amigo ouviu o meu mais ardente desejo e se empenha para vir aqui. E, quando o fizer, certamente me atrairá ao seu mundo, redobrando a força de atração dos átomos, o que aumentará sua projeção sideral! Quiçá já

o circunda uma quantidade de seres afins? É bem possível, pois já houve muitas pessoas semelhantes a mim!

  1. Se lhe é possível atrair-me, também terá atraído aqueles que, antes de mim, passaram pelo caminho da cruz! Desta forma, encontrarei um grande grupo de pessoas a seu redor! Como isto me alegraria! Pelo que me parece, isto está se tornando realidade; a zona estranha vem se aproximando mais clara e nítida! Vislumbro algo semelhante a pequeno morro rodeado de várias colinas! Graças a Deus! Desta forma alcançarei uma base mais sólida!”

CAPÍTULO 12

Surge uma criatura na zona iluminada. Será Jesus mesmo? Imensa alegria de Roberto nesta expectativa

  1. Prossegue Roberto: “Oh, meu coração, alegra-te, pois aquela região já se acha bem próxima de ti! E, se minha visão não me en- gana, noto a figura de alguém em cima do pequeno morro e parece acenar-me!

  2. Será o bom Jesus mesmo? É ele em pessoa! Agora compreen- do que, ao pronunciamento de seu nome, um raio projetou-se até mim! Será maravilhoso encontrar-me em companhia daquele espíri- to, cuja grandiosidade e sabedoria inigualáveis tantas vezes admirei!

  3. Oh, pobres e tolas criaturas da Terra, que vos julgais supe- riores aos necessitados em virtude de vossos bens terrenos e de um nobre nascimento — digo-vos a todas que não mereceis trazer no cérebro os detritos dum pobre, pois neste caso saberíeis algo daqui! Desprovidas até mesmo disso, sois tão infinitamente tolas por vos julgardes algo excepcional, enquanto sois menos do que nada! Qual não seria a reação de um ricaço orgulhoso caso um honesto tra- balhador se atrevesse a pedir em casamento sua filha ‘nobre’? Ou, tendo ele um filho de boa índole que, se elevando acima da vaidade referente à família e ao dinheiro, almejasse unir-se à filha dum pobre operário? Ora, tal atitude seria um verdadeiro sacrilégio!

  1. Mas, vinde aqui, idiotas semimortos! Sabereis o que sois pelo nascimento, antecedentes e fortuna! Nem um demônio vos libertará de vosso banimento eterno e trevoso; pois os que a Divindade vos enviou para salvadores, desde Adão, prendestes e assassinastes cruel- mente. Agora declaro, talvez do centro universal:

  2. Vossa época chegou ao fim; dentro em breve estareis aqui e perguntareis pelos vossos antepassados orgulhosos! Mas o Espaço Eterno, vazio e trevoso, rodear-vos-á para sempre! Deus por certo não poderá construir uma casa de lesma, muito menos um mundo, de vossa índole atrasada! Por mim, Ele fará o que quiser! Estou so- bremaneira contente que meu mais caro amigo já se acha tão perto de mim, que até lhe poderia falar! Graças a Deus por esta surpresa!”

CAPÍTULO 13

Roberto grita por socorro. Pela primeira vez a alma desencarnada encontra solo firme

  1. Diz Roberto: “A zona estranha se aproxima cada vez mais; o monte onde se acha o Grande Mestre da moral mais elevada é bem considerável. Mede talvez alguns cem pés e é íngreme e escarpado de um lado. Os outros montículos podem ser tomados por pequenas elevações de areia, das quais a maior mal medirá trinta pés. Veem-se apenas iluminadas as elevações, enquanto os vales são nublados, de um verde escuro, impossível de saber-se sua extensão.

  2. Penso que desta forma se assemelham aos recém-construídos corpos cósmicos antes de começarem sua trajetória ao redor do Sol, como simples cometas.

  3. Tais montes certamente terão uma ligação subterrânea, que o Grande Mestre da mais pura moral talvez saiba explicar! Já está bem perto e me ouviria, caso o chamasse em voz alta! Vou experimentar, pois o êxito será bom para mim e talvez para ele; e, caso eu o chame em vão, não será este meu primeiro, nem último grito baldado!”

  4. A seguir, Roberto junta as mãos à boca, como funil, respira profundamente e grita com toda força: “Jesus! Grande Mestre de to-

dos os povos da Terra tola, se és aquele que vislumbro ao longe, vem cá, com teu pequeno planeta, se te for possível! Encontrarás em mim o maior e mais ardente adorador! Primeiro, considero-te em virtu- de de tua sabedoria simples, contudo elevada, pela qual ultrapassas todos os teus predecessores e sucessores. Segundo, prezo-te por ter sido idêntico nosso destino na Terra. Terceiro, porque foste e ainda és o primeiro a trazer luz a esta treva insuportável — por acaso ou premeditadamente — pelo que te serei eternamente grato.

  1. Se fores realmente o meu tão estimado Jesus e puderes vir a mim, porquanto ouviste meu brado, vem, vem, e vamos nos conso- lar reciprocamente! Além disto, estou plenamente convicto de que me confortarás com tua enorme sabedoria! Vem, pois, vem, meu mais caro amigo e companheiro de desdita!

  2. Ó Mestre do Amor, que fizeste do Amor a única lei universal; se este sentimento em ti perdura, como em mim, de modo íntegro, lembra-te disto e vem junto de mim com o mesmo amor que ensi- naste e que também te quero render!”

  3. Após tal exclamação vibrante, o pequeno mundo luminoso se move rápido aos pés de Roberto, de sorte que, pela primeira vez após sua desencarnação violenta, ele pisa solo firme, precisamente ao lado direito de Jesus!

CAPÍTULO 14

Roberto e Jesus. Questão de importância vital

  1. Assim apoiado, Roberto Me observa dos pés à cabeça e encontra o inegável Jesus que acreditava achar, no mesmo traje precário e com os estigmas, conforme ele Me havia imaginado tantas vezes.

  2. Observando-Me assim, calado, as lágrimas lhe correm sobre a face. Quando mais calmo, diz, cheio de compaixão: “Caro e maior amigo da Humanidade, cujo coração foi capaz de perdoar até mesmo aos mais cruéis verdugos o mais infamante ultraje, porque aceitavas, em tua dignidade humana, a cegueira completa como justificativa.

  1. Em compensação, quão inclemente deve ser a Divindade, Teu Pai, tantas vezes por ti honrado e louvado — se é que existe

  1. Querido Mestre Jesus, mereces o maior amor! Como te amo e como sinto a maior compaixão para contigo em virtude de tua miséria que perdura! Se te tivesses apresentado apenas um pouco mais feliz, ter-me-ia aborrecido por um espírito semelhante ao teu após a morte não ter alcançado a máxima distinção, caso exista uma divindade justa!

  2. Como te encontro tal qual viveste na Terra, a situação dos seres parece bem diversa da nossa imaginação. Assim, somente após épocas extensas poderemos realizar aquilo que condiciona nossa base de vida dentro da capacidade de conhecimento e vontade.

  3. Considerando nossa existência aqui, é ela tanto mais lastimá- vel, porquanto a força realizadora daquilo que projetamos, em vir- tude dos conhecimentos adquiridos, dista muito do poder de nossa vontade. A fim de equilibrar a futura realização com a deficiente for- ça de vontade, possuímos, por sorte, certa indiferença, que também poderíamos denominar de paciência. Ela faz com que suportemos nosso estado; entretanto é, de quando em quando, posta a tais pro- vas, que poderíamos comentar até em eternidade!

  4. Caríssimo amigo, fiz com isto minha confissão fiel e ver- dadeira. Caso me aches merecedor, peço-te externares teu parecer sobre nosso estado precário. Somente pela permuta de ideias pode- remos torná-lo mais agradável. Abre, pois, nobre amigo da Huma- nidade, tua boca santificada!”

  5. Digo Eu, Jesus, estendendo a mão a Roberto: “Sê bem-vin- do, caro companheiro de desdita, e sê feliz por Me teres encontrado, e não te preocupes com o resto. Basta que Me ames e Me julgues, dentro de teus conhecimentos, o mais nobre e sábio. Deixa todo o resto por Minha conta e dou-te a promessa bendita que tudo cor- rerá bem, não obstante os acontecimentos vindouros! Nesta solidão

refleti sobre todos os assuntos e te afirmo que consegui, pela prática do poder da vontade, realizar tudo que penso e quero. Se, contudo, te causo impressão de abandono e isolamento, isto se baseia em tua visão imperfeita para este mundo; se, com o tempo, ela se tornar mais forte pelo amor a Mim, verás o poder de Minha Vontade.

  1. Além daquilo que falamos, faço-te uma pergunta séria e im- portante, a qual me responderás sem restrição, de acordo com teu sentimento! Dá-se o seguinte, caro amigo e irmão: Quando estiveste na Terra, tua boa índole tencionava libertar teus irmãos da pres- são excessiva dos regentes tiranos, muito embora sem escolher os meios adequados! Considero, no entanto, apenas a finalidade e não o meio, que Eu aceito como justo, não podendo ser classificado de cruel! Pelo que sei, foste preso e executado, sem realizar o teu ideal. Acho também justo que tal resultado deplorável tenha feito vibrar teu coração de sentimentos vingativos! Se, porém, tivesses captura- do o marechal austríaco, inclusive todos os seus súditos, ele que te fez condenar à morte — que lhes terias feito? Responde-Me com sinceridade!”

CAPÍTULO 15

Boa réplica de Roberto

  1. Diz Roberto: “Nobilíssimo amigo! Minha reação, no mo- mento em que aquele tirano me tratou qual reles criminoso, é per- doável para qualquer espírito justo. Os tempos, porém, mudaram e agora desejo para esse cego nada mais que luz e o reconhecimento de sua atitude para comigo, se foi justa ou não.

  2. Se ele tivesse conseguido me matar, jamais eu poderia pensar em vingança. Assim, fuzilando-me para a vida, não mais poderá pre- judicar-me e, além disto, sendo eu mil vezes mais feliz do que ele em sua tendência dominadora, é-me mais fácil perdoar-lhe; porquanto, pela aparência, teve muito mais motivo em liquidar-me como sujei- to perigoso, do que, em tua época, o sumo sacerdote de Jerusalém o fez de modo tão cruel, meu nobre amigo!

  1. Se te foi possível perdoar aos teus verdugos, na plena consci- ência das dores atrozes, quanto mais eu que, fisicamente, descontan- do alguns instantes, nada disto senti.

  2. Por isto, se meu inimigo número um me aparecesse, eu só lhe diria o que disseste a Pedro, por ocasião de teu aprisionamento em Getsêmani, ao decepar a orelha de Malco. Sei que este meu desejo não se realizará, pois, se existe no Espaço Infinito um Deus de Justi- ça, Ele fará com que receba aquilo que merece. Se tal existência for um mito — o que agora não mais concebo — o tempo e a História lhe farão justiça, sem que eu seja obrigado a desejá-lo!

  3. Se permites que te faça um pequeno pedido de meu coração e tu o puderes realizar, entrego-te minha pobre família e todas as pessoas de boa índole! Aos egoístas, que julgam ter feito tudo pelo zelo para si e seus descendentes à custa de outrem, faze com que sin- tam em vida o sofrimento dos que deles dependem! Considera isto não como uma exigência de minha parte, mas apenas um pedido para o bem deles. Por mim, já encontro em ti a recompensa por tudo que sofri e perdi!”

CAPÍTULO 16

O Senhor faz promessas dentro de certa precaução. Discurso veemente de Roberto

  1. Digo Eu: “Tua resposta não podia ser melhor em assunto tão importante, uma vez que a deste tal qual a sentes em teu íntimo. De minha parte, asseguro-te que satisfarei teus pedidos de acordo com Meu Poder e Força.

  2. Apenas não posso conciliar teus pensamentos humanitários com o prazer que manifestavas quando um aristocrata orgulhoso era exterminado pela plebe!

  3. Lembro-Me que exclamaste numa assembleia, em Viena, sob aplausos estridentes, que na Áustria e em outros países as coisas não melhorariam antes de serem liquidadas umas cem cabeças proemi-

nentes! Falaste aquilo dentro de tua convicção, ou apenas para dar maior ênfase ao teu discurso?”

  1. Responde Roberto: “Quando, na Terra, dedicava minha vida à felicidade e ao progresso da Humanidade pobre e oprimida, e ten- do feito a experiência de como os ricos aristocratas se regalavam com o suor e o sangue dos pobres, que lhes construíam tronos, burgos e palácios; quando depreendi de todos os partidos da Áustria que a dinastia fazia tudo a fim de induzir ao antigo absolutismo para alge- mar o povo, isto foi demais para meus sentimentos de fraternidade. Se tivesse cem mil vidas, eu as daria em prol dos irmãos; enquanto os potentados nem se perturbam com a morte de milhares, uma vez que aumentem seu próprio prestígio!

  2. Se um coração cheio de amor ao próximo assiste a tais cruel- dades, não se lhe pode acusar se, numa revolta justa, é levado a cer- tas exclamações que jamais teriam passado pela sua mente numa situação normal. É bem possível que tudo isto se baseie no plano insondável duma eterna Providência — que desconheço — e que tudo aconteça conforme foi previsto. Mas, que sabemos nós e que temos a ver com leis secretas e incompreensíveis que um Ser Divi- no determina no Infinito? Conhecemos apenas tuas elevadas leis do Amor, que devemos cumprir à custa de nossa vida! O que passa daí não nos compete. Talvez existam outras, num mundo solar, mais sábias ou mais tolas do que aquelas que nos deste! Seria, porém, loucura se devêssemos organizar a nossa vida dentro de outras leis que, certamente por eternidades, nos serão desconhecidas! Temos e reconhecemos apenas umalei como divina e verdadeira, pela qual, a julgar logicamente, toda e qualquer sociedade poderá existir. O joio lançado por criaturas egoístas em teu campo de trigo merece ser arrancado e queimado!

  3. Digo-te com sinceridade: enquanto o homem for homem dentro de tuas leis, merece todo respeito humano; elevando-se e pre- tendendo ser mais que seu próximo, à custa do mesmo, declaro nula tua lei; deixa de ser um irmão para se tornar senhor, e lida com a

existência alheia como se fora sua propriedade! Neste ponto sempre serei Roberto Blum e jamais cantarei louvores aos soberanos!

  1. Bem sei que, atualmente, nas classes inferiores, muitos há que só podem ser mantidos dentro da ordem através do açoite. Quem tem culpa disto? Precisamente os que dominam o povo, au- mentando sua cegueira, a fim de nela escudar o próprio domínio! Meu amigo, jamais Roberto Blum — e muito menos Jesus de Naza- ré — cantarão hosanas a tais ditadores!

  2. Existem alguns poucos, justos e equilibrados em seu regime, verdadeiros amigos dos súditos. Os tiranos e assassinos dos povos só posso comparar a demônios! Creio ter respondido sem rodeios e te peço que te pronuncies! Sou firme nas minhas convicções, todavia não irredutível, se me puderes convencer de coisa melhor!”

CAPÍTULO 17

O Senhor faz objeções. A Natureza Divina de Jesus

  1. Digo Eu: “Caro amigo e irmão, em absoluto posso condenar teu modo de pensar e agir; onde existem situações entre regentes e povos conforme relataste, tens plena razão de agir e falar como fizes- te. Se as coisas, porém, forem diferentes do que pensas — qual será teu critério a respeito? Confessaste que as relações humanas eram por ti observadas sob o prisma de Minhas Leis de Amor e nada tinhas a ver com determinações transcendentes. Neste ponto não concordo, por muitas razões.

  2. Uma é o mandamento, dado por Mim, pelo qual Eu Mesmo Me mostrei submisso ao poder mundano, enquanto tinha força de sobra para reagir a qualquer um. Outra é o fato que Eu no Templo determinei de dar-se a César o que lhe compete e a Deus o que é de Deus! Além disto falei, através de Paulo, em obedecer à autoridade, condescendente ou severa, pois que nenhuma tinha poder, senão do Alto! Que Me dizes a estes Mandamentos?”

  3. Responde Roberto: “Amigo da Humanidade, observando este caso com certa ponderação, julgo que a necessidade daquela

época levou-te a externá-las para proteção de tua doutrina, tua pes- soa e do próprio Paulo. Pois se tivesses atacado os reis, como fez Jehovah pela boca de Samuel, tua moral elevada e imaculada dificil- mente teria sobrevivido sob o domínio mundano de Roma, cerca de dois mil anos, a não ser de modo sobrenatural. Certamente saberás melhor o que de verdade contêm, pois não fui, como tu, testemunha dos horrores dessa nova Babel!

  1. Meu parecer é o seguinte: se fosse de tua intenção respeitar as autoridades mundanas, boas ou más, terias, pela prepotência deste mandamento, desistido da tua doutrina excessivamente liberal e sua propagação, e admitido ser preciso a pessoa continuar para sempre um pagão atrasado — uma vez que uma autoridade gentia, muito embora não maldosa, obrigasse um povo a persistir na religião dos antepassados, adorando os deuses e por nada deste mundo dando ouvidos à tua nova doutrina!

  2. Afirmaste: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus; mas não marcaste os limites — o que cabe a César e a Deus — tornando-se fácil ao Imperador arrogar-se direitos somen- te cabíveis à Divindade, desconsiderando seus próprios deveres que determinam sua gestão.

  3. Com tudo isso, tua expressão de antanho e dentro da neces- sidade da época é mais fácil de ser limitada do que o mandamen- to paulino, com forte demonstração de temor aos potentados, pelo qual até mesmo conviria renunciar a ser cristão, uma vez que tal regente ache perigosa tua doutrina em sua pureza e inconveniente

  1. Talvez houvesse um motivo, até hoje não descoberto, que levou o bom Paulo a emitir tal preceito; do ponto de vista natural, não deixa de ser tolice. De um lado consta: ‘Sois todos irmãos e Um é vosso Senhor!’ De outro lado está o mandamento que recomenda fiel obediência às leis terrenas!

  2. Amigo, isto não é possível! Ou uma, ou outra coisa! Sendo preciso seguir-se a ambas, servir-se-á a dois senhores — caso por ti

condenado. Ou a pessoa deveria aprender a externar dupla indi- vidualidade, pela qual faria externamente o que exige o Governo enquanto internamente amaldiçoaria tal atitude, fazendo em segre- do o que exige a parte liberal do Teu Ensinamento — fato não só mui difícil, como às vezes impossível e, no mínimo, extremamen- te perigoso!

  1. Crê-me, nobilíssimo amigo, ponderei, como talvez poucos, todos os pontos de tua doutrina e penso estar orientado sobre o que ensinaste livremente, qual teu fito principal, e aquilo que tu e teus discípulos propagastes em virtude das circunstâncias ameaçadoras daquela época. Todavia, sou teu adorador, sei o que deduzir de teus ensinamentos e não contesto tuas palavras referentes à obediência às leis terrenas, porquanto tu mesmo te deixaste pregar à cruz por tal motivo!

  2. Ultrapassa o meu atual horizonte de conhecimento se po- derias ter reagido através de uma força sobrenatural. Bem pode ser, e se tuas ações não foram incorporadas à doutrina como fábulas de se- mideuses, torna-se isto até mesmo certeza de que o maior sábio dis- punha de forças excepcionais, como conhecedor da Natureza. Tua paixão e crucifixão puseram em dúvida teu poder milagroso, provo- cando grande aborrecimento. Eu e muitos outros, porém, extraímos apenas a pureza da doutrina e excluímos tudo que se assemelhava a um mito posteriormente incluído.

  3. Se nossa atitude foi certa ou não, espero ouvir de ti, como autor da doutrina, e se algo de verdade existe na tua divindade, en- sinada pela Igreja Católica e matematicamente provada por Swe- denborg no século dezoito. Um filósofo aceitará com dificuldade tal ideia, porquanto teria aspecto contraditório.

  4. Imagina tu mesmo um Ser Supremo cuja Inteligência, Sa- bedoria e Poder são incontestavelmente ilimitados, de sorte a se tor- nar logicamente impossível concentrar-se o Infinito numa só pessoa, e te pergunto se existe a convicção, após reflexão profunda, que tu e a Divindade Infinita e Imutável possais ser idênticos? Como ‘Filho de Deus’ nada tenho que obstar, pois toda pessoa de boa índole

também poderá afirmar tal coisa de si mesmo. Deus e Homem a um só tempo, isto excede qualquer possibilidade! Aliás, não me opo- rei, caso me seja provado; pois já afirmei anteriormente ser possível existirem coisas entre Sol e Lua que ninguém jamais tenha sonhado; porque então não admitir-se, entre tais coisas extraordinárias, seres tu o Ser Supremo? Talvez a Divindade, até então adormecida, tivesse despertado e passado à clara consciência dentro de ti?

  1. Quiçá ela sentisse em si a necessidade de se manifestar qual homem entre os demais, para por eles ser compreendida e vista, sem com isto perder algo de seu Poder Supremo e Universal? Tudo isto é admissível, mormente aqui, onde a vida assume um caráter extre- mamente misterioso.

  2. Como e por que a Divindade manifesta em ti deixou-se condenar à morte por um grupo de judeus maus e loucos — e isto num dos planetas mais ínfimos — é algo incompreensível!

  3. Penso que tu mesmo nunca o afirmaste, pois conheço tua resposta quando te perguntaram se eras realmente o Filho de Deus! Disseste o que somente caberia a um sábio: ‘Não eu, mas vós o afirmais!’ Creio ter considerado tua resposta dentro da compreen- são humana e deduzo que eras um verdadeiro arcanjo e nunca um semideus pagão.

  4. Compreendo perfeitamente que se admita tua diviniza- ção como sábio número um, como até hoje não houve semelhan- te, numa época em que se acreditava no oráculo de Delfos e toda pessoa dotada de qualidades excepcionais era tida como semideus, onde o Tumim e Urim profetizavam e a vara de Aarão, com mais de mil anos de idade, verdejava dentro da arca. Os próprios romanos inteligentes, que intimamente não consideravam seus deuses, afir- mavam: ‘Não existe pessoa excepcional sem bafejo divino!’ Quanto mais isto não fizeram teus conterrâneos, porquanto efetuavas diante de seus olhos perplexos coisas que nunca sonharam desde Abraão! Que teriam dito, por exemplo, à vista duma locomotiva? Creio ter bem respondido e chega tua vez de falar. Saberei fazer-me ouvinte atento e respeitoso!”

CAPÍTULO 18

Necessidade da autoridade terrena. Não pode existir comunidade sem orientação. Ordem e obediência

  1. Digo Eu: “Meu caro irmão, quando se considera este caso sob ponto de vista e intelecto mundanos, e se satisfaz com qualquer tradução, desprovida de todo senso salutar, dos quatro Evangelhos e das cartas de Paulo, e tendo-se absorvido o espírito da filosofia mundana de vários ateístas alemães, as coisas não podem ser diversas de como acabas de falar.

  2. Afirmo-te que se te tivesses dado ao trabalho de te aprofun- dares no Velho e Novo Testamento, por uma boa tradução de Lute- ro, a Vulgata ou a Bíblia Grega original, terias chegado a outras con- clusões do que pelo caminho ‘radical’, que de modo algum é radical, porquanto poucas raízes possui, com exceção de Hegel, Strauss, Ronge e Czerski. Tais raízes nada são, porquanto os ensinamentos daqueles filósofos e muitos outros representavam apenas parasitas na grande árvore do conhecimento. Como agricultor terreno saberás da constituição das raízes das parasitas e, assim, também saberás do valor que atribuo a teus predecessores!

  3. Quando se traduz a Bíblia de acordo com os próprios prin- cípios, ressaltando aqueles textos que permitem sentido dúbio, não se torna difícil achar argumentos como os que proferiste. Tudo isto está errado. Primeiro, os textos referentes ao tributo de César, e o de Paulo na carta aos Romanos, 13º capítulo, e a Tito, não constam como tu os enunciaste. Além disto, nunca se pode falar de receio pe- los regentes manifestado por Mim ou por Paulo, porquanto provei, diante de Caifás, Pilatos e Herodes, se realmente temia os potenta- dos daquela época. Quem não teme a morte, por ser eternamente seu Senhor, muito menos motivo tem de recear os que espalham a destruição física! Assim como Eu não tive o menor motivo para temer os grandes da Terra, Paulo também não os teve! Sabe-se que Nero foi o mais cruel déspota romano; no entanto, Paulo procu- rou precisamente proteção com ele contra os judeus maldosos que

o perseguiam, e sempre a encontrou. Teria sido isto manifestação de medo dos judeus? Em absoluto; pois, muito embora soubesse de sua inimizade, foi a Jerusalém, contrariando a advertência dos amigos íntimos.

  1. Daí poderás deduzir que tanto ele como Eu demos manda- mentos idênticos, de certo modo conselhos, não partindo do receio, mas unicamente em virtude de uma ordem imprescindível às criatu- ras. Compreenderás não poder subsistir uma comunidade sem guia, portanto urge demonstrar — como doutrinador — a necessidade de obediência aos teus guias!

  2. Acaso julgas o contrário? Isto seria impossível e contra a or- dem natural, não só das criaturas, mas das coisas terrenas! A fim de que compreendas isto mais a fundo, levar-te-ei pelos diversos reinos naturais.”

CAPÍTULO 19

A obediência. Exemplos em a Natureza

  1. Prossigo: “Todos os corpos cósmicos são dotados de certa in- teligência e livre noção, indispensáveis à sua finalidade, e flutuam no Espaço etéreo. Por que são tão teimosos e se movimentam há muitos milênios nas mesmas órbitas em redor de um determinado Sol, que por preço algum querem ou podem abandonar?

  2. Naturalmente, certas rotações são piores que outras, como provam os anos bons ou maus de um planeta, mormente em perí- odos em que se dão consideráveis erupções no Sol. Não Me refiro a um período difícil como motivo de deserção de um planeta, pois pode ele suportar certas reações do Astro. Ocorrem, porém, várias destas rotações para um corpo cósmico.

  3. Se tal enorme viajor sideral, após dez ou mais períodos, tivesse sido maltratado pelo Sol e no final se cansasse da mono- tonia, resolvendo abandoná-lo a fim de vaguear sozinho e inde- pendente pelo Espaço, qual seria a consequência inevitável de tal atitude?

  1. Primeiro, um total endurecimento pela falta de luz e calor; em seguida, um fogo interno pela forte pressão do exterior; e, final- mente, a desintegração total de todas as partes planetárias, ou seja, sua destruição!

  2. Os planetas o sentem intimamente; sua vida é-lhes uma ne- cessidade sensível. Por isto, continuam sob o regime do seu Sol, na ordem imutável de sua movimentação e não se perturbam quando ele os trata, vez por outra, mais economicamente.

  3. Neste caso, um defensor igual a ti poderia dizer, sem inte- resse próprio: ‘Só posso elogiar planetas tão obedientes; o Sol, po- rém, tão caprichoso, eu castigaria, caso fosse o Criador!’ Levanta-se o Astro, dizendo: ‘Que dizes, cosmopolita tolo? Não vês não ter eu apenas de cuidar de um, mas de muitos planetas, grandes e peque- nos? Ignoras serem suas trajetórias diversas e que às vezes se acham em maior número de um lado, onde me ocupam mais do que do lado oposto, havendo então certa carência de minhas dádivas, geral- mente abundantes? Contudo, é ele de tal forma provido que pode subsistir e possuo provas que, de trilhões de viajores independentes dum outro sol imenso, jamais tenha perecido um planeta que se haja submetido à minha ordem. Se outros, vagueando livremente, pre- ferem sua independência à ordem fixa e assim perecem no Espaço Infinito — não me cabe a culpa. A um ser que pretende determinar sua própria conduta, sem depender de uma orientação mais sábia, nada de injusto sucederá; ter-se-á julgado a si próprio! Se tu, cos- mopolita liberal, queres castigar-me como regente planetário, pela minha conduta mutável em relação aos que me são sujeitos, tira-me luz, brilho, grandeza e poder! Observa, porém, de que forma os cor- pos subsistirão sem mim!’

  4. Meu amigo, assim se manifesta a ordem natural nos primei- ros, maiores e mais potentes corpos cósmicos, pois sem ela não se pode pensar em subsistência. Se estes seres enormes e completamen- te livres necessitam de guia, quanto mais os menores e tolhidos, como os animais e mormente as criaturas dotadas dum espírito in- teiramente livre!

  1. Irracionais de certa espécie possuem determinado guia; quando este se movimenta, todos são tocados como por uma des- carga elétrica. O pastor de um rebanho sabe qual dos animais é con- siderado pelos outros; por isto ele lhe dependura um sino. Quando à tarde quer levar a manada ao curral, basta prestar ouvidos ao som do sino para encontrá-la; guiando o principal, os outros o seguem automaticamente. O mesmo se dá com os suínos quando vivem ao ar livre, bem como as cabras, carneiros, cavalos, burros, etc. Fato idêntico observarás até mesmo nos insetos, pássaros, peixes e outros.

  2. Explicar-te-ei o assunto em seu todo e te conduzirei à na- tureza aparentemente muda. Observemos a água, em si maleável, porquanto pode ser dividida em inúmeras gotas. Este elemento su- mamente importante e ocultando em si todos os germes primitivos da vida animal e vegetal, e ao mesmo tempo fecundado por forças por ti jamais calculadas, obedece, em estado livre, à lei do peso que nela reside. Em virtude desta lei, que ela observa por uma capaci- dade perceptiva toda peculiar, sente a mais suave inclinação de um terreno e começa a mover-se em direção do declive, não descansan- do até que tenha alcançado o mar. Além disto, tem este elemento a tendência estranha de se purificar somente após ter alcançado a margem marítima — demonstrando assim que o homem também só atinge a consciência plena da sua verdadeira finalidade quando em vida não almeja honrarias, senão a posição mais simples, isto é: a verdadeira humildade, tão recomendada por Mim, e que jamais poderá ser alcançada pela autoridade, mas pela obediência!”

CAPÍTULO 20

As cordilheiras e sua necessidade

  1. Prossigo: “Recebeste, pela explanação dada, uma prova de que a água, como elemento passivo, contém uma inteligência própria pela qual rende obediência à lei puramente divina dentro dela até a última gota, muito embora contenha cada uma trilhões de germes!

  1. Não paremos na observação da água e vamo-nos encaminhar ao local do seu nascimento, isto é, às montanhas, para analisarmos se não manifestam inteligência individual e por isto respeitam as leis que comportam, de modo milagroso!

  2. Existem na Terra montanhas variadas. As enormes, ou seja, as de origem primária; em seguida, as de altura mediana, de forma- ção secundária; e, finalmente, as menores, que são mais montes do que montanhas e pertencem à terciária. Estás sorrindo de satisfa- ção porque descobres em Mim um geólogo moderno! Como não? Pois justamente na Geologia e na Cosmologia superior estou bem informado.

  3. Temos, pois, três espécies de montanhas e vamos analisar pri- meiro a mais alta. Suas finalidades são diversas: primeiro, são elas reguladoras das correntes eletromagnéticas, que deste modo são de- vidamente distribuídas sobre o solo terráqueo. Segundo, elas evitam que o ar estacione enquanto se faz a rotação da Terra, o que provo- caria uma corrente contrária pior que qualquer furacão, impossibi- litando a vida sobre a mesma. Terceiro, absorvem as partículas de umidade provindas do oxigênio e hidrogênio, razão por que seus cumes geralmente estão nublados e invisíveis. Tais partículas unem-

-se ali à eletricidade abundante e caem como neve e gelo sobre os penhascos. Após maiores acúmulos, se arremessam como poderosas avalanches nas fendas e grutas onde formam as geleiras; estas, por sua vez, absorvem as partículas frias da atmosfera, protegendo as zo- nas cultivadas da geada destruidora. Ao mesmo tempo amenizam a eletricidade fortemente acumulada, do contrário as planícies teriam de suportar constantes aguaceiros.

  1. Vês, portanto, a grande finalidade das montanhas e conjec- turas: ‘É isto mesmo, pois sempre que os homens se atreviam a mo- dificar a formação montanhosa, em breve recebiam o castigo dos elementos, jamais vistos.’ Tens toda razão, amigo! Agora vamos ao principal: A fim de que as montanhas possam cumprir sua impor- tante finalidade na manutenção do orbe e de tudo que nele se en- contra, já não é indiferente seu local; além disto, precisam — através

dos espíritos ou elementos que habitam tanto no centro quanto na superfície — ser donos de peculiar inteligência para executarem o que lhes cabe.

  1. A esfera de ação é para elas, tanto quanto para nós, uma lei positiva que percebem pela inteligência; tudo isto podes acreditar, porquanto de Mim afirmaste ter sido Eu iniciado na escola egípcia nas forças da Natureza de modo mais completo que todos os inte- lectuais hodiernos.

  2. Aceitando, pois, Minha explanação, aceitarás também ser so- mente possível a conservação de um planeta pelo fiel cumprimento das leis a cuja inteligência estão sujeitas as montanhas. Que seria caso elas se revoltassem contra tais determinações, dizendo: Não mais queremos ser soberanas elevadas, mas humilhar-nos em peque- nos montes frutíferos!

  3. Enquanto as montanhas nada produzem por várias centenas de milhas quadradas, dando a impressão de inúteis — seria talvez aconselhável destronar tais regentes e transformá-los em planícies pro- dutivas? Respondes negativamente. Da mesma forma acrescento que os regentes da sociedade humana não podem ser aniquilados! Do con- trário, a Terra em breve terá o mesmo aspecto que as montanhas ar- rasadas! Como os reis da Terra devem cumprir sua finalidade, ela tem que ser idêntica às montanhas. Compreendes? Dizes: ‘Sim, e também percebo seres um sábio verdadeiro!’ Pois bem, ainda não chegamos ao fim; restam duas qualidades de montanhas, que vamos analisar.”

CAPÍTULO 21

Aparecimento das montanhas médias e pequenas e sua necessidade

  1. Prossigo: “Quando o orbe ainda era deserto e necessitava alimentar plantas e animais — além dos tipos primários de todas as formas posteriores — as cordilheiras primitivas eram suficientes para fornecer os mencionados serviços ao planeta ainda informe. Mas, após inúmeros milênios, ele se havendo concentrado mais e

mais, sobre o mar se elevavam importantes grupos de ilhas e os ger- mens primitivos depositados na água começavam a se manifestar por várias espécies de vegetais. Era então chegado o momento de pro- duzirem-se novas elevações através de erupções internas, fornecendo mais terreno, alimento e proteção para seu desenvolvimento. Eis que houve tremendo e furioso rugir. Romperam-se as camadas subaquá- ticas, sendo levantadas pelas forças poderosas a alturas imensas!

  1. Passaram-se milênios até que fosse concluída esta tarefa. Mas, para Deus, Meu amigo, pouca diferença faz; pois mil ou milhões de anos Lhe são idênticos a um dia! Bem, deste modo se formaram as montanhas de segunda categoria! Eram, no início, mais altas e escar- padas que hoje; o tempo e as tempestades baixaram-lhes as frontes, preenchendo as enormes profundezas e formando vales estreitos e largos. Como estes não facultassem livre passagem às águas, elas se acumulavam nas fendas mais vastas, onde formaram grandes e pe- quenos lagos.

  2. Como tais lagos recebessem um constante acúmulo de água, tanto pelos poros do orbe como do ar — pela chuva, neve, saraiva e orvalho — tinham forçosamente de ultrapassar suas margens. No decorrer dos tempos se soltaram pequenas e grandes partes de terra, que preencheram as profundidades irregulares dos vales e até mesmo formaram, em época de inundações, verdadeiros montes e fileiras de colinas, o que até hoje ainda acontece; e, além disso, também sur- gem tais montanhas pelo fogo. A formação de colinas por meio de inundações é a terciária, condicionada pela secundária.

  3. Por esta explicação é fácil deduzir-se como surgiu e ainda sur- ge a terceira categoria, quando não se perde de vista que, para a futu- ra produção, conservação e proteção de novos seres e na reprodução do que já existe, preciso é um solo vasto e fértil. O solo terráqueo é de tal forma organizado que nele pode surgir, viver e procriar toda sorte de criaturas. Esta organização foi e ainda é facultada pelas três categorias montanhosas.

  4. As duas últimas formações parecem, à primeira vista, não ter semelhança com a primeira na sua finalidade; tanto a origem quanto

seu destino são diversos. Uma vez que entraram na fileira das mon- tanhas primitivas, isto é, dos regentes, têm de se submeter àquelas leis, sem reação, não obstante suas finalidades por elas determinadas. Não basta que montes e colinas preencham, com o supérfluo, vales e fendas, lá produzam campo fértil e formem agradáveis bosques; preciso é que desde o início de seu aparecimento assumam gran- de parte do peso e em tudo auxiliem as montanhas; do contrário, não poderão satisfazer sua finalidade, porquanto seu surgir requi- sitaria por demais aquelas forças, caso as montanhas tivessem que organizar tudo por si mesmas! Assim sendo, montes e colinas agem pela inteligência estimulante naquilo que os regentes montanhosos lhes incutem.

  1. Existem, na realidade, alguns não dispostos à obediência; são então vergastados por tempestades poderosas até que se submetam ou sejam destruídos. Os antigos sábios os denominavam de ‘teimo- sos’, às vezes, ‘amaldiçoados’. Ultimamente chamam-se tais heróis de ‘soltos’, ‘inconstantes’ e ‘decompostos’. Existem muitos exemplos de montes castigados, tanto da antiguidade quanto de época recente.”

CAPÍTULO 22

Submissão gradativa entre os homens

  1. Digo Eu: “Caro amigo, por esta exemplificação, tirada da Natureza, terás deduzido as condições submissas até nas coisas iner- tes e sem inteligência — a teu ver — portanto podemos declinar de outros exemplos. Teria fatos interessantes a te contar, caso te levasse a outros planetas, cuja ordem é muito mais rigorosa que na Terra, onde intencionalmente existe a maior desordem — e isto, a fim de que os espíritos livres nela pudessem ser educados para verdadeiros filhos de Deus, de modo independente e proveitoso à sua natureza.

  2. Já que aceitas ser indispensável, na construção da Natureza, uma ordem de submissão gradativa a fim de garantir sua existência

tos e desejos. Imagina qual seria o resultado se cada uma pudesse realizar tudo aquilo que sua índole, em seu recôndito invencível e fantástico, projeta da riqueza infinita e divina de suas ideias!

  1. Afirmo-te que ninguém estaria seguro perto do semelhan- te. Primeiro, espíritos há cuja fantasia ou criação se ocupa, princi- palmente, com volúpia, na destruição de tudo que existe. Outros desejam matar de formas variadas; outros, ainda, destruir monta- nhas, perfurar a Terra, enchê-la de pólvora a fim de fazê-la explodir, fazer secar o orbe, inundá-lo, queimá-lo; outros, atar a Lua à Terra!

  2. Além disso, há uma infinidade de espíritos sensuais cuja fan- tasia consiste nas ideias de gozo. Se não fossem retidos por leis, não haveria proteção para o sexo feminino, até mesmo para o masculino e os próprios animais! Conheço muitos de tais amigos da Natureza da espécie de Sodoma e Gomorra, que se entretinham no cruza- mento de várias raças para observarem o produto. Quando isto não mais satisfazia sua imaginação, dedicavam-se a experiências com ir- racionais, de onde surgiram figuras horripilantes, conforme agiam os pagãos.

  3. Imagina uma grande sociedade de tais pessoas, não contro- ladas por leis morais e políticas! Que geração monstruosa não sur- giria? Em alguns séculos o orbe seria inundado de seres onde a vida humana não mais encontraria defesa! Por isto instituiu Moysés uma lei rigorosíssima e a morte como castigo para tais obscenos, pois ele, como filho adotivo do rei, era conhecedor das monstruosida- des egípcias.

  4. Entre os espíritos sensuais houve — e ainda há — os que so- mente satisfazem seu gozo quando martirizavam a moça antes e du- rante o ato. Não pretendo revelar-te fatos especiais, pois não serias capaz de ouvi-los! Basta que saibas do resultado quando a sociedade se acha num estado anárquico.

  5. Terceiro, existem espíritos que se têm em tão alto conceito a ponto de acharem tudo abaixo de sua dignidade; são orgulhosos e excessivamente dominadores; todos devem se ajoelhar no pó e sa- tisfazer apenas suas vontades. Calcula uma comunidade constituída

de tais pessoas! Tigres, leões e panteras viveriam em maior harmonia que elas, caso não fossem mantidas por leis morais e políticas!

  1. Além disto, vivem entre os homens inúmeras aberrações de espíritos vários cujas fantasias e inclinações são de tal modo pervertidas contra qualquer ordem positiva e equilibrada, que não fazes a menor ideia! Se lhes fosse permitido fazer uso de sua liber- dade na milionésima parte, qual seria o aspecto do planeta? Res- pondes: ‘Tal seria um horror! Seria o inferno de todos os infernos sobre a Terra!’

  2. Concordo e digo mais: o que, então, é necessário para impe- dir o inferno total na superfície terráquea? Vê, agora chegamos ao ponto de partida e onde Eu queria chegar! Reconheces o motivo por que Eu e Paulo recomendamos obediência à autoridade mundana os confessores da Minha Doutrina? Acaso ainda descobres um contras- senso nisto tudo e julgas a obediência justa e a humildade verdadeira como indignas de um espírito livre?”

CAPÍTULO 23

Roberto indaga do abuso do poder

  1. Diz Roberto: “Que posso ainda dizer, caro amigo? Confes- so que me ultrapassas em ciência e sabedoria, portanto tens razão em tudo que me expuseste. Nada posso contrapor, uma vez que tu, iniciado nas forças ocultas da Natureza, possuis conhecimento mais completo que eu!

  2. Tudo, pois, é verdade e se apresenta a necessidade férrea de uma lei em virtude da liberdade do espírito. Surge, porém, a ques- tão: podem os legisladores, de certo modo nomeados por Deus, ser excluídos do respeito às suas próprias leis e, mormente nesta época, tornarem-se déspotas e tiranos, deixando que milhares sejam ani- quilados por causa de um trono qualquer? Teria sido meu crime de tal espécie que um príncipe Alfredo, em nome de seu Imperador que lhe conferira plenos poderes, fez-me fuzilar e a outros tantos simpatizantes?

  1. Se tal regente se exclui de suas próprias leis, resta saber quem o dispensa de tua Lei de Amor, válida no mundo inteiro, sem distin- ção de classe e caráter? Por que devem centenas de milhares sofrer as maiores misérias e, caso cometam o menor deslize em virtude de sua pobreza, terem de passar pelo rigor da lei, enquanto que os grandes podem fazer o que lhes apraz, pois não haverá juiz que os chame à responsabilidade?

  2. Sou muito a favor de regentes sábios e bons; quanto aos que mal sabem o que são e muito menos o que devem ser, isto é, regentes que ocupam tronos para satisfazer suas tendências e sugam o sangue dos súditos quais vampiros, ao invés de guiá-los por sábias leis, dize-

-me se tal povo oprimido não tem direito de enxotar ladrões e ma- landros inconscientes desta ordem, para ocupar seus lugares como homens de inteligência e coração? É preciso que sua poltrona seja dourada, sua habitação um palacete suntuoso e seus rendimentos se elevarem a milhões? E tudo isto à custa do suor do povo? O pobre coitado nada tem de bom sobre a Terra; desde o nascimento até a morte é um joguete dos grandes, tem de lhes render vida e bens. Em compensação, procura um padre a fim de aliviar sua consciência, ouvindo o consolo duvidoso da eterna condenação! Assim confor- tado, volta ao lar onde faz estudos referentes ao desespero! Estará isto também positivado em a Natureza? Eu, Roberto, afirmo: eis o inferno e sua tentativa constante de transformar os pobres anjos em demônios miseráveis!

  1. Não deixa de ser verdade — o que confesso como alma viva após a morte — que a vida terrena é de provação para o alcance de perfeições elevadas e puramente espirituais, portanto não se pode aguardar felicidades maravilhosas e deslumbrantes. Um estudante é mais ou menos escravo de seu mestre; mas, quando fizer parte dos tiranos cruéis, cuja educação se restringe ao domínio, transforman- do a criatura verdadeira em animal ou demônio — qual é a opinião de uma ordem divina?

  2. Continua neste caso a Divindade como único Senhor e Mes- tre, e seus confessores devotos, irmãos? Será isto amar a Deus so-

bre tudo e ao próximo como a si mesmo? Ou talvez ela ache justo deixar os povos perecerem sob regentes maus? Quando os povos alcançam a maior miséria física e moral, recebem do Alto o castigo em virtude de sua depravação. Desta forma surgem pobreza, fome, moléstias horríveis, peste, cólera e outras epidemias, tudo isto como ‘Graça Divina’!

  1. Ao lado de tais dádivas se apresenta o desespero completo e, como final coroação, a condenação eterna no purgatório! Bravo, bravo! A vida é uma maravilha! Quem a inventou deve se alegrar com sua obra!

  2. Não quero criticar ou recriminar o Ser Supremo, que cer- tamente terá coisa melhor a fazer do que se interessar pelos ver- mes no pó. O pior de tudo é que tais vermes têm sentimento e raciocínio e finalmente não podem ser aniquilados, conforme sou exemplo vivo!

  3. Deverão as criaturas desta Terra — talvez por deferência es- pecial — ter a honra e a felicidade de serem as mais amaldiçoadas pela Divindade Bondosa, teu ‘santo pai’, que te deixou pregar na cruz, certamente por amor?! Quanto mais reflito, mais duvidosa me parece tal questão! Consegues interpretá-la melhor?”

CAPÍTULO 24

Resposta extensa e confortadora. O castigo é causado pela maldade do homem, e não por Deus

  1. Digo Eu: “Caro amigo, teu critério dentro do raciocínio li- mitado é aparentemente justificável, e se as coisas andassem confor- me acabas de expor, a situação da Humanidade seria bem precária! Felizmente, tuas conjecturas se baseiam em fracas bases. Primeiro, a Divindade zela pela criatura desta Terra de modo tão extraordinário como se não houvessem outros seres que Dela necessitassem, con- duzindo-a em todas as circunstâncias de sua vida de provação de tal forma que quase todas têm de alcançar seu elevado destino, para o qual Deus unicamente as criou!

  1. Naturalmente, muitos espíritos há que não se querem sub- meter à Vontade de Deus, não obstante todos os meios aplicados! É compreensível que Ele use para tais espíritos de meios mais rigoro- sos e drásticos a fim de levá-los ao justo caminho, e penso que teu julgamento quanto a Divindade é um tanto superficial, uma vez que Lhe atribuis resultados que somente cabem à vontade potente e orgulhosa da criatura!

  2. Mencionaste a Providência Divina em relação aos regentes maus; nada disseste, porém, dos povos que se tornaram maus por própria culpa e não em virtude da política mal aplicada de seus re- gentes, o que exemplificarei mais tarde.

  3. Segundo, a suposta condenação eterna dos homens, após a morte, como efeito daquele regime que os obrigou a serem maus sem própria culpa! Confesso sinceramente jamais ter deparado com tais fatos, não obstante conhecer bem todas as situações no mundo espiritual: em toda a Eternidade não existe um caso em que Deus tivesse condenado um espírito. Posso te citar inúmeros em que es- píritos detestam e amaldiçoam a Deus, em virtude de sua indepen- dência, e por preço algum querem depender de Seu Amor Infinito, porquanto se julgam senhores da Própria Divindade!

  4. Como Deus só pode favorecer com Seu Pleno Amor os que queiram sorvê-lo, claro é não ser possível dele partilhar enquanto O desprezam, odeiam e ridicularizam.

  5. Tais criaturas amam somente a si mesmas e odeiam tudo que se opõe ao seu egoísmo. O amor a Deus e ao próximo é-lhes um horror, uma maldição! Tomam a Deus como insipidez de sentimen- to beatífico, tolice de um intelecto deturpado e tolo em excesso; e o próximo, um vagabundo que não merece ser considerado!

  6. Se espíritos livres perduram na teimosia e não podem ser cura- dos por meios livres, isto é, por si mesmos, e preferem submeter-se às amarguras e sofrimentos, ao invés de aceitarem um Mandamento sua- ve de Deus — poderá Ele ser responsável por tal condenação própria?

  7. Se a Divindade isola tais rebeldes de seus amigos desencar- nados, felizes, pela Onipotência, Amor e Sabedoria, deixando-lhes,

porém, a plena liberdade em zonas de solidão — pode, por isto, ser classificada de impiedosa e ríspida?!

  1. Afirmas que a maldade das criaturas e povos deriva da péssi- ma educação e ensino, cuja culpa cabe aos regentes, que Deus assim permitiu que fossem! Não contesto tuas ideias quanto à hipótese da culpabilidade dos regentes. Todavia, não poderás negar que a Justiça Divina não haja castigado os responsáveis! Pesquisa a História desde o início da Humanidade; apresentar-te-á inúmeros severamente pu- nidos em virtude de sua péssima conduta. Contudo, sempre se fez a experiência de que o povo em geral era mais obediente e compre- ensivo sob um regime tirânico do que num meigo. Razão por que a Divindade permite maus regentes para que os povos tenham um freio e açoite, obrigando-os à penitência e transformação da índole, e assim façam jus a um regime melhor, que a Divindade não deixará de lhes proporcionar.”

CAPÍTULO 25

Razão e finalidade da vida terrena. Felicidade terrena ou eterna? Que trouxeste contigo à Eternidade?

  1. Prossigo: “Se um povo se tornar voluptuoso e sensual sob o regime de pessoas bondosas e meigas, dedicando-se somente ao que lhe faculta felicidade na Terra, Deus, que visa apenas o bem espiri- tual de cada um, não pode concordar com tal situação, porquanto produz a morte do espírito dentro da Ordem Divina. Assim como um adolescente, que desde o berço levou vida nababesca, não se interessará pelo desenvolvimento espiritual, o mesmo sucede a um povo que leva vida farta.

  2. Penetra nos palácios dos ricos e informa-te a respeito da educação exigida por Deus, e verás que ela não existe, na maioria. Procura, em seguida, o lavrador em sua cabana e encontrá-lo-ás em meio da família, abençoando o escasso pão! Qual dos dois preferes? Respondes: o pobre em sua cabana; e Eu concordo contigo! Pois este ora em espírito, educando e elevando seus filhos a Deus. O deus do

rico é seu corpo, que ele adora e venera por toda sorte de prazeres. Da mesma forma educa seus filhos, e tal educação não pode ser do agrado de Deus, porquanto por ela jamais poderá ser alcançada a finalidade sublime para a qual Deus criou os homens.

  1. O mesmo acontece com um povo: quanto mais abastado, tanto mais sensual se torna. Provido de tudo, não mais necessita de Deus, esquece-O finalmente, divinizando-se a si mesmo naquilo que mais agrada a seus sentidos. Foi esta desde sempre a causa do paganismo!

  2. Conjecturas: ‘Para que servem, então, a Onipotência e Sa- bedoria Divinas, que não podem impedir tais coisas?’ Respondo-

-te: Se a Divindade condenasse os espíritos dotados de liberdade através de Sua Onipotência — adeus livre arbítrio! Neste caso, Ela formaria bonecos tolhidos, ao invés de espíritos completamente independentes e livres de Deus, que, em sua perfeição, se devem tornar deuses!

  1. Quanto à influência da SabedoriaDivina, Ela produz preci-

samente tais estados sobre criaturas pervertidas que permitem ser de novo levadas ao destino determinado. Não deixa de ser um julga- mento e, de certo modo, uma obrigação, mas que toca apenas a cria- tura externa, a fim de que possa quanto antes despertar e assumir sua finalidade. A Onipotênciajulgaria e mataria a pessoa no seu todo!

  1. Reflete, pois, se ainda te assiste o direito de culpar a Divinda- de como se nada fizesse em favor de Seus filhos, e quando o faz, seria apenas a manifestação de inclemência, falta de amor, portanto algo de ruim! Consideras ainda a vida terrena desprezível? E o Inventor, um Ser que não tivesse motivos para vangloriar-Se de Sua Obra?

  2. Se possuis o menor vislumbre de inteligência adicionada à de Hegel, confirmarás, através de muitas experiências, que na Terra, onde tudo tem de ser passageiro, jamais se encontrará uma felicida- de verdadeira, porquanto se torna, pela ordem natural das coisas, com o tempo, mutável e, finalmente, perecível!

  3. Quem, todavia, acumula tesouros dentro de Minha Doutri- na, indestrutíveis pela ferrugem e as traças, poderá falar da verdadei-

ra bem-aventurança; pois aquilo que dura eternamente, por certo será melhor que a matéria sujeita ao tempo!

  1. Que conseguiste com as tuas aspirações à felicidade pura- mente terrena? Uma pequena dose de pólvora e chumbo finalizaram teus projetos elevados! Não vem ao caso se o mereceste ou não, pois Eu Mesmo passei por essa desdita, apenas com a seguinte diferença: Eu — para Deus e o Espírito; tu — em prol do temporário.

  2. Poderás repetir as Minhas Palavras: ‘Senhor, perdoa-lhes; pois o que fizeram foi cegamente, julgando agirem pela justiça!’ So- bre isto nada mais há que dizer. Mas... que trouxeste contigo para a Eternidade? Vê, amigo, eis uma pergunta bem diversa! Acaso o mundo perdido te poderá dar algo? Medita sobre isto e dize-Me o que farás aqui!”

CAPÍTULO 26

Resposta de Roberto: Devolvo minha simples existência àquele que ma deu! Haverá um Deus de Amor que trate suas criaturas tão cruelmente?

  1. Após certa reflexão, diz Roberto: “Prezado e mui caro amigo e irmão! No que diz respeito ao teu relato contra minha crítica da Divindade e a ordem de vida por Ela firmada, concordo contigo e confesso ter agido injustamente contra Deus — na hipótese de exis- tir um Pai Amoroso como tu e teus discípulos pretendíeis ensinar, porém nunca o reconheceram.

  2. Quando, certa feita, exigiram que mostrasses teu Pai e não pudeste satisfazer tal pedido senão aproveitando a fé fraca dos que te seguiam, apresentando-te, tu mesmo, como Pai, querias, a meu ver, dizer apenas: ‘Oh, judeus tolos! Ignorais não existir Deus além do homem?! Ao me verdes, ou a algum outro, vossa exigência se cum- priu. Não concebeis que o Pai está em nós e nós Nele?! Portanto, não existe Deus fora do homem!’

  3. Sendo esta minha compreensão, não sou de todo irredutível e me prontifico a aceitar uma Divindade qualquer, caso me possas

demonstrá-la. Se fosse possível, eu apostaria contigo um mundo de riquezas por não seres capaz de provar uma outra Divindade dentro de ti senão a que Hegel afirma! Não sendo admissível tais objeções, a não ser um deus dentro de nós, posso aceitar tua refutação, tan- to mais fácil quanto se refere à nossa ordem interna, que deve ser compreendida a fundo, antes que se exponha a um julgamento cri- terioso. Em outras palavras: ‘Criatura, conhece primeiro a ti mesma, para poderes julgar tua existência e todas as variadas condições que ela traz em seu bojo!’

  1. Só me cabe te agradecer por ensinamento tão complexo, pois em meu solo estéril e fraco tais frutos levarão muito tempo para surgir. Muito embora aceite as sábias restrições da liberdade absoluta inerente ao espírito, à ordem natural e às condições imprescindí- veis à vida, vejo-me obrigado a dizer-te, com franqueza, não me ser possível coadunar a doutrina pela qual Deus é o Puro Amor e que nos compete amá-Lo sobre tudo e ao próximo como a nós mesmos, com o que me disseste até agora; e muito menos enquanto não me convenceres da verdadeira existência de Deus!

  2. Antes de tudo, é preciso que Deus exista realmente e que Sua Natureza e Vontade sejam conhecidas; só então poder-se-á cogitar de obrigações para com Ele. Enquanto for uma entidade aceita pela fé cega, e nunca pela pura razão, cedo ou tarde todo ensinamento relativo a Deus, por mais metafísico e teosófico que seja, dissolve-

-se em nada.

  1. Não contradigo tua explanação, pois reconheço sua veraci- dade; todavia, só se aplica no caso de existir realmente a Divindade que impôs tal ordem para a educação da criatura, como Ser Su- premo. Não havendo Divindade, torna-se inócua minha objeção, porquanto o assunto é contraditório, mesmo com seus princípios fundamentais.

  2. À minha pergunta por que motivo o príncipe Alfredo me fez fuzilar, alegaste apenas não estar na hora de se tratar do caso; pois tu mesmo tiveste tal destino, com a diferença da finalidade: tu

o mundo e a felicidade perecível! E agora devo dizer qual minha bagagem trazida de lá? Amigo, tal resposta não me proporcionará dor de cabeça!

  1. A experiência milenária nos ensina que a Divindade, ao nos mandar ao mundo para frequentarmos a escola da pretensa liberda- de, nada mais nos proporcionou do que uma vida dura, desprote- gida, portanto tola! Assim, traz o homem o completo nada daquele mundo miserável! Dos bens terrenos, nada lhe pertence, porquanto os deixou para sempre!

  2. O que, pois, poderia eu trazer comigo, além de mim mes- mo, sem que o desejasse?! Há uma diferença apenas: cheguei a este mundo como ser pensante e espiritualmente formado, enquanto minha chegada na Terra era extremamente desprotegida. Contudo, ainda prefiro minha vida passada, porque nada senti como criança, além de fome e alguma dor inconsciente. Na realidade, tais sensa- ções não existiam, pois me faltavam consciência e critério. Se minha pobre mãe não me tivesse dedicado tanto zelo, os camundongos e ratos certamente me teriam liquidado, não obstante toda dedica- ção divina!

  3. A Divindade no coração de minha mãe cuidou de mim; mas a grande Mãe onipotente, alhures acima das estrelas, até o momento talvez ignore a existência do pobre diabo chamado Ro- berto Blum!

  4. Se represento o produto miserável desta grande Divindade que me enviou por amor ao mundo de provação, tão fartamente provido — acaso poderá exigir maisdo que me deu para esta viagem cósmica? Creio que onde nada existe extingue-se todo e qualquer direito! Ou, quem sabe, existe no mundo do espírito uma jurispru- dência pela qual a pessoa se pode tornar devedora pelo puro nada?!

  5. A existência nua e crua não é minha, porque não sou seu responsável. Trouxe-a um tanto enriquecida com alguma inteligên- cia e coberta de um uniforme, e ponho-a à disposição de quem ma deu, com o pedido de que eu, Roberto Blum, deixe de existir por toda Eternidade! Pois já deduzi de tuas objeções, se bem que sábias,

não ser possível falar-se de felicidade, mormente no meu caso. As- sim, será melhor não existir!

  1. Para completar minha desdita aqui, faltava que tu, caro amigo, dissesses: ‘Afasta-te de mim, miserável, e joga-te no fogo eterno da Ira Divina, onde deverás arder em dores insuportáveis!’

CAPÍTULO 27

A emancipação do homem. Na educação aparentemente dura manifesta-se a mais elevada Sabedoria do Amor

  1. Continuo: “Meu caro amigo, terás dificuldades para alcan- çar noções espirituais mais profundas, pois ainda estás muito pre- so à matéria, suas condições e aparências; eis por que julgas tudo por este prisma fictício e perecível, não podendo assimilar noções espirituais.

  2. Acaso ainda não compreendes, como filósofo, que a Divin- dade, ao querer projetar um ser livre, forçosamente terá de fazê-lo numa independência completa e não tolhida — com exceção daqui- lo que está sujeito à condenação, por exemplo, a vida física, a fim de se positivar como receptáculo da centelha divina? Uma vez que esta tenha alcançado a necessária firmeza, ou caso Deus queira for- tificar um espírito ainda fraco para a vida terrena, sem submetê-lo à encarnação, Ele Mesmo o isenta do julgamento e o espírito, com isto, torna-se inteiramente livre, e tudo aquilo que deseja realizar se concretiza! Compreendes?

  3. Pensas que Deus te manda descer ao inferno ou subir ao Céu? Não precisas preocupar-te com tais ideias! Afirmo-te que és

completamente livre, e aquilo que teu amor — ou seja, tua inclina- ção — desejar far-se-á! Deus te auxiliará no que há de melhor so- mente quando tu o desejares. Se pretendes rejeitar esse socorro, Ele não o atirará sobre teus ombros, porquanto possuis uma vida livre e independente de Deus, determinando tua própria vontade e, por isto, também és obrigado a cuidar do teu sustento sem ajuda divina; do contrário, tal existência não seria independente!

  1. Se Deus permite que o homem nasça inteiramente despro- tegido e nu, fá-lo a fim de libertar sua existência e habituá-lo desde o nascimento a determinar sua própria resolução. Tal processo de afastamento tem de ser iniciado desde cedo, quando a criança ainda é incapaz de compreensão, ideias e dores conscientes; pois se tal afas- tamento ocorresse em plena consciência, a criatura não suportaria tamanha dor e tristeza. Se ela já se entristece quando a morte de um bom amigo rompe o laço de amizade, quanto mais não o faria uma separação consciente do Pai Celeste — fator que, no entanto, tem de ocorrer, porquanto sem ele não seria possível a emancipação individual.

  2. Se amor e sabedoria mais elevados do Senhor provocam tal separação necessária num estado quase que insensível, dando-lhe uma existência exterior que oculta a precedente união com Ele — a fim de que o espírito se habitue mais facilmente a tal isolamento e encontre sua vida absolutamente livre de modo mais imperturbável

  1. Acredita-Me, se houvesse outro caminho possível para a ob- tenção da vida liberta, que fosse menos doloroso, Ela o teria incluído em Sua Ordem. Dentro das condições da existência humana não há outro meio melhor do que este; portanto, é bom e útil. Assim sen- do, o caso em si já é a maior prova da existência visível e patente de Deus, pois sem ela nada se cria e subsiste. Se, com isto, fica eviden- ciada a Sua Existência, como merece Ela ser insultada por pessoas inteligentes, conforme pretendes ser? Vê, amigo, a grande injustiça aplicada ao Senhor e Bondoso Pai!”

CAPÍTULO 28

A própria morte é um meio de salvação do Amor Divino

  1. Prossigo: “A morte das criaturas desta Terra é, para os sen- tidos, uma ocorrência triste e geralmente acompanhada de dores. O simples raciocínio considera-a dura e cruel por parte da Divin- dade Onipotente, que pretende ser plena de Amor e Misericórdia! Quantas vezes não foi Ela por isto praguejada e até mesmo negada por completo!

  2. Eis, neste caso, a mesma necessidade como no nascimento: o espírito livre do homem só se pode libertar do julgamento, que im- pede sua liberdade, pelo afastamento de seu invólucro temporário, que lhe é dado até que se tenha isolado do Ser Divino, momento somente conhecido por Deus, como Criador da Vida. Desde que se tenha dado tal maturação, chegou a hora de tirar ao espírito o peso que lhe obsta sua liberdade.

  3. Indagas, como muitos: ‘Por que não se efetua tal separação de modo indolor?’ E Eu te respondo: Se cada um vivesse dentro do Ensinamento de Deus, a morte lhe seria um prazer ou, no mínimo, indolor. Como as criaturas se entregam à contraordem dentro da matéria em virtude de sua liberdade, onde o espírito é preso com algemas fortes e o atraem ao amor mundano, o rompimento é tanto mais doloroso quanto mais o espírito se inclina à matéria.

  4. No entanto, tal dor não é inclemência, senão puro amor di- vino, pois neste caso, se a Divindade deixasse de empregar certa violência, que naturalmente não pode ser agradável, o espírito se integraria à condenação plena, ou seja, à morte eterna e horrenda, representada pelo próprio inferno. Agindo desta forma para salvar o espírito nobre, merece a Divindade ser blasfemada e mesmo ne- gada? Infelizmente, muitos espíritos há que nada querem saber de Deus, uma vez alcançada sua liberdade; entretanto, Deus não deixa de conduzi-los à perfeição pelos caminhos adequados.

  5. Na Era primitiva, as criaturas em geral alcançavam idade mais avançada e morriam de modo suave e sem sofrimento. Isto

porque seu espírito não podia com facilidade ser afastado de Deus, como hoje; em virtude do mundo não lhes ter proporcionado gran- des tentações, viviam mais introspectivamente e se achavam numa perfeita união com Deus.

  1. Quando, no decorrer dos tempos, os homens descobriram outros atrativos externos, causando a separação de Deus, sua vida terrena se encurtava gradativamente. No final, esqueceram total- mente seu Criador pela sedução do mundo, atingindo o polo opos- to da Ordem Divina, onde a morte eterna os aguardava. Eis que se tornou necessário, por parte de Deus, aproximar-Se e revelar-Se de quando em quando, para salvá-los da perdição eterna. Muitos dei- xaram-se salvar, enquanto inúmeros outros não o quiseram de livre e espontânea vontade! Acaso deveria a Divindade apossar-Se deles pela Onipotência, uma vez que não queriam atender ao Seu Amor? Seria o mesmo que destruí-los!

  2. O Eterno Amor, movido pela Sabedoria, poderá somente di- zer: ‘Afastai-vos de Mim, pois Me negastes e amaldiçoastes, e inte- grai-vos numa outra escola conservadora, que vos foi preparada para vossa possível libertação: o fogo da condenação da matéria terá que vos separar do mundo, do contrário estareis perdidos!’

  3. Se a Divindade faz com que ocorram pragas externas na Ter- ra, a fim de impedir tamanha desgraça — acaso Ela não existe? Ou, admitindo Sua Existência, será Ela inclemente e insensível porque faz o que acha necessário? Como podes imaginar que Deus amaldi- çoe e condene Suas criaturas? Que benefício Lhe poderia advir daí?

  4. Sendo de Sua Vontade dar plena independência aos seres, não deve ser Sua maior preocupação impedir que venham se atirar novamente nos braços de Sua Onipotência, onde sua liberdade seria anulada? Seria o mesmo que se apertasses teus filhinhos num abraço demasiado forte contra o peito, o que lhes custaria a vida. Mesmo se isto tivesses feito, não irias prevenir os demais de tua força indômita, evitando tal experiência prejudicial?

  5. Deus não necessita da experiência, por ser Possuidor da Sa- bedoria Infinita. É Ele o Único e Verdadeiro Bom Pastor de todos os

cordeirinhos e pode protegê-los de Sua Onipotência, que usa apenas para a formação das coisas materiais; nunca, porém, na criação de es- píritos livres! Estes devem surgir unicamente de Seu Amor e Sabedo- ria, do contrário não será possível dar-lhes liberdade, portanto vida! A Onipotência Divina só produz julgamentos sobre julgamentos!”

CAPÍTULO 29

O verdadeiro sentido do pronunciamento: “Afastai-vos de Mim, malditos!” Pecado contra o Espírito Santo

  1. Prossigo: “Se tivesses analisado gramaticalmente, ao menos como crítico, aquela sentença do Evangelho que te soa tão horrenda, terias percebido de um relance, pela sua formação, que a Divindade jamais poderia ou quereria pronunciar tal condenação contra os re- nitentes pecadores mortais.

  2. Consta: ‘Afastai-vos de Mim, amaldiçoados!’ Portanto, a or- dem é dirigida aos que estão amaldiçoados. Do contrário, deveria constar: ‘Em virtude de terdes pecado de modo tão brutal e incorri- gível, Eu vos amaldiçoo, como Deus, para o eterno fogo do inferno!’

  3. Como a Divindade dirige Sua Sentença aos que já se acham condenados, deduz-se que Ela não Se manifesta como Juiz, senão como Pastor que tudo organiza; tem, portanto, de indicar com rigor um outro caminho aos espíritos que Dela se afastaram, pois, se assim não fosse, cairiam nos braços da Onipotência, uma vez separados do Amor Divino, onde indubitavelmente estariam perdidos!

  4. Resta saber quem os amaldiçoou! A Divindade não o fez, pois em tal caso estaria isenta de Sabedoria e Amor. Tudo que existe, inclusive o espírito, é de Deus. Se Deus agisse contra Suas Próprias Obras, não o faria contra Si Mesmo para destruir-Se, ao invés de elevar-Se de eternidades em eternidades, pela constante perfeição de Sua Obra, ou seja, Seus filhos?

  5. Se, pois, a Divindade não Se apresenta como Juiz, mas uni- camente como Pastor que tudo equilibra — é evidente terem sido tais espíritos condenados por outrem! Mas... por quem? É fácil res-

ponder-se quando se possui tanto conhecimento individual para compreender que uma entidade, de um lado possuidora de espí- rito e vontade livres surgidos do Amor e Sabedoria Divinos, e do outro, tendo um corpo temporário condenado pela Onipotência e um mundo exterior com suas seduções materiais, portanto também julgadas — tudo isto para que possa isolar-se da Onipotência e tor- nar-se um indivíduo completamente livre — só pode ser condenada por si própria, e não por outrem. Esta condenação é o mesmo que a maldição, o total afastamento de Deus!

  1. Deus não querendo tirar-lhe a vida, só Lhe resta chamar cada espírito desajustado de acordo com sua tendência e demonstrar-

-lhe, com rigor amoroso, o caminho que lhe faculte a salvação e a reunião com o Amor e a Sabedoria Divinos. Afora esta união, não existe liberdade absoluta, nem vida espiritual e eterna, sim, somente a Onipotência, onde a força do Amor e da Sabedoria de Deus, em união com a Mesma, perduram como Manifestação de Vida e a con- duzem. Todo e qualquer ser separado desta Origem tem de perecer, porquanto é impossível reagir contra Seu Peso Infinito!

  1. Por isto soa: ‘Deus habita na Luz eternamente inatingível!’ Isto quer dizer: A Onipotência Divina, o Próprio Espírito de Deus, que preenche o Infinito, é inatingível à vida dos seres, caso devam subsistir, pois todo conflito com a Onipotência Divina é a mor- te do indivíduo! Por isto o pecado contra este Espírito Poderoso é apontado como mortal. Uma entidade, após ter-se isolado do Amor Divino, que pretende medir-se com tal Potência, é tragada por Ela e jamais poderá se libertar de seu peso, como verme soterrado pelo Himalaia! Como irias livrá-lo daquela massa colossal?”

CAPÍTULO 30

O rico e o pobre no Além. Quem é causador do inferno? Somente a maldade dos espíritos

  1. Prossigo: “Conjecturas no teu íntimo: ‘Estaria tudo certo caso a Divindade assim falasse aos que Dela se separaram devido ao seu livre arbítrio. Assim sendo, aquela sentença condenadora não pode conter em si o horror que inspira no primeiro momento. Ago- ra, qual é o sentido da parábola do pobre e do rico, em que este, embora implorasse perdão, não é atendido e padece no inferno sob dores indizíveis e lhe é mostrado um abismo intransponível que o impede de alcançar Amor e Graça Divinos? Como se pronunciam neste caso a Sabedoria e Misericórdia de Deus?’

  2. Caro amigo, sabia que Me farias tal pergunta! Mas, ao in- vés de responder, indago de ti, quematirou o rico no inferno? Por acaso, Deus?

  3. Teria aquele homem se dirigido à Divindade em seu de- sespero, suplicando Seu Amor e Graça para se livrar do mesmo? Sei apenas que pediu ao espírito de Abraão e não a Deus! Muito embora fosse perfeito o espírito do patriarca, não pode ser comparado ao de Deus; só Ele pode socorrer, e em tais casos é o único abismo intrans- ponível onde espíritos variados não podem e não devem estender suas mãos, pois aí agem somente Sabedoria e Amor Divinos mais ocultos e profundos!

  4. Cabe a culpa à Divindade por achar-se o rico em grande afli- ção, onde se atirou por culpa própria? Que te parece: pode ser injus- to agir-se de livre vontade?”

  5. Diz Roberto: “Tens toda razão! Sendo a Divindade plena de Amor — o que compreendo cada vez mais — surge a pergunta: Como podia Ela inventar tal estado onde um espírito teria de sofrer até que se apresentasse melhora qualquer, que lhe proporcionasse pequeno alívio? É preciso que exista o inferno? E os espíritos, devem sofrer? Não seria possível organizar tudo isto de modo menos cruel?”

  1. Respondo Eu: “Por acaso julgas ter Deus inventado o infer- no? Que erro capital! Isto é obra dos espíritos primitivos e maus. Deus apenas o permitiu a fim de não lhes tolher a liberdade. A su- posição de ser o inferno obra divina não passa pela ideia de qualquer ser de todos os Céus; pois, se assim fosse, o pecado e a maldade seriam partes integrantes de Deus — coisa inteiramente impossível, porquanto Ele não pode agir contra Sua Ordem. Pode e tem de per- miti-lo, caso os espíritos criem estados de miséria em virtude de sua determinação contrária.

  2. Em todo o Infinito não descobrirás um local que por Deus fosse determinado para inferno, pois ele só existe no próprio ho- mem. Que pode fazer a Divindade quando a criatura cria constante- mente um estado infernal pelo desrespeito à Palavra de Deus? Sendo Ele unicamente a Verdadeira Vida e a Luz de toda luz, portanto a completa felicidade de todos os seres, compreende-se não ser agra- dável um estado afastado de Deus!

  3. Quem Dele se afasta e não se prontifica a voltar, terá, forço- samente, um inferno perfeito e verdadeiro dentro de si! Tal estado só pode trazer sofrimentos, que aumentam de acordo com a teimosia da criatura, e caso Deus dela Se apossasse pela Onipotência — mui- to embora ela reagisse com todas as suas forças — seria destruída no mesmo instante, fator contrário à Ordem Divina.

  4. Se assim fizesse com um ser diminuto, tal seria o início da destruição total de todos os seres. Esta hipótese, portanto, sendo impossível, garante a todos a eterna existência e também a possibi- lidade de se tornarem extremamente felizes ou infelizes, de acordo com sua vontade!

  5. Se alguém possuir uma vinha cheia de videiras de qualidade, não as cuidando mas até mesmo exterminando-as e replantando car- dos e abrolhos que mais lhe agradam, cabe a culpa a Deus se o tolo proprietário não consegue boa colheita e se torna pobre e infeliz?

  6. O mesmo acontece com todos os espíritos que não se sub- metem à Ordem de Deus pelo desleixo com a vinha maravilhosa

dentro de sua alma! Se colhem apenas espinhos ao invés de uvas saborosas e se infelicitam, é disto culpada a Divindade?”

CAPÍTULO 31

Quem é a Verdadeira Divindade?

  1. Diz Roberto: “Prezado amigo, que mais posso dizer após tua explicação clara? A Divindade não pode agir de modo diferente, porquanto deixaria de ser o que é e Suas Criações teriam chegado ao fim. Compreendo, também, caso o espírito pretenda ser verda- deiramente feliz, dever ele ter receptividade para as maiores venturas e bem-aventuranças e a mais delicada sensibilidade e percepção, de sorte a lhe impedirem a perda das mais sutis impressões. Esta susce- tibilidade, porém, lhe faculta de modo integral as noções maldosas, do contrário seria semimorto, fato impossível, em virtude de sua força de vontade e ação sempre identicamente livres.

  2. Tudo isto aceito porque tiveste a bondade de me expor as relações entre Deus e Suas criaturas. Surge, no entanto, a questão capital: Ondeestá a Divindade? Onde Sua Região Eterna? Deve habitar alhures em Sua Plenitude! Possui forma? Qual? Talvez seja informe para Se tornar o compêndio de todas as formas? Aceitando eu a necessidade de um Ser Supremo, ‘onde’ e ‘como’ são de impor- tância máxima!

  3. Confesso que preferiria Sua Existência, digamos, na forma humana; pois um Ser Infinito, de forma diferente da nossa, nem eu nem pessoa alguma poderia amar com todas as suas forças! Uma entidade invisível e jamais concebível, de forma mais ou menos as- sustadora, não pode ser amada! Matematicamente é a bola a forma mais perfeita; mas moralmente incompleta! As bolas celestes são ma- ravilhosas, em virtude de sua luz; seria admissível alguém amar tal corpo celeste? A tal pergunta meu sentimento se cala!

  4. Por isto, caro amigo, já que pareces estar mais em contato com a Divindade do que eu, deixa de rodeios e fala sinceramente. Já não precisas usar de argumentos, pois me convenci de tua sabedoria

profunda e me prontifico a acreditar no que me disseres. Tira-me a dúvida, uma vez que recebi de ti esclarecimentos de sobejo em ou- tros assuntos referentes ao tema principal!”

CAPÍTULO 32

Roberto duvida da Divindade de Jesus; prontifica- se, porém, em nela acreditar cegamente

    1. Digo Eu: “Ouve, Meu amigo, antes que a uva amadureça não deve ser tirada da haste; pois ainda não sazonada, continua ácida, e o suco produziria um vinho sem aroma e, mesmo o possuindo, seria de qualidade inferior.

    2. Assim, também és qual uva não inteiramente amadurecida; portanto, seria prematuro revelar-te o que pedes. Dentro em breve saberás o porquê! Quando tiveres alcançado a maturação, teu pró- prio espírito te dirá o que desejas saber.

    3. Antes disto, temos de resolver assunto muito importante e, se nossa contenda tiver bom desfecho, tua maturação se fará mais rápida do que imaginas; caso não se faça de acordo com a Ordem Divina, levarás muito tempo para tal fim.

    4. Certamente sabes que a uva, para amadurecer, necessita do calor do Sol; o espírito humano também só consegue sazonar-se pelo justo amor a Deus! Não te sendo possível amá-Lo — porquanto O desconheces — ama a Mim, com todas as tuas forças, uma vez que não alimentas dúvidas quanto ao Meu Ser. Isto facilitará teu aperfei- çoamento, pois o amor ao próximo é idêntico ao amor a Deus e não haverá dúvida ser Eu aqui teu próximo! Se assim o fizeres, começarás a te aproximar de Deus!

    5. Voltemos à nossa questão. Conhecedor das cartas de Paulo, dize-Me como interpretas suas palavras: ‘No Cristo habita a Pleni- tude da Divindade’. Teria ele concluído que em Cristo, isto é, em Mim, Se acha a Divindade, ou pretendia apontar apenas a extraor- dinária sublimidade do espírito contido em Minha Doutrina, pelo hábito daquela época em se divinizar tudo que fosse excepcional?”

    1. Diz Roberto: “Caro amigo, eis uma pergunta capciosa! Como se poderia adivinhar o sentido daquele doutrinador pagão? Consi- dero presunção desmedida de certos intelectuais quando afirmam terem compreendido o sentido verdadeiro de um autor genial! Neste ponto sou modesto e deixo que outros julguem. Caso me agrade seu critério, concordarei; assim não sendo, procurarei o parecer de mais outros e agirei de acordo com Paulo, que disse: ‘Analisai tudo e guardai o que for bom!’ Posso apenas reconhecer e aceitar como bom o que mais se aproxima de minha convicção íntima. Se Paulo se referia à primeira tese — o que é bem possível — logicamente não podia ter em vista a segunda; e vice-versa! Por esta minha definição compreenderás ser eu obrigado a te ficar devendo resposta e te peço resolveres a charada!”

    2. Digo Eu: “Sabia que falarias desta forma, por seres um ho- mem inteligente. Existe, porém, uma inteligência sobrenatural — que vem do espírito — pela qual Paulo só podia se referir a deter- minada coisa que de modo algum deixasse dúvida. Naturalmente não sabes como chegar a deduções espirituais, pois Hegel e Strauss, Rousseau e Voltaire, nada disto compreenderam; portanto, também não ensinaram. Como adorador desses sábios do mundo, não te era possível conhecer aqueles caminhos que lhes eram mais enigmáticos do que a América, Austrália e Nova Zelândia para os romanos.

    3. Se, como alemão, tivesses preferido o estudo da Bíblia, de Swedenborg e outros teósofos de origem germânica, saberias per- feitamente o sentido das palavras de Paulo. Como adepto de Hegel, levarás tempo para chegares à compreensão espiritual. Ouve: se acei- tares o que te digo, ter-te-ás aproximado da meta final! Paulo consi- derou a Cristo, isto é, Minha Pessoa, o Ser Supremo, muito embora anteriormente fosse Meu adversário declarado. Qual teu parecer da fé e da sabedoria do apóstolo pagão?”

    4. Diz Roberto: “Caríssimo amigo, eis outra pergunta de difícil resposta: primeiro, falta-me a mencionada inteligência especial; se- gundo, não é possível aceitar-se, sem provas concludentes, ter o inte- ligente Paulo acreditado naquilo que pretendia fazer crer aos outros.

Todos os antigos sábios, inclusive ele, certamente verificaram o solo instável em que se baseavam todas as teorias metafísicas e teosóficas, calculando o estado infeliz em que o Gênero Humano em breve se haveria de encontrar caso fosse esclarecido quanto à sua natureza perecível. Por este motivo, procuraram reconduzir as massas a uma fé mística, através de sentenças e discursos imperiosos, onde ao me- nos fosse possível estabelecer e conservar uma esperança numa vida de além-túmulo. Se eles assim fizeram e possuíam uma convicção segura e verdadeira daquilo que professavam — permanece a dúvida até que eu me tenha convencido da verdade, através do intelecto espiritualizado, ou pelo confronto com almas que isto divulgaram.

    1. Posso aceitar-te como Deus até encontrar outro. Entre nós dois cabe a ti tal privilégio, porquanto, não obstante toda a minha sapiência filosófica, nada sinto de divino dentro de mim. Não me deves perguntar o porquê, pois não te saberia responder. A pessoa que em algo acredita fá-lo sem provas, porquanto a fé, em si, nada mais é que preguiça ou, às vezes, obediência do intelecto. Se o ra- ciocínio mais apurado exige provas de sua fé objetiva, satisfeita tal exigência, a fé deixa de ser fé e se torna convicção!

    2. Não consigo, por enquanto, ter a convicção de tua Divin- dade, mas acreditarei no que me dizes. Se, no futuro, houver a pos- sibilidade de levar minha fé a tal evidência, ela deixará de ser fé, tornando-se verdade evidente! Se esta eventualidade existe, é algo bem duvidoso!

    3. Sou como Tomé e faço questão de provas antes de aceitar qualquer coisa como verdadeira. Recomendaste-me a leitura da Bí- blia e das obras de Swedenborg. De que me adianta isto agora se não posso fazê-lo? Além disto, sempre haveria prós e contras; fiquemos, pois, na fé e, se te for possível, faze com que eu me torne um pouco mais ignorante para aumentá-la. Já reconheci que deste modo serei mais feliz!

    4. Um ignorante leva mais vantagens acerca de uma vida feliz do que um espírito esclarecido; enquanto este pesquisa constante- mente, a fim de aproximar-se da grande e única verdade que poderia

tornar felizes milhares de criaturas, o crente reza o ‘Pai Nosso’ e se deita calmo e feliz, livre de preocupações. Na hora derradeira, não se aflige, desde que um padre lhe dê a absolvição no inferno e dispense o castigo no purgatório, após algumas missas bem pagas. Sua fé cega tudo aceita como verdade e ele morre na esperança de subir direto ao Céu! Feliz ignorância!

    1. Digo mais: tolo e ignorante é quem dedica sua vida a pensar e pesquisar, porquanto não aumenta sua felicidade na Terra, tam- pouco no Céu! Pelo contrário, torna-se mais infeliz à proporção que anseia pela Luz e a Verdade, enquanto se convence não ter Deus previsto uma fonte confortadora para suas ânsias. Por isto, deixarei a trilha do intelecto, entregando-me aos braços amorosos da fé oca e ociosa. Talvez consiga assim realizar aquilo que se chama felicida- de terrena!

    2. Quão feliz é, por exemplo, um cônego! Nada pensa, nada inventa! Vive na fé católica, na ordem preestabelecida de seu con- vento, saboreia os melhores quitutes, e quando à noite, após alguns cálices do melhor vinho, lhe vem o sono, toca a murmurar o ‘Pai Nosso’ e mentalmente um ‘GloriainexcelsisDeo’, deixando-se levar para a cama. Mal afunda nos travesseiros, os anjinhos — surgidos do álcool — lhe fecham os olhos! Dorme até o toque da missa matinal; se ainda estiver com sono, vira-se para o outro lado. Caso contrário, toca a campainha e os empregados, solícitos, ajudam o homem de Deus a se vestir. Em seguida murmura algumas preces matinais de seu breviário latino, celebra uma curta missa para depois se entregar a um bom desjejum — e assim vive até morrer! Meu amigo, eis a vida feliz que é facultada pela fé cega e tola! Quão tolo fui eu! Por isto, entregar-me-ei à fé que talvez me fará feliz. Creio, portanto, em tua Divindade. Ajo bem assim?”

CAPÍTULO 33

A fé verdadeira e a fé errônea. Perigos da vida nababesca

      1. Digo Eu: “Meu caro amigo, existe diferença enorme entre aquilo que chamas de fé e a verdadeira fé! Tua fé é apenas preguiça mental que se satisfaz com qualquer manifestação de crendice, sem finalmente saber discernir entre o bem e o mal que ela contém; en- quanto a verdadeira fé reclama todas as forças físicas, psíquicas e espirituais.

      2. Como podes classificar um cônego de feliz quando engorda dentro de sua fé tola e, pela proteção privilegiada de Roma, à custa de seus fiéis? A vida terrena dentro dessa felicidade garantirá uma idêntica no mundo dos espíritos? De modo algum; pois quanto mais alguém servir ao corpo — como prisão do espírito — pelo cuidado e nutrição, facilitando-lhe tudo que almeja, tanto mais se terá unido a ele! Se, finalmente, se deu a libertação definitiva desse cárcere, quão dolorosa, difícil e dura não será? Não acontece o mesmo num parto complicado quando o feto se acha preso ao útero, fazendo-se neces- sário arrancar com violência alma e espírito de sua prisão carnal, a fim de separar, aos pedaços, essas entidades entrosadas uma dentro da outra? Poderá tal operação produzir sensação agradável ao corpo, alma e espírito? Esse martírio é tão forte que não pode ser com- parado a um sofrimento terreno, o que bem conheço! Sendo esta a consequência de uma vida feliz na Terra, pode ela ser realmente chamada de venturosa?

      3. Quando Maomé fundou sua doutrina e seu reino, havia na Ásia uma superstição curiosa e cruel que, surgindo do ódio contra os cristãos, consistia no seguinte: deviam as mulheres islamitas in- gerir o sangue seco e pulverizado de jovens e gordos cristãos, caso quisessem produzir meninas bonitas. Para tal fim, prendiam jovens que de nada suspeitavam, pois eram bem tratados durante vários anos. Após terem engordado bastante, vinham os carrascos e lhes tiravam a roupa para submetê-los a um banho completo. Em se- guida atavam-lhes mãos e pés e os deitavam em cima de uma tábua

perfurada, que se achava presa por cima de uma banheira. Feito isto, tiravam punhais afiados ocultos em sua roupa, furando a carne dos cristãos, de onde brotava sangue por milhares de orifícios. A fim de aumentá-lo, depositavam, pouco a pouco, pesos consideráveis nos martirizados. Podes imaginar as dores que os pobres coitados sofriam durante horas até morrerem!

      1. Pergunto-te: pode-se classificar sua vida anterior de feliz, em relação ao fim miserável? Se tal cristão não se deixasse tentar pela gula, teria permanecido magro e os islamitas o teriam solto. Mas como ele próprio achava prazer na engorda, teve de sofrer as consequências amargas. Contudo, ainda há coisa pior, pois todos os intemperados, egoístas, pervertidos e impudicos, que se condenam pela própria carne, terão de suportar dores atrozes na hora da morte! Por ela se inicia a mencionada ‘felicidade’ de um crente embotado! Se tal criatura chega completamente martirizada no mundo dos es- píritos, onde a sensibilidade se eleva ao Infinito, porquanto a alma anteriormente protegida pelo corpo aqui se acha desnuda, principia a fase da dor provocada pela fé tola. Almejando tal felicidade, podes obtê-la e Eu te garanto que em breve mudarás de ideia!

      2. Se Eu Mesmo ensinei: ‘Tornai-vos perfeitos como vosso Pai Celeste’ e Paulo exigiu ser preciso analisar-se tudo e guardar o que for bom, dize-me, teria sido recomendada uma fé absurda que não é fé, ou a verdadeira que se sobrepõe a todo conhecimento? Julga tu mesmo se o que chamas fé merece tal denominação; depois explicar-

-te-ei seu verdadeiro sentido!”

CAPÍTULO 34

Roberto externa suas noções de fé e de veneração divina

  1. Diz Roberto: “Amigo, deixas-me realmente perplexo se du- vidas de minha noção de fé; pois o puro saber não pode assim ser classificado! Visão, percepção e tato muito menos! Além do saber e da percepção real, provinda de nossos sentidos, nada conheço que o homem possa assimilar pela capacidade de conhecimento e critério.

Se a noção provinda dos cinco sentidos se chama fé, o que vem a ser aquilo que, até então, por tal considerei?

  1. Crer, para mim, representa tomar algo por verdade, caso não colida com as leis da pura razão, muito embora os princípios não possam ser provados matematicamente. Uma vez que possam ser demonstrados, a fé terá chegado ao fim, assim como a esperança, filha da fé, termina quando se consegue aquilo que se esperava.

  2. Não tenho outra concepção de fé senão a aceitação voluntá- ria de princípios e datas históricas enquanto se puder prová-los. Se isto não for fé, tinha vontade de conhecê-la.

  3. Por vezes mencionaste algo aos teus discípulos do poder mi- lagroso da fé, quando falavas em se remover montanhas, mas eles certamente não entenderam melhor do que eu! Acaso te referes a tal fé? Então a minha de nada vale, porquanto nem um grão de areia se teria afastado, muito menos uma montanha!

  4. Se eu na Terra tivesse alcançado tal crença, o bom Alfredo teria passado mal comigo! É ideia grandiosa poder se remover mon- tanhas, mas não deixa de ser apenas ideia! O axioma de Paulo de se analisar tudo e guardar o que for bom foi sempre meu lema. E a ideia de me tornar idêntico a Deus, o móvel mais poderoso de mi- nhas ações. Mas, que consegui com isto? Meu estado atual responde integralmente! Tu mesmo não pareces ter um solo debaixo de teus pés; com outras palavras: tua fé milagrosa não nos produziu montes de ouro! Mas, quem sabe, ainda virão?!

  5. Se eu, por exemplo, aceito sem qualquer contestação seres tu o filho de Deus Vivo, ou o próprio Ser Supremo, na hipótese que exijas tal coisa, creio que assim seja; pois não tenho provas em contrário. E, assim, acredito apenas porque minha razão esclarecida não encontra objeção lógica; em virtude de tuas explanações, reco- nheci que a Divindade pode permanecer o que é em todas as suas manifestações, muito embora aceite diante de suas criaturas a forma visível. Se, com o tempo, chegasse a provas convincentes e palpáveis daquilo que creio seres, minha fé deixará de ser fé, dando lugar ao conhecimento experimental.

  1. Naturalmente, poderias dizer: ‘Todos os verdadeiros crentes dobram os joelhos ao pronunciarem o Meu Nome e Me adoram. Se afirmas acreditar ser Eu a Divindade, por que não acompanhas a atitude dos outros?’ Tal objeção merece ser atendida, entretanto considero fraqueza intelectual tal veneração dirigida à Divindade. Pois aquilo que falta ao intelecto é suplantado pela fanática afir- mação de fé. Quem se positivar em alguma crença antes de ter dela provas verídicas é, a meu ver, tolo!

  2. Tu mesmo — se fosses a Divindade — deverias pensar desta forma, do contrário serias um deus ambicioso e fraco, merecendo seres ridicularizado! Sei, porém, que tais fraquezas nunca te impor- tunaram, por isto também não me jogo a teus pés, o que certamente aborrecer-te-ia.

  3. Também não o faria, mesmo convicto de tua Divindade, pois tal servilismo, caso me fosse rendido como homem cujo intelecto ultrapassou a estupidez, seria por mim considerado extremamen- te ridículo.

  4. Considero o cumprimento consciencioso das leis de Deus a única e justa veneração exigida pela ordem imutável, sem a qual não haveria criaturas. O resto pertence ao paganismo, portanto é tolice!

  5. Sempre respeitei teus ensinamentos, mormente os relacio- nados com orações judaicas; em compensação, tive de considerar a determinação de Paulo: ‘Orai constantemente’, por burrice capital

  1. Creio, portanto, seres Deus — ou no mínimo seu verdadei- ro filho, predicado que conferes a todos que cumprem os Manda- mentos e O amam. Decidi fazer tudo o que de mim exigires. Mas se tua exigência se estender à prosternação e à oração labial, assegu- ro-te, de antemão, que isto jamais farei, porquanto o considero um vilipêndio e nunca o respeito de teu Nome, que muito venero! Tem, pois, a bondade de me dizer se minha explicação é satisfatória!”

CAPÍTULO 35

As duas fontes de conhecimento do homem. A verdadeira fé provém da luz do espírito

    1. Digo Eu: “Meu amigo, enquanto a pessoa deduz pelo inte- lecto, não pode ter outra noção da fé e da prece do que a tua, pois ele desconhece outro caminho que o da visão material e do tato. Uma fé espiritual e cheia de vida pode tão pouco deitar raízes numa ín- dole sensual quanto um grão de trigo numa rocha de granito; como não possui umidade que desfaça o grão, libertando o gérmen, ele continua por certo tempo o que foi, para depois secar por falta de nutrição. De que te adianta todo teu saber e a obediência de teu in- telecto — que chamas de fé — se teu espírito não compartilha disto?

    2. Cada pessoa tem dupla capacidade de conhecimento: uma externa, de certo modo a razão exterior da alma. Por esta nunca se poderá compreender e assimilar a Natureza Divina, porquanto foi dada à alma apenas para separar o seu espírito da Divindade, incu- tindo-lhe esta perda temporária. Se uma criatura, ou melhor, uma alma pretende achar Deus por esta capacidade negativa, ela se afasta à proporção que insiste neste caminho.

    3. A alma possui, porém, ainda outro dom, que não reside no cérebro, mas no coração. Trata-se de uma força interior que consiste numa vontade própria, do amor e do poder de imaginação derivado desses dois elementos psíquicos. Quando ela tiver assimilado a no- ção da Existência de Deus, tal conhecimento é de pronto abarcado pelo amor e retido pela vontade — a fé.

    4. Por esta fé viva é despertado o espírito, que começa a analisá-

-la; tão logo a reconhece e assimila, ele se eleva qual Luz poderosa de Deus, penetra a alma, transformando-a em Luz. Esta Luz é propria- mente a fé, pela qual toda alma chega à bem-aventurança.

    1. Acaso já ouviste falar desta verdadeira fé? Respondes no teu íntimo: ‘Não, porque acho impossível pensar no coração!’ Realmen- te, deves considerá-lo irrealizável. Para se conseguir pensar pelo co- ração, é preciso certo treino que consiste no constante despertar do

amor a Deus. Ele fortifica e dilata o coração, soltando as algemas do espírito, de sorte que sua luz — todo espírito é uma luz de Deus — pouco a pouco se desenvolve livremente. Quando a luz do espírito começar a iluminar o recôndito vital do coração, surgem cada vez mais nítidos os inúmeros tipos primários, provindos de Deus, em formas espirituais, nas paredes do coração, a fim de que a alma os perceba. Tal visão psíquica no coração produz uma nova qualidade de pensar: ela chega a novas noções, a percepções vastas e nítidas; seu âmbito de visão se dilata de acordo com o pulsar, e as pedras de escândalo desaparecem à medida que cala o intelecto. Não se cogita mais de provas; pois a luz do espírito ilumina as formas internas de maneira a não mais projetarem sombras e, assim, o menor vislumbre de dúvida é banido para sempre.

    1. Deste modo é a fé no coração verdadeira e viva. Verdadeira porque se origina na luz inconfundível do espírito; e viva, porque no homem só o espírito é vivo em verdade! Nesta fé reside a força extraordinária de que se fala nos Evangelhos.

    2. A fim de se alcançar esta fé salvadora, preciso é dedicar-se com zelo rigoroso ao referido treinamento para se adquirir boa prá- tica. Pois se o homem dedicar-se excessivamente ao desenvolvimen- to intelectual, e por ele apenas cuidar de coisas terrenas, deve achar impossível pensar no coração, mormente quando se traz na cabeça Hegel, Strauss, Ronge etc.

    3. Além disto, deve haver motivo da pessoa alegrar-se de uma pureza evangélica; não pode ser glutão e muito menos impudico; pois lascividade e impudicícia matam o espírito, impedindo para sempre o livre desenvolvimento de sua luz, razão por que tais obsce- nos, mormente na maturidade, se tornam completamente imbecis e só conseguem desfrutar momentos de prazer quando olham mu- lheres jovens.

    4. Acaso não se deu isto contigo nos últimos tempos, porquan- to consideravas o sexo feminino destinado apenas à satisfação car- nal? Não classificavas tais prazeres impuros como única felicidade terrena, pela qual lutaste e morreste? E, agora, devendo ingressar na

vida puramente espiritual, não tens base para qualquer edificação. Tudo a teu redor é vazio, tão vazio como o teu coração e tão inerte como teu recôndito! Onde buscaremos a matéria para construirmos um novo homem dentro de ti?”

CAPÍTULO 36

Roberto se aborrece pela recordação de suas fraquezas carnais. Deseja outras palestras em local mais agradável

      1. Diz Roberto: “Caro e estimado amigo: pelo que vejo, te tor- nas mordaz e mesmo injurioso. Tal inclinação é comum nos dou- trinadores, grandes ou pequenos. Em certas circunstâncias ficam grosseiros e às vezes dizem aos discípulos fazerem estes parte dos ruminantes, de grande semelhança com os intelectuais! Nunca a História registrou exemplos de terem esses animais estraçalhado um cordeiro, pois não são sequiosos de sangue, mas de palha e feno! Esse alimento imperfeito pouco ajuda na formação do cérebro; eis por que o cérebro dos burros possui pouca matéria cinzenta, quando no de Sócrates havia superabundância.

      2. Já que me fizeste compreender que tanto dentro quanto fora de mim tudo é vazio como no cérebro do quadrúpede, que alimenta seu éter vital com feno e palha, não posso deixar de pedir-te que fales, sem rodeios, ser eu um burro!

      3. Reconheço nunca ter professado tal fé íntima, conforme me explicaste de modo concludente. Mas que culpa me cabe, se nunca me foi transmitida? Se, no lugar de Hegel, algum outro me tivesse falado como tu, eu não me teria tornado filósofo e sim apresentar-

-me-ia qual Paulo.

      1. Não havendo, pois, tal possibilidade e ninguém, a meu ver, tendo imaginado poder pensar no coração — talvez até o faça no joelho e calcanhar — tive de concretizar e dirigir meus pensamentos para onde a Natureza os havia determinado. Enquanto vivo, pensei o seguinte: Cada órgão tem sua finalidade e função; os pés não po- dem substituir as mãos; o traseiro — a cabeça; o conteúdo do estô-

mago não suplanta o do cérebro; as orelhas, o serviço dos olhos, e o coração o da língua. Se, por isto, aqui venho completamente vazio, que culpa me cabe?

      1. Se começares a exigir de mim coisas que nunca pude conse- guir no mundo, és evidentemente — não obstante tua sabedoria — mil vezes mais ignorante do que eu e pouco poderás fazer por mim!

      2. Além disto, é pueril de tua parte apontares aqui meus for- tuitos desvios carnais e classificá-los como razão para me encontrar diante de ti tão inepto. Se consideras tais prazeres pecaminosos, por que foram implantados na natureza do homem qual gérmen no grão?

      3. O leão não é caçador de mosquitos porque a consciência de sua força disto o impede. Sendo tu um dos maiores sábios, senão a própria Divindade em Pessoa — segundo tuas palavras — não compreendo, como mera criatura, como podes lembrar-te de tais ninharias que eu não achei merecer um pensamento, mesmo em época de prazer!

      4. O homem fisicamente é um animal de necessidades idênti- cas, cuja satisfação a natureza lhe dita, com mão férrea. Encontran- do dentro de si uma vontade invencível, por quaisquer objeções de ordem espiritual, torna-se dever imprescindível do espírito, dentro do corpo, deixar que este satisfaça suas necessidades para, em segui- da, poder se movimentar mais livremente em sua esfera.

      5. Se, portanto, o espírito cede aos imperativos da carne em função do metabolismo, pelas vias urinária e alimentar, quando sa- tisfaz o instinto sexual tão perturbador a fim de conseguir horas de sossego — pode isto ser pecado? Mormente aqui, onde nós dois felizmente não mais seremos perturbados por tal apetite grosseiro, pois, sem corpo, não haverá futura exigência nesse sentido!

      6. Falemos de outras coisas e deixemos nossas fraquezas passa- das onde estão! Poderíamos conversar algo acerca das estrelas, pois me trará maior ânimo do que aquela recordação!

      7. Meu caro e muito estimado amigo, Deus e tudo que venhas a ser para mim! Realmente não me posso queixar de meu estado atu- al; não sinto fome, sede nem dor e tua companhia me satisfará para

sempre! Todavia, não faria mal caso pudéssemos descobrir um local mais agradável para os nossos debates, pois aqui prevalece o nada! Além destes montículos, coisa alguma descubro. Se encontrássemos um gramado com casinha de campo onde pudéssemos morar, seria mais proveitoso, ao menos para mim!

      1. Muito importantes seriam explicações acerca de sóis e ou- tros corpos cósmicos! Nada mais, porém, das condições terrenas, que me encheriam de repugnância e ódio, de sorte que, finalmente, nem seria capaz de palestrar contigo!”

CAPÍTULO 37

O perigo psíquico do elogio. O próprio arcanjo necessita de humildade para sua evolução espiritual

  1. Digo Eu: “Ouve, caro amigo e irmão, isto não é possível por- quanto aqui, no mundo dos espíritos, só pode surgir aquilo que a alma traz em seu coração. Achando-se espiritualmente vazio, con- forme acontece contigo — não obstante teus protestos — não pode surgir o menor gramado! Além disto, preferes que te fale dos astros em lugar dos teus erros. Não duvido, pois a alma prefere o elogio, muito embora mereça crítica.

  2. Acredita-me que até mesmo o elogio merecido é veneno para a alma e nocivo ao espírito. Se fosse teu inimigo, louvar-te-ia para fazer-te perder. Sendo, pois, teu maior amigo, sou obrigado a te falar aberta e sinceramente. Todo bajulador torna-se inimigo perigoso, porque oculta um lobo voraz debaixo da máscara de amizade. Não haverá maior prejuízo do que te fazeres ressaltar, alegrando-te de tuas qualidades, pois tal atitude é idêntica à punhalada mortal em teu próprio coração.

  3. Por isto recomendei, com rigor, a todos os Meus discípulos, não se deixarem louvar, mesmo havendo feito tudo que Deus exigis- se, pois conviria afirmar serem eles apenas servos imprestáveis. Falei desse modo por somente Eu saber o que seja preciso a alma fazer a fim de se libertar pela emancipação do espírito. Em todo o Infinito

só existe um meio eficaz para tal fim, que se chama ‘humildade do coração’, em toda a acepção da palavra!

  1. A justa e perfeita humildade, unicamente útil à alma, exclui o elogio mais modesto e mesmo mudo, porque por ele o amor-pró- prio recebe alimento, isto é: incentivo para a perdição do espírito, ou seja, a morte psíquica.

  2. Se Eu, portanto, elogiar-te — apesar de tuas fraquezas terre- nas merecerem Minha censura justa, e além disto existir dentro de ti grande desejo de louvor, pelo qual ainda queres elevar-te diante de Mim, a fim de que Eu reconheça teu saber e respeite tua sagacidade intelectual — que seria de ti?

  3. Se teu intento fosse coroado de pleno êxito, qual seria o resul- tado? Teria de Me afastar de ti como vencido por tua força superior, o que, no mundo espiritual, significa ser tragado pelo oponente. Em consequência estarias novamente só e seria difícil achares outra com- panhia, pois se Eu abandonasse alguém, ele jamais poderia contar com algum convívio e a morte seria seu eterno destino!

  4. Tal coisa, porém, é impossível! Ninguém pode enfrentar Mi- nha Sabedoria! Mesmo o maior sábio de todos os astros tem de se curvar diante dela até o recôndito de sua alma. O mais sublime ar- canjo tira proveito desta Ordem, porquanto todos devem ser humil- des caso desejem ser felizes, muito embora o brilho de sua sabedoria pudesse reduzir qualquer sol a uma bola oca, se dela se aproximasse.

  5. Quanto mais careces tude uma justa humildade, por estares

despido de tudo que te pudesse facultar o menor vislumbre de um ser real. Considera, pois, toda e qualquer admoestação mais direta sem te aborreceres, mas confessa tua culpa diante de Mim e te hu- milha, que progredirás, em minutos, muito mais do que em milê- nios, por outras vias! Reflete e dize-Me o que farás, pois tomarei as medidas necessárias!”

CAPÍTULO 38

Roberto se admira de não ter sido suficientemente humilhado. Recordação de sua vida passada

    1. Diz Roberto: “Amigo, tuas palavras transbordam rigor e pa- rece teres boas intenções para comigo, pelo que te devo a maior gratidão. Todavia, é-me incompreensível julgares não ter sido eu bastante humilhado! Não fui, desde o nascimento, rebaixado por toda sorte de experiências dolorosas até a última gota de sangue?

    2. Quando consegui elevar-me do pó da matéria, não obstante todos os empecilhos, irrompeu a revolução em meu Estado, que por mim foi abafada com boa vontade, sem deixar que o Governo por isto me enaltecesse! Após ter o levante se estendido sobre outros países fui, como deputado, a Frankfurt, onde representei o meu Estado, dentro de meus conhecimentos e noções. Nunca foi minha intenção preju- dicar alguém, mas ser útil aos povos de acordo com a minha compre- ensão daquela época. Se realmente teriam sido beneficiados, caso meu projeto fosse bem sucedido — eis outra pergunta. Penso, porém, que nem Deus me condenaria em virtude de minha boa intenção!

    3. Quando, na Áustria, também se deu a revolta, julguei poder abafá-la, como fiz em minha pátria, e resolvi me dirigir para Viena. Lá chegando encontrei a situação bem diversa do que pensava: o povo estava oprimido e se queixava da falta de honestidade do seu regente. A opressão mais nefasta e gananciosa se estampava em todos os príncipes, aristocratas, comerciantes e judeus. Quem procurasse defender os direitos do pobre era preso como revolucionário e fuzi- lado, como tive a ‘honra’ de sê-lo! Que honra seria esta quando um homem culto e respeitado é levado, qual reles criminoso, diante da multidão, até a praça, onde recebe uma bala ‘por gratidão’?! Creio, portanto, ter sido bastante humilhado; ou, talvez, me engane? Acho-

-o impossível nesta minha situação, pois duvido existir alguém mais reduzido e miserável do que eu!

    1. Nada possuo, com exceção de ti, meu prezado amigo! És tudo, meu consolo, minha maior riqueza, minha única recompensa

por todos os sofrimentos e vexames! E, ao invés de me consolares, despertas em mim novas reflexões dolorosas, apenas para aumentar minha miséria! Isto, meu amigo, é bem duro de tua parte!

    1. Podes ter a melhor das intenções, e se me for possível fazer o que aconselhas, será talvez minha maior e eterna felicidade. Consi- dera, porém, ser eu uma criatura excessivamente infeliz, destituída de tudo que possa elevar o ânimo, e formularás teus ensinamentos de forma tal a não me assustares em demasia!

    2. Também deixarei de elogiar-me, mesmo em pensamento. Todas as minhas ações deverão receber o cunho da maior torpeza e maldade e, caso o exijas, serei o ser mais desprezível de todo Infinito. Mas não me abandones, a fim de não aumentar minha infelicidade! Não pronuncies a ameaça de teu afastamento, mas fortifica-me com a segurança de que jamais me deixarás, e eu te prometo fazer o que exigires! Se na Terra pequei, castiga-me e me humilha o mais possí- vel, pois nunca deixarei de te amar!”

CAPÍTULO 39

Transformação benéfica em Roberto. Explicação acerca de João Baptista como predecessor de Jesus

  1. Digo Eu: “Está bem, caro amigo e irmão! Ficaremos juntos, mas não na situação atual, irrealizável para o futuro, pois não seria útil para nós dois! Descubro dentro de ti boa transformação e te asseguro que melhorarás dentro em breve. Preciso é que assimiles o que te revelar e ajas pelo coração, facultando-te noção mais clara sobre diversos assuntos!

  2. No Evangelho, por exemplo, João Baptista diz o seguinte: Não mereço desatar as correias das sandálias d’Aquele que vem; ba- tizo somente com água; Ele o fará com o Espírito da Verdade, o Es- pírito de Deus, para a Vida Eterna! Este meu Sucessor Elevadíssimo aumentará entre vós e dentro de vós; eu, João, diminuirei! — Qual seria o sentido das palavras do maior dos profetas?”

  1. Diz Roberto: “Prezado amigo, se tal entendesse, jamais teria chegado ao estado atual. Precisamente esses textos, por mim não compreendidos, são culpados de ter duvidado de tua Divindade, razão pela qual me tornei neocatólico. Por isso, tem a bondade de esclarecer-me!”

  2. Digo Eu: “Pois bem, ouve-Me: João Baptista é, na Igreja, o que no homem representa o intelecto mundano, que em todas as criaturas deveria ser tal qual o de João. Do mesmo modo como ele preparou o caminho para Mim, um intelecto bem equilibrado deve marcar o trajeto para o raciocínio do coração — assim como Eu também retirei do Meu Espírito a Sabedoria, deitando-A no solo do coração, qual bom Semeador, solo este que é o justo amor adubado pela humildade e meiguice.

  3. Aliás, é João, também, a voz que clama no deserto, o que compete ao intelecto externo. Pois o mundo onde ele busca os pri- meiros conhecimentos é um deserto necessário a fim de que o ho- mem venha a se afastar de Deus, conforme já te expliquei. Sendo o mundo incontestavelmente um deserto, o raciocínio externo que, em parte, colhe deste deserto suas noções através de revelações dire- tas ou indiretas vindas do Céu, formando suas ideias e concludentes critérios, é a voz de um ‘clamor no deserto’ e ‘prepara’ pela fé ‘os caminhos’ para o entendimento do coração.

  4. Este intelecto externo e justo batiza a alma com a água da humildade e da obediência; enquanto o raciocínio do coração, onde habita o Espírito Eterno de Deus, incontestavelmente batiza com o Espírito através de seu despertar, por ser Ele a verdadeira Luz, a Ver- dade Plena e mais Consciente, o Amor — portanto a Vida Eterna!

  5. Subentende-se ser preciso que o raciocínio externo diminua e finalmente seja aprisionado e crucificado, enquanto o verdadeiro raciocínio do coração, representando a Minha Pessoa, aumenta no coração de cada indivíduo até se tornar uma árvore maravilhosa da Vida Verdadeira e Eterna, onde se encontra o conhecimento perfei- to. Claro é não merecer o raciocínio externo desatar as correias do

raciocínio do coração, como a luz de uma lamparina é insignificante em comparação à do Sol ao meio-dia!

  1. Não mais mencionarei teus atos terrenos, justos ou injustos. Derivaram de teu intelecto externo, onde a voz do clamador não podia penetrar, porquanto o forte vozerio do deserto — o mundo isento de João — forçosamente tinha de abafar o próprio João, ou seja, Minha Doutrina revelada. Pois, se um grande tufão se levanta no deserto, fazendo rugir o trovão e desencadear os aguaceiros po- derosos, a voz do clamador é facilmente abafada e o julgamento e a morte festejam a sua colheita.

  2. Eu, porém, para lá irei, a fim de salvar o que for possível, não pelo caminho preparado por João, mas qual raio que irrompe do Sul ao Norte, conforme aconteceu contigo. Quem aceitar a Luz do raio será salvo. Quem não o fizer, sucumbirá; ter-se-á dirigido a uma trilha por onde dificilmente alcançará a meta que Deus lhe impôs.

  3. Tu aceitaste a Luz do Raio, por isso o Salvador, Pessoalmen- te, aproximou-Se de ti, conduzindo-te pelo caminho justo. Preciso é que O sigas e não Lhe oponhas dificuldades através de teu racio- cínio externo, do contrário adiarás a final conquista do teu destino, imposto pelo próprio Salvador. Que farás agora, após as explicações daqueles textos que, pela tua própria confissão, ocultavam Aquele que deverias reconhecer de modo integral?”

  4. Diz Roberto, após meditar: “Oh, amigo, infinitamente mais que um amigo, começa a se fazer luz dentro de mim! Senhor, Senhor, Senhor! Como podes permanecer junto de mim, pois sou pecador! Qual foi o motivo que tirou minha visão, impedindo-me reconhecer-Te, muito embora meu grande amor para contigo me dissesse que eras mais do que meu raciocínio miserável podia ima- ginar! Um demônio, porém, ou seja quem for, obliterava cada vez mais minha visão! Só agora reconheço o abismo infinito entre mim e Ti. Só posso dizer: Senhor e meu Deus, sê misericordioso com este pecador miserável e tolo!”

CAPÍTULO 40

Início de vida nova provinda do Espírito Divino. Orientação acerca de uma prova de liberdade em grau evolutivo

    1. Digo Eu: “Caro irmão e amigo, teus pecados te são perdoa- dos por teres te humilhado a ponto de renunciares ao valor de teu intelecto externo, aceitando o raciocínio do coração. Por isto, jamais tocaremos em tuas falhas terrenas!

    2. Acabas de iniciar uma nova época de vida e terás de passar por outras provas de liberdade. Terás ocasião para te despires do teu antigo e mundano ‘eu’, fazendo surgir o interno, provindo de Mim.

    3. Até então não tinhas companhia, tampouco base onde colo- car teus pés. O solo que nós dois ainda pisamos corresponde estri- tamente aos princípios que absorveste, como neocatólico, de Meu Evangelho. Eu Mesmo Me apresentei como Me havias imaginado com auxílio de teu intelecto, isto é, apenas como sábio doutrinador da Antiguidade. Não era possível continuar desta forma e tive de te conduzir por vários ensinamentos ao ponto que te levou a reconhe- cer o que fui e serei por toda Eternidade.

    4. Deves vivificar este conhecimento pelo verdadeiro amor ao próximo, e daí pelo amor a Mim, para ingressares no Verdadeiro Reino do Céu!

    5. Por tal razão te levarei a determinado local, onde terás conví- vio com outros. Serás proprietário de um vasto terreno, com man- são confortável, numa das ruas principais e em zona aprazível. Terás também criadagem que executará todas as tuas ordens.

    6. Muitos viajantes da Terra passarão por tua casa, onde pro- curarão teus conselhos. Encontrarás amigos e inimigos. Cuida de recebê-los com justo amor, facultando-lhes o que necessitam — por serem Meus filhos e teus irmãos. Deste modo anularás teus erros praticados na Terra, se bem que não por tua vontade, mas movido pela ignorância espiritual. Eu Mesmo voltarei para dizer-te: Como soubeste cuidar desta organização doméstica, terás uma incumbên- cia elevada!

    1. Antes de tudo, preserva-te da ira, vingança e sentimentos im- puros, no que não te faltarão oportunidades; assim terás cumprido tua nova tarefa de vida, dando início à verdadeira e eterna felicidade!

    2. Além disto, abstém-te da curiosidade; não melhora o espíri- to, mas leva-o à maldade e ignorância. Sempre que tuas forças fra- quejarem, entrega-me a questão, que receberás auxílio. Agora sabes de tudo. Estás contente com Meu Plano? Então poderemos nos en- caminhar para teu futuro lar.”

CAPÍTULO 41

Roberto se prontifica a tudo

  1. Diz Roberto: “Ó Senhor, meu amor eterno e único! Concor- darei com tudo que determinares para mim, pobre pecador, pois será apenas Graça e Misericórdia! Que sou diante de Ti? Que vem a ser o pó perto Daquele que estende Seu Poder pelo Espaço Infinito e o preenche com inúmeros milagres de Seu Amor e Sabedoria? Como, pois, admitir não concordar eu com aquilo que determinas? Senhor, minha vida, Teu Nome seja Santificado e Tua Vontade Se faça!

  2. Farei tudo que me for possível, pois Tu, meu Deus e Senhor, me ordenaste Pessoalmente! Teu possível afastamento, no entan- to, ser-me-á doloroso! Sendo, porém, Tua Vontade expressa, volta quando meu coração for mais digno do que agora e tenha ensejo de se livrar da vergonha pela grande cegueira em não Te reconhecer, enfrentando-Te ainda com interpelações sofísticas!

  3. Ó Senhor, minha grande tolice paralisa minha língua tola, pois mal posso falar-Te! Por isso, se faça Tua Vontade Santíssima!”

  4. Digo Eu: “Está bem, Meu caro irmão!”

  5. Interrompe Roberto: “Ó Senhor, trata-me de — mas nun- ca de irmão! Como poderiam o pó e o nada serem Teus irmãos?!”

  6. Respondo Eu: “Não te aflijas, pois sei melhor da maneira pela qual és Meu irmão verdadeiro. Vejo algo em teu coração que acaba de se formar; deste modo não estaremos afastados um do ou- tro durante tua próxima prova! Quando na pessoa se projeta o amor,

como ora acontece contigo, seu caminho poucas pedras de escânda- lo terá! Vê, caro Roberto, todos os teus pecados foram anulados e Eu te amo sobremaneira, porquanto Me dedicas todo amor! Como poderia abandonar-te? Nunca! Teu amor sincero Me obriga a morar contigo para, juntos, trabalharmos! E de muita coisa que terias de passar estarás isento: quem tem muito amor, muito será perdoado! Enfrentarás a prova a Meu lado! Esta proposta agrada-te mais que a primeira?”

CAPÍTULO 42

O verdadeiro irmão. Tudo se organiza dentro do amor a Jesus

    1. Diz Roberto: “Senhor, não me trate de irmão; não mereço tal Graça!”

    2. Digo Eu: “Deixa disso, pois dentro de ti vive Minha Seme- lhança e pelo teu amor estás em Mim e Eu em ti, unos pelo amor. Esta união é qual irmão justo. Muito embora seja cada qual um indivíduo perfeito, não obsta a mais íntima irmanação, ou seja, a união pelo amor. Existem apenas um amor e um verdadeiro bem; ambos são idênticos em todos os anjos e espíritos felizes, portanto também em Mim! Esta completa semelhança se chama ‘irmão’.

    3. Em virtude de teu amor sincero para Comigo és Meu irmão verdadeiro, assim como na Terra tratei a todos que Me seguiam ati- vamente, não por mera cortesia, mas pela base verdadeira. Por isso, não te impressiones caso te chame assim; já sabes o porquê. Dize-Me apenas se preferes o Meu segundo conselho.”

    4. Diz Roberto: “Ó Senhor, Pai Santíssimo e Bondoso de todas as criaturas e anjos, nada mais há que dizer, portanto exclui-se qual- quer comparação. O que determinares — seja o que for — será sem- pre o melhor, por seres a Bondade Infinita em Pessoa. Entende-se, naturalmente, agradar-me a segunda proposta mais que a primeira; pois sentir Tua Ausência, ainda que temporária, não pode ser do agrado de uma criatura que Te ama tão intensamente!

    1. Já que és infinitamente misericordioso, peço-te, do fundo de meu coração, me dizeres o que devo fazer para me tornar mais digno de Teu Amor!”

    2. Digo Eu: “Ouve, Meu irmão, na Terra certamente ouviste falar do esporte de ‘Tiro ao Alvo’. Afirmas que sim, e até mesmo foste detentor de um prêmio. Bem, se todos tiveram de depositar certa quantia para competir, por que foste tu o vencedor?

    3. Respondes em teu íntimo: ‘Porque acertei na meta! O pró- prio organizador não teve lucro, porquanto as quantias deveriam ser revertidas a seu favor, caso eu não saísse vencedor. Contudo, alegrou-se com minha vitória.’

    4. Continuo: Bem, Meu caro irmão, o mesmo acontece Co- migo. Sou o Eterno Benfeitor de todas as criaturas, mormente dos Meus filhos! O alvo é Meu Coração Paternal; os atiradores são Meus filhos; suas armas são seus próprios corações e o prêmio sou Eu Mes- mo e a Vida Perfeita e Eterna, surgida de Mim!

    5. O que cabe aos filhos, qual o mérito a conquistar a fim de alcançarem seu prêmio final? Nada mais que carregarem seus cora- ções de amor e alvejarem o centro do Meu. Isto é fácil, porquanto já possuem a melhor provisão dentro do recôndito da Vida. Mérito mais fácil, todavia, dá-se em tal competição Comigo, porque não necessito de depósito em moedas, facultando a todos livre acesso.

    6. De acordo com tua afirmação, foste no mundo atirador de escol, de sorte que também aqui conseguiste atingir o centro do Meu Coração pelo teu, e tens, portanto, tudo que exijo de ti, isto é, o verdadeiro amor. Só ele te dignifica em Meu Afeto, porque é por Mim considerado único mérito para tanto. Além deste, quais seriam os méritos necessários na conquista de Minha Graça? Acalma-te, pois! Se estou satisfeito contigo, que mais haverias de querer? Eu de nada sei, e desejava saber como poderias realizar coisas maiores e mais dignas de Minha Pessoa!

    7. A maneira pela qual terás de transmitir Meu Amor aos teus semelhantes será tua conquista, no que, porém, não te cabe mérito. Tal aperfeiçoamento de tua natureza te é facultado apenas para te

tornares mais feliz, portanto em teu próprio benefício! Nunca, po- rém, poderás cogitar de um acréscimo de dignidade, por não te ser possível fazeres mais do que amar-Me sobre tudo, única exigência que te faço, como a todos. Sê, portanto, calmo e não penses em maiores méritos, pois deles não necessito; e agora presta atenção àquilo que surgirá diante de teus olhos!

    1. Vê, ainda nos encontramos neste pequeno mundo e nada mais vislumbras além deste ponto de partida. Julgavas ser ele um pequeno cometa do qual em trilhões de anos surgiria um planeta pela força de atração de Minha Natureza, onde se acumulam átomos ao Meu redor, vindos do éter. Tal, porém, não se dá. Vê, este mundo pequeno e estéril surgiu de ti e corresponde ao teu estado íntimo, onde ainda Eu sou o Melhor. Teu solo psíquico é pequeno e fraco e Eu, Nele, apenas mera criatura!

    2. Quando teu coração Me reconhecer e se inflamar por amor a Mim, este pequeno mundo se transformará imediatamente num maior, mais sólido e rico! Mantenho tua venda interna para impedir que a forte luz do teu espírito se projete na alma. No momento, porém, em que a afastar, como foi rasgado o Véu do Templo, liber- tando o Santíssimo — de pronto depararás um mundo diferente, extasiando-te com tudo! Presta atenção!”

CAPÍTULO 43

O novo e maravilhoso mundo de Roberto

  1. Com grande atenção Roberto olha ao redor de si à procura de uma zona melhor; todavia, nada se apresenta. Forçando ainda mais a visão, olha para o alto na expectativa de que possa surgir algo do Céu! Mesmo assim, nada aparece! Decorrido algum tempo, ele se vira para Mim e diz: “Mestre Eterno e Criador do Infinito, meu santo e querido Pai! Meus olhos quase me saltam das órbitas, con- tudo nada vejo! Qual será o motivo? Esclarece-me e, se for da Tua Vontade, tira-me a venda dos olhos!”

  1. Digo Eu: “Pois bem, Meu irmão, que se abra tua visão! Que Me dizes agora? De onde veio tal zona? Alegras-te com ela?”

  2. Mal se contendo de alegria, Roberto depara planícies mara- vilhosas em perfeita nitidez; cordilheiras deslumbrantes circundam o horizonte; em meio aos vales ele vê colinas a cujos pés se estendem pequenas habitações de aspecto gracioso. Nas proximidades se acha uma grande mansão localizada em vasto jardim florido e horta exu- berante. Por cima desta zona admirável abaúla-se um céu azul cla- ríssimo, onde ainda não se vislumbra o Sol. Em compensação, está cravejado de inúmeras estrelas, das quais a menor brilha mais que Vênus em época de deslumbramento; razão por que a paisagem na luz de milhares de estrelas resplandece mais que a Terra ao meio-dia.

  3. Roberto não para de extasiar-se e só depois de algum tem- po cai de joelhos, olha-Me embevecido de amor, exclamando com ardor intenso: “Senhor, meu Deus! Criador Onipotente de maravi- lhas jamais imaginadas! Como iniciar e onde terminar meu louvor e gratidão eternos? Quão imensas devem ser Tua Sabedoria e Força, porquanto fizeste surgir tal Criação por um simples aceno! No en- tanto, continuas ao meu lado na maior simplicidade; justamente isto Te torna mais Querido, Amável e Adorável, não aparentando mais que um simples homem! Quando, porém, falas e ordenas, inú- meros mundos, sóis, anjos e miríades de outros seres se projetam de Tua Boca numa Glória sem par!

  4. Senhor, quem poderá assimilar e compreender Teu Amor, Sabedoria e Onipotência?! Meu Deus, sou apenas pobre pecador, e só posso amar-Te com toda minha alma! Mal sei o que fazer pelo grande amor que Me inspiras! Meu querido Jesus! Quem, no mun- do, poderia compreender seres justamente Tu o Ser Supremo e Eter- no? E Te encontras junto de mim, pobre pecador, amaldiçoado e julgado pelo mundo! Amor de todo Amor! Senhor, Pai e Deus! E me chamas de irmão! Teu Amor é demasiado grande! Como pode um condenado permanecer junto de Ti? Dá-me forças para que Te possa amar por tal Bondade e Simplicidade infinitas com o fogo de todos os sóis que abarca o Espaço Eterno!”

  1. Digo Eu: “Mui querido irmão! Meu coração se alegra por Me louvares desta forma, em virtude de ter Eu tirado a venda de teus olhos, o que te faculta deparares uma paisagem mais extasiante que a mais linda do orbe e mais clara que o Sol da Terra Prometida!

  2. Teu amor intenso é-Me o louvor mais agradável; pois somen- te por ele sou acessível como Pai de Meus filhos; pela Sabedoria, jamais! Todo o saber dos incontáveis anjos e espíritos é, diante de Minha Sabedoria Eterna, menos que uma gota de orvalho compara- da ao eterno mar do éter que preenche o Espaço Infinito!

  3. Amando-Me dentro de Minha Ordem e expressando deste modo teu louvor, torna-se ele justo, mas desnecessário. Tudo que aqui vês é tua obra. Apenas também é Minha por seres tu mesmo Minha criação. Isoladamente é tanto tua realização quanto aquilo que fizeste na Terra.

  4. Indagas em teu íntimo: ‘Senhor, como é possível? Se isto fos- se minha obra, deveria ter consciência que me revelasse o como; mas não tenho a menor ideia!’

  5. É justo não compreenderes tal fato; contudo, não importa. Fizeste na Terra o mesmo pela procriação, cada qual mais maravi- lhosa que tudo que aqui vês. Acaso sabias que, pelo simples ato, realizavas milagres cuja grandiosidade longe estás de assimilar, e qual o plano que enfeixavam em si?

  6. No entanto, foste tu, e não Eu, o criador de teus filhos! Sou o Causador Único do Plano e da Ordem pela qual surge uma criatura; todavia, deve ser efetuado o ato pela vontade dos homens. Por isso, não te admires quando afirmo ser esta tua própria obra, portanto tudo é teu; se ainda não fores capaz de assimilá-lo, o tempo espiritual te ajudará nisto. Agora, outro assunto.”

CAPÍTULO 44

Tarefa de Roberto no novo lar. A primeira visita

  1. Prossigo: “Vês aqui a grande e rica vivenda onde morarás? Temporariamente residirei contigo — fato que não te deve impres- sionar; pois sempre estarei presente quando Me chamares em teu coração, o que significa não afastar-Me de ti.

  2. Além disto, não estarás só, ainda mesmo que não Me ve- jas perto de ti; encontrarás em tua casa uma assembleia tão grande como jamais poderias imaginar. De modo idêntico toda esta zona é habitada. Previno-te que há grupos formados por pessoas radicais e será tua incumbência levá-las à mesma trilha por onde Eu te condu- zi. Se tiveres pleno êxito, descobrirás maravilhas ignoradas por ti e penetrarás em teu próprio recôndito de tesouros e milagres.

  3. Antes de tudo, tem cuidado em não Me denunciares perante os que aqui chegarem dentro em pouco. Ninguém Me conhece, por ser sua fé menor que a tua anterior! E se Me apontasses, sofreriam prejuízo ao invés de benefício. Segue-Me, pois, pelo jardim; no li- miar de tua casa encontrarás o que te falei.” Tomo a dianteira e Ro- berto Me segue cheio de amor, veneração e humildade!

  4. Ao chegarmos à porta que dá para um vestíbulo ricamente ornamentado, é ele invadido por inúmeras pessoas de ambos os sexos a gritar: “Viva o nosso estimado Roberto Blum, o maior amigo dos povos da Europa! O primeiro e maior alemão do século dezenove! Mil vezes bem-vindo, guia corajoso de milhões de amigos contra os adversários da liberdade humana! Há quanto tempo te esperávamos e tu não aparecias, muito embora soubéssemos que nos havias pre- cedido! Ansiamos vingar o teu e o nosso sangue naqueles bárbaros déspotas, que nos fizeram fuzilar como cães! Até então carecíamos de chefe. Agora és o indicado, porquanto entendido nas leis da Na- tureza e do mundo espiritual. Organiza-nos de acordo com nossas capacidades e leva-nos aonde possamos saciar nossa vingança!”

  5. Diz Roberto: “Amigos, dai tempo ao tempo! Antes de tudo, meu agradecimento por tal recepção e graças ao Senhor que

me permitiu encontrar-vos aqui! Para iniciar, afirmo apenas que também aqui tudo tem seu tempo. Para que nos atirarmos sobre aqueles que se julgam senhores do mundo? Deixemo-los em tal ilu- são por mais alguns meses! Quando aqui vierem, será oportuno dis- cutir. Entendestes?”

  1. Gritam eles: “Sim, pois ainda és o mesmo homem inteligente neste mundo, que para nós é enigmático, pois nem sabemos como aqui chegamos. A zona é realmente maravilhosa, um verdadeiro pa- raíso, e sabemos somente ser esta casa, com tudo que deparamos, tua propriedade, porquanto alguns homens amáveis disto nos informa- ram. Perguntamos se as estrelas eram tuas e responderam afirmativa- mente. Em seguida, nos aconselharam que esperássemos a tua vinda em companhia de um grande amigo. Vós ambos determinaríeis nos- sa futura atitude.

  2. Aguardamos este momento em absoluto silêncio, nos vastos recintos de tua casa; quando vos vimos aproximar, interrompemos a calma reinante. Tem, pois, a bondade de indicar nossa futura ação!”

  3. Diz Roberto: “Muito bem, far-se-á o que desejais. Alegra-me bastante serdes bem intencionados, fato que vos trará maiores bene- fícios que na Terra. Deixai-me, primeiro, penetrar em minha casa para, como dono, analisá-la. Devo ainda pedir-vos não me saudar- des com o ‘viva’ — coisa tola aqui, onde iniciamos uma vida eter- na, jamais acompanhada pela morte. Por que tal exclamação, se já recebemos a própria Vida pela Graça e Misericórdia de Deus? Vossa futura saudação será: ‘Louvado e amado seja Deus, nosso Senhor em Jesus Cristo, que até então julgávamos simples criatura, sendo, entretanto, desde Eternidades, Deus Único e Criador do Infinito!’ Se assim fizerdes, tereis motivo de vos sentirdes felizes por uma vida perfeita — porquanto as honrarias mundanas a mim prestadas em nada vos melhorarão!

  4. Lembrai-vos disto, sabendo não ser Roberto um tolo, por- tanto sem base para vos revelar o que ele mesmo duvidou em vida. Sou, tanto aqui quanto na Terra, vosso amigo sincero e, assim, ser-

-vos-á fácil assimilardes minhas palavras. Não é isto? Crede no que

vos transmito, sabendo que eu nada aceito de modo fácil, mormente em se tratando de religião e fé!”

  1. Dizem eles: “Aceitaremos incondicionalmente tudo que nos ensinares; também nos disseste a verdade em Viena ao aconselhar-

-nos desistir da luta, porquanto o inimigo era demasiado forte, e fraca a defesa! Não te demos crédito e te lançamos em rosto seres covarde! Então te alteraste, exclamando: ‘Blum jamais considerou a vida como dádiva sublime; não teme dez mil demônios, muito menos esses mercenários! Às armas quem tiver coragem para morrer ao meu lado!’ Infelizmente, reconhecemos tarde demais teres falado a verdade! Agora, tudo acreditaremos e te pedimos seres nosso chefe e orientador!”

CAPÍTULO 45

Roberto dá testemunho de sua fé

  1. Diz Roberto: “Muito me alegro com o fato de aceitardes, de tão boa vontade, o que vos aconselho. Da minha parte, asseguro-vos que transmitirei as ordens mais equilibradas, pelas quais alcançareis infalivelmente a vida eterna e indestrutível, enquanto for assistido por este amigo, que também é vosso. Naturalmente, tereis de passar por várias provas antes de vos tornardes aptos para o destino sublime determinado pelo Santo e Eterno Causador de todas as coisas e seres, com a finalidade de se tornarem Seus filhos! Tende coragem, persis- tência e amor verdadeiro e perfeito para com Ele, nosso Pai Eterno! Deste modo ser-nos-á fácil vencermos todas as vicissitudes futuras e atingirmos o grau necessário que nos permita aproximarmo-nos Dele, em Espírito e Verdade!

  2. Meus irmãos, eu, vosso amigo sincero, vos digo: O que na Terra não me foi possível imaginar, desdobra-se aqui diante de meus e vossos olhos de modo tão maravilhoso, impossibilitando a pessoa mais loquaz de transmitir o que Deus reserva àqueles que O amam! Tudo isto que ora vedes não representa uma gota de orvalho diante do Oceano!

  1. Um sábio no mundo após ter, por longos anos, pesquisado o reino da fantasia, com profunda veneração, exclamou, empolgado: ‘Que riqueza, que fonte inesgotável de Céus infinitos é deposita- da no pequenino coração de quem na Terra se chama ‘homem’. Se lhe fosse possível realizar suas ideias pelo divino ‘Que assim seja’, quão grandiosa seria a criatura! Nessa riqueza fantástica, porém, não existe o menor vislumbre da plenitude, profundeza e nitidez que o conhecimento humano poderia conceber de Deus!’

  2. Se aquele sábio pagão, revestido do pó da instabilidade, con- cebia ideia tão grandiosa do homem e daí concluía a Sublimidade Divina, quanto mais direito temos nós em dedicar-nos a tais conjec- turas; porquanto, primeiro, nos achamos, pela Graça Divina, acima do pó da decomposição; segundo, por sermos cristãos, destinados a ingressar no Reino de Deus!

  3. Infelizmente, não merecemos tal classificação e muitos de nós dela se envergonharam, no que cabe a culpa a Roma e à nossa própria ignorância. Isto será modificado. Será a maior honra para nossos corações pertencermos inteiramente a Cristo!

  4. Afirmo-vos: Cristo é Tudo em tudo! É o Eterno Alpha e Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim! Ele somente é a Verdade, o Caminho e a Vida de todos os seres, criaturas, espíritos e anjos! Em Suas Mãos jazem todos os Céus, os mundos e tudo que neles vive! Por Ele e Seu Verbo Santo e Eterno podemos nos tornar filhos de Seu Infinito Coração Paternal! Sem Ele não existe Vida, portanto bem-aventurança! Acreditais nisto?”

  5. Respondem todos: “Sim, muito embora não o compreenda- mos, cremos por sabermos que não ensinarias algo que não fosse por ti aceito integralmente. Por isto, louvado seja Deus nas Alturas por ter-te proporcionado tanta compreensão e entendimento. Principal- mente nos agradou o que disseste do Cristo, pois sabes que muito O venerávamos. Era vergonhosa a maneira pela qual os padres cató- licos O deturpavam, reduzindo Sua Ação pelo seu conceito. Não se pode imaginar um deus mais caprichoso, teimoso e irado do que a Figura do Cristo apresentada por esses monges! Alegavam exigir Ele

as preces do rosário, as fatigantes ladainhas, as orações dos santos, os exercícios, a adoração das relíquias, a confissão sem fim, as missas pagas e outras tantas tolices necessárias à conquista do Reino do Céu! Não era possível aceitar-se isto no século dezenove, mormen- te quando se tinha — como pobre operário — oportunidades de sobra para ver como esses servos de Deus — certamente de tanto jejum — não conseguiam virar-se de frente para o Altar, de tão gor- dos que eram!

  1. Aceitamos com grande alegria o Cristo que nos descreveste. Poderia até mesmo ser Deus em Pessoa, pois é, a nosso ver, bom, sábio e bastante poderoso para tal, especialmente se Suas Ações Mi- lagrosas não foram contos de fada. Qual será teu parecer e de teu amigo tão simpático, que até agora nada disse, se um dia formos merecedores de ver ao menos de longe o Cristo Verdadeiro? Irmão, se isto fosse possível, tal qual aconteceu com Madalena e com os discípulos no caminho de Emaús — nossa felicidade seria imensa! Não poderíamos exigir que Ele Se apresentasse a nós, tão impu- ros somos!”

  2. Diz Roberto: “Caros amigos, afirmo-vos ser o Verdadeiro Cristo o Ser Supremo e Santíssimo, o Mesmo que foi na Terra! Con- sidera somente quem no mundo foi simples e desprezado, e os per- seguidos são Seus amigos e irmãos! Todos que o mundo chama de grandes e importantes são-Lhe um horror!

  3. Por isto, alegrai-vos, pois O vereis não só uma vez, mas por toda a Eternidade, pelo amor que Lhe dedicais! Crede-me, Ele Se acha muito mais perto de vós do que podeis imaginar, e se me fosse permitido, indicar-vos-ia onde Se encontra. Entretanto, ainda seria prematuro e poderia prejudicar-vos. Esperai, pois, até que vos tor- neis mais aptos para tanto. Estais satisfeitos?”

  4. Exclamam todos: “Perfeitamente! Por ora também não se- ria de nosso desejo encontrá-Lo, sabendo não merecermos tama- nha Graça. Tudo faremos, porém, para tal fim! Lembra-te de nossa atitude condenável em Viena e, se os padres católicos divulgaram a centésima parte do inferno real, não faríamos jus senão à eterna

condenação! Sendo a Graça Divina, isto é, do Cristo, maior do que foi proclamada, temos esperanças de alcançá-la! Deste modo, agra- decemos a ti e a teu amigo por tal promessa!”

CAPÍTULO 46

Estado psíquico dos antigos companheiros de luta

    1. Diz Roberto: “Sabia ser fácil tratar convosco, o que me causa verdadeira alegria! Continuai deste modo, sede sensíveis e mansos de coração, que a meta determinada por Deus pouca dificuldade vos trará!

    2. Agora, outro assunto. Onde se acham os três companheiros de luta: Messenhauser, Jellinek e Dr. Becher? Analisei vosso grupo, um por um, encontrando muitos amigos estimados; aqueles, porém, não vejo! Também ainda não os descobristes ou ficaram em outra zona? Informai-me a respeito, para poder entrar em minha casa na companhia deste prezado amigo.”

    3. Respondem alguns: “Como podes indagar por esses patifes? Não se acham conosco, tampouco lhes aconselhamos que nos apa- reçam, pois seriam mal recebidos! Julgas terem tido eles a tua boa intenção? Ora, aqueles três, que se davam tanta importância como se pudessem dominar o mundo com o mindinho, apenas visaram lucros monetários. Uma vez conseguindo encher os bolsos, ter-se-

-iam evadido para a Suíça, deixando-nos entregues à lei marcial! Esse plano foi, porém, frustrado, tendo eles o mesmo destino que nós!

    1. Principalmente Messenhauser, que foi o maior traidor! Ne- gou-nos munição e indicou os pontos mais vulneráveis da defesa de Viena, deixando livre passagem aos adversários! Por certo quis fazer papel de salvador dos vienenses, enquanto pretendia entregá-los ao príncipe Alfredo, de quem esperava boa recompensa! Outros, po- rém, foram mais ligeiros ao encontro do Marechal, que não hesitou em mandar despachar Messenhauser para cá. Não sabemos por onde anda; felizmente não está em nosso grupo. Tampouco temos notí-

cias de Jellinek e Dr. Becher, peritos oradores, cabendo-lhes a culpa de muitos outros terem a mesma sorte que eles.

    1. No mais, não nos preocupa sua situação; continuamos a vi- ver após a morte e não temos motivos para queixas. Nossa existência na Terra, cheia de corrupção, felizmente terminou. Mas, se tivésse- mos oportunidade de encontrar aqueles três, far-lhe-íamos um bom sermão em dialeto vienense, pois sua traição foi por demais infame! Eis tudo que sabemos; pessoalmente, tu os conheces melhor do que nós, porquanto tiveste várias oportunidades de lhes falar, principal- mente com Messenhauser.”

    2. Diz Roberto: “Caros amigos, sinto imenso não se encontra- rem eles convosco; além disto, abstende-vos aqui — no Reino da Paz Eterna, do amor e da meiguice — de qualquer julgamento, seja de quem for! Jamais poderíamos ter dado algo que não tivéssemos recebido. Se tudo demos do que havíamos recebido, ou seja, bens e vida, não é possível tacharmos os outros de ladrões, porquanto receberam somente um empréstimo que nos havia sido concedido! Se sua atitude foi justa ou não, deixaremos a critério do Grande Doador, Único e Verdadeiro Juiz sobre Seus Bens.

    3. De nossa parte, procuraremos agir como Cristo — o Senhor

    1. Não externamos em nossa prece: Senhor, perdoai as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores? — Se assim agirmos, Ele nos perdoará os pecados! Tão logo tenhamos perdoado, de tudo seremos remidos! Estais satisfeitos?” Dizem todos: “Perfei- tamente!” Diz Roberto: “Então, deixai-nos entrar!”

CAPÍTULO 47

A casa de Roberto. Interpretação espiritual dos andares. Intercâmbio com o Senhor pelo coração

      1. Em seguida, Roberto entra, em Minha Companhia, na casa majestosa de três andares, além do térreo, tudo em cores diferentes: o térreo verde-claro com friso branco e vermelho; o primeiro andar inteiramente branco e decorações em amarelo-claro e azul; o segun- do, azul-claro e enfeites violeta e cor-de-rosa. E o terceiro, vermelho qual aurora, sem ornamentação alguma.

      2. Admirado, Roberto Me indaga em surdina: “Senhor, qual o motivo dessa variedade de cores? Representam apenas o gosto es- pecial dos construtores no Além? Em Viena, Dresden, Berlim ou Frankfurt, esse estilo que aqui é deslumbrante seria tachado de chi- nês, ou coisa que o valha! Desejava explicação de Tua parte, caso fosse de Teu Agrado!”

      3. Digo Eu: “Primeiro, Meu irmão, deves, quando em presença de teus amigos hóspedes, falar somente em teu coração, para não Me denunciares antes do tempo; pois, se Me reconhecessem, teria de Me afastar, porque ainda são fracos para suportarem Minha Presença. Caso desejes falar-Me a fim de lhes proporcionar maior conhecimen- to, trata-Me de amigo e irmão, mas nunca de Senhor, e em breve te- rás progredido com eles, o que também constitui Meu maior desejo!

      4. No que diz respeito à tua segunda pergunta, és entendido na interpretação de cores e flores e sabes o que representam. Assim, tua indagação foi fútil, mormente em presença de todos. Tem cuidado quando, no futuro, a conversa se referir à Minha Pessoa; do con- trário, teriam prejuízo em vez de benefício! Não te deves basear em suas afirmações como se estivessem perto da perfeição, só porque concordam contigo. Dá-se justamente o contrário.

      5. Vê, sei de muitos, aqui e na Terra, que se encontram melhor informados sobre a Minha Pessoa do que tu. Entretanto, sou-lhes tão indiferente qual velho paletó, e seu amor para Comigo é tão for- te que uma garota dotada de atrativos sensuais o destruiria. Minha

tarefa não é pequena para evitar que Eu seja completamente esque- cido por tais confessores.

      1. O mesmo acontece com teus amigos; são todos vienenses, isto é, sensuais e desordeiros! Se lhes apresentássemos uma série de pequenos milagres, como fazem os escamoteadores, proporcionan- do-lhes farta mesa, raparigas voluptuosas, em cuja companhia se po- deriam divertir, de acordo com sua forte sensualidade, seríamos seus amigos dedicados e, até mesmo, indispensáveis. Nada, porém, de as- suntos mais sérios, pois poderias observar como nos abandonariam um a um! Existem entre eles criaturas tão devassas que facilmente re- nunciariam aos Céus, caso pudessem se apossar de uma jovem; neste ponto, ainda teremos oportunidade para conhecê-los mais de perto, dando-nos muito trabalho! Será preciso administrar-lhes o primeiro grau do inferno para se libertarem da voluptuosidade! Antes, porém, tudo será feito dentro de seu livre arbítrio; se tal medida não surtir efeito, teremos de aplicar meios mais drásticos! Sê, portanto, pru- dente e não Me denuncies, mesmo por gestos; trata, antes de tudo, de chamar-lhes a atenção sobre a sensualidade e suas consequências para obtermos os resultados indispensáveis. Serão tratados também por Mim, e não devem saber por muito tempo Quem Sou.

      2. Agora vamos à explicação do colorido dos diversos andares de tua casa: o térreo, num verde viçoso, representa o estado espiri- tual da Natureza, cujo principal é a esperança, revestida da fé e do amor. O primeiro andar corresponde à fé pura e verdadeira, envolta na serenidade e constância. O segundo, à atividade amorosa surgida da fé pura, idêntica à cor celeste, pela qual se revela a constante ação do amor sobre os corações compreensivos. Por isso, é esse andar ornamentado, ou melhor, coberto de profunda sabedoria celeste — violeta — e do amor ao próximo desinteressado — cor-de-rosa. O terceiro aponta pelo vermelho, virgem, o Céu do Amor e da Inocên- cia, de certo modo o Verdadeiro Céu, onde habito com todos que Me amam sobre tudo. Por tal razão é ele sem enfeite, porquanto a natureza de seu colorido contém todas as perfeições imagináveis, sendo Eu a única decoração.

      1. Tens aí a interpretação do colorido de tua casa. Nada mais perguntes, pois à medida que subires os andares, tudo aquilo que não compreendias te será revelado.

      2. Entremos, pois, no térreo a fim de nos prepararmos para o primeiro andar. Quem quiser poderá nos acompanhar; com- preendeste?”

      3. Diz Roberto: “Sim, meu irmão; e tudo será por mim res- peitado. Estranho haver entre essas simpáticas criaturas pessoas tão renitentes e volúveis!”

      4. Digo Eu: “Meu amigo, terás ainda motivo de sobra para te admirares da índole das almas deste mundo! Encontrarás as mais atraentes cobertas de lã alvíssima, entretanto são, no íntimo, lobos, leões, hienas, ursos e tigres! Mas, que Me dizes da entrada do térreo?”

CAPÍTULO 48

O deslumbrante interior da casa. Cenas escandalosas provocadas pelos vienenses. O Senhor, pacientemente, cura os males psíquicos

  1. Diz Roberto: “Oh! Amigo e irmão! Que maravilha! O ex- terior da casa não dava impressão de conter salas tão vastas e des- lumbrantes! E que vista magnífica se tem das janelas enormes! E o jardim! No horizonte as montanhas majestosas! As casinhas que circundam os vales!

  2. Mas, que vejo da primeira janela? Não é possível! Que falta de compostura! Um grupo de moças se entretém com os homens! Isto é demais! Temos de enxotá-los!”

  3. Digo Eu: “São os teus vienenses, que anteriormente con- cordaram com tuas palavras! Preferiram ficar lá fora para se diver- tirem a seu gosto! Vês que nenhum nos acompanhou, pois aquelas meretrizes lhes agradam mais que nós e teus conselhos, e assim con- tinuarão por muito tempo.

  4. Se lhes fizeres um sermão, de novo te prestarão ouvidos — aparentemente! Não existem pecadores mais difíceis de se converter

do que os impudicos, porquanto se apresentam acessíveis, desde que não sejam tolhidos em suas tendências. Tão logo lhes fores proibir tais indecências, ficarás atordoado com as reações. Deixemo-los sa- tisfazer suas bestialidades para, em seguida, perguntar-lhes o motivo por que não nos seguiram. Ouvirás as desculpas que apresentarão! Antes, porém, permitirei a aproximação de algumas mulheres depra- vadas e te certificarás a que ponto chega a impudicícia.”

  1. No mesmo instante, doze cortesãs entram pelo jardim. Ime- diatamente se ouve uma forte gritaria de regozijo e os homens se atiram sobre elas quais tigres às suas presas. Roberto quase explode de irritação e quer intervir. Precavido, Eu consigo detê-lo, e assim fica a Meu lado, lançando vez por outra um olhar pela janela.

  2. Decorrido algum tempo ele se vira para Mim, dizendo: “Se- nhor, basta! Não suporto mais este quadro! Contudo, não melhoro esses patifes através de meu aborrecimento e reconheço ter agido tolamente.

  3. Por certo poderias modificar essa situação, se Tua Sabedo- ria o julgasse justo e bom. Como és a máxima Paciência, Amor e Meiguice em Pessoa, assistes a esses escândalos com tal calma como se jamais pudessem aborrecer-Te. Por que, então, devo alterar-me? Nada farei no futuro, mesmo se agirem de modo mil vezes pior!

  4. Apenas não compreendo como pode tal indecência tornar-se paixão em pessoas educadas! Também fui homem com inclinação sexual, e a satisfazia de vez em quando; nunca, porém, levei o ato até a paixão! Sempre me envergonhei, recriminando-me da seguinte maneira: ‘Roberto, que estás fazendo? Deves ser em tudo um ho- mem íntegro, entretanto és um animal! Basta deparares com uma cara bonita e seres provocado por olhares convidativos, e lá se vai tua dignidade!’

  5. Eram assim minhas autorreprimendas, motivadas geralmen- te após o abuso do álcool. Mas esses aqui fazem-no com verdadeira volúpia, envergonhando os próprios animais. O que mais me intriga é serem os velhos os mais atirados! Observa aqueles três debaixo da figueira! Essas obscenidades não terminam?”

  1. Digo Eu: “Um pouco de paciência! Mandar-lhes-ei mais algumas moças, mais provocadoras pelo físico, porém retraídas, e verás a atitude de teus conterrâneos!”

  2. Diz Roberto: “Não será preciso ser onisciente para prevê-lo! Pois seus gestos serão piores do que até agora! Nem mais olharei para lá quando começar a caçada! Senhor, quando isto terá fim? Não ficarão enojados? Ou se transformarão em verdadeiros animais?!”

  3. Digo Eu: “Calma, de tudo isto receberás orientação! De- ves, apenas, fazer-te de expectador sereno! Quando for abrindo tua visão, compreenderás como aqui se deve agir para transformar tais suínos em criaturas! O que o amor não conseguiu, será incumbência do inferno, ou seja, da condenação própria de cada alma! Silêncio, pois aí vêm elas!”

  4. Virando-se para a janela, Roberto observa o grupo de mo- ças recém-vindas e diz, após curta pausa: “Essas vinte representantes do sexo feminino, falando mundanamente, nada deixam a desejar! As três na vanguarda estão vestidas de dançarinas e talvez executem um pas de trois, a fim de aumentar a volúpia desses homens! Tinha vontade de avisá-las não ser isto preciso, pois eles não necessitam de estímulos! A meu ver, seria melhor que uma caterva de leões tomasse o lugar dessas dançarinas, pois sua aparição teria outro efeito sobre meus amigos! É estranho como se contêm diante dessas estrelas do palco, que lhes parecem impor respeito!”

CAPÍTULO 49

Um grupo de dançarinas humildemente pede acolhida

  1. Mal Roberto termina, entram vinte e quatro belezas femini- nas em nossa sala, fazem uma reverência graciosa e indagam se nesse palácio existe um teatro onde possam dar algumas representações.

  2. Diz Roberto, apontando para Mim: “Eis o Senhor, dirigi-

-vos a Ele. Há poucos minutos tornou-me morador aborrecido desta casa, da qual só conheço este recinto. É realmente curioso que vos preocupeis com artes escandalosas no mundo dos espíritos, onde so-

mente se deveria procurar Deus, o Senhor, praticando o amor para com Ele, a fim de se tornar espírito perfeito! Para mim tanto faz! Se for do agrado do Proprietário desta casa, fazei o que quiserdes!”

  1. Dizem as três primeiras: “Mas... como? Lá fora alguém nos disse seres tu o proprietário, portanto senhor do palácio! Agora afir- mas isto de teu amigo!”

  2. Responde Roberto: “Já disse: Ele é o senhor! E quem falou o contrário é tolo e ignorante! Dirigi-vos a Ele ou desaparecei!” Em seguida, as moças Me fazem a mesma pergunta.

  3. E Eu respondo: “No mundo dos espíritos cada qual é senhor, isto é, proprietário de seus bens. Sendo ele Meu amigo e irmão, é Minha Posse e Eu sou seu Senhor, com tudo o que é seu. O mesmo poderá ele afirmar de Mim. O fato de conhecer Eu melhor esta casa do que ele tem seus motivos; além disto, já Me encontro aqui por muito mais tempo que Meu amigo.

  4. Assim sendo, vos afirmo não existir teatro ou salão de dança e ginástica neste casarão, salvo uma sala de conferências, na ala extre- ma do Norte, munida de um alçapão, onde se pode fazer desaparecer espíritos impuros que não querem se submeter à Ordem Divina! Se quiserdes executar vossas danças para os hóspedes que se encontram no jardim, podereis dispor daquele recinto. Tende cuidado em não serdes atiradas ao alçapão, donde será difícil sairdes! Entendestes?”

  5. Respondem elas: “Caro amigo, não podemos enfrentar tal perigo; não poderias permitir que apresentássemos nossa arte eleva- da no jardim?”

  6. Digo Eu: “Pois não, lá podeis pular à vontade que não nos oporemos. Pois, aqui dentro isto não seria possível!”

  7. Adianta-se uma dentre elas: “Amigo, quando em vida, pas- samos muito bem como verdadeiras deusas das metrópoles. Todos os que tiveram ocasião de nos assistir ficaram extasiados. Além dos favores de reis, juntamos grandes fortunas que facilmente nos teriam suprido por muito tempo. Mas nos aposentamos para saborear o fruto dos nossos esforços e fomos acometidas por uma moléstia fa- tal, redundando na morte!

  1. Há trinta anos estamos neste miserável mundo espiritual, onde muito sofremos. Não existe meio de vida e sempre ouvimos a mesma resposta dada por vós. Amigos, a fome é dolorosa! Não que- remos ganhar o sustento de modo imoral, por sermos coisa melhor! Mormente nada queremos com gente igual à que está lá fora, pois nunca satisfizemos os desejos de príncipes, muito embora nos asse- diassem! Ninguém quer nos suprir com apenas um pouco de água; poderás, assim, calcular o nosso estado de miséria!

  2. Não te seria possível fornecer-nos acolhimento e pão para ao menos saciar a nossa fome devoradora, em troca de qualquer ser- viço? Imploramos-te com todo o fervor!”

  3. Digo Eu: “Minhas estimadas atrizes, isto não depende de Mim. O verdadeiro proprietário desta casa, como de tudo que vedes se estender pela zona longínqua, é Meu amigo e irmão. Não Me oporei, caso satisfaça vosso pedido; pelo contrário, muito Me ale- grarei com isso. Todavia, não o convencerei ou obrigarei! Dirigi-vos a ele!” A oradora vira-se para Roberto, que se adianta, dizendo: “Mi- nhas amigas, até hoje soube apenas serem vossos pés mais elásticos que os de outros. Vosso olfato, porém, supera vossos pés! Se fosse por mim, apontar-vos-ia a porta. Se puder proporcionar alegria ao meu amigo, atender-vos-ei, acolhendo-vos em Nome de Deus! No canto desta sala existe uma pequena mesa com pão e vinho. Ide e saciai-vos; em seguida veremos que tarefa vos poderá ser dada.” Ime- diatamente as dançarinas obedecem à ordem.

CAPÍTULO 50

Os vienenses pretendem requisitar algumas dançarinas. Roberto faz um sermão impetuoso.

Salvação das almas à beira do abismo

  1. Insatisfeitos com a demora das dançarinas, os amigos de Ro- berto chegam à porta, reclamando: “Quanto tempo pretendem essas bailarinas de Paris e Londres permanecer convosco? Talvez queiras reservá-las para ti e teu amigo?! Seria ótimo guardares o melhor,

enquanto podemos nos satisfazer lá fora com os estrepes! Por seres o Blum, entremos num acordo: Uma dúzia fica contigo; a outra terás de nos entregar imediatamente, do contrário faremos uma ba- rulheira infernal e, caso ela não chegue a satisfazer nossos desejos, arrebentaremos tudo aqui!”

  1. Reage Roberto: “Afirmo-vos: Tão certo como existe um Deus Eterno e eu me chamo Roberto Blum, nenhuma dessas moças sairá deste burgo onde Deus habita!

  2. Foram por mim acolhidas, famintas e miseráveis. São, por- tanto, minhas hóspedes e, como tais, desfrutam de segurança e res- peito que exijo de cada espírito honesto! Se realmente pretendeis transgredir tal prerrogativa, podeis fazer uma tentativa e veremos quem leva vantagem!

  3. Pelo que observei da janela, creio que satisfizestes vossa vo- lúpia! Não conheço animal que tivesse mostrado instinto tão perver- tido quanto vós, humanos e dotados de inteligência, demonstrastes no Reino de Deus! Não basta terdes pecado até o centro do último inferno, identificando-vos com os demônios; não bastou que vossa volúpia miserável tornasse ainda mais infelizes aquelas moças do que já eram, ao invés de socorrê-las! Não bastou, repito, terdes ultrajado este solo divino e puro com a sanha pervertida da impudicícia e per- versidade infernais! Não, tudo isto ainda é pouco para vossa volúpia insaciável!

  4. Também a estas pobres criaturas — que durante trinta anos sofreram fome, sede e outras misérias, pelos Desígnios do Al- tíssimo, aceitas por Ele Pessoalmente, e que agora estão saboreando o primeiro pedaço de pão, agradecendo com lágrimas a um Pai que desconhecem — a estas também pretendeis atirar no inferno! Que atrocidade desmedida!

  5. Sabeis quem são aquelas pobres criaturas por vós ultrajadas, de modo inclemente, que agora gemem e choram de dores, quase que semimortas?! São vossas próprias filhas! Algumas aqui chegaram vítimas de moléstias que ocorrem comumente na Viena alegre, e outras pelo tiroteio da revolução. Isentas de qualquer educação es-

piritual, não sabiam para onde se dirigir. Por Misericórdia de Deus foram informadas de que vós — seus progenitores em vida — vos encontráveis nesta zona. Cheias de esperança de melhorar seu des- tino, aqui vieram. Quando vos reconheceram e fizeram menção de vos abraçar — como filhas — vos atirastes, quais hienas, sobre as mesmas, praticando o incesto! Em vão gritaram: ‘Pelo amor de Deus! Que fazeis conosco? Somos vossas filhas! Jesus, socorro!’ Nada disto ouvistes! Olhai pela janela! Como poderia classificar vossa ação degradante? Realmente, não encontro palavras!

  1. Quando aqui cheguei, em companhia de meu amigo, muito me alegrei, encontrando todos vós na soleira de minha casa, mor- mente por sentir vosso desejo de poderdes fitar Cristo, o Senhor, ao menos de longe! Assegurei-vos que tal não só se daria uma vez, tão logo O tivésseis aceito pelo amor — sentimento este que purificaria vosso coração — mas O veríeis por todo o sempre! Isto vos tocou de perto e confessastes não terdes mérito para tanto, o que muito me sensibilizou.

  2. É incrível, porém meu amigo me preveniu do contrário, di- zendo: ‘Não deposites muita confiança em suas palavras; eles são puramente sensuais! Será difícil melhorá-los e alguns terão de descer ao inferno!’ Eu acrescento: Não necessitais vos dirigir para lá, pois já vos encontrais em pleno inferno! Vossa insaciável volúpia, provin- da de sentimentos imundos, não poderá ser exterminada nem por Deus, a não ser pelo julgamento do Inferno, por serdes inteiramente diabólicos!

  3. Falo-vos insuflado por Deus! Sabeis de vossa ação horripilan- te e o que pretendeis, podendo imaginar as consequências! Fazei o que vos agradar! Ainda sois livres; dentro em pouco o Julgamento Divino vos atingirá, dando-vos o que mereceis! Isto não só se dará convosco, mas com todos os que ainda vivem na Terra e não querem aceitar as inúmeras advertências de Deus!

  4. Se eu mesmo, em vida, tivesse aberto ouvidos e coração às inconfundíveis Chamadas de Deus, não teria caído na condenação! Como segui aquilo que meu intelecto orgulhoso e altivo me inspi-

rou, tive que suportar um julgamento penoso! Visei, no entanto, apenas o bem, e mesmo assim fui condenado! Que será de vós, que- rendo conscientemente praticar o mal?”

  1. A este sermão incisivo, os vienenses, perplexos, se retiram, um a um. Ninguém tem coragem de responder; entre eles, julgam estranha a atitude de Roberto, pois sua severidade era qual trovão impetuoso! Alguns, então, começam a refletir, e um pavor tremendo os invade, a ponto de se arrependerem do que tinham feito.

  2. A seguir, Roberto se dirige a Mim e diz: “Senhor, meu San- to e Eterno Pai! Perdoa se me expressei em termos fortes aos meus amigos! Conheces o meu íntimo e sabes que eu lhes desejo somente o bem, e minha reprimenda visava apenas impedir fossem condena- dos para o inferno! Por certo é um sermão severo incalculavelmente mais suave que a menor fagulha infernal! Abençoa minhas palavras, pois talvez consigam causar o efeito desejado!”

  3. Digo Eu: “Meu caro amigo, irmão e também filho! Não pronunciaste umapalavra a mais ou a menos do que Eu Mesmo te insuflei no coração! Por isto, não precisas repreender-te, como se fosse demasiado severo com as pessoas isentas de qualquer educação espiritual! Pois tais almas, à beira do abismo, que se inclinam para se atirar no mesmo, têm de ser arrancadas de lá com violência; só assim será possível levá-las a um caminho melhor, sem medidas infernais.

  4. Verás, em breve, o bom efeito de teu sermão, muito em- bora procurem se evadir e tentem mostrar-se melhores do que são em verdade. Não importa! Uma vez que a maior parte se converta, a minoria terá de se submeter, porquanto não haverá outra solução. Deixemo-los descansar e fermentar um pouco, da mesma maneira como se procede com o espírito do vinho antes de ser despejado no vasilhame de destilação. Quando estiverem aptos para serem leva- dos à destilação, cujo receptáculo é aquecido pelo fogo constante de nosso amor, será fácil separar-se o espírito da matéria! Mudemos, porém, de assunto!”

CAPÍTULO 51

Os três companheiros de luta analisados pelo Senhor. As dançarinas, gratas, como instrumentos de boa vontade

    1. Prossigo: “Há pouco mencionaste teus amigos Messenhauser, Jellinek e Becher. A informação que recebeste foi um tanto grosseira, todavia contém algo de verídico: eram eles movidos por índole di- versa da tua, pois visavas uma boa finalidade, conforme conseguiste em teu país. Eles, porém, agiram apenas pela conquista do Absolu- tismo ou, caso falhassem, queriam ao menos encher os bolsos para, numa ocasião propícia, se evadirem para o estrangeiro.

    2. A deusa Fortuna não lhes sorriu. Por certo tempo apresentou ao primeiro o corno da abundância. Ele, porém, não percebeu ocul- tar o mesmo uma bala que tão incisivamente adverte a inconstância da felicidade terrena! Assim, Messenhauser foi liquidado!

    3. Aos outros dois, a deusa, evidentemente, não dedicava muita simpatia, não obstante tudo terem feito para tal fim, por meio da pena, atacando, sem piedade, os mencionados filisteus reacionários. Entretanto, ninguém morria em consequência das feridas por eles aplicadas pela pena. Irritados com isto, atiraram para longe a pri- meira arma e pediram outras a Marte, pretendendo efetuar ações aniquiladoras, na expectativa de conquistar simpatia da deusa. O efeito, porém, foi contrário, porque atirou-lhes tantas balas sob os pés e fez o solo tão escorregadio que lhes tirou a estabilidade. Desta forma, sua conquista com a deusa finalizou-se.

    4. Esses três heróis ingressaram, como tu, neste mundo eterno, sob inúmeras maldições dos que os despacharam para aqui, e não se acham distantes.

    5. No teu íntimo, conjecturas: ‘Não duvido; mas, onde estão? Acaso ainda perambulam entre Céu e Terra, ou se ocul- tam alhures?’

    6. Respondo: Nem no éter, tampouco próximo de tua casa, idêntica ao íntimo de teu coração. Encontram-se realmente presen- tes em teu lar, na mesma maneira que estão em teu coração pelos

pensamentos de carinho que lhes dedicas! Estás separado deles ape- nas por uma porta. Tão logo a abramos, tu os encontrarás como deixaram a Terra. Quando este momento chegar, não te deves dirigir a eles e sim ouvir, a Meu lado, o que resolvem entre si; só depois será oportuno falar-lhes.

    1. Antes, porém, trocaremos algumas palavras com as dançari- nas, a fim de prepará-las para as necessidades futuras. Não imaginas como ainda nos serão úteis! Vamos, pois!”

    2. Incontinenti dirigimo-nos às moças, que nos recebem com amabilidade, agradecendo pelo bom trato que lhes foi dispensado e pela proteção contra os que mantinham intenções condenáveis para com elas. Além disto, pedem perdão a Roberto, que supunham um homem intransigente, enquanto demonstrou ser justo e caridoso.

    3. Roberto, embora não desgostoso com o elogio, se controla e diz com sua seriedade habitual: “Ouvi-me, minhas pobres irmãs! Não vos precipiteis com tais louvores, pois estais longe de saber Quem seja o Verdadeiro Doador!

    4. Eu apenas sou um servo rude, mas honesto! Todavia, não importa a quem externais vossa gratidão, pois não aceito o que não me cabe e passo-o fielmente ao meu Senhor! Mudemos de assunto. Ainda pretendeis realizar vossas produções artísticas ou tereis desis- tido dessa ideia maluca?!”

    5. Dizem elas: “Amigos da pobre humanidade! Tal pretensão seria imensa tolice, pois queríamos apenas ganhar o suficiente para saciar nossa fome voraz! Encontrando acolhida, independente de nossa arte — porquanto estamos convictas ser ela um horror aos vossos olhos puros — agradecemos de todo coração!”

    6. Responde Roberto: “Muito bem; mas, se por acaso, mais tarde, pedir a realização de uma dança para uma boa finalidade, continuaríeis fiéis à decisão louvável de jamais pretender dançar?”

    7. Afirmam elas: “Amigos, faremos tudo que desejardes, sa- bendo que visais apenas o bem.” Diz Roberto: “Ótimo! Preparai-

-vos, porque a oportunidade vem aí!”

CAPÍTULO 52

A obra do bem no espírito de Roberto. A dedicação do Senhor o comove e sua compaixão reverte em benefício das moças

      1. Digo Eu a Roberto: “Caro amigo, irmão e filho: tens real- mente um coração meigo, o que muito Me alegra. Falas como se fosses tu mesmo, entretanto sou Eu quem fala por ti, e isto é algo de bom no Reino dos espíritos, quando o amigo transmite o que de justo e verdadeiro se passa no coração do próximo. Teu coração percebe nitidamente Meus Pensamentos, e Minha Vontade não lhe é estranha! Eis a Obra do Meu Espírito desperto em ti.

      2. Teu espírito, provindo de Mim, pode penetrar em Minhas Profundezas, ver e pesquisar Meus Pensamentos e Minha Vontade. Tal fato já ocorre contigo de modo evidente; por isto, ouves no co- ração o que penso e quero como se fosses há mil anos entendido nesta arte abençoada! Continua assim e serás, em breve, um instru- mento hábil!

      3. Uma vez as dançarinas orientadas no que fazer, podemos abrir a porta e encontraremos o trio heroico de Viena em debate. Antes, devo perguntar-te se achas as moças bonitas, ou conviria au- mentarmos sua beleza?”

      4. Sorri Roberto: “Senhor, como és bom, meigo e solícito! Falas comigo não como Senhor Eterno no Infinito, mas qual amigo e como se realmente necessitasses de meu conselho! Isto Te eleva pe- rante minha alma infinitamente mais do que se fosses criar exércitos de novos mundos e céus. Seja como for! Quanto ao embelezamento das dançarinas, submeto-me ao Teu Critério. As primeiras nada dei- xam a desejar: sua vestimenta é selecionada e seu físico atraente. As outras, mormente as que estão lá atrás, são magras e sua roupa me lembra os saltimbancos que executam suas peripécias na via pública. Não faria mal se as pudesses favorecer um pouco — desde que não se tornem mais vaidosas do que são!”

      1. Digo Eu: “Caro Roberto, far-se-á de acordo com teu desejo! Precisamente do lado onde se encontram as mais magras está um armário cheio de roupas. Abre-o e chama as moças para mudarem de vestimenta.”

      2. Roberto executa Minha Ordem e elas se vestem ligeiro. Ele, porém, se extasia com a transformação e Me diz: “Que coisa extraor- dinária! Como os vestidos modificaram seu físico! E as fisionomias, o rosto, os braços! Nunca vi tanta perfeição na Terra! E ainda bem, pois teria me deixado seduzir! Aqui, a Teu lado, não me impressio- nam! Acontece, todavia, que muito se destacam das primeiras baila- rinas e terás de beneficiá-las um pouco!”

      3. Digo Eu: “Por que não? Abre o armário, onde estão ainda vestidos em profusão.” Roberto repete sua incumbência e as bailari- nas pulam de alegria e se tornam ainda mais extasiantes com a troca de roupas.

      4. Diz Roberto: “Senhor, não haveria espírito capaz de ima- ginar o Teu Poder! Que simpatia, beleza e graça externam estas moças! Realmente, se forem tão amáveis quanto bonitas, pode- rão seduzir...! Não...! Qual nada! Roberto Blum não se deixa ten- tar! Senhor, poderíamos procurar os três heróis?” Digo Eu: “Sim, acompanha-Me!”

CAPÍTULO 53

Os três revolucionários vienenses no Além. Seu parecer sobre Deus, inferno e destino

  1. Ao chegarmos à porta, ela se abre e vemos os três amigos sen- tados a uma mesa redonda, entretidos na procura de um documento importante. Após certo tempo de pesquisa infrutífera, diz Messe- nhauser: “É como digo: o papel mais importante para provarmos nossa inocência extraviou-se durante os últimos acontecimentos. Que adianta procurar? Se um bom gênio não nos salvar desta pri- são, estaremos perdidos! Pois aguardar justiça humana seria maior loucura do que supor-se um bando de tigres não atacar um homem

indefeso! Encontramo-nos nas mãos de verdadeiros demônios, que não cogitam de misericórdia! Vereis como, em breve, entrarão o juiz militar e o carcereiro para transmitir-nos a pena de morte com uma indiferença estoica, como se fôssemos simples vermes! Afirmo-vos que seremos fuzilados!”

  1. Diz Jellinek: “Amigo Messenhauser, asseguro-te que aquilo que temes já se efetuou! Parece um pesadelo, mas não é! Vejo ainda como me conduziram àquela vala horrenda onde fui fuzilado, mas imediatamente me achei aqui neste cárcere parecido com o outro, encontrando-vos da mesma forma. Somente não posso precisar se o amigo Becher veio antes ou depois de mim! Continuamos após a morte numa vida psíquica, e nosso medo do fuzilamento é inútil!

  2. O que me impressiona neste estranho estado é a incerteza de onde estamos e o que nos aguarda. Se finalmente houvesse algo de verdadeiro nas prédicas dos liguristas (seita que divulga o culto de Maria), nosso destino não seria invejável! Para completar nossa infelicidade falta a condenação por parte do Ser Supremo! Conso- lo-me, porém, com a certeza de que, se Deus existe, deve ser me- lhor do que todas as pessoas bondosas em conjunto. Ao menos deve ser mais condescendente que o Marechal Windischgrätz, que nos mandou fuzilar com a maior calma. Se houvesse um meio de nos vingarmos desse tigre, seria a maior satisfação que posso imaginar! Concordais?”

  3. Responde Becher: “Sim, pois pareces ter razão em tudo! O amigo Messenhauser acha-se como que aprisionado, julgando pade- cer num cárcere em Viena. Nesse ponto concordo contigo, pois não se trata de um sonho, mas da pura verdade termos sido fuzilados, se não me engano, em novembro ou dezembro! Não posso precisar o dia, porquanto perdi a noção do tempo em virtude de não existir aqui nem dia, nem noite. Também não importa, pois estamos defi- nitivamente mortos!

  4. Só não creio no inferno, na hipótese que Deus exista. A con- cepção de Deus é demasiado sublime, pura, santa e sábia, de sorte a impossibilitar-nos a ideia da criação do inferno como expressão da

imperfeição total. Se, porém, não existir Deus, mas apenas forças mecânicas e inconscientes, como poderiam criar um inferno?”

  1. Diz Jellinek: “Muito fácil, pois se Deus existe — o que não podemos duvidar — como poderia criar, por exemplo, um tal Alfre- do Windischgrätz? Representa esse homem-tigre o inferno comple- to e é, tanto quanto a víbora, obra divina! Excluindo-se a existência de Deus, surge a pergunta: como as forças da Natureza se deixam tentar pelo mal a ponto de criarem aquele Marechal? Vemos, pois, que — com ou sem Deus — existem o bem e o mal, tornando-se fácil a pessoa ser atraída pelo inferno, como ocorreu conosco!”

  2. Diz Messenhauser: “Tens razão e sinto ter sido fuzilado logo após o bom amigo Blum. Fiz umas tantas observações que vos trans- mitirei, já que terminastes a palestra. Observai a mesa onde se acha- vam nossos documentos: quem os fez desaparecer? Além disto, per- cebi de repente uma porta aberta na direção sul, onde anteriormente só víamos uma parede lisa. Nosso cárcere se transformou num quar- to agradável, com várias janelas, que parecem proporcionar maior claridade, permitindo vislumbrar alguns objetos. Isto tudo me con- vence estarmos realmente num mundo de fantasia ou espiritual. Será, pois, difícil prevermos nosso destino!

  3. Mencionaste, irmão Jellinek, constituir imensa felicidade po- deres vingar-te do Marechal. Neste ponto não concordo, por ser fa- talista. O destino semeia sobre a terra veneno e bálsamo, na mesma proporção. Que culpa tem o tigre de ser feroz? E a cascavel? O mes- mo poderia se dizer do Windischgrätz: foi apenas um instrumento do destino, que o criou assim, de sorte que tanto merece compaixão quanto nós, suas vítimas.

  4. Nós, graças a Deus, já passamos pela morte, enquanto ele ainda terá de enfrentá-la, e quem poderá dizer ser seu destino mais feliz? No final, tudo se nivela, e não vem ao caso o tempo que se pisou o pó da Terra e se o corpo foi entregue aos vermes no patíbulo ou numa cama estofada!

  5. Estou vivo e continuo sendo o Messenhauser; não sinto do- res, nem fome ou sede! Tenho meus bons amigos e o quarto se torna

cada vez mais claro e bonito! Que mais havemos de querer? Se isto continuar, só teremos motivos para nos congratularmos! Penso que tudo melhorará e, mesmo piorando, não será novidade!

  1. Aceitarei tudo que vier, pois nada posso modificar! Con- vém dependurarmos nossos desejos num prego, porquanto nunca nos trouxeram vantagens! Não é isto?”

CAPÍTULO 54

Jellinek prova aos amigos a existência de Deus

  1. Diz Jellinek: “Concordo com tudo, menos com a fatalidade!” Diz Messenhauser: “Por quê? Explica-te melhor!”

  2. Responde o outro: “Devagar, meu irmão! Sabes que tais coi- sas não se explicam em poucas palavras, mas tentarei tirar da tua cabeça tal ideia. Vê, durante tua vida, nunca te interessaste pelas ciências, satisfazendo-te com o curso secundário. Em suma, eras um estudioso superficial, sem te aprofundares na base científica, razão por que te era vedada a natureza das coisas. Deste modo, nunca pu- deste alcançar uma noção que te facultasse conceberes a ordem ma- ravilhosamente equilibrada das coisas, seus efeitos e reações. Ficaste agarrado apenas à casca externa, que, à primeira vista, dá a impressão de obra do acaso. Isto, porém, não se dá!

  3. Porventura viste surgir, por mero acaso, uma habitação com todos os apetrechos? Como, então, poderia ele criar um planeta onde encontramos inúmeras coisas maravilhosas, das quais a mais ínfima apresenta uma construção tão sábia? O acaso nunca faria isto!

  4. Observa apenas a organização extasiante dos planetas; quão rigorosamente semelhantes se apresentam durante milênios em sua espécie e utilidade! Quão infinitamente artística deve ser a forma sistemática de uma semente que absorve da Terra os elementos ne- cessários à multiplicação! Nem quero mencionar a natureza trans- cendental dentro do grão, pois não é possível assimilar-se o cálculo puramente divino pelo qual o grão comporta miríades de outros, não só em sua forma, mas também na planta que produz!

  1. Toma, por exemplo, a glande do carvalho: uma vez plantada, produzirá uma árvore que durante anos dará inúmeras bolotas. Se as semeares todas, terás uma floresta de milhões de carvalhos a produ- zirem a mesma espécie!”

  2. Diz Messenhauser: “Realmente, irmão Jellinek, confesso seres um verdadeiro teósofo e tua simples explicação da glande me esclareceu mais do que todos os sofismas intelectuais que abarrota- vam meu cérebro! Deve existir um Deus pleno de Poder e Sabedo- ria — isto minha alma e razão não podem negar! Mas, onde está e Quem é? Poderá ser visto e compreendido pela criatura? Lembro-me de que, quando frequentava o quinto ano ginasial, tive de estudar a História Sagrada e encontrei o seguinte texto: Ninguém poderá ver Deus e continuar vivo! Consta ter Moysés ouvido isto através de uma nuvem de fogo quando pediu que Deus lhe aparecesse. Con- fesso ter eu, em virtude dessa passagem, mantido uma certa fé na Divindade. Quanto à crença de que Jesus comporta a Plenitude Di- vina, devo esclarecer-vos ser eu ainda verdadeiro ateísta.

  3. A Doutrina pura de Jesus, isenta das fábulas, contém os mais perfeitos princípios ligados à natureza humana e exige um verda- deiro antropologista para elaborá-los de modo prático. Mas, que o inventor de tais princípios deva ser um Deus — isto ultrapassa o horizonte de minha razão e fé!

  4. Sua Doutrina só pode ter origem humana e dispensa o Ser Divino, pois se cada autor de um ensinamento fosse um deus, o mundo estaria inundado deles. Euclides, como inventor das figuras geométricas; o inventor dos aparelhos de lavoura, dos números, dos navios etc. Como esse exército de descobridores de coisas importan- tes e úteis nunca fez questão de classificação divina, o autor da moral mais simples também poderia declinar de tal privilégio. Ao que me consta, Jesus nunca fez questão disto! Se, naquela época, pessoas supersticiosas e tolas quiseram divinizá-lo por ser mil vezes mais in- teligente que elas, isto não nos deve levar ao mesmo erro! Julgo que a Humanidade atual deveria finalmente reconhecer não ser possível o Infinito tornar-se finito, sendo Deus eternamente Deus, e o homem

limitado. Deixemos, porém, tais controvérsias; interessa-me saber Quem é a Divindade e onde está!”

  1. Diz Jellinek: “Caro irmão Messenhauser, eis uma questão capciosa que resolveremos tão pouco quanto aquilo que externaste sobre a Divindade. Para poder compreender Sua Natureza Infinita deveríamos primeiro limitá-La, coisa inteiramente impossível! Sugi- ro dirigirmos nossa atenção para outro assunto.”

  2. Declara Becher: “Tens toda razão! Querer assimilar a Natu- reza Divina seria o mesmo que pretender-se encerrar o mar numa casca de noz! Mudemos de conversa! Qual será, por exemplo, o des- tino de nosso amigo Blum neste mundo e o que estará fazendo nos- so inimigo Windischgrätz na Terra? Quem sabe breve aqui chegará, quando será por nós devidamente recebido!”

  3. Responde Jellinek: “Quanto ao Blum, concordo! Deixai-

-me, porém, em paz com o outro, que não desejo defrontar! Mas, atenção! Parece-me ouvir vozes por detrás da porta aberta! Veremos o que lá se passa!”

CAPÍTULO 55

Os heróis medrosos, Jellinek na vanguarda, vão sondar o terreno. Surgem o Senhor e Roberto

  1. Finalmente os três se levantam e se encaminham de passos lentos para a porta. Em lá chegando, descobrem, como que desper- tando de um sono, existir ainda outra sala, muito maior e confortá- vel. Receosos, começam a bisbilhotar pela porta, sem contudo passar por ela. Como nada de maior descubram — porquanto Me acho com Roberto afastado da sua visão e as dançarinas se encontram mais na retaguarda — diz Jellinek, baixinho: “Caros amigos, nada de perigoso deparo nessa sala; pelo contrário, vejo naquele canto uma mesa com uma garrafa de cristal contendo um vinho de bom aspecto e alguns pedaços de pão. Se no Reino dos espíritos podemos saciar-nos com pão e vinho, acho não ser preciso tanta cautela, por- quanto parece serem destinados a nos facultar melhores ideias e con-

cepções. Que me dizes?” Responde Messenhauser: “Irmão Jellinek, estou contigo! Devo apenas confessar-te e ao Becher que em tais oportunidades prefiro ser o último, pois poderia ser preciso fazer- mos uma retirada estratégica, quando seria eu o primeiro!”

  1. Diz Jellinek: “Será possível, meu irmão? Pelo que vejo, és me- droso! Como pudeste ser comandante de Exército? Agora compre- endo muita coisa! Quem sabe se Viena não teria sido vitoriosa caso tal entusiasmo bélico tivesse te levado a combater num campo aber- to, ao invés de teres permanecido no escritório? Mas, deixemos isso de lado! Peço-te apenas, por tua própria honra, que não sejas fujão!”

  2. Diz o outro: “Caríssimo amigo e irmão — aparentando cora- gem de um verdadeiro Napoleão — que tal se fosses à nossa frente? Não me aborreço com tua crítica, pois nunca fui dado a heroísmos; todavia, não receava a morte. O mesmo acontece agora. Não temo qualquer perigo; sinto inexplicável receio desta sala, como as crian- ças quando as amas lhes apontam recintos supostamente mal-as- sombrados! Tenho a impressão que passaremos por grandes aconte- cimentos e podereis atestar se me enganei ao atravessarmos o limiar! Não levarás isto em conta, irmão Jellinek?”

  3. Responde este: “Como não, meu amigo! Pois isto é bem di- ferente e, na realidade, tenho o mesmo pressentimento. Contudo, não nos deve perturbar! Quanto mais fixo o meu olhar no vinho e pão — e o meu estômago espiritual começa a manifestar forte von- tade para saciar-se — mais desejo estar àquela mesa do que em vossa companhia temerosa! Avante, pois!”

  4. No mesmo instante em que Jellinek pretende dirigir-se à mesa, é ele abordado por Mim e Roberto, que lhe diz bruscamente: “Alto lá! Nem mais um passo, antes de vos identificardes conve- nientemente!”

  5. Assustado, Jellinek recua; reconhecendo, porém, o amigo, diz admirado: “Oh, Blum! Roberto! Por onde andaste? Deixa-me abraçar-te e beijar-te! Não te lembras de nós?”

  6. Responde Roberto: “Como não! Sois meus companheiros de luta, tal como na Terra! De há muito sabia serdes meus hóspedes;

vós o ignoráveis. Percebendo vosso temor ridículo, enfrentei-vos energicamente para afastar vossa fraqueza. Animai-vos e vamos à mesa, que já atraiu muitos olhares de Jellinek!” Cheios de alegria, os três passam à outra sala, abraçam Roberto com efusão para, em seguida, dirigirem-se à mesa.

CAPÍTULO 56

O coração de Jellinek se inflama pelo “amigo” de Roberto. O vinho celeste. Brinde de Jellinek e resposta do Senhor

    1. Dirigindo-Me seu olhar amável, Jellinek diz: “Caro amigo de nosso irmão e amigo Roberto Blum, não te queres dar a conhecer? Deves ser bondoso e nobre, do contrário não estarias junto dele.”

    2. Digo Eu: “Dentro em pouco ser-te-á revelado o que ainda não compreendes! Acompanha-me à Mesa do Senhor e te fortifica para desvendares o enigma. Vem, pois, caro amigo e irmão Jellinek!”

    3. Diz este: “Oh, amigo! Tua voz é extremamente amável e cada palavra tua enche o meu coração como jamais senti! Deves ser um anjo celeste! Sabes, ficarei a teu lado porque, muito embora preze o Blum, quero-te muito mais desde que me falaste! Tomemos um copinho para selar nossa amizade eterna! Pois suponho não haver aqui gente igual a Windischgrätz e Radetzki, capazes de formarem um Conselho de Guerra?”

    4. Digo Eu: “De modo algum! Deixa este temor! Vê, os outros já nos fazem um brinde de saúde! Vamos!”

    5. Messenhauser se encaminha para Jellinek com uma taça de cristal cheia do melhor vinho e diz: “Meu irmão, eis a verdadeira essência dos melhores vinhos que já provamos em vida! Bebe à saúde de amigos e inimigos, mesmo de Windischgrätz, pois esse instru- mento cego dos dominadores terrenos talvez consiga um dia chegar a uma noção melhor!”

    6. Alegre, Jellinek toma da taça e diz: “Caros amigos! Deste modo me regozijo mais convosco do que anteriormente nos deba- tes infrutíferos, onde Messenhauser ainda aguardava, desesperado,

a pena de morte! Acontece ter eu escolhido o amigo do Blum para amigo do peito e tereis de me perdoar se não tomo uma gota deste néctar enquanto ele não se servir desta taça!”

    1. Todos concordam, com ênfase, com o desejo de Jellinek, que Me diz com visível simpatia: “Caro e distinto amigo! Não rejeites esta taça da mão de um pobre pecador e traidor político! Que prazer não seria dar-te coisa melhor como prova de minha devoção e res- peito! Assim, sou obrigado a dizer como Pedro ao aleijado, à porta do Templo: ‘Caro amigo, não possuo ouro nem prata!’ Dou-te, por isto, o que tenho; isto é, esta taça e um coração afetuoso que te saúda e abraça! Aceita-o, pois! Por certo é um atrevimento de minha parte agir deste modo, por ser merecedor do inferno, no critério de um anjo; todavia, te amo com este meu coração maldoso, porque tanto bem me fizeste com as poucas palavras que me dirigiste! Sendo ainda um espírito impuro, fecha um pouco teus olhos tão meigos, pen- sando: ‘Ele não o entende melhor!’ Sabes, sou ainda muito terreno e não sei lidar com espíritos como tu! Asseguro-te apenas externar o que sinto, e te peço não levares a mal meu atrevimento!”

    2. Amavelmente, tomo um gole da taça de Jellinek e digo em seguida a Roberto: “Irmão, no armário de comestíveis se acha uma garrafa de Meu Vinho Particular; traze-o aqui para que Eu demons- tre a este novo amigo como prezo sua amizade!”

    3. Solícito, Roberto apanha uma garrafa com brilho de diaman- te, cheia do mais delicioso vinho e a entrega a Mim com visível emo- ção. Encho, pois, a mesma taça e digo a Jellinek: “Toma, caro amigo e irmão, e convence-te o quanto Me agrada tua amizade! Por que falas de pecados? Quem poderia classificar de pecaminoso um cora- ção tão cheio de amor desinteressado? Afirmo-te seres puro diante de Mim, pois tua dedicação anula teus erros terrenos! Seria Eu um mau amigo se não te aliviasse e assumisse a remissão de tua culpa! Bebe, pois, à nossa amizade eterna!”

    4. Com os olhos rasos d’água, Jellinek diz: “Amigo divino! Como és bondoso! Se me fosse possível, tiraria o meu coração para depositá-lo em teu peito!” e, após tomar o vinho, exclama: “Irmão

Celeste, se tua amizade corresponde a este néctar, então não és um anjo, mas Deus Mesmo! Todo o Infinito não poderá apresentar coi- sa mais divina que o seu aroma! Provai, irmãos, e dizei-me se te- nho razão!”

CAPÍTULO 57

Efeito do vinho celeste. Indagação por Cristo e Sua Divindade. Resposta de Roberto

      1. Roberto, Becher e Messenhauser experimentam o vinho e se extasiam diante de seu aroma realmente celeste, e o último toma da palavra: “Tua observação se justifica! Que vinho! Roberto, penso que deveríamos nos estabelecer em tua casa, pois cuidas magnifica- mente de teus hóspedes. Se se apresentasse um pobre pecador igual a nós, recebê-lo-íamos ainda mesmo se fosse um dos nossos piores inimigos! Qual é vosso parecer?”

      2. Diz Roberto: “Amigo Messenhauser, falaste muito bem, por- que deste oportunidade ao teu coração para se manifestar, e não ao teu intelecto. Eu mesmo confesso: se o próprio Marechal Alfredo Windischgrätz aqui chegasse como alma sofredora, encontraria me- lhor trato do que nos proporcionou em vida!”

      3. Exclamam os três amigos: “Bravo! Para se tornar verdadeiro cristão é preciso pagar-se o mal com o bem, pois quem ainda sentir o espírito da vingança está longe da perfeição espiritual, sofrendo grande atraso na libertação de sua alma. Quem, no entanto, puder dizer — como fez o maior e mais sábio doutrinador dos judeus: Senhor, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem! — terá atingido a máxima liberdade em sua vida! Poder-se-ia até mesmo afirmar ser tal pessoa um deus, dando o maior testemunho da Divindade do Cristo, ainda por poucos aceita.

      4. Onde, porém, estará Jesus, cuja existência terrena não dei- xa dúvidas? Foi realmente o maior amigo da Humanidade! Amigo Blum, não tiveste oportunidade de colher informações sobre esse homem extraordinário?”

      1. Responde Roberto: “Amigos, asseguro-vos ter sido justamen- te Ele meu primeiro contato neste mundo!”

      2. Exclamam os três: “Como? Onde foi? Que disse Ele? Con- ta-nos algo!”

      3. Diz Roberto: “Deixemos isto para ocasião mais propícia, porque temos outra coisa a fazer. Posso, no entanto, adiantar que espero em breve Sua visita, quando podereis conhecê-Lo de perto.”

      4. Insiste Jellinek: “Dize-nos apenas se abordaste a tese de Sua Divindade, aceita por muitos fracos na fé. Ele aprovou tal crença?”

      5. Responde Roberto: “Foi justamente o assunto discutido e acrescento, dentro da verdade por vós ainda não compreendida: Cristo é o único Deus Verdadeiro de todo o sempre! É o Criador de céus e mundos! É só o que posso dizer; os pormenores sabereis por Ele Mesmo!”

      6. Diz Jellinek: “Não necessito de provas, pois confesso que se ele agora me chamasse, incontinenti vos abandonaria! Amo-o acima de todas as criaturas, como o homem mais perfeito! Quanto mais o amarei — e já o faço — se realmente for o Criador! Não me preocupa a maneira de seu ser divino. Li, certa feita, o seguinte: Deus é o Amor! Se algum dia teu coração for tocado por grande afeto, considera estar Deus neste sentimento! — Eis meu barômetro para a existência Di- vina no homem e no povo! Por tal razão, também estimo este irmão celeste, porque deve alimentar muito amor a Deus! Tenho razão?”

      7. Responde Roberto: “Como não? Somente o coração e ja- mais o intelecto compreende Deus! Falemos, pois, de outra coisa. Como estamos tratando de amor, vamos analisá-lo.

      8. Se bem que o amor seja a única prova palpável da Existência de Deus, sabemos existir também o sexo feminino, que muitas vezes nos enche o coração a ponto de nos incapacitar para o amor mais elevado e puro a Deus! Achais possível Deus habitar também na expressão do amor sensual?”

      9. Diz Jellinek: “Claro, se a meiguice divina não estivesse na mulher, quem poderia amá-la? Não resta dúvida tal amor também exceder-se.”

      1. Acrescenta Roberto: “Se, como experiência, agora surgis- sem várias beldades em extasiantes trajes de bailarina, com a maior amabilidade para convosco, e ao mesmo tempo o simples, severo — conquanto bondoso — Jesus, qual seria a manifestação de teu senti- mento, Jellinek? Lembro-me terem sido perigosas as tais bailarinas!”

      2. Responde Jellinek: “Irmão, mencionaste minha maior fra- queza! No entanto, posso afirmar-te, com segurança, que mesmo as- sim não trocaria dez mil dançarinas por um fio de cabelo do Cristo! O amor a Deus por certo será mais forte do que a atração de uma moça de palco. A atração pelas mulheres só poderá enfraquecer o amor a Deus, caso não se acredite Nele ou imaginando-O dentro de uma hóstia! Mas, se Ele está na Pessoa de Jesus, e eu puder vê-Lo, reconhecê-Lo e falar-Lhe, deixa-me em paz com tuas dançarinas! Sem Cristo, naturalmente, um grupo de garotas produziria certa vibração no meu íntimo.”

      3. Diz Roberto: “Queres ver algumas?” Diz o outro: “Se as tiveres à tua disposição, apresenta-as para vermos o perigo que nos acarretam! A experiência ensina!”

CAPÍTULO 58

Primeira prova para os três amigos de Roberto

  1. Imediatamente Roberto se dirige à porta mais afastada do recinto, onde se encontram as vinte e quatro dançarinas ocultas por detrás de um reposteiro, que havia sido confeccionado após a troca de roupas e a seu especial pedido — por preço barato — através de Minha Vontade. Abrindo a cortina, Roberto diz às moças: “Pronto, chegou a hora de demonstrardes vossa arte aos três hóspedes! Caute- la em tudo que fizerdes!”

  2. Antes de executarem suas piruetas, a primeira dançarina diz a Roberto: “Pedimos-te não nos acusar se nos tornarmos perigosas pelo nosso físico voluptuoso! Se prevês tal possibilidade, preferiría- mos não dançar, pois seria lastimável se agíssemos para o mal, quan- do pretendemos o contrário!”

  1. Diz Roberto: “Caras irmãs, muito me alegra o vosso re- ceio, pelo qual deduzo serdes todas de boa índole! Não vos preocu- peis, pois aquele amigo cuidará de tudo a fim de não surgir dano para vós ou para eles. Executai vossa dança, que apenas visa um benefício!”

  2. Ouvindo tal promessa, as dançarinas se dirigem rapida- mente para a frente da sala e começam a desenvolver seus gestos graciosos e decentes. Roberto, que se havia juntado aos outros, diz a Jellinek: “Então, meu amigo, que tal esta troupe? Acaso viste coisa tão perfeita em vida?”

  3. Por certo tempo Jellinek observa as dançarinas atentamente e diz, após profundo suspiro: “Ah, meu irmão, não sei explicar; pois minha reação em ocasiões como esta é sempre a mesma! Confesso que, em verdade, nunca senti verdadeiro prazer; pelo contrário, sen- tia-me entristecido ao deixar o teatro! Muito meditei a respeito, sem poder compreender meu estado de alma. Agora começo a receber uma noção verdadeira, alegrando-me mais do que este número tão bem apresentado! A razão consiste em reconhecer a total inutilidade desse desconjuntamento artístico de pernas e braços! Qual seria a utilidade desta arte? As outras, como a música, a poesia, pintura e es- cultura, bem podem — quando aplicadas com nobreza — se trans- formar num benefício para a alma, porquanto enobrecem e apazi- guam o coração e, não raro, transformam uma pessoa rude numa agradável e meiga, despertando o verdadeiro amor. Deixemos que a dança interprete atitudes puras e nobres que, todavia, despertarão os sentimentos mais impuros dentro da alma, deixando a natureza do homem muito mais sensual e desejosa. O rico não hesita em gastar boa importância a fim de conseguir aquilo que almejou durante a representação; o menos abastado, cujo bolso não permite juntar o gozo ao estímulo, volta aos penates e banca o filósofo. Caso isto não lhe ocorra, procura a primeira meretriz e pratica, por alguns centa- vos, aquilo que preferiria fazer por milhões com a primeira bailarina!

  4. Julgo merecer consideração meu ponto de vista, muito em- bora não seja a razão de minha tristeza em tais ocasiões. A verdadeira

causa era o pensamento humano pelo qual vislumbrava tal dançari- na voluptuosa como anjo caído!

  1. Quantas vezes pensei o seguinte: ‘Oh, criatura! O que não serias para o meu coração se o teu compreendesse o que te desejo! És um anjo caído e jamais reconheces o valor de um coração que tanta vontade tem de elevar-te do lodo da perdição a um verdadei- ro anjo! O dinheiro do mundo é teu deus. Qual cega, pisas o teu próprio coração com os pés que deveriam habitar um templo solar, caso reconhecesse o valor de tua alma, enquanto estimulas, através deles, a volúpia e castigas o pobre inconsciente de sua natureza com muitas noites em claro — e coisa ainda pior! Que te importam os tolos que te admiraram e aplaudiram? Teu coração é de mármore! Não os conheces, nem queres conhecê-los! Que te importam os co- rações atingidos pelas setas venosas que teus pés de fada lançaram com desprezo?’

  2. Vê, amigo Blum, tais pensamentos sempre me acompanha- vam, deixando-me cheio de melancolia! Se é esta a verdade, achas poderem estas dançarinas — que felizmente terminaram sua pro- dução artística e parecem escutar a nossa conversa — se tornarem perigosas para mim? Ou aos amigos Messenhauser e Becher? Não o creio! Não vejo perigo para mim, tampouco para este amigo carís- simo, que ouviu meu relato com visível emoção! Por isto afirmo-te, Blum, que estas moças encantadoras não alteraram meu afeto para com Jesus! Pelo contrário! Elevou-se este amor abençoado, pois sinto verdadeira compaixão para com esses pobres anjos caídos e daria metade de minha vida, caso fosse possível erguê-las de sua ínfima posição moral! Deixemos, porém, este assunto. Em vida, muitos de meus desejos se desvaneceram; por que não deveria isto suceder aqui? Externai-vos, Messenhauser e Becher!”

  3. Dizem ambos: “Bem, a representação não foi tão ruim assim! Todavia, se torna isto um tanto ridículo! Na Terra as excentricidades da tolice humana são suportáveis; mas, aqui, no Reino dos espíritos, vais nos desculpar, Blum — essas aberrações do zelo humano to- mam aspecto ridículo! Calcula se, ao voltarmos à Terra, contássemos

aos amigos termos assistido a um ballet celeste! Gostaria de ouvir as gargalhadas! Como chegaste à ideia maluca de manter aqui um verdadeiro harém com algumas dúzias de bailarinas? Foram por ti contratadas? Ou será isto o céu dos neocatólicos? Vai-te embora com teus anjinhos e vê se arranjas outra garrafa do último vinho! Uma gota dele vale mais do que todas essas garotas!” Sorrindo, Rober- to obedece.

CAPÍTULO 59

O Senhor fala do “fim que justifica o meio”

  1. Jellinek vira-se então para Mim e indaga se o ballet Me agra- dou. Eu lhe digo: “Caro irmão, devo esclarecer-te que em tais ocasi- ões dirijo Minha atenção unicamente à finalidade. Pode o meio ter aspecto estranho que não importa, contanto que se consiga, em toda a linha, um fim bom e nobre. Aqui, no Reino dos espíritos, a boa finalidade abençoa todos os meios! Essa apresentação artística não tem a menor importância; mas, para se conseguir um benefício útil e bom, tem ela grande valor.

  2. Vou elucidar-te materialmente este provérbio de timbre je- suítico, para compreenderes seu sentido espiritual. Consta: O obje- tivo justifica todos os meios. Veremos, através de vários exemplos, se está certo.

  3. Admitamos que um trabalhador tivesse a infelicidade de que- brar a perna, tornando-se necessária uma operação imediata para não prejudicar seu estado geral. Para o bem dele, todos concorda- riam com isto. Qual seria, no entanto, a atitude do extremoso filho, caso viesse uma pessoa má, tomada de ira, e decepasse o pé com um machado? Ele certamente se atracaria com o malfeitor para vingar-se da maldade praticada contra seu pai! Vê, o meio, por si só, sem rela- ção com determinado fim, seria uma crueldade. Visando, no entan- to, uma utilidade, torna-se um benefício. No caso da operação feita pelo médico, o filho certamente será grato ao operador que salvou a vida do pai, sem o que ele teria morrido de gangrena.

  1. Vejamos outro exemplo: Que farias com a pessoa que te arrebentasse um dente com um soco? Chamá-la-ias perante a jus- tiça, exigindo considerável indenização. Se, no entanto, tiveres um dente infeccionado que te causa fortes dores, procurarás um dentista e pagarás para que ele o extraia com cuidado. Quem poderia louvar um dentista que procurasse arrancar dentes por mero prazer? Se, porém, fizer isso para aliviar as pessoas do sofrimento, a extração — mesmo dolorosa — obteve um fim útil!

  2. Assim, veremos outros casos: O assassínio é o pior dos pe- cados da humanidade. Suponhamos que pai e filho caminhem por uma floresta. Um salteador, calculando que o velho tenha muito dinheiro, atira-se sobre ele, tentando matá-lo. Prevendo o grande perigo, o filho toma da espingarda e mata o salteador! Teria sido sua atitude pecado? Não, pois tua própria razão te diz que tal ato somente seria pecado se visasse uma ação maldosa; mas, sendo em legítima defesa, justifica-se!

  3. Todas as ações humanas ou espirituais se enquadram nos exemplos acima. Uma vez que a ação se apresenta como único meio para se alcançar uma finalidade justa — após sábia reflexão — justi- fica-se pelo fim alcançado!

  4. Assim, caro amigo, terás de fechar um olho quanto às baila- rinas que dançaram para atingir um fim útil e, em breve, te conven- cerás do resultado. Devemos nos aborrecer com elas — ou conviria oferecer-lhes um copinho da segunda remessa?”

  5. Diz Jellinek: “Ah, naturalmente! Isto é claro! Achegai-vos, queridas! Sereis recompensadas!”

CAPÍTULO 60

Humildemente as dançarinas pedem esclarecimentos acerca de Deus. Perigo das pesquisas externas

  1. As bailarinas se curvam, respeitosas, e as três primeiras di- zem: “Caros amigos, sois muito bons e condescendentes para conos- co; pois nossa arte fútil e condenável é a pior de todas, a ponto de

não merecer respeito da parte de espíritos como vós. Se ainda nos achássemos na Terra e encontrássemos pessoas tão bondosas, teriam grande ascendência sobre nós; pois a uma verdadeira amizade e a um amor desinteressado se farão os maiores sacrifícios! Somos, porém, pobres, tanto psíquica quanto espiritualmente, e nada possuímos além daquilo que vossa bondade nos proporcionou. Por isto, só nos cabe respeitar-vos e amar-vos de todo coração. Se esta dedicação for um desagrado por não a merecermos, deixai-nos seguir e chorar os nossos pecados terrenos, que nos tornaram indignas de vosso afeto!”

  1. Diz Jellinek: “Minhas queridas, peço-vos não serdes tão ne- gativas! Onde estaria Deus que classificasse o amor como crime? Digo mesmo que se um demônio me amasse em verdade, eu tam- bém o amaria. Como poderíamos vos desprezar porque nos consi- derais? Não nos temais, pois falamos o que sentimos, sem qualquer subterfúgio! Espero, pois, saber quais vossas intenções; almejamos somente vosso puro amor e amizade!”

  2. Deste modo animadas, as bailarinas novamente se curvam e dizem com feições radiantes: “Somos vossas servas! No mundo pou- cas ocasiões tivemos — também não as procuramos — de conhecer o Ser Supremo e aqui chegamos inteiramente cegas neste assunto tão importante do saber e da fé.

  3. Muito embora fôssemos bailarinas, cumprimos tudo que a Igreja Católica prescreve. De que nos adiantou isto para a vida atual? O jejum, a confissão e a comunhão não nos levaram ao verdadei- ro conhecimento de Deus. Morremos no decorrer de dez a quinze anos e aqui nos reencontramos, por acaso. De modo algum foi-nos possível adquirir noção do Ser Supremo, não obstante sabermos ter sido Ele o Doador bondoso, sábio e onipotente de nossa existência. Ficaríamos imensamente gratas caso nos achásseis dignas de uma compreensão maior.

  4. A noção que recebemos de Deus, na Terra, nos incapacitou para uma compreensão verdadeira; pois consiste Ele de três pessoas, cada qual um Deus perfeito, donde se conclui que são três deuses. No entanto, esses três deuses representam somente Um Único, cada

qual com sua incumbência: Deus-Filho depende de Deus-Pai e só pode fazer e ensinar o que Este permite. No entanto soa: Pai e Filho são unos! A ação do Espírito Santo é ainda mais complicada: sur- gindo de ambos, apresenta-se qual pomba! Além do mais, existem as incontáveis hóstias, cada uma Deus perfeito! Amigos, poderia al- guém deste modo alcançar uma noção acerca do Ser Divino? Escla- recei-nos, pois isto nos será mais útil que o vinho!”

  1. Diz Roberto, oferecendo uma taça cheia: “Caras irmãs, tomai este vinho, em Nome de Deus — o Senhor e Criador do Infinito

  1. Vosso desejo é nobre e nem um anjo de Deus nele encon- traria mácula; no entanto, não deveis procurar seu cumprimento exteriormente, e sim dentro de vós, que recebereis benefício eterno! Se receberdes o ensinamento por nós, tereis uma posse estranha, trazendo-vos vantagem externa e temporária, mas no íntimo um prejuízo irreparável!

  2. Vede, um simples ensino externo só se pode transmitir aos elementos psíquicos, cujo sentido é material e onde produz uma revolução, obrigando-os, vez por outra, a aceitá-lo. O espírito in- trínseco percebe-o e se dirige aos elementos, ou seja, à alma, alegran- do-se com a semeadura abundante, e isto na expectativa da colheita maravilhosa que surgirá. Precisamente nessa ocasião dá-se o desas- tre, quase inevitável; pois enquanto a centelha divina se regozija com a semeadura e se afasta de seu recôndito, encaminhando-se aos ele- mentos da natureza, os maus e impuros ainda existentes na alma se juntam e invadem o recôndito espiritual, dificultando e até mesmo impossibilitando sua volta! Quando o espírito perde a verdadeira morada de sua vida, procura erigir outra entre seus melhores ele- mentos psíquicos, onde habita qual inquilino. Não podendo final- mente pagar o aluguel, porquanto despojado de quase todos os seus bens, o proprietário o penhora, tirando-lhe tudo que lhe restava e fá-

-lo prisioneiro ou escravo de seu domínio — e o verdadeiro espírito é obrigado a se unir aos elementos mais ínfimos e puxar a canga pela corrente do vício. Neste caso, ocorre a morte espiritual da criatura, pois Satanás terá erigido seu trono e transformado o próprio senhor da vida do homem em escravo de sua volúpia infernal!

  1. Por tal motivo, não vos deixeis tentar por um ensinamento externo, que de nada vale quando o espírito não o aceitar na maior humildade, organizando imediatamente sua vida nesta ordem, ta- refa difícil para todos. Salomão, o mais sábio rei de Israel, falhou, não obstante sua sabedoria, porque seu espírito, sentindo-se bastan- te forte, arriscou-se um dia a abandonar sua morada interior para organizar seus elementos psíquicos. Fazendo-o antes de seu renasci- mento, que sempre deve ocorrer de dentro para fora e não vice-ver- sa, foi ele preso pelos instintos de sua alma, que não mais o deixaram voltar ao seu recôndito, tornando-se em breve um antro do vício, prevaricação, impudicícia e idolatria! Do mesmo modo, Judas traiu seu Senhor e Mestre, porque aceitou a Doutrina da Salvação apenas pelos elementos exteriores, localizados na mente, que surgiram por toda sorte de desejos. Assim, conseguiu afastar o espírito de vida de seu pouso, para abri-lo a Satanás. O efeito desta ação não necessita ser mencionado!

  2. Tomai, pois, o vinho que despertará o verdadeiro amor de Deus, fortificando e desenvolvendo vosso espírito. Quando ele, por esta evolução, penetrar em todos os seus elementos psíquicos, sem deixar sua morada primitiva, encontrará dentro dele mesmo tudo aquilo que pretendia receber exteriormente. Compreendestes-me?”

CAPÍTULO 61

Luta do homem contra os elementos impuros. Perfeição gradativa

    1. Dizem as bailarinas: “Sábio amigo, entendido nas qualida- des do vinho, compreendemos-te perfeitamente, porquanto exem- plificaste aquilo que muitas vezes apenas pressentíamos. Como agradecer-te?

    2. Privamos na Terra com pessoas de educação aprimorada que, mormente na Religião, tinham fama de santidade, sendo hon- radas por todos; em suma, criaturas que manifestavam traços inde- léveis de elevada inspiração pela palavra e atitude. Precisamente estas nos procuravam para convidar a orgias chocantes, e não podíamos satisfazê-las em virtude de suas moléstias contagiosas! Naquela épo- ca tais fatos nos eram enigmáticos e nos tornaram descrentes das virtudes cristãs. Agora compreendemos a razão disto e te agradece- mos de coração! Dá-nos, pois, a taça da humildade, que sorveremos o vinho da vida até a última gota!” Com grande satisfação Roberto lhes dá o vinho, que as enche de alegria.

    3. Os três amigos muito se admiram do conhecimento de Ro- berto, e Jellinek lhe diz: “Francamente, nunca duvidei de tua in- teligência, mas não te supunha portador de noções tão profundas e estou inclinado a afirmar que tuas explicações às moças não são de tua autoria. Mas, não importa; pois até mesmo eu recebi um esclarecimento peculiar, que me leva a interpretar os fatos de modo diverso. Tenho a impressão de que todos os atuais acontecimentos políticos e outros males na Terra se fundamentam nessa causa.

    4. Começo a conceber o motivo pelo qual as bailarinas dança- ram à nossa frente! Acaso não teriam elas procurado aliciar nossos elementos impuros da morada usurpada de nosso verdadeiro eu, ajudando-o a lá voltar?”

    5. Diz Roberto: “Atingiste quase o ponto nevrálgico, Jellinek. Entretanto, tua introspecção foi mui supérflua supondo terem sido teus elementos impuros atraídos para fora da habitação de teu es-

pírito simplesmente pela dança, permitindo-lhe dela apossar-se de novo! Como podes imaginar tal coisa?

    1. Afirmo-te dar-se precisamente o contrário convosco! Espe- cialmente vossosespíritos encontram-se em seu justo recôndito, do contrário não estaríeis nesta casa, mas numa onde jamais penetra- ram luz e calor de vida.

    2. Vossa centelha divina foi apenas sitiada pelos espíritos da Natureza, impossibilitando-lhe movimento e visão — fato que se deu convosco no primeiro recinto. Somente pela ajuda extraordi- nária do Alto os sitiantes de vosso espírito foram atraídos para fora. Deste modo ele conseguiu mover-se e desenvolver maior luz, dila- tando seu âmbito restrito. Assim, descobristes a porta aberta e essa mesa com o vinho da vida.

    3. Contudo, sobrou tão grande quantidade daqueles elemen- tos ao redor da habitação de vosso espírito, que ele não conseguia ver com clareza, mas numa suave neblina. Tratando-se de elementos teimosos e de origem sensual a envolverem o espírito, têm eles, de certo modo, a maior semelhança com o Espírito Verdadeiro do Puro Amor a Deus em nosso coração, de onde dificilmente são afastados, porquanto muito presos à vida, que temem perder por tantos pra- zeres lhes facultar.

    4. Esses elementos teimosos só podem ser afastados da habita- ção do próprio espírito através de uma tentação externa, quando ele então consegue dilatar seu território e com isto alcançar mais luz e liberdade. Deu-se tal tentação pela produção artística das bailarinas, enquanto vosso eu se libertou algo mais e tornou-se mais lúcido. Eis por que este meu amigo te disse que conviria não deveres considerar o meio, mas o bom propósito, ao estranhares o ballet!

    5. Não necessito esclarecer que essas moças ainda não são an- jos puros somente porque cooperaram numa boa finalidade para vosso benefício! Tudo faremos, porém, para se tornarem aquilo que nós também ainda não somos!

    6. Galguei apenas um único degrau, no que consiste minha vantagem! A escada de nossa evolução é infinita e facilmente pode

acontecer nivelarem-se nossas atuais diferenciações, com exceção da- quele amigo e irmão, que tão longe está de nós espiritualmente, que jamais O alcançaremos! O porquê vos será demonstrado quando tiverdes travado conhecimento com Ele.

    1. Temos outra tarefa importante a resolver, do contrário não será possível nos movimentarmos à vontade nesta casa!”

CAPÍTULO 62

Os vienenses devassos no jardim. Sua cura amarga, porém necessária

  1. Prossegue Roberto: “Observai pela janela o jardim maravi- lhoso que circunda a casa, a longa distância. Dizei-me o que vedes!”

  2. Os três amigos olham pela janela, recuando horrorizados, e Jellinek diz: “Pelo amor de Deus, que vem a ser isto? São criaturas, animais ou diabos? Parece tudo misturado! Nunca haveria de supor existirem tais coisas perto desta casa, pois essas obscenidades lembram os horrores da mitologia! Peço-te, Roberto, fechares as portas, do con- trário correremos perigo de sermos estraçalhados por aquelas fúrias!”

  3. Diz Roberto: “Não vos preocupeis! Não são tão horrendos como parecem à primeira vista. A impressão assustadora provém da ira que sentem contra Messenhauser, porque julgam ter sido ele o traidor junto ao Marechal! Tão logo se convençam do contrário, sua impressão será outra. Trata-se de indivíduos vienenses que tomba- ram na luta pela liberdade com as armas do Império. Caso alguns não se deixem converter, o Senhor saberá separar os bons dos maus, para impedir que venham a prejudicar os outros!

  4. Por esse motivo permitiremos sua entrada e procuraremos levá-los a um caminho melhor, com a ajuda do Senhor, uma vez que muita culpa cabe aos nossos discursos e ordens que determinaram sua atual miséria! Vamos, pois, em Nome do Senhor!”

  5. Rodeado por Messenhauser e Becher, Roberto vai ao jardim onde ainda se encontram os vienenses com suas filhas ultrajadas. Eu e Jellinek os seguimos.

  1. Quando Roberto lhes indaga de seu estado atual, gritam quase todos: “Estamos muito mal! Ajuda-nos ou finaliza esta vida abjeta! Imagina as experiências estranhas que aqui fizemos no Rei- no dos espíritos! Confessamos termos sido excessivamente sensuais; mas sempre fomos assim, porque não tivemos outra educação, no que cabe a culpa somente ao Regime. Assim nos divertimos como Adão e Eva, que deram origem ao fratricida Caim, cujo exemplo teve inúmeros seguidores. O que, porém, mais nos revolta é que fomos todos contaminados! E isto, como espíritos! Bonito Paraíso, este! Vê se nos podes ajudar, ou acaba com nossa existência — caso te seja possível! Aliás, quem são teus companheiros? Um deles co- nhecemos como anfitrião desta casa e um justo homem de Deus! Os outros desconhecemos!”

  2. Diz Roberto: “Meus pobres amigos, acaso sois tão cegos a ponto de não reconhecerdes Messenhauser, Jellinek e Becher?”

  3. Exclamam alguns: “O quê? Os tais patifes? Poderíamos es- perar tudo — isto nunca! Mormente o Messenhauser! Sorte a dele encontrar-nos tão esgotados, do contrário lhe mostraríamos nossa ‘gratidão’ pela chefia militar em Viena! Incapacitados que estamos para tanto, pode ele consolar-se, por enquanto, com a classificação que lhe damos de maior traidor e trapaceiro, desejando-lhe aquilo que ele mesmo jamais desejaria!”

  4. Diz Roberto: “Dizei-me, estais contentes por terdes insul- tado estes meus amigos?” Dizem eles: “Não propriamente, mas o mereceram e bem sabes o porquê!”

  5. Responde Roberto: “Deixemos isto de lado; o que passou, passou! Nenhum entre nós — com exceção de meu grande amigo que ora palestra com Jellinek — pode afirmar jamais ter pecado! Creio até mesmo que todos nós ultrapassamos a escala de todos os pecados mortais não só uma, mas várias vezes, com preponderância individual numa ou noutra fraqueza. Seria tolice de minha parte inocentar os por vós acusados. Têm vasta culpa no cartório; e nós? Não causaria grande dificuldade ao Eterno Mestre da Vida analisar quem dentre nós mais merece o inferno! Já que não temos, perante

Deus, o valor que por Windischgrätz foi tachado no campo da exe- cução, seria melhor não nos acusarmos e sim estendermos as mãos ao perdão, fundando neste reino de vida recente uma nova colônia de amigos e irmãos! Com isto obteremos melhores resultados do que com constante acusação recíproca, quando carregamos nos ombros a medida completa de culpas. Qual vosso parecer?”

  1. Exclamam todos: “Tens toda razão e muito nos agrada tua proposta. Mas, e a saúde? Precisamos de nossa saúde! Pois sabes que um homem ou espírito doente não pode chegar a conclusões saluta- res, muito menos um vienense!” Diz Roberto: “Está bem, está bem! Vinde comigo a casa; lá encontraremos os meios de cura. Aqui, no Reino do Espírito, nada se consegue por meios externos, porque todos os males devem ser curados no íntimo! Vinde, pois, ao meu lar, provido de tudo!” Todos se levantam, inclusive as moças, e se arrastam para a sala, que pode acolher milhares de pessoas.

CAPÍTULO 63

Reação dos hóspedes diante das bailarinas. A heroína das barricadas. O orador circunspecto

  1. Ao chegarmos à sala, um dos vienenses avista as bailarinas e diz: “É isto que nos falta em nosso atual estado de saúde!” Diz um outro: “Papagaio! Vê só, que pernas! São qual sobremesa num domingo de Páscoa! Se tivesse saúde, me dirigia à do centro da- quele grupo!”

  2. Adverte o vizinho: “Chico, tem juízo! Acaso ignoras não es- tarmos na Terra?” Responde o primeiro: “Claro! O que não impede de serem muito bonitas! Seria preciso não se ter sentimentos para ficar-se indiferente!”

  3. Diz um terceiro: “Mas, se o Chico ingressar no inferno com seu temperamento?!” Responde este: “Acaso estamos no céu? Já viste o inferno para saberes que não fazes parte dele?!” Retruca o outro: “Ora, neste caso devíamos ter sido condenados para podermos ver o fogo infernal! Creio, contudo, que se não desistirmos de nossa ten-

dência pelo sexo oposto, aqui no Além, será mais fácil ingressar-se no inferno do que em vida!”

  1. Acrescenta o primeiro: “Tens razão; mas, se pretendo não pe- car, não posso mais pensar à vontade!” Diz o outro: “É isso mesmo! Não sabes que primeiro surgem os pensamentos, depois os desejos, a seguir as ações e, no final, o inferno? Penso o seguinte: como esta- mos no Além, devemos ser calmos e obedientes a tudo que o Blum disser; só assim poderemos melhorar!”

  2. Diz o Chico: “Está bem; não és tão tolo como pareces!”

  3. Responde ao lado uma heroína das barricadas: “Essa é boa! Esses dois diabinhos pretendem analisar as situações do inferno! Ah, Ah, Ah! Como se já não estivessem condenados!” Diz o Chico: “Ca- la-te, primeira meretriz de todos os estudantes de Viena! Espera, que te dou uma bofetada diante do Céu, que a própria Virgem Santís- sima dará um ai! Pretende ela ver-nos condenados ao inferno! Tem cuidado para não seres a primeira a voar para lá!”

  4. Vem um outro e diz, em tom circunspecto: “Amigos, consi- derai onde estamos! Isto aqui não é o Prater ou a Brigittenau (praça de diversões) onde o populacho vienense se torna mais rude que em outra qualquer parte! Estamos no mundo espiritual e convém assu- mir uma atitude séria e equilibrada para se evitar a eterna condena- ção!” Diz a heroína: “Oh, oh! Para que esse excesso de zelo, seu tolo! É claro que Deus não pode aplicar misericórdia a um beberrão de sua marca!” Responde o orador circunspecto, arregalando os olhos: “O que? Que disse esta bruxa? Não haveria aqui um sujeito desclas- sificado, pronto a torcer o pescoço desta criatura imunda?” Diz ela: “Oh, que gentileza! Necessitando de um homem abjeto, não haverá melhor do que o senhor! Que conceito tem o senhor de sua pessoa? Estão lhe faltando, para a felicidade eterna, um chope duplo e uma tal de Mira, não é isto? Mas é preciso que o senhor se console, talvez ela venha para cá e, então, Deus será certamente mais benigno!”

  5. Diz o circunspecto: “Amigos! Deixemos esta criatura nojen- ta, que contamina todo o ambiente!” Responde a heroína: “Seria uma vergonha caso o senhor não fosse mais limpo do que eu, por-

quanto se lavou, em vida, com alguns milhares de barris de cerveja! Se eu fosse Deus, saberia como fazer a felicidade do senhor: Trans- formaria o Danúbio em cerveja preta e clara, misturadas, e o faria sentar-se no local onde o rio desemboca no Mar Negro, com a Mira ao seu lado!”

CAPÍTULO 64

O orgulhoso e circunspecto orador é admoestado por Roberto. A heroína, bondosa, em vão procura convertê-lo

    1. O circunspecto deixa o grupo, vai para junto de Roberto e lhe informa respeitosamente haver espíritos desclassificados ultra- jando sua casa, convindo afastá-los.

    2. Responde Roberto: “Prezado amigo, isto não é possível! Quando encarnados, almejávamos a igualdade entre as criaturas e, em tudo, o direito pleno! O que lá não conseguimos nos é facultado aqui, de modo completo, o que representa uma verdadeira dádiva por parte do Ser Supremo! Caso o senhor pretenda ser realmente feliz nesta Constituição Liberal, não deve superestimar seu próprio valor, considerando que todas as criaturas de ambos os sexos que aqui se encontram têm o mesmo Deus por Criador e Pai. Só as- sim conseguirá o senhor amá-los em verdade, recebendo em troca o mesmo afeto, única felicidade de todos. Deste modo o senhor, no futuro, não necessitará recorrer a juízes a fim de queixar-se dos ofensores; seu próprio coração lhe facultará a melhor e mais valiosa justificativa nos corações de seus irmãos! Além disto, não precisa o senhor se preocupar com a possibilidade de ser minha casa contami- nada por essas pobres criaturas! Confesso que gosto daquela heroína mordaz! É vienense e tem bom coração! O senhor é um daqueles que se deixam tratar por ‘senhor’, sem considerar que somos todos irmãos! Responda-me, quem deve ser mais idôneo: o senhor ou ela?”

    3. Curvando-se diante de Roberto, diz o circunspecto: “Sendo, aqui, esta a linguagem moral entre homens honrados, peço licença para retirar-me, pois o ambiente exala mau cheiro, rudeza e plebe!”

    1. Diz Roberto: “Amigo, esta casa não tem prisão, nem algemas, a não ser as do amor! Não querendo submeter-se, ninguém o prende aqui dentro! Acrescento apenas tornar-se difícil, caso o queira, sua volta a este lar de amor! Pode até mesmo acontecer que ele desapare- ça tão logo o senhor faça o primeiro passo ao ar livre! Estando, pois, orientado, saberá o que fazer!”

    2. O circunspecto hesita, sem se definir. Eis que a heroína se aproxima e diz: “Ora, deixa de ser tolo e fica! Vê, já voltei às boas! Aborreci-me porque o senhor pretendeu contestar todo Amor e Mi- sericórdia de Deus e externei apenas minha opinião! Se tivesse sido possível, o senhor me teria estraçalhado de ódio! Mas, deixemos es- ses aborrecimentos! Façamos as pazes! Somos todos cheios de defei- tos e convém termos um pouco de paciência com os outros! Venha cá, pois o velho Chico, seu engraxate, já nos espera! Estaria o senhor aborrecido comigo?”

    3. Diz o circunspecto: “De modo algum! Isto não me honraria, pois, a bem dizer, nada és perto de mim! Não posso voltar ao vosso meio, onde existe a maior baixeza; ficarei no círculo das honorabi- lidades! Recua!” Responde a heroína: “Tenha cuidado para que eles não venham a ter náuseas perto do senhor! Que ideia é esta? Sou uma vienense alegre, mas não maldosa. Caso seja muito desprezível para o senhor, basta escolher outra! Lá estão algumas! Experimente a sorte, e elas lhe dirão do seu valor!” A heroína volta ao seu grupo, enquanto o circunspecto faz como se ela não existisse.

CAPÍTULO 65

Os vienenses e o húngaro desabrido. A heroína se dirige a Jellinek, que lhe indica Jesus

  1. Ao voltar para junto de seu grupo, Chico vira-se para ela e diz: “Então, Mira! Expuseste, em dialeto, tua opinião àquele presun- çoso?” Diz ela: “Claro! Ele pensa ser um cavalheiro! Pena não teres ouvido o Blum, pois o outro lhe foi fazer queixa de mim! Não desejo mal a ninguém, nem a ele; mas seu orgulho tinha de ser reduzido!”

Responde o Chico: “Agora estás me agradando; se, porém, voltares a me atacar, não faço questão de teu convívio!”

  1. Diz ela: “Ora, não somos húngaros para brigarmos duran- te sete anos! Conheci um que me teria estraçalhado depois de três anos, caso tivesse tido oportunidade!” Responde o Chico: “Mira, não fales tão alto! Nunca se sabe se alguém nos escuta e os boêmios têm as orelhas e os dedos mais compridos, razão por que fazem parte da polícia!”

  2. A essas palavras se levanta um homem rude, forte e corado; respira profundamente e diz ao Chico: “Meu camarada! Quem tem orelhas e dedos compridos? Sou um espírito, mas poderei in- formar-te a respeito!” Diz a heroína: “Cruzes! Vamos dar o fora, Chico, pois mal se fala no diabo e ele aparece! Este dá a impressão de ser amigo dos russos!” Diz o boêmio: “Cala tua boca imunda! És uma rameira, mas minha gente é boa!” Defende-se ela: “Caros vienenses, se não nos encontrássemos numa casa tão respeitável, tudo faria para enxotar este sujeito! Vamos embora, do contrário haverá barulho!”

  3. Rápido, ela se dirige, em companhia de alguns vienenses, para junto de Mim e Jellinek, e lhe diz: “Ora, seu doutor, quase não o reconheci! Como está passando e o que faz por aqui?”

  4. Responde Jellinek: “Vou bem e muito melhor que na Terra! Meu desejo mais ardente seria ver-vos tão contentes quanto eu; assim deixaríeis de discutir! Não podeis continuar deste modo! Aprendei conosco como se deve ter paciência com as fraquezas do próximo, a fim de vos entenderdes melhor! Ao passo que se continuardes a vos criticar, insultar e ameaçar uns aos outros, o amor cristão não reinará entre vós como única felicidade de criaturas e espíritos.

  5. Tornai-vos, portanto, razoáveis e meigos, e deixai de discutir; do contrário, tereis ainda muito que sofrer. E, caso sejais socorridos, a ajuda corresponderá à amizade e amor recíprocos! Lembrai-vos sermos todos iguais perante Deus e que ninguém tem privilégios, a não ser na sua máxima humildade e amor para com Deus e seus irmãos! Compreendeste?”

  1. Diz ela: “Como não? Mas nossa língua é um desastre, pois não se cala por pouco! Não seria possível curar-se isto, aqui no Reino dos espíritos? Nossa índole não é má, mas a língua é de trapo!”

  2. Responde Jellinek: “Veremos o que se pode fazer. Em todo caso, convém esforçar-vos no domínio da língua, que tudo melho- rará. Pede ao Senhor, junto de mim, pois ele pode muito e propor- cionará verdadeira ajuda!”

  3. Diz ela: “Será que compreende o dialeto vienense? Tinha co- ragem de falar-lhe, porque é tão simpático!”

  4. Diz Jellinek: “Ele entende e fala todos os idiomas, mormen- te a linguagem do coração e, até mesmo, o que a pessoa pensa no seu íntimo! Experimenta e verás que tenho razão!”

  5. Responde a heroína: “Será?! Neste caso deve ser meio pa- rente de Nosso Senhor! Deve ser engraçada a palestra com alguém que, de antemão, sabe o que se quer dizer! Fá-lo-ei, contudo, e basta saber como se chama!”

  6. Acrescenta Jellinek: “Cara amiga, bates na porta errada; presumo ser ele um poderoso arcanjo de Deus, destinado a nos dou- trinar e encaminhar. Eis tudo que sei. Uma coisa é certa: É o único que pode socorrer, porquanto possui força para tanto!”

  7. Diz ela: “Ah, já sei! Quem sabe se não é um apóstolo, talvez Pedro ou Paulo! Que me dizes?”

  8. Responde Jellinek: “Querida, é bem possível! Dirige-te a ele e saberás quem é. Para mim, é algo mais que Pedro ou Paulo!”

CAPÍTULO 66

A heroína pede socorro para todos, junto ao Senhor, que lhe aconselha confissão plena

  1. A essa orientação de Jellinek, a heroína Me fita por certo tempo, em seguida vem ao Meu lado, porquanto Me havia afas- tado durante sua palestra com o amigo de Roberto, e diz: “Perdo- ai, senhor, se me torno importuna com um pedido! O Dr. Jellinek me mandou falar-vos, porque sois poderoso e capaz de ajudar, seja

no que for. Eu e esses vienenses somos muito necessitados. Fomos criados como animais e chegamos aqui bem enfermos; nossa tolice equivale ao estado moral! Sede, pois, bem gentil e ajudai-nos para agirmos melhor!”

  1. Digo Eu: “Poderia ajudar-vos, mormente a ti! É, porém, necessário confessares abertamente o que te falta. Se fores doente, convém esclareceres onde, como e por que contraíste tal moléstia. Acreditando em tua tolice, deves dizer-Me por que te achas ignoran- te. Faze um exame de consciência sobre todos os teus atos, externan- do-te a respeito, que o resto ficará por minha conta!”

  2. Responde ela: “Mas, que maçada! O senhor seria pior que um liguriano caso exigisse que tudo lhe contasse! Certa feita me confessei com padre dessa seita; não queira saber das perguntas que me fez! O pior pecador teria de enrubescer até os cabelos! Se fosse lhe contar o que fiz em vida, causar-lhe-ia arrepios! Além disto, na frente de tantas pessoas, não saberia que fazer de tanta vergonha! Que lhe parece, não lhe é possível verificar simplesmente o que pre- ciso, sem submeter-me a tal vexame? Faça o favor de experimentar!”

  3. Digo Eu: “Minha querida, como não te envergonhaste no momento de teres pecado? Costumavas te encontrar em sociedade e não tinhas o menor pejo quando, numa orgia, te despias e fazias ges- tos obscenos diante de homens que te olhavam embevecidos, para depois fazeres não sei o quê! Sei que numa ocasião te portaste de modo tão indecente, após teres bebido em demasia, que teus com- panheiros lascivos ficaram enojados! Conheço ainda outras pecinhas tuas e não compreendo a vergonha que aparentas, pois presumo não afetar tua dignidade se Me confessares a maneira pela qual chegaste a este estado de miséria e impudicícia!”

  4. Responde a heroína, perplexa: “Por esta não esperava! O se- nhor seria capaz de envergonhar alguém de maneira a não se poder reabilitar até o fim da vida! Se não fosse tão simpático, poderia abor- recer-me! Falando com sinceridade, só me envergonho do senhor! Com essa gente de Viena não me incomodo, e se me for permitido falar mais livremente, poderia citar algumas peripécias!”

  1. Digo Eu: “Pois não! Mas nada deves ocultar, compreendeste?”

  2. Responde ela, pigarreando: “Pois, em Nome de Deus, ou- ça-me, já que é preciso! Aos quatorze anos perdi minha virgindade, precisamente na segunda-feira de Pentecostes, e se não me engano, foi um tal Antônio, que trabalhava no Prater. Era um rapaz boni- tão, e como me havia persuadido de modo incisivo, disse para mim mesma: ‘Não podes continuar eternamente virgem e algum dia terás que fazer essa experiência!’ Como não fosse desagradável, repetimos a dose! No entanto, não teria me prejudicado se tivesse ficado grá- vida, pois o Antônio me havia prometido casamento. Julgando ser eu estéril, o malandro me abandonou e casou-se com outra! Deses- perada, segui o caminho iniciado e pensei: ‘De qualquer maneira irás para o inferno!’ E vivi a meu gosto! Nunca vi meu pai, e minha mãe — que Deus a tenha em boa paz — não foi melhor do que eu! Assim, fui muitas vezes contaminada, e outros por mim. Apareceu então um médico homeopata que me curou; em troca, tive que tra- balhar para ele, e é fácil compreender-se não ter o mesmo rezado ladainhas comigo!

  3. Quando irrompeu a revolução em Viena, o meu doutor to- mou parte; e eu, corajosa como sou, também ajudei e fui atingida por uma bala. Agora aqui me encontro como pobre alma, porque na Terra fui demasiado alegre! Contei-lhe tudo que fiz! Sabendo, pois, do que necessito, peço-lhe, em Nome de Jesus, que me ajude!”

  4. Digo Eu: “Bem, estou satisfeito com tua sinceridade e verei como ajudar-te. Além disto, digo-te, com a mesma honestidade, que somente teu bom coração e a educação péssima que tiveste poderão

  1. Responde a heroína: “Oh, quero-o muito! Pois salvou a adúltera e não condenou Madalena, muito embora fosse tão grande

pecadora! Tampouco apavorou-se com a samaritana! Por isto, creio que, se eu lhe pedisse, certamente não me torceria o pescoço!”

  1. Digo Eu: “Muito bem, querida! Falarei secretamente com Ele, pois está perto daqui. Talvez faça contigo o que fez a Madalena! Espera um pouco, com calma!”

CAPÍTULO 67

Importante observação do Senhor acerca da finalidade desta comunicação, aparentemente chocante

  1. Atenção! O motivo de ser transmitida essa cena tal qual ocor- re no Além — e não podendo ser de modo diverso em virtude de costumes, linguagem, paixões e os variados graus de educação de um povo — se baseia na prova evidente a ser facultada ao leitor e confes- sor da Nova Revelação de que o homem, após a morte, é o mesmo que foi em vida com referência a seu modo de falar e opinar, em seus hábitos, usos e inclinações, paixões e atitudes; isto é, enquanto não tiver alcançado o pleno renascimento do espírito.

  2. Por isso, denomina-se “espiritualidade natural” o primeiro estado após o desenlace, enquanto que o espírito renascido se encon- tra na “pura espiritualidade”.

  3. A diferença entre a vida terrena e a do Além consiste, em almas materialistas — mormente quando de índole simples — ape- nas na apresentação do local como indício de sua natureza íntima. Entende-se, porém, que tal aparição favorável ao renascimento es- piritual, negligenciado, somente é proporcionada àquelas pobres al- mas que em vida passaram verdadeira miséria material e espiritual. Almas dos aquinhoados com bens terrenos, cujo coração a isso se agarra qual pólipo no fundo do mar, encontram tudo que deixa- ram na Terra, podendo permanecer durante séculos em tal estado de atraso, e dele não serão afastados antes que venham a sentir desejo por algo mais elevado e perfeito.

  4. Sabeis, portanto, por que essa cena importante é revelada pa- lavra por palavra! Vamos prosseguir, pois nossa heroína já se inquieta

e aguarda, esperançosa, a orientação que lhe prometi de Jesus Cristo! Deveis, no entanto, considerar que tal cena muito útil ocorre pre- cisamente agora, no mundo espiritual, exercendo grande influência sobre acontecimentos da época atual! (Em novembro de 1848). De todas essas palestras de timbre trivial podeis, com alguma perspicá- cia, deduzir a situação e as ocorrências na Terra, destacando-se clara- mente na sequência dessa cena. Não vos escandalizeis! Tudo tem de vir conforme acontece!

CAPÍTULO 68

A heroína ansiosa e o orgulhoso circunspecto.

Admoestação do Senhor. Milagre ocorrido com Helena

  1. A heroína, impaciente, aproxima-se, acanhada, de Mim e in- daga se Eu já falara secretamente com Jesus a seu respeito.

  2. O circunspecto, tendo encontrado no grupo vários de sua índole, se aborrece com o fato dessa vienense miserável se tornar tão atrevida, molestando a Mim, o anfitrião! Por isso, dela se acerca com mais outros e diz: “Ó criatura repugnante, por quanto tempo pre- tendes importunar este respeitável senhor com teus latidos?! Acaso não tens educação!”

  3. Responde a heroína: “Ora, seu idiota! Isto é de sua conta? Vai andando, senão lhe digo seu nome em alemão genuíno! Ora veja! Não lhe agrada que gente como eu venha a falar com esse senhor! Acaso pensa ser melhor que nós, só porque usou o sabre, socialista e anarquista aposentado?! Sorte nossa não estar Cristo, o Senhor, em nosso meio; pois ficaria escandalizado com sua atitude presunçosa! Saia daqui com seus olhos de crocodilo e pés de bode, senão lhe acontece algo!”

  4. Vira-se o circunspecto para Mim e diz: “Caríssimo amigo, peço-lhe, pelo amor de Deus, proibir a essa criatura usar tão bai- xo calão contra homens de reputação e honra! Ela expõe os outros como se fossem sapateiros! É verdade não haver no mundo dos es- píritos diferença de classes; a diversidade de inteligência e educação,

porém, não pode terminar até que na Terra as potências humanas, desleixadas, tenham alcançado educação e humanização, pelas quais se podem tornar agradáveis e interessantes a uma sociedade boa! Peço-lhe, pois, informar tudo isso a essa vienense desbocada!”

  1. Retruco: “Meu caro amigo, lastimo não Me ser possível aten- dê-lo pelo simples motivo de ser um horror, diante de Deus, tudo aquilo que a boa sociedade julga e preza como elevado, ilustre e belo! Deus é sempre o Mesmo e nunca sente prazer em tais ho- mens honrados, que determinam o valor do próximo pelo número de ancestrais, sua posição no Governo ou na fortuna que possui, classificando de canalha quem não faça jus a tais prerrogativas. O Pai só considera aquele que no mundo é simples, sem importância e desprezado, de sorte que confesso — como Amigo mais íntimo de Deus — ser justamente a vienense, por vós desclassificada, milhões de vezes mais agradável que vós, amigos nobres! Todavia, fostes mui- to úteis a essa pobre criatura, pois, a partir de agora, atraí-la-ei para junto de Mim. Dar-lhe-ei uma educação tão elevada que imporá respeito aos próprios anjos! O futuro mostrará onde vós, homens respeitáveis, vos encontrais! Solicito, a bem de vossa salvação, não mais importunardes essa coitada, pois é Minha!” Virando-Me para a heroína, digo: “Então, querida Madalena, estás satisfeita?”

  2. Responde ela: “Jesus, credo! E como não? Prefiro-o dez mi- lhões de vezes a esses orgulhosos que consideram os pobres como animais! Aborreço-me quando nos tratam como párias. Que Nosso Senhor lhes perdoe, pois não sabem o que fazem!”

  3. Intervém o circunspecto: “Ótimo! Ouvi, meus camaradas! Se no mundo dos espíritos as coisas são tão desenxabidas, torna-se ele uma surpresa desagradável como consequência da vida amarga que passamos! Lá, o homem educado ainda podia se defender contra ata- ques dessa ralé através de sua posição, função ministerial e abastan- ça; aqui, crescem mais alto do que os outros e, finalmente, deve-se considerar especial graça ter tal criatura nos fitado! Para completar essa insipidez social é preciso que esse homem, de aparência honra- da, se interesse por aquele estrepe, levando-a em linha reta ao Céu!

Alega ser amigo íntimo de Deus! A julgar pela atração manifesta- da pela vienense ordinária, deve ser tal Divindade um verdadeiro superlativo de imoralidade! Essa prostituta exala impudicícia e ele pretende educá-la para joia desta casa! Ah, Ah, Ah!”

  1. Diz a heroína para Mim: “Ouça só, como pragueja! Conviria dizer-lhe as verdades!”

  2. Respondo Eu: “Não te incomodes! O futuro demonstrará as vantagens de tais insultos! A fim de que seu orgulho encontre uma pedra de escândalo em nós, deves, como Minha Amada, tratar-Me por tu e procura te desvencilhar do dialeto! Faze uma tentativa, se és capaz!”

  3. A heroína sente estranha sensação de bem-estar, que produz efeito mui favorável em seu físico. Admirada e feliz com tal meta- morfose, pois não sente mais dor, alegremente ela Me diz: “Ó ele- vado amigo celeste, que felicidade sinto ao teu lado! Minha rudeza se desprendeu de mim, qual escama! Meu modo de pensar e falar se transformou qual borboleta surgida de uma lagarta! As dores desa- pareceram qual neve ao Sol! Como me sinto feliz! E a quem devo isto? Unicamente a ti, amigo abençoado pelo Altíssimo!

  4. Já que conferiste tamanha graça a uma pobre pecadora, que jamais poderá retribuir, dize-me como deverei agir a fim de manifes- tar minha eterna gratidão!”

  5. Respondo: “Minha queridíssima Helena — eis teu nome celeste — estamos quites! Agradas-Me muito e tens um coração que Me ama, como Eu também te quero! Que mais precisamos? Esten- de-Me tua mão como prenda de teu afeto e dá-Me um beijo fervo- roso na Testa! O resto deixa por Minha conta!”

  6. A esse convite, Helena se incendeia de amor, entrega-Me sua mão e beija-Me com um carinho indescritível! Essa cena comove Roberto, Messenhauser e Becher, mormente Jellinek, até às lágri- mas. Ela, entretanto, tem expressão transfigurada e todo seu físico se torna esbelto e nobre, qual criatura celeste, com exceção de sua vestimenta, que é todavia limpa e modesta. Prontamente Roberto indaga se deve apanhar nova roupa para essa flor deslumbrante e Eu respondo: “Daqui a pouco, quando Eu pedir!”

CAPÍTULO 69

Discussões em torno da transfiguração de Helena. O sonho e a vida real. Comparação feita por Olavo

    1. A transformação de Helena, porém, é também observada pelo circunspecto e seu grupo. Um dentre eles lhe diz: “Amigo, nada percebes? Aquela rameira de Viena transfigurou-se de tal forma a extasiar o observador! Seria o amigo do Blum uma espécie de mago do Egito?!”

    2. Retruca o circunspecto: “Realmente, tens razão! No entanto, é fato conhecido que a pessoa apaixonada se transforma! Lembro-me ter visto na Terra criaturas que, em suas ocupações caseiras, eram mesmo assustadoras; mas, quando aos domingos iam passear com o namorado, tornavam-se irreconhecíveis. Eu mesmo tive, certa feita, uma cozinheira que em dias úteis era tão suja que causava nojo! Mal acabava o serviço, em dia de saída, transformava-se em beleza! Com essa criatura certamente se dá o mesmo; o amor produz, tanto aqui como na Terra, tal embelezamento surpreendente! Tira-lhe o amor, e ela voltará a ser o que era!”

    3. Opõe o outro: “Até certo ponto tens razão; devemos, po- rém, considerar ter-se ela tornado bonita demais e, além disto, fala o idioma perfeito, sem sombra de dialeto! Deve haver uma influência mais alta e incompreensível para nós! Observa apenas a tez rosada, a linha delicada de braços e nuca, o cabelo louro dourado, face oval e o pezinho aparecendo por debaixo do vestido! Concordarás não ser beleza comum!”

    4. O circunspecto queda perplexo, porquanto vê que o outro tem razão. Um terceiro se levanta e diz: “Caros amigos, estais todos errados! Tal transformação tem sua base natural, pois todos nós esta- mos no mundo dos espíritos. Nossa vida é um jogo de nossa fantasia produzindo certas cenas que, aos sentidos da alma, se apresentam como realidades objetivas. Compreendestes?”

    5. Retruca o primeiro: “Amigo, se assim fosse, tua explicação também seria sonho sem fundamento! Acaso pretendes afirmar ser

teu aparte uma exceção? Quantas vezes sonhei em vida! Todavia, existe grande diferença entre sonho e realidade! Lá estava sempre passivo; aqui, estou ativo e consciente. Nunca tive recordação de um sonho, a não ser algo confuso e imperfeito. Aqui a lembrança é tão nítida que passam diante de meus olhos os fatos mais corriqueiros de minha vida! Seria isto sonho?!

    1. Naquele estado jamais senti dor, fome ou sede; e as pessoas que me apareciam eram sempre de forma imprecisa e se revezavam de modo tão rápido a não deixarem vestígios da anterior aparição; portanto, não havia sequência lógica. Neste ambiente tudo ocorre numa trilha determinada, contudo milagrosa, levando o observador mais calmo a extasiar-se!

    2. Que lógica profunda revela qualquer palavra proferida pelo Blum e seus amigos! E quão arquitetonicamente perfeita é esta sala! Tudo tem um cunho especial! Isto não é sonho nem fantasia, mas uma realidade sublime e abençoada! Faremos bem se conside- rarmos mais profundamente o que nos rodeia! Assim, tenho a im- pressão de ser a transformação da vienense muito mais importante do que parece! Que me dizeis?”

    3. Diz o circunspecto: “Concordo plenamente! Não compreen- do como é possível a pessoa aqui enfatuar-se por algo e até me abor- reço de minha atitude desconcertante junto daquela moça trans- formada. Quando procurei proteção e justificativa com seu amigo e amado, dele recebi o que não esperava! Estava magoado e ofendi- do até a alma, coisa que um homem de honra não pode aceitar de modo indiferente! Considero um enigma a possibilidade de a pessoa se ofender e enraivecer no Reino dos espíritos! Podes esclarecer-me a respeito?”

    4. Responde o outro, chamado Olavo: “Meu amigo, esse caso é muito simples e evidente! Que vem a ser uma ofensa ou insulto? Nada mais que uma tendência psíquica pela qual a alma se considera a única privilegiada e todo o resto sem valor algum! Quando essa ideia predileta é bruscamente contrariada, a alma, procurando equi- librar-se em sua posição, sente uma dor que a aflige e comprime,

porquanto observa que outros não a consideram da mesma forma que ela própria! Tal estado psíquico é ilógico e tem de tomar outra direção, caso deva surgir uma verdadeira felicidade para a alma!

    1. No mundo há pessoas que se julgam melhores que outras, empregando os mais variados meios para fazer valer sua presunção. Aqui, porém, onde não existem fortuna, nobreza, exército e canhões, tal fraqueza psíquica não se justifica, pois é injusto uma criatura querer se elevar acima de outra e, além disto, essa ânsia é uma tolice!

    2. Se a lógica e a experiência me dizem ser mais feliz aquele que faz as menores exigências ao próximo, é contrassenso procurar a felicidade da alma onde ela jamais se poderá encontrar! Dize-me o que é, a teu ver, melhor e mais útil: o zelo pela conquista de inú- meras necessidades que vicejam na alma, qual erva daninha, ou a redução delas ao mínimo?”

    3. Responde o libidinoso: “Evidentemente, a segunda condi- ção de vida. Quanto menos se necessita para ser feliz, tanto mais fácil isto se torna.”

    4. Diz Olavo: “Certo. Assim é e será para sempre. De que adianta a um pretendente propor casamento a uma jovem cujos pais se têm em conceito demasiado elevado? Dificilmente será aceito. Mesmo conseguindo, terá chegado ao fim de seu sonho de felici- dade. Ao passo que cortejando a filha de pessoas que se julguem inferiores a ele, com facilidade será feliz. Façamos o mesmo, e não haverá vienense desbocada que nos perturbe.”

CAPÍTULO 70

Vida conjugal do libidinoso. O prestimoso general

  1. Diz o libidinoso: “Falaste bem e tal qual a vida nos ensina. Fui na Terra apenas fidalgo de nascença. Meus pais nunca fizeram parte dos ricos e só me podiam dar a educação por eles mesmos des- frutada. Quis o destino que eu ingressasse na Escola Militar, onde tive a felicidade de cativar a simpatia do coronel. Fez-me entrar na Escola do Regimento, na qual em breve me tornei um dos mais

aptos, e a consequência foi minha carreira militar. Decorridos sete anos, tornei-me oficial. Era jovem, alegre e ágil, e podes imaginar minhas inúmeras conquistas com o sexo oposto.

  1. Por infelicidade conheci, durante um baile, uma das filhas de um aristocrata: ele, imensamente rico, e ela, baronesa de nascença. Agradou-me a moça, e eu, conhecido como o homem mais vistoso do Regimento, percebi seu grande entusiasmo por mim. Imagina: o pobre criador de suínos ao lado do barão, pois eu era pobre qual camundongo de igreja, e apenas pelo físico, não pelo mérito, desfru- tava aquele cargo de oficial. O verdadeiro amor, porém, não indaga de títulos e dinheiro.

  2. Loucamente apaixonados, nosso único desejo se concentrava no casamento. Mas como? De que modo conseguir o consentimen- to do pai aristocrata, que sempre se vangloriava dos vinte e quatro ascendentes? Como induzi-lo ao depósito da caução prevista? Fiz tudo nesse sentido e o resultado foi a proibição, com gentileza, de frequentar a casa. Que fazer? Tal pergunta nos perseguia dia e noite.

  3. O coronel, que me estimava qual filho, aborreceu-se e acon- selhou-me a pedir exoneração do cargo de oficial; em seguida, devia tratar do passaporte, viajar para a Inglaterra e comprar um importan- te posto militar, para o que ele me adiantaria o dinheiro necessário. Compreendi seu intento e obedeci. Dentro de meio ano tornei-me capitão de um navio de guerra, incumbido de zarpar para a índia. Não me faltava bravura e em breve conquistei os conhecimentos náuticos, inclusive a arte de me tornar herói.

  4. Não levou tempo e tive mil oportunidades para me destacar como general: todas as operações foram por mim brilhantemente executadas, proporcionando-me condecorações valiosas. Decorridos quatro anos, voltei para a Inglaterra, imensamente rico e com tí- tulo de nobre. Procurei aposentar-me, sem ter sido atendido; em compensação, foi-me concedida licença de seis meses, que aproveitei para tratar de meu casamento.

  5. Voltando à pátria, encontrei pais e irmãos com saúde. Após tê-los abraçado, fui à cidade, onde meu velho amigo se encontrava

como brigadeiro. Que felicidade poder estreitá-lo em meus braços. Minha preocupação girava em torno da dívida, mas ele não quis aceitar o pagamento, pois dissera, no momento em que colocava a importância na mesa: ‘Meu amigo, sou solteirão e considero-o o herdeiro de minha fortuna. Aceite essa bagatela como pequeno adiantamento e não me fale mais no assunto.’

  1. Fiquei comovido até as lágrimas. A seguir, perguntou-me se me havia correspondido com a baronesa. Contei, então, ter escrito três vezes, sem obter resposta, razão pela qual não insisti. Minha visita à pátria tinha a finalidade de me apresentar como futuro gen- ro do barão.

  2. Satisfeito com minha firmeza de caráter, o brigadeiro con- tou-me que o barão manifestava ainda maior orgulho com a filha, não obstante ser ela de maioridade. Grande fortuna não o impres- sionaria, muito menos o mérito de um plebeu, mas somente a alta nobreza. Por tal motivo declinou do título de conde, conferido pelo Imperador, porque teria assim se tornado o mais jovem conde, en- quanto, como barão, era o mais antigo.

  3. Esse relato não podia ser do meu agrado, que tanto havia arriscado a fim de conquistar a benevolência daquela família. Tor- nara-me nobre; mas onde estavam os indispensáveis ascendentes, porquanto a linha de nobreza se iniciava comigo? Contudo, o bri- gadeiro opinava dever eu visitar o barão e relatar-lhe minhas aven- turas na Índia, conseguindo, talvez, conquistar o coração do velho extravagante.

  4. Segui o conselho de meu amigo, que me acompanhou. Ten- do sido recebido com deferência, julguei ser de bom augúrio, mas o futuro me convenceu do contrário. O melhor de tudo era que Ema me dedicava o mesmo afeto. Recebera minhas cartas, sem que lhe fosse possível respondê-las. Usei de todos os meios para convencer seu pai de nosso amor, mas tudo em vão. Depois de três meses, en- contrava-me no mesmo ponto da primeira visita.

  5. Indeciso, pedi conselho ao brigadeiro. Após ter refletido, disse-me: ‘De modo algum pretendo dar-lhe má orientação; queren-

do alcançar o seu objetivo — que é o que também desejo — preciso é usar de estratagema. A moça já conta seus vinte e cinco anos; é por- tanto de maioridade e pode dispor de seu livre arbítrio. Se ela quiser desposá-lo sem o consentimento paterno, convém não fazer rodeios. Certamente será deserdada e acompanhada da maldição aristocrata, restando saber se ela suportará tal golpe. Tendo ela mesma mencio- nado a fuga, posso concordar. Caso fracasse, em virtude da astúcia do velho, que poderia convencer os padres a não efetuarem a ceri- mônia, é melhor fugir e casar na Inglaterra. Esse golpe não se enqua- dra na lei, todavia é o único possível para a realização de seu sonho. Certamente o senhor será perseguido. Deixe por minha conta, pois que saberei orientá-los. Uma vez na fragata, adeus barão.’

  1. Esse conselho agradou-me sobremaneira e escolhi a segun- da modalidade, quinze dias mais tarde, por se terem apresentado dificuldades insuperáveis na execução da primeira. Fui perseguido, mas meu amigo soube manobrar a fuga. Mal embarcamos, consegui que o capelão do barco efetuasse a cerimônia, tendo ocorrido tudo bem em relação ao matrimônio.”

CAPÍTULO 71

O horizonte conjugal do libidinoso se anuvia. A verdadeira índole de Ema

  1. Prossegue o libidinoso: “Com a realização do casamento pre- sumia encontrar-me no paraíso; no entanto, em breve surgiram as nuvens conjugais. Minha esposa começou a se mortificar por ter abandonado seu genitor. Arrependeu-se, dia e noite, do passo dado, aumentando tanto sua saudade, que temi uma crise em sua saúde. Fiz tudo para lhe proporcionar outras noções da vida, porém sem êxito. Assim, após um ano, resolvi exonerar-me do serviço e voltar a Viena, recolhendo-me à vida privada. Quando lá chegamos, fomos à casa do meu sogro para pedir-lhe perdão. Ele, porém, havia mor- rido, talvez de desgosto.

  1. Esse choque foi demais para Ema. Seus irmãos orgulhosos lhe fizeram as mais acerbas reprimendas, acusando-a de criminosa. Ela adoeceu, obrigando-me a gastar uma fortuna. Após recuperar a saúde, fazia-me às vezes exigências que só podiam ser satisfeitas com sacrifício, não recorrendo eu ao seu auxílio monetário. Quis o destino que seus irmãos falecessem de tifo, tornando-se ela herdeira universal de grande fortuna. Era de se supor que tal situação a fizesse mais alegre, porquanto anteriormente andava triste porque, como filha do mais rico barão, tornara-se pobre por ser minha esposa, fato que não a impedia de fazer livre uso de meus haveres quando queria aparecer como baronesa.

  2. Somente após a herança conheci a sua verdadeira índole. Sua tristeza se transformou numa insaciável luxúria. Quando lhe fiz ver, com delicadeza, ser tal vida fora da ordem e que, finalmente, tinha sido a causadora da minha infelicidade, porquanto concordara com a fuga e que eu poderia ser almirante se não tivesse abandonado mi- nha carreira de oficial, ela explodiu! Foi ao quarto e trazendo papéis de valor de duzentos mil florins, disse-me: ‘Recebe, meu marido, criador de suínos, aquilo que porventura te custei. Deixa esta minha casa e leva em tua companhia esses trambolhos de filhos. Não posso ocupar-me com criaturas geradas por um camponês. Passa bem.’

  3. Com essas palavras bateu a porta e eu esperei com minhas duas filhas durante uma hora, certo de que ela voltaria às boas. Seu camareiro, porém, informou-me ser desejo da baronesa que eu deixasse imediatamente a casa, do contrário ela se veria obrigada a fazê-lo. Desesperado, chamei o meu servente e mandei procurar uma pensão apropriada, conforme sua vontade. Enquanto arrumava minhas malas apareceu meu amigo brigadeiro. Informado de mi- nha situação, não sabia se deveria rir ou chorar. A seguir, conso- lando-me, conseguiu convencer-me ter tido sorte em libertar-me, de modo tão decente, de uma esposa por demais incompreensível. Conviria, porém, guardar os valores por ela oferecidos, em benefício de minhas filhas.

  1. Enquanto palestrávamos, apareceu, repentinamente, o cama- reiro da ilustre, transmitindo-me o recado de não aceitar a devolu- ção da importância e, caso fosse pequena, estaria pronta a dar-me ainda mais. Revoltado, não fui capaz de responder. O brigadeiro dis- se julgar muito maior o valor da honra de um oficial; por isto devia a baronesa recompensar devidamente o nome ultrajado de homem de bem. Além disto, não deveria alimentar a esperança de ser mais tarde aceita pelo seu filho, porquanto me declarava herdeiro único de sua fortuna.

  2. Mal o camareiro se retirara, a baronesa se atirou junto ao brigadeiro, pedindo-nos que lhe perdoássemos, balbuciando, qual desvairada, que fora vítima de precipitação. O brigadeiro, deixando-

-a terminar, disse calmamente: ‘Tal pai, tal filha! A senhora faz jus a seu progenitor. Eu e meu filho somos condes, mas nunca sonhamos em nos orgulhar como faz sua família com o simples título de barão e baronesa. Como não tenho filhos, consegui o consentimento do Imperador para reconhecer esse meu amigo como filho adotivo e, caso eu morra, ele será conde. Deste modo tornar-se-á muito rico e dispensará suafortuna. Seu descalabro foi, porém, uma ofensa à minha honra. Exijo, assim, meio milhão de florins como indeniza- ção.’ Interveio a baronesa: ‘Caríssimo sogro, dou-lhe toda a minha fortuna na esperança de seu perdão e na permissão de poder ficar em companhia de meu querido esposo.’

  1. Protestou o brigadeiro: ‘Sabendo ser esse um ‘tratador de suínos’ — como teve o atrevimento de classificar meu filho — a senhora pretende amá-lo. Isto é impossível. Tenha a bondade de se recolher aos seus aposentos, pois tenho assuntos importantes para revelar a ele.’ De modo ainda mais incisivo Ema pediu desculpas, afirmando preferir viver toda a vida ao lado do camponês do que abandonar-me. Meu amigo respondeu: ‘Muito bem, veremos como passará em tal prova. Fiz apenas aquela assertiva para observar sua reação e convencê-la da miséria de seu orgulho aristocrático. Quan- do lhe afirmei ser seu marido um conde, a senhora mudou de tática.

Que fará se eu revogar minhas palavras, continuando seu esposo apenas ‘tratador de suínos’?’

  1. Ao ouvir minhas palavras, Ema saltou, exclamando: ‘O quê? É deste modo que se trata a filha do rico barão? Meu esposo não é, portanto, conde, mas simplesmente campônio e eu baronesa de primeira! Ele será indenizado condignamente como tratador de su- ínos.’ Respondeu o general: ‘Não é preciso, caríssima. A prova não surtiu efeito em seu benefício. A senhora é o que é; este meu filho também é o que afirmei anteriormente.’

  2. A essas palavras Ema, virando-se, diz: ‘Alteza, é possível não ter me saído bem, ao menos em sua opinião. Observo que essa cena, por mim engendrada, representa somente um estratagema para sa- ber se meu esposo realmente me ama. Confesso sinceramente ter ele manifestado, há ano e meio, tal indiferença que me tornou infeliz. Fiz tudo para lhe agradar sem ser, porém, correspondida. Refletindo demoradamente, verifiquei sua injustiça, uma vez que eu havia dei- xado a casa paterna, levada pelo grande amor que lhe dedicava. Sua indiferença deveria ter motivo e eu deveria descobri-lo.

  3. Dispondo de grande fortuna, comecei a frequentar a socie- dade, dar bailes, festas e deixando-me cortejar. Enganei-me, julgan- do assim despertar seu ciúme, pois parecia gostar daquela situação. Suportei essa humilhação quase dois anos, resolvendo fazer tal ence- nação para verificar se realmente ainda gosta de mim.

  4. Até esta tentativa foi infrutífera. Nada mais farei nesse sen- tido. Falo a verdade, Alteza. Enquanto não era rica, ele me amava de todo coração. Nem bem me tornei herdeira de fortuna considerável, supondo assim ser esse fato motivo de estreitar nossa união, pois me daria oportunidade para premiar seus grandes sacrifícios, deu-se pre- cisamente o contrário. Desprezava meus bens, alegando terem sido uma maldição para nosso lar. Considerai minha situação para poder julgar, com justiça, se realmente mereço a atitude de meu esposo’.”

CAPÍTULO 72

Exigências de Ema. Tentativa de conciliação

  1. Prossegue o libidinoso: “Com essa dissertação ficamos admi- rados e me cabia apenas exclamar: Meaculpa,meamaximaculpa!E meu amigo disse para Ema: ‘Se as coisas andam nesse pé, vejo-me obrigado a lhe pedir desculpas e fazer um sermão ao meu filho.’ Respondeu ela: ‘Alteza, exijo apenas o amor de meu esposo, e tudo lhe será perdoado.’

  2. Interrompi: ‘Meu caro progenitor, meu afeto para com ela nunca foi alterado, desde nosso conhecimento. Se ela vê espectros onde não existem, não sou culpado. Não demonstrei ciúmes ao vê-

-la cortejada porque não quis ser indelicado. Só eu sei o que sofri. Quanto à sua fortuna, confesso não lhe ter dado atenção, sabendo ser uma vida luxuriosa um horror para Deus. Se Ema tivesse distri- buído entre os pobres as importâncias vultosas que gastou em festas, teria causado dupla felicidade. Ela só pensava em aborrecer-me, com o que não posso concordar.’

  1. Desarmada com minhas palavras, ela não sabia o que respon- der. Irritada, foi ao aposento contíguo e apanhou um enorme pacote de papéis de valor. Ao lhe perguntar sua intenção, porquanto julgava ter feito as pazes com ela, sorriu maldosamente e disse: ‘Antes disso, tenho que indenizar-te a ofensa praticada.’ Respondi: ‘Querida, em virtude de meu grande amor, não posso guardar rancor para conti- go. Além do mais, não foi por mim estipulada a indenização, e sim da parte de meu pai adotivo que, penso, te perdoará. Guarda esses papéis e sê a mesma que anos atrás.’

  2. Perplexa, Ema não sabia o que responder. Após alguns ins- tantes, prosseguiu: ‘Se me amas como afirmas, tem a bondade de guardar esses valores, pois sabes que não tenho prática na sua admi- nistração.’ Ao que respondi: ‘Com o maior prazer. Em compensa- ção, estende-me tua mão como prova de tua amizade, que poderá ser selada por um beijo.’ Disse ela: ‘Para isso ainda teremos tempo. Antes devo chamar-te a atenção para um pequeno lapso. Por diver-

sas vezes te falei para não me chamares de Ema e, sim Kunigunde. Por que não usar esse nome da velha nobreza, adotado também por minha mãe e avó? Se me amares realmente, chama-me pelo nome que mereço.’

  1. A essa exigência tola, eu e meu pai adotivo desatamos a rir, em virtude de uma peça de teatro onde uma tal Kunigunde é ridicu- larizada com seu amado. Por isso, disse-lhe: ‘Querida, se não o fiz foi apenas por respeito à tua pessoa. Cada vez que pronunciava aquele nome lembrava-me da canção desrespeitosa da tal peça teatral. Fa- lei-te, na ocasião, a esse respeito e até concordaste comigo. Se fizeres questão, voltarei a te chamar de Kunigunde. Penso não haver outro motivo que nos impeça de fazer as pazes.’

  2. Pisando forte, ela respondeu em tom estridente: ‘Não que- ro!’, acompanhado por um mar de lágrimas. Em seguida fez uma pausa e cheia de revolta simulou uma vertigem, soltando, por fim, uma legião de nomes contra a minha pessoa. Terminando essa série, ainda gritou: ‘Estamos quites! Nada mais quero saber e ouvir. Estás pago e nada tens a reclamar. É o que me faltava, ser por ti ridicula- rizada. Afasta-te!’

  3. O general virou-se para mim, dizendo: ‘Deixa-a, meu filho. É doida completa. Talvez o tempo a corrija. Guarda os papéis, pois poderá vir época em que proporcionarão bons serviços a ela mesma, pela maneira que vive e esbanja sua fortuna. Eis que vem teu empre- gado a quem mandaste procurar uma pensão para ti e tuas filhas’.”

CAPÍTULO 73

Crise de nervos e transformação de Ema

1. Prossegue o libinoso: “Meu servo comunicou-me, então, ter encontrado uma ótima casa com todas as dependências necessárias, por um preço razoável. Precavido diante da situação do casal, ele não mencionou o bairro, pois havia passado por fase semelhante àquela com sua digníssima contraparte. Nesse relato ele se excede, redu- zindo a baronesa ao mesmo nível de sua classe. Ema, fortemente

irritada, deu meia volta e lhe vibrou uma bofetada. Surgiu uma cena que, de modo algum, fazia jus à alta linha de minha esposa. Desta maneira, julguei por bem mandar embora o empregado, pois sen- tia meu controle extinguir-se. Nem bem terminara de dar minhas ordens, dizendo também querer deixar a casa, ela se coloca à minha frente, gritando: ‘Acaso mereço ser abandonada? De fato! Além de me reduzires diante da criadagem? Esperava que não levasses a sério meu mau humor. Teu coração tornou-se pedra. Nem percebes meu estado doentio. Por que me deixas? Que te fiz eu? Minha doença fez com que te maltratasse e reconheço ter sido minha atitude condená- vel, porque vejo tua intenção de me deixar. Querido, faze o que qui- seres, mas não me abandones.’ Abraçando-me com efusão, ela chora copiosamente. A criadagem, arregalando os olhos de espanto, me pergunta qual a atitude a tomar. Para encurtar: Meu amigo resolveu passar uns tempos conosco, os servos continuaram nos seus afazeres e Ema, há pouco um demônio, tornara-se um anjo.”

CAPÍTULO 74

Surpresas para o libidinoso. Bom conselho de Olavo

  1. Manifesta-se Olavo, dizendo: “Caro amigo, teu relato conju- gal está se estendendo sobremaneira. Deixemos a continuação, por- que o conheço tanto quanto tu. É preciso saberes ser eu o mesmo general e amigo que na Terra te protegeu. Aquele que há pouco ain- da tomava as aparições ocorridas com a heroína das barricadas por mera fantasia, é precisamente o barão, cuja filha desposaste contra a vontade dele. Se quiseres também conhecer tua própria esposa, com a qual brigaste em vida perto de vinte anos, observa aquela criatura quase desnuda e macérrima que por trás do barão está te olhando, e tens com isto, diante de ti, o conjunto de tua última encarnação. Agrada-te a solução de teu caso?”

  2. Responde o libidinoso: “Quando poderia ter imaginado tal coisa! Tenho a impressão de que minha vida conjugal vai iniciar o segundo ato de seu drama. Que me dizes?”

  1. Retruca Olavo: “De minha parte creio que devemos nos dei- xar guiar apenas por aquele homem, caso queiramos aguardar algu- ma melhora. Durante o teu relato fiz-me de observador silencioso e nada se passou despercebido aos meus olhos. Imagina que Hele- na recebeu vestimenta nova e se assemelha a um verdadeiro anjo; e quanto mais afeto manifesta àquele personagem singular, tanto mais linda e sábia se torna. Isto não se dá apenas com ela. Vejo que muitos, ao se aproximarem dele, mudam de aspecto e de índole. Eis milagres verdadeiros na acepção da palavra.

  2. Lá no fundo, num palco espaçoso, vês umas vinte bailarinas de aspecto deslumbrante. Junto à mesa, provida de pão e vinho, se encontra o conhecido democrata Blum, em companhia de Messe- nhauser, Dr. Becher e o redator Jellinek. Expressam uma serenidade quase celeste e suas palavras são plenas de sabedoria.

  3. Aquele homem simples, que no momento se entretém com Helena e parece falar apenas de amor, é o causador disto tudo. Eles lhe perguntam algo e ele tudo ordena, continuando tão despreten- sioso e amável que faz com que eu o ame como ao melhor ami- go. Tenho mesmo vontade de abraçá-lo e rodeá-lo constantemen- te. Não sentes o mesmo? E tu, amigo barão, junto com tua filha Kunigunde?”

  4. Responde o libidinoso: “Confesso ter a mesma sensação. Quanto aos sentimentos de meu sogro e Ema, não posso responder. Ela talvez o faça, porque percebi ultimamente alguns vestígios de inclinação religiosa. Sobre ele só posso dizer serem suas noções de nobreza um impedimento, caso as tenha trazido para aqui.”

  5. Reage o barão: “Por que não procura varrer a soleira de sua porta? Se quisesse discutir com o senhor, eu levaria vantagem. Per- doei-lhe, porém, o que me fez em vida, apesar de ter raptado minha filha, que representava tudo para mim. Caso tenha algum proveito nesta vida quimérica, transforme em amizade o mal que me fez na Terra. Não convém apontar meus ascendentes de alta nobreza, mas ajudar-nos, a mim e a Ema. Esse meu amigo poderá dizer se falei com justiça.”

  1. Responde Olavo: “Precisamente, e tenho a convicção de que o seu genro concordará, pois sempre manifestou boa vontade. O que vos falta é a sua aplicação. Espero em Deus que ao menos um dentre nós seja socorrido, podendo assim ajudar aos amigos.” Diz o barão: “Agradeço sinceramente. Há vinte anos — que me parecem dois mil — sofro no maior abandono. Nem uma ajuda, conforto ou luz. O sr. é o primeiro a me auxiliar na extinção desse pesadelo. Peço-lhe terminar sua obra, e meu coração ser-lhe-á grato para sempre.”

  2. Responde Olavo: “Caros amigos, também a sra., cara Ema, segui-me para junto daquele homem extraordinário, que no mo- mento palestra com Jellinek. Prosternar-me-ei diante dele para que nos ajude. Convém usar de muita sinceridade, pois além de bondo- so, é tão sábio que impossibilita possamos ocultar qualquer pensa- mento. Vamos.”

  3. Intervém o libidinoso: “Que tal servires como intermedi- ário? Tenho realmente um especial temor dele.” A tal pedido, jun- tam-se o barão e sua filha. O general, então, diz: “Está bem, irei só. Enquanto isto meditai, pois pressinto estar em breve de volta.”

CAPÍTULO 75

Olavo intercede em favor dos amigos. Promessa do Senhor. O teimoso libidinoso

  1. Com tais palavras, Olavo se dirige a Mim, curvando-se res- peitoso: “Amigo sábio e amável! De todos os acontecimentos aqui ocorridos, percebi seres a causa; parece-me depender de ti o fato de alguém ser feliz nesta casa. Quem puder te conquistar terá ganho tudo. Baseando-me nessas observações e confiando na tua bondade, tomei a liberdade, apesar de indigno, de pedir-te com o coração facultares tua graça, amor e amizade àqueles três. Encontram-se no mundo dos espíritos — assim como eu — ainda presos à matéria. Estamos, porém, animados da melhor boa vontade e tudo faremos para nos tornarmos mais dignos de tua atenção.”

  1. Digo Eu: “Podes trazê-los junto a Mim; pois onde estaria um pai capaz de fechar ouvidos e coração aos filhos que lhe pedem socorro? Isto não faria na Terra um pai severo; muito menos Eu, que encerro a Plenitude do Amor do Pai Celeste. Por isso, vai buscá-los.”

  2. Diz Olavo, com grande alegria: “Ó amigo, sabia não serem infrutíferos meus passos junto a ti. Agradeço-te desde já, pois ve- jo-os chorarem de satisfação.” Interrompendo, digo Eu: “Amigo e irmão, esperava algum pedido em teu próprio benefício. Não desejas ser um pouco mais feliz?”

  3. Retruca Olavo: “Amigo celeste, já me sinto feliz ao observar a ventura alheia. Sempre fui assim; por isso não consegui felicidade para mim, pois tudo que tinha e fazia era em benefício do próximo. Não interpretes minha atitude como se não necessitasse de ajuda. Espero para mais tarde, quando os outros estiverem satisfeitos.”

  4. Digo Eu: “Não perguntei por mera casualidade, pois sabia de teu coração e de tua harmonia Comigo. Desejava apenas preparar-te para algo que no momento não serias capaz de suportar. Eu Mesmo, porém, capacitar-te-ei. Vai e traze os que prezas, deixando que ou- tros mais sejam tocados pelo teu sentimento, pois te asseguro serem todos por Mim aceitos.”

  5. Após curvar-se diante de Mim, Olavo volta ao seu grupo e o barão indaga como havia sido recebido. Responde ele: “Da melhor maneira possível; não só vós, mas todos que se juntarem ao nosso grupo serão aceitos. Vamos saber se outros querem aderir a nós.”

  6. Diz o barão: “Caro amigo, junto de Ema estão minhas filhas mais velhas com seus maridos e alguns domésticos, talvez também sejam admitidos.” Responde Olavo: “Que venham, pois tenho sua promessa divina. Vamos ver ainda outros.” Aduz o libidinoso: “Sei de um meio eficaz: faremos um apelo geral e quem quiser poderá vir, pois não devemos obrigar ninguém.”

  7. Diz Olavo: “Ninguém falou de obrigação; mas é preciso ex- plicar-lhes por que desejamos sua adesão, que não poderá ser clas- sificada de imposição.” Opõe o libidinoso: “Depende de cada caso.

Uma imposição calculada e firme é tanto uma obrigação quanto qualquer outro poder, e a vontade da pessoa deixa de ser livre.”

  1. Diz Olavo: “O sr. está se excedendo, pois se tudo fosse obri- gação, aquilo que leva as criaturas a outras ideias, noções e determi- nações deveria ser banido. Se a imposição derivante do ensino pelo qual ele alcança a liberdade do espírito só pode ser útil ao homem, não vejo por que um esclarecimento possa trazer prejuízo ao livre arbítrio no Reino espiritual. Não se preocupe. Caso esteja errado, responderei pelo erro perante Àquele que me deu Sua Autorização Divina. Fica calmo, enquanto estender minha rede entre esses pei- xes. Seja qual for o resultado, tudo sairá bem.”

  2. Assim falando, Olavo se dirige à multidão e lhe faz um dis- curso bem fundamentado. Vinte pessoas aderem a ele, ao passo que os outros resmungam não ser necessário ele se fazer de importante, pois sozinhos também achariam o caminho. Ouvindo tal observa- ção, Olavo volta com o produto de sua pesca ao grupo anterior e diz cheio de alegria: “Vê o bom resultado de meu esforço? Vamos imediatamente para junto Dele, Único que poderá nos ajudar, pois deu-me Sua Palavra Divina.”

  3. Intervém o libidinoso: “Não compreendo por que sempre fala de sua ‘palavra divina’. Como pode um espírito humano, em- bora perfeito, proferir tal palavra? Acaso é algum ser divino?” Res- ponde Olavo: “Sim, digo com sinceridade: Ele ou ninguém! Suas Palavras infinitamente sábias calaram fundo em minha alma e ela me assegura ser ‘Ele’ o Único! Meu coração indaga se compreendo Seu Poder, e meu espírito me diz: Sim, amas Aquele que o merece! Agora, vamos.”

  4. Interrompe o libidinoso: “Peço perdão por não acompa- nhá-lo. Julgar ser um simples homem o Deus Único? É forte demais. Nada tenho a obstar contra sua sabedoria, poder e amabilidade, pois a heroína se transformou, sob sua influência, de modo fantástico. Quanto à sua divindade, protesto! Disse Moysés: Deves crer somen- te em umDeus! Ninguém pode ver Deus e continuar vivo! — E o sábio judeu Jesus, por muitos considerado Deus, disse no Evangelho

de João: Ninguém viu a Divindade. Mas quem ouvir, aceitar e agir dentro de Seu Verbo terá aceito o Espírito Divino que, então, nele habitará. — Pelo que se vê, conheço a Bíblia, e nela não consta que um homem ou seu espírito, ainda mesmo sendo de Deus e manifes- tando Seus Atributos Divinos, deva ser o Ser Supremo, que habita na Luz Eterna. Não poderei acompanhá-lo se quiser esposar esta tese sobre aquele personagem.” Diz Olavo: “Pode fazer o que lhe agradar; há pouco protestou contra um dever a cumprir, portanto não quero coagi-lo.”

CAPÍTULO 76

O honesto engraxate e a Mira indesejável. Purificação psíquica do libidinoso, que abandona a Assembleia Celeste

    1. Enquanto isto, se aproxima Chico, o fiel engraxate do libidi- noso e diz àquele: “Dr., somos aqui todos iguais, mas o senhor con- tinua o mesmo que foi em vida, e isto não me parece justo. Na Terra foi muito rico, em virtude da fortuna de sua digníssima. Aqui isto não adianta, pois estamos no Além, compreende o senhor? Convém ser humilde; parece-me que aquele general tem boa vontade em au- xiliar-nos. Venha conosco. Não será o senhor prejudicado. E veja só: a Mira também está aqui. Lembra-se daquela que o senhor manti- nha ao lado da esposa? Estando ela presente, nada lhe poderá faltar.”

    2. Responde o outro, indignado: “Caramba! Eis o purgatório, e o inferno certamente ainda virá. É preciso que a Mira e a minha patroa estejam aqui! Ótimo! Tendo Ema nos últimos anos de vida ficado muito beata e desencarnado alguns anos antes de mim, julga- va que estivesse em cima de uma nuvem celeste. Mas não! Está aqui, e cem vezes mais infeliz que antes de sua morte. E agora me aparece também a Mira, cuja língua é tremenda. Só me faltava procurar, na companhia dessas duas, aquele homem que me aconselhou muita humildade. Saberei contornar tal situação. Quem me diria ter a pes- soa que enfrentar tais aborrecimentos no Além. Olavo apresentou-se como meu amigo terreno, informado de todos os meus segredos.

Além disto, meu sogro, com toda a sua família. É provável que ainda apareçam algumas das pequenas que me acompanhavam em certas ocasiões!”

    1. Tais conjecturas faz o libidinoso de si para si. Os outros ou- vem-no e sua esposa se adianta e diz com meiguice: “João, sabia a vida que levavas e foi esse o motivo de nossas desarmonias. Perdoei-

-te tudo. Procura, portanto, recompensar-me aqui, diante de Deus, o que fiz por amor a ti. Não receies minhas reprimendas, pois nada farei. Segue Àquele a Quem, na Terra, pretendias ser fiel. Quan- tas vezes me acusavas e à minha família pelo orgulho aristocrático! Enquanto aqui, no Reino da humildade, o és muito mais que nós outros. Como se explica isto?”

    1. João, perplexo, resmunga algo, sem responder em definitivo. Eis que Mira se aproxima e diz a Ema: “Peço-lhe desculpas pela ligação que mantive com seu esposo. Fui sempre moça direita. Co- nheci-o numa festa e me deixei seduzir, pois me havia prometido casamento, por escrito. Ele, porém, enganou-me ano após ano, sem confessar ser casado. Pode a senhora se alegrar pelas verdades que pretendo dirigir a esse patife.”

    2. Virando-se para o libidinoso, Mira começa: “Seu patife meio anglófilo — quem pensa ser? Fale, se tiver coragem! Está lembrado das suas conversas a respeito do seu estado civil e do muito dinhei- ro que possuía? Se tivesse sido um senhor honrado, como desejava aparentar, não poderia nunca ter agido daquela maneira. Por acaso sua esposa soube dos bonitos vestidos que mandou fazer para mim, apresentando-me de uma feita como se fosse uma turca, de outra, uma espanhola, em seguida como francesa e sei lá mais o quê? E as atitudes que encenou? Também nada contou das orgias praticadas em companhia de outras pessoas, onde o senhor era o mais lascivo? Contarei tudo a ela, pois estou com raiva por ver sua mulher tão boa e honesta.”

    3. Ouvindo tais acusações, Olavo interrompe Mira e diz a João: “Então amigo, que histórias são essas? Agora compreendo muita coi- sa e percebo o motivo pelo qual tanto receia aquela heroína. Certa-

mente tomou parte naquelas ‘festas’? É claro não lhe ser agradável acompanhar-me junto de pessoas que o conhecem melhor do que eu. Lembro-me nunca ter sido possível combinarmos encontro aos domingos à tarde. Alegava sempre ser obrigado em tais dias fazer seus cálculos importantes. É deveras interessante o que ora se de- senrola e em que circunstâncias. E pretende ainda, com tudo isto, ser um homem de bem. Peço-lhe não nos acompanhar junto da- quele amigo dos homens. Poderá fazer o que quiser. Saberei evitar seu convívio.

    1. Pobre Ema, se soubesse na Terra com que espécie de esposo lidavas, minha atitude teria sido diversa. Vamos procurar contato com aquele grande benfeitor da Humanidade. Junto dele teremos a recompensa pelas injustiças sofridas.”

    2. Apresenta-se o barão: “Nunca poderia ter esperado isto des- se homem! É, portanto, certo dizer-se que o depravado continuará sendo assim, e tarde ou nunca se elevará do lodo de sua baixeza inata. Não o julguemos, mas não serve para nossa companhia. E virando-se para o libidinoso: Afaste-se de nosso grupo! Lá, entre a ralé, é seu lugar apropriado, onde, talvez, encontre algumas das divas de suas orgias.”

    3. Reage o outro, furioso: “Proíbo-lhe tais insinuações! Minha esposa não dava suas festas aos sábados? Não é de se esperar que em tais ocasiões se entregasse a preces. Além disto, ninguém pode deter- minar minhas ações. Não necessito de tutor. Sei perfeitamente o que fazer. Aliás, é desnecessário alegar ser desprezível para me tornar um dos membros de família tão nobre. Agradeço a Deus ter-me livrado de tal súcia. Por sorte vejo, lá atrás, alguns conhecidos que me pres- tarão mais honra que vós, orgulhosos.” Incontinenti se dirige para lá; Ema procura retê-lo, mas ele a repele.

    4. Diz Olavo: “Deixai-o em paz. Talvez se encaminhe para sua salvação ou queda. Pediremos ao Senhor que seja misericordioso para com ele.”

CAPÍTULO 77

Olavo pede ao Senhor saciar as pobres almas

  1. Alguns se encaminham com Olavo para junto de Mim e ele, curvando-se, diz: “Meu Senhor e amigo, cumprindo Tua Ordem, trouxe esse grupo que consegui convencer. Um outro não quis to- mar parte, por envergonhar-se diante de pessoas conhecedoras de sua vida passada. Julgo não ser ele, por isto, um perdido. Tu és o Senhor desta casa e quem a tiver penetrado não se perderá. Ele não é propriamente mau; sua principal fraqueza foi o sensualismo, e como dispunha de meios, deixou-se tentar por toda sorte de dese- jos, que de pronto saciou. Confesso não concordar com isto, pois não honra o seu espírito. Mas, que fazer? Foram praticados. Assim sendo, creio que passará por estados tais, que o levarão a melhorar e humilhar-se, mas por isto não deve ser condenado e punido. Além do mais, externo apenas minhas ideias e opiniões. De modo algum pretendo adiantar-me. E diante de Ti, digo: Senhor, que se faça a Tua Vontade.”

  2. Respondo: “Teu parecer é bom e útil. Todavia, aquele espíri- to terá de passar por vicissitudes até conseguir alguma compreensão e consequente melhora. Não quero mencionar sua vida excessiva- mente impudica, conquanto fosse capaz de fazê-lo perder a vida eterna. É, além disto, cheio do orgulho mais abjeto e da ousadia mais perniciosa. Tais tendências são muito mais perigosas para o seu espírito do que julgas.

  3. À sensualidade pode ser imposto um freio. Ao orgulho e à intrepidez é muito difícil, ou mesmo impossível, levar-se pelo livre arbítrio. Todavia veremos o que se poderá fazer. Como se deve agir com essas pessoas? Dize-Me sinceramente.”

  4. Responde Olavo: “Senhor, tudo que achares por bem, dentro de Tua Bondade ilimitada! Tua Sabedoria está acima de tudo. Teu Amor desconhece fronteiras; e, diante de Tua Vontade, os mundos se reduzem a pó.”

  1. Digo Eu: “Caro amigo, depois de ouvir tuas palavras, su- ponho Me considerares o Ser Supremo. Quando adquiriste tal fé? Acaso ignoras não ser possível alguém ver Deus e continuar vivo?”

  2. Responde Olavo: “Senhor, Tua Própria Palavra Santa e Divi- na levou-me a tal compreensão. Não é possível existir espírito cria- do capaz de proferir Palavras plenas de Verdade, Poder, Sabedoria e Amor. Bem sei que ninguém pode vislumbrar a Divindade em Seu Ser Intrínseco. Ela, porém, falando através de Moysés, ensinou, após vários séculos pelo Homem-Deus ‘Jesus’, que disse: Eu e o Pai somos Um; quem Me vê, vê também o Pai. — Se isto Ele ensinou e Seus discípulos O viram e O escutaram sem perder suas vidas, não vejo por que se deva imaginar Deus na Luz eternamente inconfundível. Acresce a isto a certeza de seres o Mesmo Jesus que nos transmitiu Ensino tão elevado. Deste modo, quanto mais Te fito, com olhos e coração, em vez de sentir perder a vida, sinto-me muito e muito mais pleno de vida. Não é isto?”

  3. Respondo: “Vejo seres firme e inabalável em tuas afirmações. Por enquanto tenho que considerá-las. O futuro te esclarecerá al- gumas dúvidas. Asseguro-te Meu Amor e Amizade eternos. E vós não sentis fome e sede?” Exclamam todos: “Ó caro amigo, muito mais do que o necessário para se morrer na Terra. Não seria possível saciar-nos?”

  4. A um sinal Meu, Blum, Jellinek, Messenhauser e Becher dis- tribuem pão e vinho entre os outros. Assim confortado e grato, Ola- vo se vira para Mim e diz: “Ó Senhor, não existe dúvida seres o Úni- co merecedor de nossa veneração e amor!” Tais palavras são repetidas pelos recém-vindos. — Roberto e seu grupo sorriem de alegria pela rápida conversão de Olavo. Helena, por sua vez, cai aos Meus Pés.

CAPÍTULO 78

Advertência acerca dos ignorantes. Revelação do Conselho Celeste em vista do destino do orbe

  1. Por motivos bem fundados, advirto-os nada revelarem so- bre aquilo que acabam de perceber por especial graça. Eles Me en- tendem e silenciam, enquanto seus corações se empolgam cada vez mais. Mormente Helena custa a se conter. Jellinek então lhe diz: “Minha irmã, intimamente podes te entusiasmar; modera-te, po- rém, em virtude de não serem atingidos pelo julgamento os ignoran- tes ainda existentes. Formaremos um grande Conselho, conforme o Senhor anunciou confidencialmente. Precisamos nos manter calmos para que os outros não percebam estar o Senhor de toda a Vida tão próximo.”

  2. Indaga Helena: “Que vem a ser tal Conselho Secreto e qual sua finalidade? Meu Deus, pressinto algo de grande importância.” Responde Jellinek: “Por certo. Digo mais: Ai de todos os orgulhosos, dominadores, assassinos, verdugos e dos que ocupam tronos. Há pouco vi inúmeros anjos revoltados se atirarem com espadas, em direção à Terra, acompanhados de uma voz trovejante que assim di- zia: ‘Esgotou-se Minha Paciência! Não mais cogito de Piedade, pois os potentados não procuram salvação em Deus, mas em suas armas. E os povos que choram e rangem os dentes não se dirigem a Ele, o Único que os pode socorrer. Em virtude dessas ocorrências será convocado um Grande Conselho para o qual todas as forças celestes serão movimentadas.’ Calma, muita calma!”

  3. Diz Helena: “Já estou quieta. Mas que horror! Que acon- tecerá?” Responde Jellinek: “Aqui as coisas são bem diversas das de Viena, quando ainda nos encontrávamos entre os revolucioná- rios. Trata-se aqui da Verdade Inabalável. Vida ou morte, Céu ou inferno. O Senhor do Infinito, o Onipotente Criador de Céus e mundos, Se encontra entre nós, e miríades de servos celestes aguar- dam Seu Aceno Divino. Daí concluirás quão santo e importante é este recinto enorme em que Ele tomará entre nós, Seus amigos

mais recentes, resoluções tão importantes das quais dependerão as épocas futuras.”

  1. Diz Helena: “Nem posso conceber sua importância trans- cendental. Não assimilo como pode Nele existir Onipotência, abar- cando com um golpe de vista o Espaço Infinito, porquanto não apresenta o menor vestígio para tanto. Dá-se em nosso meio, como se fossemos os únicos que Dele dependessem. Amigo, que imensa afabilidade!

  2. Que diferença entre Ele, o Senhor do Infinito, e os potenta- dos de nossa Terra. Enquanto Ele, em tudo, é pleno de humildade, nunca Se elevando diante de Suas criaturas, os poderosos da Terra querem ser e possuir tudo, não cogitando das sutilezas do coração. Em tais circunstâncias se compreende transformar-se a Terra tão lin- da num verdadeiro inferno, onde ninguém poderá ser salvo para a Vida eterna.”

  3. Responde Jellinek: “Julgas acertadamente. Considera, po- rém, que para Deus tudo é possível, e assim terás mais serenidade diante daquilo que vier. Seu Poder Infinito Se equilibra na Imen- sidade de Seu Amor. Não é preciso algo temer em virtude de Suas Determinações.”

  4. Diz Helena: “Agradeço-te por este ensinamento. Tiraste-

-me uma pedra de cima do coração. Dize-me, quando começará o Conselho?” Responde Jellinek: “Dentro em pouco. Vê, neste mo- mento Roberto leva a multidão de proletários vienenses, ainda ig- norantes, ao recinto ao lado. Estarão presentes ao Conselho as vinte e quatro bailarinas, Blum, Messenhauser, Becher, eu, você, Olavo com o grupo dos vinte, o tal anglófilo e alguns aristocratas.

  1. Daquele outro recinto surgem doze homens de aspecto mui- to sábio, acompanhados de mais sete; com certeza tomarão parte no Conselho. Além disto, vejo também uma grande mesa no centro desta sala, que parece estar aumentando. Alegra-te, que a Reunião vai ter início.”

  2. Com esta informação, Helena, contrita, se vira para Mim, sem conseguir pronunciar uma palavra, tal o seu medo. Segurando-a

pelo braço, digo-lhe: “Filha querida, que expressão é esta? Por que estás tão atemorizada? Estou ao teu lado.”

  1. Responde ela: “Meu Senhor e meu Deus! Realmente não tenho motivo para me assustar, sabendo estares de bem comigo. Mas se me lembro de Tua Divindade Eterna e Santa, da qual nenhum pe- cador pode se aproximar, tenho a impressão ser possível condenares pessoas como eu, mormente se Te aborreceres. Anteriormente não me impunhas tanto temor, pois ignorava Quem eras em Verdade. Considerava-Te um Santo qualquer e, isto, porque Tu Mesmo ale- gavas seres Amigo íntimo de Deus, capaz de interceder junto Dele a meu favor. Mas agora — que decepção horrível! És o Altíssimo em Pessoa! Quem não teria pavor diante Dele? Além disto, convocarás um Conselho, certamente para o Dia do Juízo Final. Meu Deus, acaso não deveria temer-Te, como grande pecadora que sou?”

  2. Respondo com entonação carinhosa: “E isto te perturba? Se alimentares tal pavor diante de Mim não serás capaz de amar-Me. Que farei se desistires do amor por ser Eu o Altíssimo? Ora, Heleni- nha, dize-Me se ainda Me queres como antes, quando Me tomavas por São José ou Pedro?”

  3. Responde ela, mais calma: “Que pergunta! Tratando-se de meu amor para Contigo, podes pesquisar o meu coração e verás se ele comporta mais alguém além de Ti. Amo somente a Ti, e ao su- posto José ou Pedro queria-os por Tua Causa. Não receio meu afeto para Contigo e, sim, o Teu para comigo.”

  4. Digo Eu: “Então, Heleninha, estamos quites. Que tal se Me abraçasses e beijasses?” Confusa, ela esfrega os olhos e diz com voz trêmula: “Hum, como não haveria de querê-lo! Pena seres tão Santo e Poderoso.” Respondo: “Ah, isto não vem ao caso. Faze o que man- da teu coração e te convencerás que Minha Santidade e Onipotência não tirarão a pontinha de teu nariz.”

  5. Vendo Minha Simplicidade, Helena perde o receio e atira-

-se aos Meus Braços, beijando-Me. Em seguida, diz: “Meu Deus, como isto me faz bem! Se me fosse possível ficar assim por toda Eternidade!” Finalmente levanta a cabeça e diz: “Como é possível

seres tão afável? Nunca me teria atrevido a pensar nisto. És tão bom, humilde e amoroso! Não é admissível que exista alguém que não se desvaneça com o Teu Amor!”

  1. Digo Eu: “Vê, assim estamos na melhor ordem, e isto Me alegra. Vem Comigo à Mesa do Conselho, onde ficarás ao Meu lado, dando-nos teu parecer quanto ao destino da Terra.” Opõe Helena: “Isto é que não! Eu?! E para opinar?! Sairia boa coisa...” Respondo: “Heleninha, nossa exigência não será tão severa. Quando te lem- brares de algo razoável, falarás Comigo e Eu, já que não te atreves, transmitirei o teu parecer.”

  2. Ela exclama: “Ao ouvir-Te e ver-Te tão simples, nem tenho a impressão de que és o nosso Querido Senhor e Deus! No entanto, meu afeto para contigo é muito mais poderoso; nem sei o que fa- zer. Gostaria de ver a pessoa que, tão logo Te reconhecesse, não Te amasse com toda sua alma! Perdoa minha expansão provocada por Ti Mesmo.”

  3. Respondo: “Podes amar-Me com todas as tuas forças. No entanto Meu afeto para contigo é muito mais poderoso. Mas não importa. Eu, como Deus, devo poder amar mais fortemente que tu. Acreditas?” Defende-se ela: “Peço não seres tão Magnânimo, do contrário não resistirei a tanta afeição.” Digo Eu: “Não te preocu- pes, querida. Mesmo te tornando, às vezes, um pouco fraca, tenho inúmeros recursos para confortar-te. Vamos à mesa do Conselho e senta-te ao Meu lado.” Modestamente Helena Me acompanha e enrubesce ao ver os outros também tomarem assento. Dentro em pouco começa a ambientar-se e presta atenção aos fatos.

CAPÍTULO 79

O venerável Conselho. Que deve acontecer à Terra? Falam Adão, Noé, Abraão, Isaac e Jacob

  1. Após algum tempo de silêncio geral, Helena pergunta: “Se- nhor, quem começará a falar? E quem é o homem tão respeitável ao meu lado?” Respondo, também em surdina: “Eu Mesmo serei

  1. No final da reunião saberás da tarefa de cada um. Já estão bastante calmos e poderei tomar da palavra. Não te deves assustar se, vez por outra, Eu usar termos fortes e fizer surgir várias aparições desagradáveis. Segura-te a Mim, que serás confortada.”

  2. Em seguida digo à Assembleia: “Como vosso Verdadeiro Pai, Deus, Senhor e Criador do Universo, indago: Agrada-vos a Terra? Que destino desejais que Eu lhe dê?” Responde Adão: “Senhor, a Terra jamais foi tão maldosa quanto agora; Teu Amor, porém, nun- ca foi tão Poderoso! O mar, o seu olho poderoso, tornou-se cego. Deposita nele um fogo forte e deixa que se faça luz nos abismos através de sua labareda impetuosa para assustar e dizimar todos os monstros, que receberão o prêmio final para suas obras nefastas. Eis

o que vejo, como primeiro homem da Terra.”

  1. Diz em seguida Noé: “Senhor, sempre orei a Ti e mantive minha fé e amor em Tua Pessoa. Quando, há quatro mil anos, meu irmão Mahal deixou-se tentar e projetou sua atenção aos vales pro- fundos, abandonando as montanhas para fazer uma viagem à cidade de Hanoch, onde Drouit e Fungar-Hellan reinavam na maior con- fusão e uma filha de Mahal se tornara rainha, chamaste-me e me en- sinaste como construir uma grande arca para salvar minha família e inúmeros animais, que Teu Poder atraiu de todas as regiões da Terra.

  2. Obedeci às Tuas Ordens, e o futuro mostrou-me e aos meus como fiz bem em seguir-Te. Naquela época a humanidade era má e perversa, ultrajando a Obra de Tuas Mãos; todavia, os aconteci- mentos obedeciam a uma ordem certa e limitada. A mentira, o or- gulho e o domínio satânico não impulsionavam os homens como hoje em dia.

  1. Eram também cruéis e certas ações suas, inéditas. Agora, as criaturas se tornaram hienas e tigres, praticando crueldades que fa- zem estremecer o Universo. Naquele tempo mandaste o dilúvio so- bre os mortais, afogando os malfeitores. Que farias agora, Senhor? Sei da Imensidade de Teu Amor e não ignoro o Teu Arrependimento por teres deixado perecer as criaturas no dilúvio, pois entre elas havia muitas crianças de tenra idade. Não Te arrependerás ao purificar a Terra, mil vezes mais imunda, através de um fogo abrasador, a fim de se tornar digna para receber-Te?”

  2. Levanta-se o velho Abraão e diz: “Senhor, mil ou dez mil anos são, aos Teus Olhos, como um só dia. Tempo e Espaço surgi- ram de Ti, mas Tu estás acima de ambos e tanto o passado quanto o futuro mais distante são o mesmo que a ocorrência de um dia. O Amor é Tua Natureza, e a máxima Bondade, Tua Sabedoria. Suave, como a lã, é Tua Alma, e Meigo, como a brisa noturna da primave- ra, Teu Coração. Teus Caminhos são plenos de Misericórdia, e Teus Desígnios a Justiça Eterna.

  3. Quando, em Canaan, discuti com meu irmão, observaste o meu coração pronto para a renúncia. Minha alma foi por Ti influen- ciada e disse a Lot: ‘Irmão, deves escolher livremente. Imensa é a Terra. Por que deveríamos disputar sua posse passageira? Vai ou fica. Se fores ao norte, irei ao sul, a fim de que a paz reine entre nós e os nossos descendentes. Se quiseres ficar, basta apontares com a vara a região que hei de habitar. Não podemos viver juntos, porquanto não queres caminhar na trilha da paz.’

  4. Aceitando minhas palavras no coração, Lot disse: ‘Mano, es- colhi o norte e podes decidir se queres viver na região da meia-noi- te, do meio-dia ou da manhã. Seja tua decisão qual for — não te esqueças de Lot!’ Abençoamo-nos e partimos, ele para o norte e eu para o sul.

  5. O povo de Lot em breve se tornou poderoso naquela re- gião. Construiu Sodoma e Gomorra, caindo de loucura em loucura. Enviei vários mensageiros, sem algo conseguir. Alguns foram assas- sinados e os poucos que voltaram traziam informações inquietan-

tes. Novamente tocaste o meu coração e o achaste justo perante Ti. Por isto me mandaste procurar por mensageiros do Alto, que me informaram de Tuas Intenções em relação a Sodoma e Gomorra. Assustado, pedi clemência pelos justos. Descobriste apenas um: Lot. Este foi salvo, Senhor. Sodoma e Gomorra foram destruídas pelo fogo do Céu.

  1. Quando as duas cidades, inclusive homens e animais, es- tavam soterradas, Teu Coração virou-Se para lá. E vê, novamente sentiste arrependimento do severo julgamento e fizeste um pacto comigo, dando-me a grande Promessa, como garantia de Tua Imen- sa Misericórdia.

  2. Cumpriste tudo, até hoje; todavia, Tua Indulgência Se exce- de. Senhor, lembra-Te de Teu Pacto, porquanto os povos se encon- tram na maior das convulsões. Conheces os inimigos de Teus filhos, sua ganância e vontade indômita. Não percebes os inúmeros lobos, tigres e hienas a roerem e dilacerarem, sem consciência e pejo, as vís- ceras de Teus cordeiros? Se castigaste Sodoma e Gomorra, atira-Te sobre aquelas feras e abate-as como expiação pelos males praticados em Teus filhos. Protege somente o sangue dos justos.”

  3. Levanta-se em seguida Isaac e diz: “Ó Senhor! Sou a primei- ra folha que brotou da imensa árvore da vida de Tua Promessa feita a meu pai Abraão. Achava-se a árvore, naquela época, completamente ressequida no Éden do amor, enquanto a serpente preenchia a Terra com sua raça. Observando a esterilidade da árvore da vida de Teus filhos, Tu a vivificaste da raiz até a copa, inoculando-lhe seiva aben- çoada. E vê, fui a primeira folha que brotou.

  4. Abraão alegrou-se, esperançoso, com seu rebento. Tu achas- te por bem turvar-lhe a alegria e experimentar sua fé. Mandaste que ele me matasse para oferecer-me em holocausto no altar. Assim fi- zeste para demonstrar à serpente quão forte era a fé de Teu filho Abraão. Quando ele provou, pela obediência, a força da fé, condu- ziste pelo arvoredo do monte um bode — efígie de Satanás e de sua tendência e domínio. A sarça, símbolo do mundanismo, envolveu

seus chifres, prova de sua teimosia, desobediência, orgulho e ganân- cia. Aquele animal foi sacrificado em meu lugar.

  1. Senhor, se naquele tempo impeliste o bode do mundo para dentro da sarça, deixando que fosse sacrificado como testemunho da justa penitência, faze-o agora em realidade. Lá ele era apenas um símbolo — assim como eu mesmo sou o prenúncio de Tua Vinda ao mundo e da segunda Criação através de Tua Grande Obra de Salva- ção — que cresceu em verdade a uma altura que eleva seus cornos até os Céus. Por isto, convém erigires o grande Altar de sacrifício so- bre a Terra. Agarra esse animal perverso, que se emaranhou com seus chifres na sarça do mundo. Aniquila-o e atira-o no fogo poderoso!

  2. Não mais hesites, Senhor, e não deixes que as inúmeras fo- lhas na árvore da vida sejam comidas pela voracidade do animal, mas cumpre Tua Promessa. Extinguiu-se a oportunidade e Teus fi- lhos gritam em altos brados: Pai, levanta-Te! Pega a arma da Tua Jus- tiça e destrói o bode, cujos chifres já tocam o Firmamento. Amém.”

  3. Pronuncia-se em seguida Jacob: “Senhor, lutaste comigo e não me deixaste seguir caminho, e quando Te agarrei, deste-me uma pancada que me fez claudicar a vida inteira. A pancada não doeu porque lutei por amor. Todavia ficou como herança para todos os descendentes, que por sua vez sentiram a dor. Mas, agora, o gol- pe e a dor atingiram o máximo grau. Deves, portanto, libertar os Teus filhos.

  4. Durante quatorze anos servi à divina Raquel, e Tu me deste Lia, isenta de beleza. Aceitei-a sem murmurar. E outros quatorze anos trabalhei e sofri perseguição por causa de Raquel. Então ma entregaste, porém estéril, de sorte que fui obrigado, finalmente, a recorrer a outra. Ó Senhor, quão severo foste comigo!

  5. Retém Teu Rigor. Tira a fecundidade de Lia e transfere-a a Raquel, a fim de que a Terra se liberte da raça de víboras, permitindo que seu solo seja pisado somente pelos filhos de Raquel, e que José e Benjamin se tornem filhos verdadeiros da mesma, fazendo secar a fonte de Lia.”

CAPÍTULO 80

Prosseguimento do Conselho. Falam Moysés e David

  1. Nessa altura, Helena diz em surdina: “Meu querido Jesus, há pouco afirmaste seres Tu o Primeiro a falar e que não me assustasse com aparições aterradoras. Até agora só falaram os outros e também nada vi de mais. Como se explica isso?”

  2. Respondo: “Cara Helena, tem paciência, pois tudo te será es- clarecido. Já fui o Primeiro a Me manifestar quando fiz a importante indagação. Eles têm de se externar para, depois, Eu tomar a palavra. Posso falar quando quiser, que serei sempre o Primeiro, bem como Meu Discurso. Presta atenção no que Moysés vai falar. As visões surgirão quando Eu Me pronunciar.”

  3. Helena se aquieta e Moysés começa: “Senhor, quando Teu Povo padecia sob o jugo da tirania egípcia, despertaste-me para sal- vá-lo. Vivia na corte do faraó e conhecia as maldades e planos que aquele homem cruel engendrava. Sua perversidade não se satisfez com o afogamento dos primogênitos de Teu povo. Muitas vezes orei para o libertares de jugo tão horrível, mas naquela época ouvias ain- da menos do que hoje.

  4. Quando percebi que a ira do rei aumentava de hora em hora, e assistindo ao açoite de um pobre israelita por um cortesão, re- voltei-me de tal maneira que matei o miserável, enterrando-o na areia. Ciente do fato, o faraó mandou que me prendessem e estran- gulassem, o que não aconteceu por ter fugido para Midian. Lá dei de beber aos carneiros do sacerdote Reguel, pai de sete filhas. Mais tarde casei-me com uma delas, Zipora, e me tornei pastor de Jetro, irmão do sacerdote.

  5. Quando levava os animais ao pé do Monte Horeb, apare- ceu-me um anjo e me mandou que o seguisse, porquanto havia ali uma sarça em fogo. Então Tua Voz ordenou que eu tirasse os sapatos, por ser sagrado aquele local. Em seguida deveria partir para o Egito e salvar o Teu povo, dando-me uma vara para bater sete vezes no faraó, cujo coração havia endurecido por não querer confirmar-Te.

  1. Agora, Senhor, existe mais que a dureza do faraó nos co- rações dos regentes, pequenos e grandes. Não somente sacrificam os primogênitos em honra de seus tronos, mas enviam milhões de soldados aos campos de batalha, deixando que se estraçalhem de maneira mais horrenda do que faziam os pagãos. São todos bati- zados em Teu Nome e têm a Tua Lei: Não matarás! Entretanto, as- sassinam constantemente, e são cegos e surdos à voz dos aflitos e à miséria do pobre.

  2. Senhor, quanto tempo assistirás a tal horror de devastação? Dá-me novamente a vara com que castigaste o faraó, para salvar o Teu povo. Eu, Teu velho e fiel Moysés, estou pronto para, a um aceno Teu, descer à Terra, abater os teimosos e socorrer Teus filhos. Ouve o pedido de Teu velho servo e de Teus filhos. Teu Nome seja santificado e Tua Vontade Se faça, hoje e sempre, na Terra e nos Céus.”

  3. Após Moysés, levanta-se David e diz: “Senhor, em épocas remotas Teu Espírito Se dirigiu a mim, falando: Senta-te à Minha Direita, até que Eu tenha subjugado teus inimigos aos teus pés!, e tudo que Ele me revelou se cumpriu. Somente a completa vitória sobre teus inimigos, a final destruição do orgulho e tudo que emana dele — o que Teu Espírito também me revelou — não se cumpre. As criaturas ainda são as mesmas: Nove décimos são maus e um décimo mais ou menos bom.

  4. Levado pela ira, Senhor, deste um rei ao Teu povo que, sobre- carregado de pecados, juntou mais este erro. E esta Tua ira perdura, pois todos os povos têm seus reis e até mesmo imperadores pela compreensão pagã, servindo à multidão como símbolo do orgulho e altivez. Quando tirarás dos homens a maior praga da Terra, implan- tando Tua Instituição patriarcal, antiga e santa? Vês perfeitamen- te que bajuladores covardes e inescrupulosos rodeiam os regentes, espargindo-lhes incenso adulador em prol de seu lucro egoístico, condenando à morte o honesto que se atreve a dizer as verdades ao soberano, mais úteis que a luz de seus olhos!

  5. Quando de meu regime, as coisas andavam mal, mas não péssimas como hoje. Elogiava a todo sábio que me transmitisse a

verdade, enquanto bania os bajuladores e castigava com a morte os mentirosos. Agora, tudo é inverso. O sábio é perseguido qual fera; mas os mentirosos e aduladores são condecorados.

  1. Isto não pode continuar assim. O inferno só deve existir onde tem suas bases. Nunca lhe deveria ser permitido estabelecer seu regimento na Terra. Por isto, pedimos-Te que finalizes seu reinado. Se for necessário, haja reis, mas que sejam como fui, a fim de que as criaturas não se tornem demônios e Teu Nome não seja tão horrivel- mente ultrajado. Quem poderia louvar-Te no inferno, Senhor? Er- gue-Te e destrói os nossos adversários. Tua Vontade Se faça. Amém.”

  2. Impressionada com as palavras de David, Helena não se contém e lhe diz: “Bravo, sr. David! Se todos os reis fossem como o sr. o foi, seriam felizes os seus súditos. Ultimamente deixaram de ser homens, portanto perderam a noção do gênero humano, julgando a si próprios uns ‘deuses’ que, além de extorquirem do povo impostos exorbitantes, exigem verdadeira adoração. É fácil imaginar-se a situ- ação de tais povos, pois os cães ainda levam vida mais independen- te. Se dependesse de mim, pediria a nosso Senhor Jesus Cristo que mostrasse a tais dirigentes as consequências de suas ações egoísticas. O sr. concorda?”

  3. Responde ele, amável: “Cara Helena, jovem descendente de meu povo; elogio tua inteligência, pois desejas apenas o que é justo e razoável. Os monarcas já ungidos devem permanecer, todavia é preciso que desçam de seus tronos para junto do povo, demonstran- do sua igualdade. De modo idêntico as nações só deveriam fazer exigências que pudessem ser cumpridas. Mas quando, de ambos os lados, se estica as cordas além da medida, elas forçosamente terão que se partir. Os reis castigarão o povo, e este se vingará.

  4. Contudo, ainda existe, entre reis e povos, nosso Senhor, Jehovah Zebaoth, que bem pode mudar tudo para melhor. Só nos cabe opinar; a Obra é unicamente Sua. Eis como andam as coisas.” Aduz Helena: “O sr. é realmente um rei sábio.”

CAPÍTULO 81

Crítica de Pedro a Roma e contestação de Paulo

    1. Em seguida, levanta-se Pedro e fala em nome de todos os apóstolos: “Senhor, em Roma, na velha capital dos pagãos, surgida aos poucos — quando Troia, o ninho de víboras foi transforma- da num montão de escombros, e Babel e Tiro começaram a ficar abaladas — reina há mil anos uma hierarquia composta de pagãos, judeus e de Tua muito reduzida Doutrina. É ela encabeçada por um Papa que se diz representante de Deus na Terra, meu sucessor, e seu trono, meu assento. Na realidade, nada mais é que um regente pagão de um pequeno país. Afirma, no entanto, ser senhor do Poder e da Força de Teu Espírito Santo, jamais procurando proteção junto de Ti, e sim com os potentados da Terra, quando se vê perturbado pelas inquietações mundanas. Este Papa ora se acha em apuros e pede, em público, socorro à Virgem Maria, a seu ver, única auxiliadora na breve reconstrução de seu poderio. Mas, como não crê em tal so- corro, faz vir ainda outro auxílio, contra o qual levanta leve protesto para demonstrar ao mundo ter a necessária proteção do Alto. Caso os potentados insistam em ajudá-lo, é claro terem sido insuflados pela Rainha Celeste a proteger a Igreja de Deus na Terra, porque o inferno a ameaça dominar. Que dizes, Senhor, a essa Comunidade?

    2. Paulo a organizou verdadeira e pura, e ela assim se manteve por alguns séculos. Há mil anos, porém, enterrou-se num paganis- mo abjeto e mau, cobiçando ouro, prata, grandeza e domínio ab- soluto sobre todos os povos, enviando para tal fim os mais astutos missionários a todas as regiões. Quando terminarão tais maquina- ções, Senhor?

    3. Os povos, que de há muito se deixaram conduzir paciente- mente por essa pretensa ‘filha do Céu’, se atreveram a lhe arrancar a luminosa máscara. E qual não é sua revolta ao verem a sua verda- deira face! Usa, porém, todos os meios para consertar os rasgos dessa

máscara. Senhor, Tua Vontade Se faça! Mas conviria riscá-la da lista dos vivos.

    1. Se permitires que ela se refaça, não melhorará nem fará peni- tência, mas aumentará suas maquinações de ludíbrio, de sorte que também os que ainda acreditam em Ti serão por ela atraídos e cor- tejados. Finalmente, nada mais Te restará fazer com ela senão aquilo que aplicaste a Sodoma e Gomorra.

    2. É bem verdade ter a Igreja gerado uma quantidade de filhos bons, motivo por que mereceu, cerca de mil anos, Tua grande Paci- ência e Indulgência. Eu e meus irmãos nos alegramos com este fato. Agora, tornou-se estéril, em virtude de sua perversidade. Por este motivo julgo ter chegado a hora de dar-lhe o prêmio que merece.”

    3. Digo Eu a Paulo: “Irmão, dize-Me, como doutrinador dos pagãos, se concordas com essas propostas, pois, em relação aos gen- tios, tens voz ativa, e depende de vós julgar os povos da Terra, con- forme profetizei.”

    4. Paulo se curva e diz: “Senhor, observei os pagãos e lhes trans- miti Tua Palavra, aceita com grande ânsia e alegria, tornando-os me- recedores de Tua Graça; entretanto, eram filhos do pai da mentira e do orgulho. Os descendentes de Abraão, porém, crucificaram o Enviado de Deus e não O reconheceram. Por isto, pergunto: quem, entre os dois, tem mais responsabilidade? Qual o privilégio do judeu diante do pagão? Para que fim serve a circuncisão? O judeu afirma ser ela algo de relevante, porque demonstra ter Deus Se dirigido unicamente a seu povo. É isto um privilégio ou uma Graça de Deus? Acaso crê o judeu ter a Divindade Se dirigido aos seus antecedentes? O que importa isto? Deveria a descrença sustar a fé? Penso que não. Nada vejo entre os judeus e pagãos que pudesse ser classificado de justiça e mérito. Por isto é melhor afirmar que unicamente Deus, nosso Senhor e Pai, é Verdadeiro e Justo. Todas as criaturas, judeus ou pagãos, que ora se dizem cristãos, estão erradas e sem mérito perante Deus.

    5. Se a injustiça dos gentios louva a Justiça Divina, que pre- tendemos nós julgar? Acaso Te aborreces por isto, Senhor? Creio que

não. Se assim fizesses, serias injusto. Quem conservaria o mundo se Deus pensasse qual homem na Terra?

    1. Falarei como antigamente: Se a Verdade Divina for glorifi- cada através de minhas mentiras, conviria Deus julgar-me pecador? Conhecendo pela lei ser isto ou aquilo um crime, mas se o prati- cando surgisse algo de bom, acaso seria justa minha condenação? Qual é nosso mérito ao exclamarmos: Senhor, vê as ações criminosas de Teus povos! — Digo-vos: nenhuma. Sabemos perfeitamente que diante de Deus todas as criaturas são pecadoras e não existe umaque seja justa perante o Senhor. Assim sendo, como nos atrevermos a convidá-Lo a um julgamento, como se fôssemos sempecado?

    2. Dizei-me qual o mérito daquela deslumbrante criatura que possa justificar a sua posição ao lado do Senhor? Todavia, Sua Graça o permite. Qual foi a minha justificativa quando persegui os que Nele acreditavam? Fui um malfeitor e a injustiça personificada. Deus não Se polarizou com meus pecados, mas chamou-me, como se fora um justo. Segui a Sua Voz e, de pronto, fui justificado pela Sua Graça. Acaso pretendeis acusar a Deus de injusto porter sido

Misericordiosocomum pecador?

    1. Quem de vós poderia afirmar perante Ele ser compreensi- vo e sábio? Nenhum. E mesmo assim tencionamos forçá-Lo a um julgamento? Jamais alguém indagou: Quem e o Que é Deus?, ainda assim pretendemos dar-Lhe conselhos. Quem poderia afirmar nun- ca se ter desviado de Deus e trabalhado sempre em Seu benefício? Afirmo de plena consciência não existir entre nósum melhor que o outro, entretanto reclamamos: Senhor, castiga a maldade humana.

    2. Que seria se Ele Se erguesse e repetisse as palavras dirigidas aos judeus quando Lhe apresentaram a adúltera em Jerusalém? Não seríamos obrigados a nos afastar, cheios de vergonha? Não há umentre nós com o direito de afirmar: Senhor, fiz apenas o bem e não me lembro ter pecado! — Somente um tolo poderia repetir a frase do fariseu que louvava a Deus por lhe ter permitido ser tão justo. Sabemos que o Senhor não aceitou sua justificativa e escolheu o publicano.

    1. Se tudo isto sabemos, por que Lhe pedirmos para agir den- tro de nossa compreensão, como se fossemos mais sábios que Ele? Isto não é justo de nossa parte. Se tudo que possuímos nos foi dado por Ele, por que nos vangloriarmos e enchermos Seus ouvidos como se Ele fosse surdo e cego, ignorante e fraco? Amigos, quais os cami- nhos que não foram traçados por Ele? Se possuímos tudo por Ele, e tudo que fomos e somos depende apenas da Sua Vontade, como afirmarmos: Senhor, cumpre finalmente o que prometeste e aniquila os malfeitores na Terra! — Penso ser muita presunção nossa.

    2. Os lábios humanos sempre foram sepulcros abertos: pro- ferem mentiras e o veneno das víboras está em suas palavras. Seus pés estão prontos a levarem, rápido, a morte ao próximo, e todos os seus caminhos estão cheios de desgraça, tristeza, sofrimento e atri- bulações. O verdadeiro caminho da paz em sua plenitude ainda não foi descoberto pelos mortais, pois o temor de Deus é-lhes um mito.

    3. Sabemos existir a lei para os que a ela estão sujeitos e não para os que se encontram acima ou dela jamais ouviram falar, a fim de que o mundo seja, finalmente, obrigado a se calar, reconhecendo que todos somos e seremos eternos devedores de Deus. Compreen- dei bem: Não existe criatura que possa ser justificada pela lei diante de Deus, mesmo que a cumprisse até a última vírgula. Pela lei surge o conhecimento do pecado, e quem reconhece o pecado se encontra dentro dele.

    4. Todavia recebemos uma Nova Revelação — como anterior- mente pelos profetas e suas leis — pela qual nos é demonstrado ser possível às criaturas alcançarem a Verdadeira Justiça sem o auxílio da lei, que somente tem mérito por Deus. Por que exclamais: Senhor, julga-os e dá-lhes o prêmio merecido; apaga seus nomes do Livro da Vida e entrega-os à morte?! — Amigos, isto não é justo de vossa parte. Se bem que acreditais: Apenas Tua Vontade Se faça!, isto não desculpa vossos maldosos corações. Realmente, preferiria morrer a pedir a Deus que faça isto ou aquilo. Acaso destes alguma faculdade de sentir a Ele, ou não fomos aquinhoados, com todos os sentidos, pela Mão do Pai? Entretanto, falamos como se Ele necessitasse de

nossa orientação. Se filhos imaturos assim agissem, poderiam ser perdoados; mas os velhos cidadãos do Céu — presumo eu — já deveriam saber o que são e Quem é o Senhor.

    1. Julgais ter o pecado alguma importância diante de Deus? Enganai-vos. Foi sempre sem valor algum, seja qual for. Quem pre- tender condenar o erro terá de estar isento de qualquer falha, pois não é possível a um pecador julgar outro. Se assim fizer, será injusto, porquanto não existe justiça no pecado. Se diante de Deus todas as criaturas são pecadoras, compartilhando do erro e da injustiça, que direito lhes assistiria?

    2. Possuímos, sim, uma justiça válida perante Deus, mas não em decorrência de nosso conhecimento do pecado, da lei e de seus efeitos, senão pela fé Nele e pelo puro amor para com Ele. Tal justiça se chama ‘Graça e Misericórdia Divinas’.

    3. Perante Deus não há diferença entre as criaturas, de qual- quer forma contaminadas pelo pecado e destituídas do mérito a que deveriam fazer jus. Se, pela fé, forem aceitas por Deus, tor- nam-se justas sem mérito, apenas pela Graça que emana de Suas Próprias Obras da Salvação. Se não ajudamos Deus na Criação do Universo, muito menos podemos Lhe ser úteis na Realização da Salvação. Se nada fizemos por sermos os próprios libertados, como pretendermos compartilhar da função de Juiz, que compete unicamente a Deus?

    4. Conheceis, acaso, o verdadeiro Trono da Justiça Divina? É o Cristo! Nele habita fisicamente a Eterna Plenitude da Divindade. O Trono de Deus, porém, tornou-Se um Trono da Justiça através de Suas Próprias Obras, podendo transmitir Graça e Misericórdia a quem quiser. Onde fica, pois, nossa glória? Em parte alguma! Quais seriam as obras da lei que a garantissem, uma vez que não existe lei sem pecado e vice-versa?

    5. No entanto, temos uma glória e uma justiça que, todavia, não provêm da lei de suas obras, senão de Sua Graça, da qual com- partilhamos através da fé que Nele depositamos e das Obras de Sal- vação. Tal justiça não nos dá o direito de assisti-Lo no julgamento,

porquanto continuamos os mesmos pecadores, muito embora agra- ciados de modo sublime.

    1. Se nossa justiça se fez através da fé em Deus, e não pelo cumprimento da lei, deveria a fé sustar a lei? De modo algum. Pois a fé edifica e dá vida à lei, enquanto a lei aniquila a fé, caso não seja antes vivificada. A manifestação da fé é o amor, e a lei viva é a ordem desse amor. Quando a fé é justa, tudo está justificado. A fé sendo falsa, também o será o amor, tornando-se um sentimento desordenado.

    2. Mas a quem cabe a culpa quando alguém recebe uma fé er- rônea através de uma doutrina falsa? Digo-vos: Quem crer conforme foi ensinado possui uma fé sem dolo e receberá a Graça. Mas ai dos responsáveis por uma doutrina falsa! São malfeitores e perturbam a Ordem Divina. Mas somente ao Senhor cabe julgá-los.

    3. Quando o maior e mais puro de todos os anjos lutou contra Satanás no monte Sinai pelo corpo de Moysés — fato que tu, Moy- sés, deves te lembrar — o espírito poderoso não o condenou, mas disse: O Senhor te julgará! — Se o arcanjo Miguel não se arrogou tal direito, como queremos julgar nossos irmãos ou convencer o Senhor a fazê-lo?

    4. Digo mais: Ele age e julga sem esperar pelo nosso parecer. Mas se Ele vos disser: Fazei isto ou aquilo, vossa natureza deve ser pura ação, pois a Palavra do Senhor é ação plena em vosso cora- ção. Agradeço-Te, Senhor, por teres posto tais palavras em minha boca e permite trazerem elas os melhores resultados na Terra como em todos os Teus Céus. Toda Glória e Honra são eternamente Tuas! Amém.”

    5. Digo Eu: “Paulo, és o Meu Braço Direito e Minha Visão Justa. Foste por Mim escolhido como instrumento, e o serás para sempre. Falaste certo em tudo. No entanto, ainda perguntaremos a esses recém-vindos qual seu parecer, e depois adotaremos a solução certa. Fala, Roberto Blum, que faremos à Terra, sugadora de tan- to sangue injustamente derramado? Qual deve ser a penitência que merecem, ela e os poderosos que te justiçaram?”

CAPÍTULO 82

Roberto Blum e Jellinek se externam. Resposta do Senhor

      1. Diz Roberto: “Senhor, no que me toca, já não tenho con- tas a ajustar com a Terra, portadora de criaturas mais cegas do que maldosas. Se posso fazer um pedido, ele deve apenas soar: Senhor, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem. Deposita em seus corações paz, humildade e amor e, deste modo, a Terra maravilhosa beijará novamente seus filhos, sustentando-os através de Tua Graça e Mise- ricórdia. Eis tudo que poderia pedir-Te.

      2. Todavia, não deposito nesse meu pedido ou desejo uma exi- gência determinada, porquanto presumo não estar sazonado assim como eu não estou amadurecido. Penso, de coração, ser mau quem pretenda fazer mais do que pode; pior, quem enterra seu talento. Se alguém, no entanto, desejar o que seu coração julga bom para o próximo e até mesmo procura realizá-lo, só posso considerá-lo bom e justo, porquanto deriva do puro amor ao semelhante.

      3. Pode acontecer que, em vez de benefício, seja o contrário para ele. Sei, por exemplo, de um doente para o qual tenho remé- dio que já curou muitos; assim, seguro do seu efeito e movido pelo amor, dou-lhe o remédio que, entretanto, piora seu estado. Acaso não deveria ter agido deste modo? Como não! Pois não devo me abster de desejos e fazer aquilo que julgo bom e justo, de acordo com minha consciência, pois o êxito não está em mim, senão em Teu Poder, Senhor. Esta foi minha intenção em Viena: conseguir o melhor para os oprimidos. O resultado de meu esforço foi negativo; todavia, creio não ter falhado, porque queria apenas o que julgava certo. Assim haverá muitos. Deviam por isto passar pelo julgamen- to? Transmite-lhes, Senhor, a justa compreensão e apazigua seus co- rações, que estarão livres de todo mal.

      4. Existem criaturas obstinadas que preferem arrasar o mundo que desistir de seus princípios, a seu ver, dentro da justiça. Tu, Se- nhor, terás meios para derreter como cera a rocha mais dura, e uma fagulha desse fogo, depositada nos corações desses teimosos, fá-los-á

mais brandos e compreensivos. Eis minha opinião e meu melhor desejo. Até que ponto podem ser bons aos Teus Olhos, não tenho medida segura em meu coração. Por isto Te entrego tudo, Senhor!”

      1. Digo Eu: “Caro amigo e irmão, também atingiste o ponto nevrálgico, pois a verdade plena e fiel jorrou de tua boca, e serás futuramente um bom instrumento de luta para Mim. Teu pedido foi bom e nobre, e te asseguro de antemão: adotarei tua medida e sempre a aplicarei. Contudo, deve Meu amigo Jellinek expressar-se, para vermos se concorda contigo. Fala, Jellinek.”

      2. Responde esse: “Ó Senhor, tanto Roberto Blum quanto o grande Paulo falaram como sente minha alma. Que mais direi? Tua Vontade Se faça, Senhor — e a ordem mais maravilhosa abençoará a pobre Terra. O que anteriormente foi dito pelos patriarcas ultra- passou, de certo modo, meu horizonte de conhecimentos. Natural- mente são bem intencionados, porém de outra forma. Apenas me parece estranho exigirem de Ti o cumprimento de certas promessas, acusando-Te de indecisão. Mas como já disse, não o entendo. Além do mais, sinto imensa alegria por conhecer pessoalmente aqueles de cuja existência duvidava. Sua expressão é deveras impressionante.”

      3. Digo Eu: “Aqui no Reino da Bem-aventurança todos vós podeis dizer com facilidade: ‘Senhor, Tua Vontade Se faça!’ Mas na Terra as coisas têm aspecto diverso. Na matéria humana habitam os mesmos espíritos e almas imortais como aqui e também almejam desenvolver-se livremente, portanto não suportam a escravidão sob o cetro férreo dos monarcas. Por isto se levantam em toda parte, num esforço supremo para romper o poderio monarquista. Os re- gentes, por sua vez, arregimentam seus súditos para um poder béli- co, ameaçando de morte os rebeldes, mandando matar aos milhares, sem piedade. Os oprimidos clamam a Mim vingança aos reis incle- mentes, e estes Me pedem socorro na vitória contra os rebeldes.

      4. Que devo fazer? A ambos os partidos não assiste direito jus- tificado, no que diz respeito às atuais circunstâncias, pois tanto um quanto outro quer dominar, e ninguém se submete à obediência. A questão é a seguinte: Se Eu ajudar aos monarcas, eles estende-

rão a antiga cegueira sobre os povos, onde espírito algum poderá se desenvolver livremente e o ódio contra os opressores aumentará. Socorrendo o povo, ele se vingará nos superiores e, finalmente, ba- nirá Minha Doutrina suspeita, em virtude da ação de Roma, e criará uma puramente mundana, no feitio da de Ronge (neocatólico).

      1. Vede, Meus amigos, estarem as coisas na Terra de tal modo a impossibilitar-Me qualquer medida. Se deixar tudo conforme está, os dois inimigos jamais chegarão a um acordo, em virtude da ira recíproca. Ajudando ou não — estarei errado. Que fazer?

      2. Jellinek bem pode dizer: Senhor, que Se faça a Tua Vontade! Mas, em tal situação? Roberto Me aconselha depositar uma fagulha de meiguice celeste nos corações dos monarcas, que os tornaria mais mansos, melhores e sábios. Está certo. Mas será que os povos, exces- sivamente excitados e revoltados, neles confiarão? De modo algum. Nada é tão difícil reconquistar como a confiança abalada.

      3. Opinas ser necessário lançar tal fagulha também nos cora- ções dos indivíduos. Seria realmente uma solução fácil. Neste caso, tanto os regentes quanto os povos deixariam de ser criaturas livres. Cairiam em julgamento, sendo transformados em animais nobres, de semelhança humana, e não haveria possibilidade de movimenta- ção espiritualmente livre. Enquanto quisermos conservar os homens como tais, não deveremos impor certo rigor, pois, se assim agirmos, a Humanidade deixaria de existir, caindo no poder eternamente in- vencível como escravos e animais. Vês, portanto, não se justificar tal medida. Que achas razoável fazermos, amigo Becher, para socorrer os povos oprimidos da Terra?”

CAPÍTULO 83

A Natureza do Gênero Humano é condicionada pela Terra e pela posição desta dentro do Universo

  1. Meneando a cabeça e dando de ombros, Becher diz: “Se- nhor, Onipotente e Sábio, se não vês saída para a atual confusão terráquea, como poderemos encontrar solução? Não havendo meio

interno, convém empregar externos, tais como: fome, peste e alguns fenômenos no Firmamento, que todas as criaturas se submeterão. Se tais medidas não forem aplicáveis, em virtude da liberdade do espírito — então que se estraçalhem até dizer ‘chega’! Julgo ser ex- cessiva nossa preocupação com a raça humana, pois ela não vale uma bala de canhão. Melhor seria acabar-se com ela e depositar no orbe uma melhor. Tanto os grandes quanto os pequenos são do diabo. E de que modo se dominará a perversidade satânica? Não vejo meio adequado. Por isto, convém acabar-se, de uma só vez, com tudo. Externo apenas minha despretensiosa opinião.”

  1. Respondo: “Caro amigo Becher, seria coisa muito cômoda caso fosse possível aplicar-se tuas medidas, que de maneira alguma podem ser adotadas de um modo geral, pois redundariam na maior desgraça, não só para a Terra, mas para todo o Universo.

  2. O Gênero Humano deriva da Terra e tem sua natureza e qualidade. Teria, portanto, pouco resultado a completa extinção de todas as criaturas terrenas e seríamos obrigados a fazer surgir outras da matéria telúrica, que em breve se assemelhariam às atuais, como os frutos de uma árvore.

  3. Em tal caso, teríamos de eliminar todo o orbe e colocar outro em seu lugar, o que seria um golpe ainda maior contra Minha Or- dem. De uma árvore que produz frutos deteriorados pode-se tirar a casca e alguns galhos e ramos, e ela produzirá novamente frutos fres- cos. O cerne e as raízes, porém, não devem ser destruídos. A Terra é justamente o Cerne da Vida da Árvore do Espírito e principal raiz do Universo. Se nela iniciássemos uma obra de destruição, entrega- ríamos não só ela, mas toda Criação à final desintegração, o que seria prematuro por alguns decilhões de anos terráqueos. Não posso, de modo algum, aceitar tua proposta, Becher. Veremos se, neste meio tempo, o amigo Messenhauser se lembra de algo prestável. Que Me dizes, amigo?”

  4. Responde este: “Ó Senhor, atiras-me num grande embaraço. Que poderia aconselhar, quando os primeiros espíritos da Terra se fizeram ouvir, sem resolverem o problema? Eu certamente apresen-

taria uma tolice ainda maior do que a Dinastia Austríaca, que dei- xou de aceitar a coroa imperial da Alemanha porque alguns eslavos ignorantes viram neste ato uma degradação da soberania. Agora sim é que tal aceitação seria um maior aviltamento, porquanto terá de submeter-se ao domínio russo caso pretendesse algum resultado, ou ser destruída pelo câncer, que já iniciou sua devastação nas pró- prias vísceras.

  1. Meu parecer, Senhor, seria idêntico, caso quisesse orientar-Te para o equilíbrio das confusões da Terra. Bem sei que tens ao Teu dispor os melhores e mais eficazes recursos, em maior número do que as estrelas existentes no Espaço. Usa o menor que, pela Tua Von- tade, da noite para o dia tudo melhorará. Proporciona aos monarcas a luz verdadeira e aos súditos, meiguice e paciência no porte da cruz e algum terreno abençoado — e todos estarão satisfeitos. Caso os cornos de Satanás tenham crescido em demasia, corta-os por alguns raios bem dirigidos. Isto aliviará, a meu ver, o orgulho dos grandes da Terra, inclusive o do príncipe Alfredo Windischgrätz — o que lhe será muito salutar. Existindo no mundo muitas pessoas de boa índole e intenções, por que razão deveriam ser castigadas quando fores reduzir os cornos dos orgulhosos e, como vejo, já o fazes? É uma humilhação para aqueles cuja classificação começa com a no- breza. Não desejo mal a ninguém, mas apenas que os grandes reco- nheçam serem também criaturas aquelas que julgam ser alimento para canhões.

  2. Sem regentes e leis sábias não poderia subsistir uma sociedade; os responsáveis deveriam compreender que existem para bem servir o povo, e não ser este, qual mercadoria, manobrável a seu bel pra- zer. De modo idêntico devem usar a espada da justiça, mas somente na defesa desse povo contra seus inimigos. Com as armas do amor alcançarão muito mais das multidões. Sabes, Senhor, ser isto mero desejo de minha parte. És o Senhor, cujos Desígnios e Caminhos ocultos são insondáveis. Estou certo de que encontrarás a solução justa. Talvez seja necessário romperem-se as comportas, do contrário não haverá modificação. Tua Vontade, porém, Se faça, Senhor.”

  1. Digo Eu: “Teus desejos não são destituídos de valor e poderão ser aproveitados. A transmissão de luz aos regentes e a meiguice a ser dada aos povos não se aplica. Para tal fim será pregado o Evangelhoa todos eles, recebendo cada um a Água Viva do Poço de Jacob. Caso queiram Luz, Conhecimento e Verdade Plenos, basta sorvê-los na- quela fonte. Não o querendo, é impossível obrigá-los a tanto usando o Meu Poder, pois tal medida prejudicaria, ao invés de beneficiar. Isto não nos é possível fazer, mesmo pelo amor a toda a Vida.

  2. Outra coisa seria se os reis e as nações Me fizessem tal pedido, pois receberiam tudo em Meu Nome. Meus Ouvidos, porém, nada disto percebem. Ouço, vez por outra, gritarem: Senhor, protege nos- so trono, cetro e coroa e deixa-nos vencer a todos que se levantam contra nós! — Da parte do povo, em geral, nada se ouve, e algumas pessoas isoladas nada representam.

  3. Cadaindivíduorecebeoquepede,aospovosnãopodeser dado

oquepoucossuplicam.Por isto, amigo Messenhauser, seremos obri- gados a tomar outras medidas, a fim de conseguir harmonia entre as nações. As cordas estão tensas; porém, como já deves ter percebido, não de modo suficiente. Já foram despertados novos elementos que farão sua incumbência. De fato, será feita uma grande limpeza até que se consiga separar o joio do trigo. Falta, porém, ouvirmos nossa amiga Helena. Então, Minha filha, que sugeres que se faça para a melhoria da Terra? Talvez teus conselhos sejam melhores?”

CAPÍTULO 84

Helena se recusa, mas finalmente se prontifica a falar

  1. Diz Helena: “Ó Senhor, Flor deslumbrante de minha alma e vida! Analisa o meu coração que Te ama sobre tudo — e Tua Oni- presença verá o que penso e sinto. Meu querido, mais sábio, pode- roso, amável e maravilhoso Jesus! De tanto amar-Te, não posso falar. Lá atrás estão muitas pessoas: o general Olavo, o barão, sua esposa e filhas, Ema, em vida casada com um infiel, vários domésticos, o en- graxate e a célebre Mira. Talvez conseguissem pronunciar algo me-

lhor do que eu, que me sinto fraca para fazê-lo. Basta calculares ter sido uma plebeia vienense que agora se encontra a Teu lado, Senhor de Céus e Terra! Além disto, todos os patriarcas e apóstolos. Isto não é brincadeira. Peço-Te deixares falar primeiro os outros, talvez mais tarde me lembre de algo razoável.”

  1. Obtempero: “Querida, bem sei e muito Me alegro por sen- tir-Me tão amado por ti. Os demais hóspedes desta casa também fa- larão, mas primeiro tu, porque estavas Comigo antes deles e por Me amares tão profundamente. Além disto, perdeste tua vida na luta em Viena, o que não foi de teu agrado. Tens que te externar em assunto que tanto te tocou. Fala, que saberei escolher o melhor.”

  2. Diz ela: “Que maçada! Não deixa de ser justo e necessário acontecer aquilo que quiseres. Saberei encontrar uma saída. Lem- bro-me ter o apóstolo Paulo, por insuflação Tua, afirmado que mu- lher alguma deveria se pronunciar numa assembleia de homens. Certamente quiseste experimentar minha tendência para a tagareli- ce. Mas Helena se tornou mais inteligente e não cai nessa!”

  3. Respondo: “Julgas não Me ser possível pegar-te. Provar-te-

-ei o contrário e serás até obrigada a falar pela ordem de Paulo e den- tro de Meu Mandamento. Em uma Carta aos Romanos, no capítulo 16, ele recomenda Febe, a serviço na Comunidade de Kencrea, Pris- cilla, uma certa Maria, Trifena e Trifosa e sua querida Persida que muito laboraram em Meu Nome, pela palavra e ação.

  1. Portanto, Paulo não impôs um freio a tais mulheres, mas apenas àquelas que pretenderam, por orgulho, ter assento na Co- munidade sem possuírem e compreenderem o Meu Espírito, e mes- mo assim queriam se externar, como se soubessem tanto quanto os renascidos. Se uma mulher se tornou plena de Meu Espírito, tanto nela como no homem o mesmo, deve ser até obrigada a se pronun- ciar, dentro daquilo que o espírito exige.

  2. Meus apóstolos formaram, portanto, a melhor Comunidade do mundo, porque fundada por Mim. A quemEu Mesmo enviei para anunciar aos irmãos Minha Ressurreição quando no terceiro dia surgi da tumba? Uma mulher, mais ou menos de tua constitui-

ção moral. Se o posterior mandamento de Paulo devesse ser aplicado a todas as mulheres tagarelas — como uma Madalena poderia se atrever a se arvorar em apóstolo?

  1. Além disto provei, de certa feita, aos saduceus, terminarem no Reino dos espíritos todas as divergências terrenas, isto é, os direi- tos de sexo. São todos iguais aos anjos de Deus e desfrutam de umsó privilégio: tornarem-se filhos do Pai. O mesmo acontece contigo, Helena. Muito embora Me alegre tua modéstia, terás de falar, e isto porque possuis o mesmo direito que Adão, ao teu lado. Anima-te!”

  2. Diz Helena: “Vejo ser impossível escapar-Te. Coisa estra- nha Tua Sabedoria em comparação à nossa. Mas, um pedido bem formulado não Te faria vacilar na Tua Exigência?”

  3. Respondo: “Sim, muito se consegue Comigo por um pedido justo, mas nem tudo. Se, por exemplo, alguém na Terra Me pedis- se, de todo coração, deixá-lo viver eternamente, porque muito lhe agrada a vida, não poderia satisfazê-lo porquanto seria contra Minha Ordem. De modo idêntico não poderia aceder ao teu pedido; por isto, abre tua boca bem feita e fala o que te vai n’alma.”

  4. Diz Helena: “Pois bem, em Teu nome, meu Amado Celes- te, falarei! Se, por acaso, alguma coisa imprópria escapulir de minha língua, dá-me um sinal para que não faça fiasco diante de Ti e dos dignos representantes da Terra! Eis o meu parecer:

  5. Na Terra, algumas pessoas estão num nível elevado e são muito ricas, enquanto a maior parte é plebeia e nada possui. Por isto, os primeiros desprezam os de classe inferior, porque existe o espectro da possibilidade de os pobres se reunirem para avançarem no supérfluo dos grandes e ricos. Estes não pestanejam em usar qualquer meio para evitá-lo. O espírito tem de ser oprimido, seja como for: por mistificações dos padres, amordaçamento da impren- sa, proibição de livros bons, inclusive a Bíblia! Os renitentes são castigados de tal modo a lhes fazer perder o fôlego! Quem, nessas circunstâncias, poderia alcançar o despertar do espírito?

  6. Além disto, tudo que possa contribuir para o aniquilamen- to espiritual é permitido. Haja vista as diversas formas de prostitui-

ção. As aparentes medidas de policiamento não produzem o menor efeito nessa calamidade. Se as ditas mulheres forem apanhadas pela polícia, através da denúncia de um cidadão de cérebro atrofiado, obedecendo ao pedido de moradores que ameaçam se mudar caso as coitadas não sejam despejadas da vizinhança, elas dormem uma noite na delegacia e às vezes são levadas por quinze dias à Casa do Trabalho; isto em nada altera a situação, pois são mandadas para a rua, podendo mais tarde voltar, mormente quando ainda jovens; as velhas não são tratadas com deferência! Afora isto, permite-se farrear à vontade, mesmo que a impudicícia prejudique o espírito! As co- médias imorais também são autorizadas, desde que não contenham críticas ao Governo.

  1. Mesmo assim, serão empregados meios drásticos se alguém quiser se levantar e demonstrar ser de origem divina! Dr. Becher e seus amigos são testemunhas da maneira pela qual os grandes pre- zam toda manifestação espiritual em público! Quem se atrevesse a lhes dizer a verdade receberia o título de ‘escória da Humanidade’, determinando-se bom preço pela sua cabeça e, caso fosse preso, seria melhor não ter nascido!

  2. Assim, Senhor, andam as coisas na Terra e não é de se ad- mirar que as criaturas se levantem e se vinguem naqueles que, há séculos, foram seus verdugos e vampiros! Eu, mulher, confesso aber- tamente ter a pobre Humanidade direito a tal rebelião e está em tempo de se arrancar o ofício de assassino aos grandes, destituídos de amor para com o próximo! Devem os ricos dividir sua posse com os pobres, e de seus enormes castelos se farão asilos! Os pobres devem frequentar escolas dirigidas por professores formados pelo Teu Es- pírito; do contrário, não haverá melhoria na Terra, tudo piorando. Tanto a maldade dos grandes quanto o ódio dos pequenos aumenta- rão qual avalanche a se despencar da montanha! Se não empregares medidas drásticas, Senhor, os países que conheço estarão perdidos!

  3. Acaso Te podes alegrar quando as criaturas, aos milhares, se estraçalham quais feras, só porque os de cima a preço algum querem ceder um palmo de sua grandeza e fortuna? Julgam perder a mão

quando entregam um dedo! Acredito que se eles enfrentassem os pobres com amor, os trariam na palma da mão! Porém, na realidade, somente fazem concessões fingidas — após a multidão desesperada os atacar — mantendo tal estado de benevolência até arregimen- tarem suas forças bélicas para dominar a revolta! Compreende-se, assim, não mais merecerem confiança! Acresce ainda a circunstância de que o povo não pode manter o luxo dos reis e mais o pagamento de suas dívidas! Resta, a meu ver, libertá-lo de seus regentes, subs- tituindo-os por guias inspirados que saberão respeitar o valor do próximo, empenhando-se por vivificar o espírito em cada criatura! Se isto não se der, terás, Senhor, a mesma complicação com os habi- tantes da Terra conforme se deu conosco, pois somos, não obstante Teu grande Esforço e Graça, tão ignorantes como os animais! Deve, finalmente, causar-Te aborrecimento o fato de, a cada minuto, aqui chegarem milhares de seres ignorantes a Teu respeito!

  1. Aplica, pois, à pobre Terra, a mesma Bondade que nos conferiste, e não permitas serem Teus confessores crucificados por aqueles que hoje, como naquela época, Te crucificariam sem vacilar, caso lá voltasses e lhes fizesses um sermão idêntico ao de Jerusalém! Levanta-Te, Senhor! Prepara e aduba o orbe com Tua Graça Plena! Do contrário, se tornará centro de horror e devastação! Tu Mesmo, meu amantíssimo Jesus, afirmaste ser eu Tua querida Helena! Se fui digna de nome tão elevado, faze o que Te peço de coração!

  2. Igual aos outros, externo apenas meu parecer pelo qual algo de decisivo tem que se dar! Se falei tolices, não sou culpada, pois deverias chamar-me a atenção! Como me fitaste sorrindo, presu- mo não me ter desviado do bom raciocínio! Além do mais, não tive a educação de uma Safo ou Catarina de Siena! Termino o meu discurso e peço-Te não diminuíres Teu Amor para comigo em vir- tude de minha tagarelice! Aos Teus pés deposito meu afeto e minha vida! Amém.”

CAPÍTULO 85

O Senhor critica as propostas de Helena. A Terra não pode ser um Paraíso enquanto for campo de provação

    1. Digo Eu: “Helena querida, apresentaste teu discurso em boa sequência e dentro de tua experiência e compreensão. Teu de- sejo só pode ser elogiado e muita coisa será feita como pediste. Evidentemente, no todo te excedeste. Infelizmente percebo que muitos regentes, dos quais alguns já deixaram a vida, se prestam para tudo, menos para tal incumbência. Mas, que fazer? Dar-te-ei uma parábola e julgarás se é possível realizar-se tudo que desejas. Ouve, pois:

    2. Alguns colonos, após longas caminhadas, encontraram um terreno aprazível e fértil em meio a um grande deserto. A primeira questão a resolver se relaciona com a construção de uma habitação própria para o clima. Rápido se faz um plano, pondo mãos à obra e, em curto tempo, está pronta uma cabana adequada contra as intem- péries e animais ferozes.

    3. Um do grupo então diz: ‘Caros amigos, estamos por algum tempo protegidos contra calor e feras; porém, se nesta zona des- conhecida se encontrar um inimigo poderoso, digamos, uma tribo selvagem, essa cabana não será suficiente, pois poderia destruí-la e matar-nos com as armas que possui!’ Todos concordam e resolvem fazer um vale profundo em volta da cabana e levantar uma amurada de duas braças. As janelas devem ser providas de barras de ferro e a porta da entrada ser mais resistente, para melhor defesa. Isto tudo é prontamente executado.

    4. Depois de tudo feito eles se alegram, com exceção de um, mais meticuloso, que observa: ‘Caros amigos, a vida na Terra é qua- se toda igual. Nos países cultos da Europa, onde reis orgulhosos mantêm fortes exércitos, basta, de certo modo, conter-se a língua, para não se temer adversários. Obedecendo ou acatando as leis e aceitando-as como vontade própria, pode a criatura se movimentar livremente sob a proteção dos potentados. Só é preso quem tem es-

tômago dilatado e língua afiada, cujo intelecto não quer se submeter às leis, perdendo, portanto, sua liberdade. Aqui estamos livres de qualquer regime e podemos falar à vontade! Mas, de que nos adian- ta isto? Se bem que não paguemos impostos, temos que trabalhar o dia todo a fim de colher os frutos e acostumarmo-nos ao clima, ainda desconhecido. Somos obrigados a nos encarregar aqui no país da plena liberdade, para nos protegermos contra qualquer invasão. Durante a noite temos que nos trancar mais que os habitantes de Paris! Dizei-me, sinceramente, se nesta situação de independência absoluta somos mais favorecidos que o mais simples operário de um Governo europeu, aqui verdadeiros comunistas; mas, lá fora, os ani- mais selvagens parecem estar animados pelo mesmo espírito! Não necessitamos manter funcionários incômodos, em compensação nossas necessidades são maiores. Assim, também, não existe aqui um padre que nos possa mandar para o inferno; todavia, nossa situação não deve divergir, em muito, daquela zona! Que faremos, a fim de amenizar um pouco nossa vida tão atribulada?’

    1. Dando de ombros, os outros respondem: ‘Quem teria pensa- do nisto? Afinal de contas, existe ummal em toda parte. Nem bem a pessoa se vê livre de um, aparece outro. Estamos aqui e não podemos modificar a situação. Convém, portanto, trabalhar com afinco, que o futuro talvez melhore!’

    2. Vê, cara Helena, o que é necessário se fazer na Terra a fim de transformá-la num Paraíso, pois é ela um caminho de provações espinhosas para o espírito humano! Se Eu destituir todos os regen- tes, entregando seu poder nas mãos dos povos, estes regerão — mas sobre quem? Todos hão de querer dominar, mas ninguém obedecer, salvo se tiverem prazer em seguir suas próprias leis! Se o povo regesse e elaborasse leis para si mesmo, quem, em caso de perigo, poderia forçá-lo a respeitá-las?

    3. Afirmo-te: No final será adotada uma Democracia, mas de modo diverso da compreensão dos povos. Resta saber se não irão reclamar, como os israelitas no deserto, caso não possam colocar as panelas de carne no fogo!

    1. Convém compreenderdes não ser a Terra um Paraíso, por- quanto deve permanecer como solo de provação para cada espíri- to encerrado na carne pesada e vergonhosa, fator indispensável na conquista da Vida Eterna e perfeita; assim começareis a julgar mais acertadamente.

    2. A culpa de os reis se encontrarem fracos e os povos ignoran- tes cabe a alguém que não sabeis. Em breve conhecereis este úni- coresponsável que será algemado, libertando assim as criaturas do mundo. Então, tudo melhorará sem vingança!

    3. Cara Helena, digo-te que ficarás satisfeita Comigo porque, no fim, tudo terá uma solução condigna. Por enquanto tens que esperar que os espíritos da Terra adquiram sua consciência própria e compreensão daquilo de que carecem! Será, então, obra de um momento, ficando tudo equilibrado na face da Terra! Agora, Olavo, aproxima-te de Mim e transmite-nos teu parecer e desejos!”

CAPÍTULO 86

Conhecimento de Olavo. Um brinde celeste. A Nova Ponte de Luz e Amor da Graça Divina

  1. Adianta-se Olavo e diz: “Senhor, é difícil externar um parecer ou desejo quando Tu, a Sabedoria mais Profunda e Onipotente, falas e desde muito previste o que ora acontece, já tendo sido tomadas as medidas necessárias para solucionar, o mais breve possível, as atuais convulsões na Terra! Eis meu desejo principal, que não encerra nada de mal ao diabo, muito menos aos homens, meus irmãos!

  2. Não é necessário, julgo eu, descrever as situações terrenas! Tu, Senhor, abranges de um só golpe não só as crueldades, mas também os corações com seus pensamentos bons ou maus, onde se originam as atitudes! Por isto não necessitas ouvir o parecer de um espírito. Podes, sim, dizer-nos: ‘Farei isto ou aquilo’, e ninguém perguntará pelo porquê! És o Senhor e podes fazer o que quiseres!

  3. Assim, permites acontecerem fatos na Terra dos quais nin- guém sabe o motivo. Os ignorantes dizem: Senhor, acaso ficaste

surdo e mudo, por nos deixares sucumbir nas atribulações? Penso que a ninguém deixas perecer, mas levantas a todos que Te pedem. Aqueles que depositam confiança e armas nas próprias forças não devem se queixar de seu fracasso! Os pequenos e fracos bem podem se rejubilar, pois que és seu Escudo e jamais consentirás que se en- vergonhem pela confiança que depositam em Ti. Ao passo que os orgulhosos serão humilhados quando lhes arrancares a máscara; pois seu jogo com os súditos é vergonhoso!

  1. Contudo, não me preocupo, sabendo ser bom tudo que fize- res! Não passa desapercebido aos Teus Olhos o menor crime! Aque- les, pois, que hoje assentam um golpe nos irmãos que denominam de inimigos serão amanhã por Ti atacados, desaparecendo inclusive seu ofício, como se nunca tivessem existido! Seja, assim, abençoado Teu Santíssimo Nome! Sinto algo estranho! Nada vejo e ouço; te- nho, no entanto, a impressão de que agora se deu um forte golpe na Terra! Que será, Senhor?!”

  2. Respondo: “Caro Olavo, afirmo-te: Hoje, hoje e hoje será o dia! Eles querem a treva e ela os tragará! Desejam a morte como ajudante; ela lhes será dada! Almejam brilho, honra e mérito, para o que são necessárias milhares de mortes! Seu brilho é ofuscante, sua honra vergonhosa e desprezível seu mérito! Querem dominar com a peste o dragão em sua caverna qual leviatã no fundo do lodo do mar! Preferem a mentira, porque a verdade se lhes tornou um hor- ror de devastação! Por isto, jamais chegarão à luz da Verdade! Tam- bém querem um deus nos moldes de suas necessidades! Eis por que nunca hão de ver o Meu Semblante! Assim também só eles querem viver e os outros somente o poderão fazer quando forem úteis à vida dos grandes! Por este motivo, viverão eternamente isolados! Tudo será feito como o quiseram! Em breve, porém, um arrependimento enorme e pavoroso cairá em suas almas, qual rocha das nuvens, e eles tentarão libertar-se do desespero! Será, todavia, inútil essa ten- tativa, pois ninguém levantará esta pedra do sepulcro de suas almas! Conheço-os, inclusive sua volúpia e ações! Busquei os reis da Terra e poucos encontrei que se justificassem perante Mim! Por esta razão

compartilharão da sorte de Nabucodonosor! Aos poucos justos so- correrei milagrosamente, de sorte a brilharem doravante entre todos os reis e povos quais estrelas no Firmamento.

  1. Hoje, hoje e hoje começará o julgamento! Hoje muitos de- mônios serão aniquilados e Satanás não escapará à armadilha! Vai, Roberto, buscar o melhor vinho, o vinho da Vida, do Amor e da Verdade, a fim de que bebamos à saúde dos pobres irmãos na Terra e os abençoemos! Que assim seja!” Roberto obedece e deposita o dito néctar sobre a mesa do Conselho, e Eu abençoo o vinho, di- zendo: “Caro Roberto, quando exijo vinho, subentende-se também o pão; vai buscá-lo, uma vez que esta casa está provida de tudo em abundância!

  2. Distribui-os igualmente às vinte e quatro bailarinas e dize-

-lhes que se aprontem, porque terão que dançar daqui a pouco. Caso desejem saborear frutos bons, abre o armário junto da porta que leva a um outro recinto. Poderão servir-se de tudo!

  1. Outra coisa. Traze também alguns cálices para podermos ser- vir o vinho a cada um. Executa Meu Desejo!” Tudo arrumado, Eu Mesmo passo a fazer a distribuição de pão e vinho e digo: “Filhos Meus, saciai-vos! Bebei à felicidade de nossos filhos e irmãos na Ter- ra, que ora suportam terrível perseguição e se tornaram cansados e fracos! Em verdade, serão socorridos! De cada gota de vinho advirá salvação a todos de boa índole e vontade! Ainda hoje se positivará nos bons, de modo completo, termos todos pensado neles; seus co- rações e as obras do mundo lhes revelarão isto! E a alguns poucos será transmitido, palavra por palavra, traço por traço, o que aqui acontece e o zelo que lhes dedicamos!

  2. Não esqueceremos dos cegos e surdos! Os endurecidos de coração irão para o fogo, mestre e destruidor do diamante! Os que não se deixarem convencer pela verdade do Verbo e da Doutrina livre serão amainados pelo fogo! Sob os golpes poderosos do grande Martelo de Minha Sabedoria serão transformados, qual aço incan- descente, em instrumento útil de nossa Casa — a Igreja Celeste! Adotarão medidas reacionárias, elaborando vários planos; isto tudo

será baldado, produzindo efeito contrário! Somente Eu Sou o Se- nhor, que tem o Poder de partir coroas e cetros e soerguer os abati- dos, caso se dirijam a Mim! Ai deles se não procurarem a verdadeira salvação Comigo!

  1. Aos reis que a Mim se unirem ajudarei, dando-lhes a justa sabedoria e força! E seus povos exclamarão: ‘Salve, senhor e rei, dado por Deus Onipotente! Tudo que é nosso será teu! Teu grande saber e bondade serão nossa constituição verdadeira e viva! Tua palavra será nossa vontade e tua vontade, nossa lei! E ai do infrator contra tua fronte ungida!’

  2. Em compensação, ai dos reis, duques e príncipes, traidores e inimigos de seus vizinhos, que enchem os seus corações de mis- tificação e mentira! Garanto-vos serem todos aniquilados como as traças de uma folha, pois limparei a Terra de todo joio!

  3. Em seguida, será erigida uma ponte daqui para lá, a fim de tornar mais fácil a chegada dos habitantes do orbe, melhor que a Es- cada de Meu Jacob — bastante frágil — por onde só anjos podiam descer e subir.

  4. Tal ponte é larga e lisa qual espelho de um lago, e não have- rá sentinelas em parte alguma para examinarem os fracos, miseráveis e enfermos; todos terão livre acesso, podendo buscar aqui, na verda- deira pátria, conselho e ajuda plena.

  5. Por esta ponte também visitaremos a Terra por tanto tempo abandonada, a fim de educar, ensinar, conduzir e reger pessoalmente nossos filhos, erigindo o Paraíso perdido!

  6. Sabeis agora a Minha Vontade e Decisão! Analisai-as! Cada um compare com ela seu discurso, opinião e desejo, e verá que tudo está nelas contido; portanto, não haverá quem afirme ter fa- lado em vão!

  7. Comei e bebei pela felicidade de nossos filhos e irmãos na Terra, sabendo que os ajudaremos neste momento!”

CAPÍTULO 87

A Ceia Celeste em benefício dos habitantes da Terra. Cena comovedora entre o Senhor e Helena. Um aparte de Adão. Vestido de noiva e coroa de Helena, símbolos de seu amor puro e fervoroso

    1. Nesta altura, todos os hóspedes se levantam com respeito e exclamam: “Santo, Santo e Santo és Tu, nosso Deus Único, Senhor e Pai! Teu Santo Nome seja louvado eternamente!”

    2. Comovida, Helena começa a soluçar e diz: “Ó meu Jesus, como posso ficar a Teu lado? És Deus Onipotente, Vivo, Eterno e Verdadeiro, Criador de Céus e Terra; e eu uma criatura ínfima, macu- lada e pecadora! Isto não é possível! Agora compreendo não merecer ficar junto de Ti! Deixa-me, por isto, procurar aquelas dançarinas!”

    3. Digo Eu: “Imagina! É só o que desejas? Se a tua companhia Me fosse desagradável, de há muito teria encontrado um lugarzinho para ficares bem longe de Mim. Sendo-Me muito querida, prefiro-te ao Meu lado! Julgas Eu Me envaidecer pela Minha Divindade?! En- ganas-te! Se assim fosse, não Me teria tornado homem e Me deixado crucificar! Sou de todo Coração Meigo, Humilde e Humano como vós todos! Podes arriscar-te a ficar aqui. Garanto-te que ainda nos entenderemos muito bem!”

    4. Estas Minhas Palavras invadem seu coração num fortíssimo amor, de modo a torná-la indescritivelmente bela, levando Adão à seguinte observação: “Eis uma verdadeira Eva, antes de sua queda; pois mais tarde só houve duas — Gemela e a sacerdotisa Purista — nas alturas, semelhantes a esta. Seu espírito é deveras maravilhoso! Helena, tens que dedicar-te um pouco a mim, pois física e psiquica- mente sou também teu pai! Como primeiro homem e progenitor de todos os mortais, não deves recear-me! Amo a todos os meus filhos, inclusive a ti! Diante do espírito somos todos iguais, portanto não te amedrontes diante de alguém, ainda que esse alguém fosse dez vezes mais Adão do que eu! A criatura será sempre criatura e não vem ao caso se viveu dez mil anos antes ou depois, compreendeste?”

    1. Responde Helena: “Muito me alegra a honra imerecida de poder trocar algumas palavras com o pai Adão! Quando dispuser de tempo, poderá contar-me alguns fatos da era remota, pois adoro tais histórias!”

    2. Diz Adão: “Minha filha, não só isto, mas também te mostra- rei milhares de coisas!”

    3. Intervenho: “Helena! Esqueces de comer e beber! Todos o fazem em prol dos irmãos sofredores na Terra, e tu nem mesmo to- caste pão e vinho? Não sentes o mesmo que os outros?”

    4. Responde Helena: “Meu queridíssimo Deus e Salvador Jesus! Sabes, quem Te ama como eu, acima de tudo, e está apaixonada até as fibras mais recônditas de sua vida, não sente fome e sede. Tu Mesmo és o Pão nutritivo da Vida e o Néctar fortificador de alma e espírito! Ainda mesmo saboreando este pão e vinho por toda Eter- nidade, sem possuir Teu Pleno Amor, onde reside toda a força da Vida, não poderia ajudar-me e aos outros! Nem este pão, tampouco o vinho, embora espirituais, podem socorrer, e sim Tu unicamente, meu querido Jesus! Presumo, portanto, não considerares isto uma falha de minha parte, que procurarei corrigir. Peço-Te apenas não Te aborreceres comigo!”

    5. Digo Eu: “Mas, Helena querida! Que ideia é esta? Sabia não poderes saciar-te em virtude de teu grande amor para Comigo, e fiz aquela pergunta apenas para te expressares desse modo diante dos outros! Como o fizeste dentro de Meu Sentir, serás agraciada com vestido de púrpura clara e enfeitada com uma coroa! Pois te tornaste a noiva mais mimosa que será enfeitada para sempre com a veste do puro e verdadeiro amor! Roberto, abre o armário de ouro, onde encontrarás o vestido certo para esta noiva de Meu Coração! Eu Mesmo a adornarei!”

    6. Cheio de alegria, Roberto vai rápido ao mencionado armá- rio e apanha um vestido tão deslumbrante que o deixa perplexo, pois jamais seus olhos viram coisa igual. As próprias dançarinas soltam um grito de admiração e se extasiam diante daquela maravilha cor da aurora.

    1. Até mesmo o libidinoso, que se encontra no fundo da sala em companhia de vários outros, é atraído pelo brilho e levado a perguntar a quem se destina tal régia indumentária. Impassível, Ro- berto responde: “Àquela rameira de Viena!” Ao que o outro observa, aborrecido: “Realmente, ela entende bem do ofício de virar a cabeça dos heróis mais sábios do Céu! Certamente será isto em seu próprio benefício! Dize-me, Blum, como pode o mais sábio entre os sábios interessar-se de modo tão tolo por aquela criatura abjeta, a ponto de fazê-la rainha do Céu?”

    2. Diz Roberto: “Amigo, dirige-te a Ele, que saberá informar! Não sou orientado nos segredos dos Céus! Ele é o Senhor e pode fazer o que quiser; portanto, isto é de Sua Vontade. Tenho de ir, pois já me chama com o olhar!”

    3. Roberto se apressa em chegar à mesa do Conselho, onde Me entrega o vestido estrelado. Eu o passo a Helena, que não se atreve a tocá-lo, tal sua gratidão, amor e respeito, opondo-se a vesti-lo, por não se julgar merecedora.

    4. Eu, então, lhe digo: “Helena, já deves saber — Comigo não adianta qualquer oposição, pois todo desejo Meu tem de ser rea- lizado, mesmo que para isto toda a Criação perecesse, o que não acontecerá neste caso. Além disto, para Mim, Criador de todas as maravilhas e glórias celestes e terrenas, uma noiva bonita e bem ves- tida é mais agradável do que uma feia. É necessário que tudo se torne de acordo. Quando o íntimo estiver purificado, o exterior de- verá se apresentar da mesma forma! Assim, este vestido corresponde de modo perfeito ao teu íntimo; é esta a razão de teres que vesti-lo incontinenti!”

    5. Exclama Helena: “Meu querido Senhor e Salvador Jesus, vês que meu coração se prende unicamente a Ti, e jamais a uma roupa, mesmo que fosse mil vezes mais brilhante do que esta. Pos- suindo-Te, não me interessam todos os Céus e seus brilhos, que sem Ti se tornariam insuportáveis! Sendo de Tua Vontade e Satisfação, obedecerei, e meu coração agradecer-Te-á com o afeto mais sincero! Tua Vontade Se faça! És meu coração, minha vida e felicidade!”

    1. Com estas palavras, Helena pega o vestido e, nem bem o toca, já está vestida, o que muito a admira, e diz: “Em Teu Santo Nome, o que se passa? Nem tive tempo de vestir-me e já me en- feita tão maravilhosamente, como se fosse feito sob medida! Meu Jesus, és capaz de deixar alguém louquinho de alegria! O que devo fazer para demonstrar minha gratidão mais fortemente? Dá-me uma tarefa!”

    2. Digo Eu: “Querida, já resolveste teu problema, pois nem o mais elevado arcanjo poderia fazer mais que o teu imenso amor; fica, portanto, nesta incumbência, pois todo o resto seria menos elevado! Afirmo-te: quem Me ama como tu, comporta mais que todos os Céus, onde estou inteiramente Presente. Dentro de Mim resplandecem e germinam inúmeros Céus novos, que um dia serão projetados! Agora basta Me dares um justo beijo, para podermos prosseguir nas determinações do Conselho.”

CAPÍTULO 88

Que vem a ser um justo beijo? O noivado Divino como prêmio do mais puro amor a Deus

  1. Diz Helena: “Senhor, disseste que deveria dar-Te um justo beijo! Mas a expressão ‘justo’ me causa escrúpulos, pois conheço o beijo dado por amor e nunca dei algum que não tivesse essa causa. Um beijo traidor de Judas nunca se realizou em meu coração e vida. Se um beijo provindo do amor sincero e puro não for justo, não sei como deverá ser para justificar-se diante de Ti! Esclarece-me a respeito, sim?”

  2. Digo Eu: “Mas, Helena, qual seria outro beijo a não ser o do amor puro e verdadeiro? Como sentes este afeto sincero para Comigo, só Me poderás beijar deste modo! Existem dois tipos de beijos: o primeiro, que mais se origina no respeito do que no amor; o segundo, que, não obstante o respeito, é dado por simples afeto. Esse segundo, que passa o beijo de boca a boca, e não só à testa, é por Mim denominado de justo; o primeiro tipo, por respeito, já Me

foi dado à, testa. Achei-o muito amoroso e percebi conter mais amor do que puro respeito. Como desde nosso primeiro beijo teu respeito transformou-se em amor, dando-lhe o cunho mais agradável por toda a Eternidade, não podes mais dar-Me um beijo na testa, e sim na boca, que será justo! Entendes isto?”

  1. Responde Helena, com as faces rosadas: “Sim, entendo-o! Mas..., será um pouco... forte e os outros se rirão do meu atrevimen- to! Hum, que me importa! Se Tu o queres, não pode estar errado, Senhor! E o amor também não se engana! Se, todavia, considero seres o Criador Onipotente e Eterno e eu apenas criatura fraca, é realmente estranho eu beijar o Santíssimo na Boca que pronunciou o poderoso ‘Que assim seja!’ fazendo surgir Céus e Terra! Tu Mes- mo, porém, queres satisfazer o desejo mais ardente de meu coração, portanto se faça a Tua Vontade!”

  2. Com estas palavras, ela Me dá um beijo cheio de amor e Eu lhe digo: “Só agora és perfeitae realizaste para a Terra toda a Obrado Perdão!Desfrutarás a Meu lado, isto é, com todo o Meu Amor, a maior bem-aventurança do Meu Céu de Amor mais puro e elevado onde habitam os que Me amam igual a ti! Asseguro-te, no entanto,

não haver muitos! Inúmeros o fazem como sendo Eu Deus, Senhor e Pai! Tu, porém, mais ainda te achegaste a Mim pelo exemplo de Ma- dalena e atraíste Meu Coração, ocorrendo deste modo o MatrimônioPerfeito de todos os Céus!Por este matrimônio te tornaste uma real esposa divina e compartilharás, igual a Mim, da máxima felicidade que Me cabe! Estás satisfeita?”

  1. Diz Helena, tremendo de alegria: “Oh, meu querido Jesus! Eu, pobre pecadora, sou agora Tua Esposa? Céus, o que se passou comigo? Isto não é possível! Tu, a Verdade Eterna, o pronunciaste, portanto será mesmo! Mas, o que farei nas bem-aventuranças mais profundas e elevadas? Como as suportarei?! Não ficarei atordoada, qual pecadora que, da mais sublime estrela, fitasse a Terra no abis- mo? Acaso poderei equilibrar-me em tais alturas? Oh, Jesus, o que fizeste de mim? Tenho a impressão de ser a feliz mais infeliz, como alguém que existe e ao mesmo tempo não existe!”

  1. Digo Eu: “Minha Amada, sê calma e alegre! Dentro em bre- ve ter-te-ás equilibrado, pois nas Minhas Alturas tudo se passa de modo simples e despretensioso! Não existem etiquetas, nem exces- sivo brilho e luxo, senão a modéstia mais pura e agradável numa constante alegria! Assim, logo te ambientarás. Agora, lança um olhar pela janela que dá para oeste e dize-Me o que vês!”

CAPÍTULO 89

A Terra e seus horrores. O espírito do anticristo.

Uma alegoria na mesa do Conselho

  1. Imediatamente Helena se dirige à janela e, após alguns ins- tantes, junta as mãos em desespero, não suportando o que vê. Corre junto a Mim e diz: “Mas, Senhor, meu Jesus! Isto é horrível!”

  2. Digo Eu: “Que foi, Helena, que te deixou tão agitada? Acaso viste o diabo ou algo semelhante? Acalma-te e fala!”

  3. Controlando-se, Helena diz: “Meu queridíssimo Jesus, creio que, comparado a este horror, o próprio diabo é apenas malandro! Pela primeira vez após minha desencarnação revi a Terra horrorosa e hedionda, como se eu estivesse em cima de uma nuvem! Áustria e Hungria se estendiam qual enorme mapa com todas as suas mi- núcias. Que aspecto terrível! As cidades estavam cheias de fogo, de- tritos e vermes abjetos; os rios, lagos e mares, em sangue! Exércitos poderosos se desafiavam, espalhando traição e morte! Os homens se estraçalhavam como as feras selvagens! Ao lado das forças impe- riais vi inúmeros russos; entre eles, reinava traição e assassínio! No exército húngaro vi também russos, poloneses e soldados de outras nações. Todos gritavam: ‘Morte e destruição aos déspotas! Para nós, vitória ou a morte! Não há mais atenuantes e perdão; amaldiçoado quem cogitar de entendimento!’ Os soldados imperiais nada con- seguiam, muito embora fosse grande o esforço; primeiro por terem sido traídos; segundo, por estarem em minoria, sem conseguir van- tagens. Senhor, finaliza este massacre e não deixes perecer os fracos!

Transmite aos húngaros o espírito da concórdia como também aos austríacos, pois sinto compaixão pelos meus conterrâneos!”

  1. Digo Eu: “Helena querida, tudo que viste corresponde à verdade! Os corações humanos foram tomados pelo espírito do an- ticristo, que lança a contenda entre eles a ponto de se estraçalha- rem como tigres, hienas e dragões. Isto, porém, terá um fim inédito para a Terra!

  2. Em cima desta mesa verás surgir, qual planta, uma taça, onde perceberás a medida das crueldades humanas, terminando com o estado de coisas do mundo! Já está aparecendo! Observa-a e descreve sua forma e o que nela vês!”

  3. Surpresa, Helena fita o cálice que surge aos poucos em cima da mesa. Quando, após alguns instantes, está completada, ela excla- ma: “Mas, Senhor! Que é isto? No começo assemelhava-se a um lírio aquático. Em seguida, germinou no centro de suas folhas compridas uma haste forte, em cujo cimo se via um botão. As folhas rapida- mente secaram e o botão desabrochou, projetando, ao invés de uma flor, uma inconfundível tiara papal, porém invertida, isto é, com a tríplice cruz que pousa numa dourada maçã para baixo, e o aro final para cima. Tal mitra se acha diante de mim qual cálice, de modo peculiar, em cima de um tripé que se desenvolveu automaticamente da haste. Essa taça esquisita é, por dentro, completamente negra e na altura das pedras preciosas jorra sangue e mais sangue, revolvido por répteis horripilantes! As cabeças são como aço incandescente e o cor- po de dragão. E esses bichos nojentos sorvem ávidos aquele sangue, de modo que a taça não se enche e não transborda, não obstante a permanente afluência, permitindo assim a todos poderem ver seu conteúdo abjeto! Entre os répteis, vejo um muito maior que os de- mais. Possui sete cabeças; em cada uma, dez pontas como espadas e em cada ponta está fincada uma coroa em brasa. Assim que o réptil submerge no sangue, a taça entorna, produzindo ruído e vapor pes- tilento! O sangue aflui mais fortemente e os animais se saciam com volúpia; o que não conseguem absorver é transformado em vapor e

fumaça! Que aspecto horroroso, Senhor! Amarra a boca dos répteis e tira as coroas em brasa daquele maior, para que a taça se encha!”

  1. Digo Eu: “Minha Helena, compreendes a relação entre o quadro lá fora e essa taça?”

  2. Responde ela: “Senhor, não me será possível desvendar tal relação, por isto Te peço revelares o real sentido destas aparições, se for de Tua Vontade!”

  3. Acrescento Eu: “De todo coração, Minha filha! Lá fora depa- raste com a grande desgraça; aqui, com o motivo! Lá se apresentou o real efeito, que do Alfa ao Ômega tem aqui sua causa original!

  4. Vê, enquanto houver na Terra católicos romanos, existirão revolta, traição, guerra e assassínio! Observa, porém, a Turquia e vê-la-ás armada, mas calma. A China e o Japão, também! A Grã-Bre- tanha e a América, com exceção de alguns núcleos católicos, estão serenas. A Ásia e a África repletas de habitantes, salvo alguns peque- nos distritos, estão calmas. A Rússia grega — afora poucos centros católicos poloneses — está pacífica. A Noruega e a Suécia estão cal- mas, com exceção de alguns fanáticos emigrantes católicos fazendo maquinações secretas, sem grande efeito. Austrália, Nova Zelândia e todo o arquipélago do Oceano Pacífico se encontram em sossego; e quando surgem pequenos atritos são provocados pelos católicos! Observa a Espanha ultra católica. Está num vulcão, sob cujo solo aparentemente calmo reside o fogo que irromperá dentro em pou- co. O mesmo se dá em Portugal. A França católica está ardendo em todos os cantos. A Itália propriamente católica quase não é visível de tanta fumaça, brasa, fogo e vapor. Dirige teu olhar para a Áustria, fielmente católica; não se parece com um mapa-múndi rasgado e queimado? O aspecto desta monarquia é quase igual em todos os países! O que na Alemanha é católico aparenta brasa sobre brasa. Há alguns anos os católicos da Suíça quiseram excluir-se e criar uma Liga Independente que desprezava as demais seitas. Com isto ofen- deram os partidos, que se juntaram e dispersaram os tolos e orgulho- sos, arrancando à hierarquia católica, bem como aos seus asseclas, a máscara da falsidade. Revoltados, juraram vingança tenebrosa! A

parte mais esperta do mundo em breve descobriu os belos planos da Igreja Católica e seus auxiliares, que dela esperavam montes de ouro, levantando-se por toda parte, exercendo ainda agora reação nos pontos católicos. Assim sendo, vês nesta mesa o símbolo nefas- to: uma tiara tombada, onde os países sofrem de hemorragia interna e brevemente se esvairão. Bem que a hierarquia católica tenta evitar que sua reputação externa seja maculada pelos horrores internos, mas seu esforço de nada lhe adiantará! Foi por isto que mostrei ao mundo seu conteúdo na posição inversa da tiara; ela poderá fazer o que quiser, porém não mais conseguirá colocar de pé a sua coroa, aniquilando-se a si mesma! Compreendeste isto?”

  1. Responde Helena: “Um pouco, pois não vislumbro o senti- do completo; o sangue e os répteis abjetos representam algo somente compreensível a Ti. Dá-nos mais esta explicação, Senhor!”

  2. Digo Eu: “Pois bem. O sangue que jorra no interior, pre- cisamente do lado de fora onde se encontram as pedras preciosas

  1. Meditando sobre isto, assimilarás o que vem a ser o sangue dentro da tiara! Os répteis que o absorvem, ocultando-a dos olhos dos povos ignorantes, são os bajuladores e lisonjeadores abjetos e egoístas, em todas as formas de profissão e atividade. Tais pessoas são em todas as sociedades as mais repelentes e não têm amor para com aqueles a quem bajulam. São os piores inimigos da Humanidade e amam somente a si mesmos; razão por que traem do modo mais vil precisamente àqueles aos quais fingem tudo fazer, tão logo preveem

uma vantagem. Pois o traidor sempre o será; para a esquerda ou para a direita, contanto que lhe dê lucro! O mesmo acontece com a Ro- mana. Estima os bajuladores, simuladores, denunciadores, espiões e todos que mentem com facilidade e sabem inventar mistificações de cunho beato. Justamente estes serão seus piores juízes, formando denunciantes inescrupulosos! Grande parte, na própria Roma, já o fez, e em breve outros seguirão o exemplo com maior sucesso!

  1. Agora tens a explicação do sangue e dos répteis. Falta, ain- da, o das sete cabeças, que te será elucidado por outra aparição. Presta atenção onde se encontra a taça e transmite fielmente tua observação.”

CAPÍTULO 90

Prosseguimento do quadro, em cima da mesa do Conselho. Por que Deus permite os horrores no mundo?

  1. Helena observa atentamente a taça diante de si, de cujo cen- tro surge um trono em ouro e púrpura, ocupado por um soberano. Amedrontada, ela diz: “Senhor, Salvador de todas as criaturas, eis um monarca sentado num trono, com expressão tão orgulhosa a causar repugnância! Neste momento, aparecem na mesma taça inú- meras pessoas bem vestidas, curvando-se até o solo diante dele, que os mede dos pés à cabeça, fazendo-os estremecer! Os que mais se curvam são por ele chamados e recebem ordens; os outros, menos submissos, são cuspidos e obrigados a se retirar. Enquanto se afas- tam, ainda se tornam alvo do desprezo dos preferidos. Eis que o monarca lhes dá ordem de retirada e, mal se viram com humildade, ele pragueja e cospe em suas pegadas! Que homem desprezível!

  2. O recinto em volta ao trono se dilata e vejo inúmeras pes- soas em miniatura, de aspecto miserável; entre elas, as que haviam recebido incumbências por parte do soberano, mas que agora apre- sentam expressão dominadora, como seu chefe. Os pobres têm de se humilhar e alguns até mesmo se deitam no solo para que os outros lhes pisem nas cabeças! Um ou outro que se atreve a gritar é imedia-

tamente preso por soldados e conduzido a um cárcere escuro, onde é enforcado!

  1. Agora observo um grupo completamente pisado e sangrando por muitas feridas. Com imenso temor se dirige ao trono para pedir audiência e solução para suas misérias, que os lacaios transmitem ao rei e são por ele orientados a não permitirem a aproximação de tal ralé. Virando-se para os pedintes, eles dizem: ‘O rei está mal-

-humorado, motivo pelo qual não recebe pessoa alguma. Se sentis necessidades, dirigi-vos aos funcionários que saberão tomar as de- vidas providências.’ Respondem os pedintes: ‘Mas é precisamente contra eles que vimos fazer queixa ao rei, porquanto nos perseguem de maneira incrível!’ ‘Ah, isto muda de aspecto! Ide para casa e deixai o assunto por nossa conta. Preciso apenas de vossos nomes e ende- reços para poderdes receber auxílio.’ Nem bem isto fazem é enviado um mensageiro aos funcionários com a incumbência de castigarem ainda mais os súditos, por fazerem tais queixas. Devem ficar tão reduzidos a não mais se animarem com tal petulância! Estas ordens são prontamente executadas, e o rei confere condecoração ao servo prestimoso! Ó Senhor, este não é rei verdadeiro, mas um usurpador, cujo coração e cérebro estão sob o domínio de Satanás!”

  1. Digo Eu: “Tens razão, tais usurpadores, no início, são ben- feitores do povo, para depois se tornarem verdadeiros demônios! Continua a nos descrever o quadro, que no final será explica- do por Mim.”

  2. Helena prossegue: “Que é isto, Senhor? Vejo muitos lobos esquisitos. Externamente se parecem com pessoais em vestes pretas e compridas; entretanto, são lobos vorazes que, conquanto vestidos de negro e usando máscara humana, se ocultam em pele de cordeiro para disfarçar sua natureza bestial! Como tais pretensas criaturas se mostram meigas e delicadas para com todos, ricos ou pobres! Ao virarem as costas, tiram as máscaras humanas e rangem os dentes mortíferos. Eis que vejo muitos desses seres em redor do trono; os da frente trazem, em almofadas de púrpura, coroas e cetros maravilho- sos, fazendo profundas reverências. E o monarca ignorante observa

com satisfação e se alegra com os sitiantes do trono, entre os quais al- guns lhe apresentam novas armas bélicas, aceitas com benevolência.

  1. Atrás do trono, criaturas semelhantes rangem os dentes e no lugar de coroas, cetro e armas, têm em mãos pesados grilhões e açoi- tes de serpentes em brasa! — Oh rei, oh rei, levanta-te do trono da inveja e do ódio e analisa teus amigos traidores, que proferem mentiras à tua frente, ameaçando-te pelas costas! — Senhor, por que Tua Bondade e Sabedoria deixam surgir criaturas tão repelentes? Não seria melhor viveres só, do que haver entre tantos seres bons, emanados de Ti, outros que não Te fazem honra?”

CAPÍTULO 91

Os contrastes são necessários à liberdade espiritual

  1. Digo Eu: “Cara Helena, ainda não consegues compreender por que existem e até mesmo devem existir tais pessoas; com o tem- po compreendê-lo-ás. A fim de acalmar-te, dar-te-ei alguns exem- plos da Natureza.

  2. Vê o fogo: Que força destruidora reside nesse tremendo ele- mento da ira, quando não devidamente vigiado! Entretanto, não existe maior benfeitor da Humanidade!

  3. Observa a água, como se enfurece e tudo destrói quando se projeta sobre campos e vales! Acaso não a deveria ter criado, ou con- viria destruí-la porque age tão devastadoramente quando em estado livre, causando inundações e mortes? Talvez pudesse a Terra e tudo que ela comporta existir sem água?

  4. Analisa, além disto, o peso dos corpos. Que devastação pro- duz uma avalanche caindo de montanhas elevadas, muitas vezes soterrando criaturas e habitações! Quando se despenca uma rocha, destrói tudo que atinge! Não teria sido melhor se Eu tivesse criado a Terra leve qual pluma? Em tal caso, até um inseto poderia carre- gar uma cordilheira e o homem faria com a Terra o que fazem as crianças com a bola! Mas, quem a manteria firme? Como poderia produzir frutos? E homens, flora e fauna, conservar-se-iam sem peso

no solo terráqueo? Por aí vês quão necessário é o peso dos corpos que devem existir.

  1. O mesmo acontece ao espírito, onde são necessários os contrastes do bem e do mal, a fim de que a centelha divina alcance aquilo para que foi destinada, isto é, sua eterna e perfeita liberdade! Sem coação não existe liberdade, e sem liberdade não há coação! Portanto, a liberdade tem de surgir da coação, de certo modo uma ordem eterna, assim como a própria coação partiu de Minha Liber- dade Infinita!

  2. Assim sendo, vês aqui quadros muito chocantes, entretanto são, por certo tempo, tão indispensáveis ao alcance e conservação da liberdade espiritual como na Terra raio e chuva de pedras são extraídos do solo para a criação e conservação da atmosfera e na extinção de vapores nocivos e mortíferos. Afirmo-te condicionar um elemento a existência de outro.

  3. Cabe-nos reconduzir os necessários elementos à ordem, caso se tenham projetado em demasia em sua particularidade. Se isto fizerem com a devida e sábia precaução, tudo voltará ao ritmo equi- librado, produzindo ótimos efeitos.

  4. Apagar um incêndio é boa obra; destruir a casa presa das cha- mas não seria prudente, a não ser que se conseguisse deste modo sal- var outras residências. Assim também, é preciso erigir-se comportas e barreiras contra o peso da água, e após grande tempestade semear novamente o campo, levando tudo à justa ordem. Querer decidir tudo de um só golpe seria destruição completa! Podes, portanto, continuar na análise das outras aparições.”

CAPÍTULO 92

Luta dos seis animais. Efeito desse espetáculo sobre os homens-lobos e o rei

  1. Prossegue Helena, após curta pausa: “Hum, que coisa estra- nha! Esses seres curiosos se multiplicam como areia do mar; ao redor do trono os lacaios mal podem passar por entre tal aglomeração.

Vejo como são ensinados e subornados pelos homens-lobos, no sen- tido de insuflarem suas ideias ao rei. Agora surge uma forte escuri- dão, de sorte que mal se percebe algo; parece-me que ela vem de tais homens, cujos olhos são luminosos, aclarando os objetos atingidos; isto, porém, para sua própria orientação.

  1. No fundo, vejo agora um animal semelhante ao touro; um leão que o segue procura devorá-lo. O leão é, todavia, acompanhado de um rinoceronte fortemente protegido pela couraça, que ajuda o leão a aniquilar o touro. O leão, que há muito ameaçava o touro, junta-se a este, no intuito de se livrar do rinoceronte. Eis que apa- rece uma serpente enorme, procurando envolver e asfixiar os três animais! Estes empenham todas as energias para se libertarem do ofídio, mas o esforço parece inútil, pois ela aperta cada vez mais seus anéis e, pelos urros e mugidos, percebo a luta. Interessante é que os homens-lobos acham prazer nesta cena!

  2. Nesse momento surge outro ser: um gigantesco condor! Ati- ra-se com violência ao emaranhado de animais, apodera-se deles com suas garras tremendas, estende suas asas e levanta voo. A ser- pente, cujo corpo é quase totalmente dilacerado pelas garras, tenta livrar-se; mas seus anéis se acham algemados, de sorte a tornar infru- tífera sua tentativa. Os três primeiros animais ajudam-na o quanto podem; o condor, porém, não cede um milímetro. Sobe e sobe cada vez mais com sua presa! Bem no fundo percebo um lago junto de um deserto, onde o condor pousa a fim de fazer sua refeição.

  3. Nisto, vejo um crocodilo sair da água e achegar-se ao emara- nhado. A serpente levanta a cabeça, abre a boca e o crocodilo faz o mesmo e crava seus dentes no ofídio. O condor procura prosseguir voo com sua presa; mas o crocodilo o impede. A ave de rapina solta sua presa, senta-se nas costas do crocodilo e começa a meter o bico nos olhos do mesmo, sem conseguir prejudicá-lo. Com isto os três primeiros animais se soltam e debandam.

  4. Agora vejo um mangusto dirigir-se rápido ao crocodilo, ain- da preso à serpente. Vendo-se desafiado pelo pior adversário, o cro- codilo solta o ofídio, que se enrosca em redor, removendo a terra e

desaparecendo na poeira, enquanto o crocodilo se atira n’água. Resta apenas o condor, de estômago vazio. O mangusto persegue o croco- dilo até a água e observa as ondas por ele produzidas.

  1. Avistando o mangusto, o condor se levanta para capturar ao menos esta pequena caça; o outro, porém, foge para dentro de um buraco e o poderoso condor levanta voo sem presa alguma, as- sim como os outros animais debandam, com algumas escoriações apenas. A serpente parece ter sofrido muito; será que a areia a cura? Quem sabe se o mangusto algum dia receberá seu prêmio por ter dispersado este grupo de inimigos!

  2. Noto agora que os homens-lobos começam a manifestar de- sapontamento; de modo algum estão contentes com o desfecho da luta dos animais. Alegro-me com isto, porquanto me são mais re- pugnantes do que aqueles.

  3. O rei, no trono, é acometido de tremores como se sofresse de convulsões. Não dá a impressão de estar satisfeito. Se ainda tiver algum poder, tudo fará para se manter no trono; conseguindo isto, terá certamente o destino do condor, que saiu de estômago vazio, pois o dinheiro que possui será gasto pelo exército, e os súditos só poderão pagar os impostos com a própria vida! Agora, tudo começa a se transformar em neblina. Confesso não compreender o sentido daquele animal de sete cabeças. Senhor, se for de Tua Vontade, re- vela-me isto!”

  4. Digo Eu: “Serás esclarecida, querida, mas não por Mim e sim por Roberto. Não é cabível somente nós dois falarmos. Roberto falará, pois!”

CAPÍTULO 93

Amor-próprio e orgulho, raízes de todo o mal. A Vontade Imutável de Deus como polo de equilíbrio

  1. A este Meu convite, Roberto se levanta e diz: “Oh, Senhor, Amor do Amor, Amigo dos sofredores e mais Sábio entre todos! O assunto nesta aparição é de tal forma claro, que não oferece dificul-

dade para ser elucidado. Como a amável Helena ainda não conse- guiu o devido adiantamento no campo da interpretação, é necessá- rio esclarecê-la, facilitando-lhe, assim, compreensão rápida.

  1. Tudo isto que acabas de ver, Helena, representa, de uma maneira geral, o orgulho, manifestação do espírito submetido à própria perversão. A luta que observaste pela janela foi movida pela traição recíproca, obra do orgulho, cujo berço é o amor-próprio. Assim como o puro amor a Deus e ao próximo são a base da sal- vação, bem-aventurança, concórdia e união, o amor-próprio repre- senta o ódio contra tudo que se lhe aproxima; é a base do desprezo e perseguição daquilo que se opõe a tal tendência maldosa de uma vida corrupta.

  2. O puro amor dá tudo o que tem; entretanto, jamais ficará desfalcado, porém mais poderoso e rico! A medida que dá, recebe mil vezes mais! O amor-próprio perde na proporção de mil aqui- lo que subtrai e rouba. Como não tem força e poder individual, é obrigado, se bem que praguejando, a empregar outras forças através de meios que o empobrecem. Por eles, mantém brilho e grandeza aparentes que, entretanto, lhe custam caro, levando-o à miséria. Sua reação de verme esfaimado de nada lhe adianta, servindo apenas para provocar sua completa destruição.

  3. Quem, portanto, dirige a guerra? O amor-próprio, pai do orgulho e do domínio! E quem o enfrenta, combate e vence? O justo poder do puro amor, como justiça e medida de Deus! O amor-pró- prio do inimigo usa de todos os meios para se manter e se vingar da Justiça Divina; isto, porém, não frutifica, porquanto se enfraque- ce em todos os pontos; enquanto que, em luta semelhante, o puro amor se torna mais poderoso no ataque.

  4. A aparição da tiara emborcada, surgida de uma planta panta- nosa, demonstra claramente a base da glória terrena. Sua posição in- vertida, em cima de um tripé, assinala a relação entre poder e brilho, grandeza e luxúria terrenos e o puramente celeste. O tripé aponta as fracas colunas que comportam tudo isto, quer dizer: no amor-pró- prio, como argola do tripé; enquanto os pés são: mentira, astúcia e

fraude. Dentro da tiara viste sangue e répteis horripilantes; tudo isto foi explicado. Apenas o animal de sete cabeças, revelado pelo Senhor através das sucessivas aparições, é ainda incompreensível. Basta pros- seguires na medida demonstrada, isto é, da interpretação, e alcança- rás o conhecimento perfeito deste quadro. Faze uma tentativa, que todos nós te ajudaremos!

  1. Tão logo o tiveres decifrado, o Senhor fará o resto. Pelo que vejo, tudo depende da maneira pela qual interpretarás o assunto dentro do teu grande amor e conhecimento, pois o Senhor agirá de acordo com nossa concordância contigo. Por isto, procura sair-te bem, que a salvação do mundo depende do teu pronunciamento!”

  2. Helena muito se admira destas palavras, por isto se vira para Mim e diz: “Senhor, meu amor único e celeste! Será verdade o que Roberto acaba de me expor?”

  3. Respondo Eu: “Exatamente! Vê, em uma antiga profecia, de posse dos hindus, o povo mais remoto da Terra, lê-se: Raça de cria- turas pecaminosas! Através de uma mulher o mundo foi atirado à perdição; entretanto, haverá, em tempos ainda distantes, uma outra, pela qual a Terra receberá uma enorme Graça. E, no final, será no- vamente uma mulher a julgar o mundo; desse julgamento surgirá a vida ou a morte! — Casualmente, és tal mulher da qual fala a antiga revelação! Age com cuidado, do contrário a Terra passará mal!”

  4. Diz Helena: “Ai, meu Deus! Será possível que eu seja aquela criatura especial? Isto não seria felicidade, mas um grande sofrimen- to para mim! Por isto, Senhor, susta este conhecimento de mim, pois não posso garantir o resultado!”

  5. Acrescento Eu: “Caríssima Helena, conheces o Meu Amor para contigo; sabes também não ser possível se retirar uma vírgula daquilo que pronunciei, mormente aqui, no Reino da Vida, da Luz e da Verdade eternamente Imutável! Portanto, terás de fazer o que de ti exijo! Caso Eu Me tornasse displicente em Minha Determinação e Pronunciamento, que aspecto teria em breve o Universo? Se afrou- xasse, por um momento, na Minha Ideia Intangível, tudo o que criei se desfaria, as formas diversas se tornariam caricaturas quais nuvens

inconstantes. Sendo, porém, Imutável na maior potência, todas as coisas e seres têm que perdurar eternamente o que representam.

  1. Seria de teu agrado que Eu transformasse tua figura perfeita na forma de um animal? Assim, o efeito seria o mesmo com o Uni- verso todo, caso Eu afrouxasse Minhas Ideias e Ordem que a tudo equilibram!

  2. De há muito Eu determinei esta época de hoje e escolhi tua pessoa! Por isto, terás de fazer pelo puro amor aquilo que te peço. Só então te desenvolverás livremente em tua esfera de vida, indepen- dente de toda influência estranha!

  3. Tudo o que aqui exijo de vós não acontece tanto para o mundo material, de qualquer forma em julgamento, como para vós mesmos, tornando-vos livres e capazes de desfrutar a máxima ven- tura e felicidade! Se bem que daqui dependam os acontecimentos terrenos por aqui se encontrar a semente e raiz de todo ser, não trabalhais para o mundo, mas para o Céu! Por isto, Helena, inicia a tua tarefa!”

CAPÍTULO 94

Helena fala acerca do monstro de sete cabeças. Suas propostas de melhoria

  1. Diz Helena: “Se as coisas aqui se dão tal e qual no Universo, sou obrigada a me expressar. Tudo farei por amor a Ti, meu ama- do Jesus! Mas, penso não ser viável depender de minhas tolices a existência da Terra! Por alguns segundos poderias manter tudo isto, excluindo meu conhecimento do monstro horripilante? A questão não deve ser tão rigorosa!”

  2. Digo Eu: “Meu amor, Comigo tudo se encontra pesado na balança de ouro, e não pode haver a menor prorrogação ou demora! Claro poder Eu conservar o Universo sem teu conhecimento; mas, como já disse, não se trata tanto de sua conservação, mas da liber- tação recente — perfeitamente celeste — de todos aqueles que em

breve chegarão aqui. Esse ponto deve por ti merecer consideração, e ser-te-á fácil concluir Minha Exigência. Compreendeste?”

  1. Diz ela: “Sim, Senhor, estou orientada. Farei, portanto, uma tentativa para que, com Tua Ajuda, possa solucionar a questão do monstro.

  2. Compreendo agora: representa ele o espírito do anticristo manifestando sua ação pelo próprio detrito. O réptil, por si só, já representa a maior infâmia, que surge do domínio, cobiça, engano e mistificações. As sete cabeças são idênticas às sete principais paixões, de onde surgem os sete pecados mortais: arrogância, domínio, in- veja, cobiça, ódio, traição e, finalmente, assassínio! Destes derivam: luxúria, gula, intemperança, impudicícia, perversidade, desprezo, perseguição a tudo aquilo que tente respirar livremente; comple- ta ausência de pejo e dignidade, inconsciência, desconsideração e inteiro esquecimento de Deus! Tais efeitos indispensáveis, surgidos dos sete pecados, se apresentam em cada cabeça, idênticos às dez pontas correspondentes. Em cima das pontas, viam-se ainda coroas em brasa usadas pelo monstro para fazer evaporar o sangue quando ameaçava transbordar da tiara. Essas coroas parecem ser os setenta reis católicos-romanos, de acordo com a lenda que ouvi na Terra, em que o Papa haveria de reger sobre setenta monarcas. Todavia, não me parece razoável tal hipótese, porque o número de regentes nem sempre é o mesmo. Antes, apontam o domínio completo, um horror para Ti, Senhor, e que ora se infiltrou até nos corações dos povos! Mais provavelmente tais coroas apontam a política, apresen- tando-se como o manto da promessa a fim de que ninguém perceba ocultar-se nela uma ponta aguçada e mortal. Caso alguém pretenda tocar no manto, está ele em brasa resultante do fogo da ira no cora- ção dos monarcas de povos ignorantes, queimando, com facilidade, quem se atrever a tocá-lo!

  3. Por isto, opino tirar as coroas, as lanças, as sete cabeças, todos os monstros, seus ajudantes e a própria tiara — e a Humanidade não necessitará de se arrastar num mar de sangue para chegar à paz dourada e verdadeira. Estou compenetrada de que seja preciso acon-

tecerem dois fatos na Terra para que a mesma se pacifique; ou farás desaparecer nove décimos das criaturas, pelos anjos exterminadores, proporcionando aos restantes guias melhores; ou terás de aumentar nove vezes a Terra e fazer surgir em cada país um enorme monte de ouro maciço. Pois somente através da desvalorização desse metal, que certamente deriva do inferno, será elevado o valor da Humani- dade! Aonde chegaremos, se o homem apenas é considerado pelos bens materiais que angariou por meios ilícitos? As tendências de posse e cobiça têm de ser saturadas, do contrário as criaturas jamais desistirão do amor-próprio, fonte do orgulho e domínio!

  1. De que adianta o boi (o poder popular), com sua força? A pata poderosa do leão (dinastia)? De que serve o peso desmedido e impune do rinoceronte (despotismo tirânico do principado)? Que benefício teria a Humanidade com a força da serpente (política inquisitorial que tudo devora)? O que consegue o condor livre e poderoso (governo so- cialista)? Que utilidade terá o crocodilo (vinganças ocultas da reação)? No final a pobreza inevitável e comum (o mangusto miserável e fraco) a todos dispersa, de estômago vazio! Para que, então, tal luta? Se houve pobres no início, por que não servirão mais tarde?!

  2. Senhor, Criador, Pleno de Amor e Sabedoria, que conduzes e conservas tudo! Nós, criaturas, oramos, pedimos e conjecturamos diante de Ti; mas, pelo que vejo, tudo isto é inútil, pois farás somen- te aquilo que for da Tua Vontade e de acordo com a Tua Sabedoria! Eis o melhor em toda esta questão, pois se permitisses se efetivarem meus pareceres nas ocorrências externas da Natureza, toda a Criação deixaria de existir! Assim, Senhor, és a Base de todo ser e Tua Ordem Santificada é apenas um Pensamento Teu, de efeito substancial. Por isto, julgo supérfluo prosseguir na dissertação!

  3. É mais do que claro, e dispensa maior elucidação, representa- rem os homens-lobos aquela Ordem excessivamente hipócrita, con- denada por todo o mundo, sendo ela e sua congregação as únicas causadoras de todo o mal, visando apenas o pleno domínio sobre o orbe, razão pela qual todos os monarcas têm que dançar conforme sua música.

  1. O rei, compenetrado de seu domínio, simboliza somente a ma- nia dominadora da época atual, onde todos querem reger e ninguém obedecer, a não ser que isto lhes traga vantagens; se tal acontecer, o servo, por mais obediente e submisso, se transforma em democrata ou anarquista, pretendendo fazer venturosa a Humanidade, aniquilando todos os monarcas, com o intuito de encher os seus bolsos!

  2. Não percebo amor verdadeiro entre os homens; ninguém ama o seu próximo como irmão Teu, Senhor, e sim apenas por inte- resse. Quando prevê lucro no convívio com alguém, trata-o com toda a atenção; não correspondendo à expectativa, ser-lhe-á sumamente indiferente! Senhor, conheço as criaturas e não me deixo iludir!

  3. Como melhorá-las? Eis uma pergunta que somente Tu Mesmo poderás responder. Todo nosso esforço nesse sentido é im- profícuo! Basta pronunciares uma só palavra, dentro do Teu Saber Onisciente, Bondoso e Poderoso, e a Terra se salvará como o servo do comandante romano que Te pediu ajuda! Meu querido e bondo- so Jesus, sê Misericordioso e purifica a pobre Terra de todo o mal! Tua Vontade Se faça!”

CAPÍTULO 95

Importante explicação do Senhor acerca do desenvolvimento de seres livres e independentes.

Chave-mor à compreensão da vida terrena

  1. Digo Eu: “Caríssima Helena, teu conselho foi o melhor e po- derá ser aproveitado! As representantes de teu sexo podem realmente orgulhar-se de ti!

  2. Apenas dois pontos são algo extravagantes; quereres o exter- mínio de nove décimos da Humanidade ou o aumento do orbe e, além disto, a expulsão da dinastia! Eis um exagero, impraticável de modo natural, mas apenas por um julgamento, e este sempre será a própria morte dos que são atingidos!

  3. Vê, sou Onipotente e tudo que penso se realiza, de momen- to. Caso quisesse aqui um milhão de criaturas, imediatamente se

apresentariam; seriam até muito sábias e prudentes e de aspecto angelical; poderiam abraçar-te com efusão e servir-te com devoção total — e ainda assim seriam inteiramente sem vida! Pois tudo que fizessem e falassem seria Eu a agir e falar, uma vez que não teriam outra vida a não ser aquela correspondente ao tempo por Mim de- terminado para sua existência. Tão logo não mais quisesse tais seres fictícios, no mesmo instante desapareceriam como se nunca tives- sem existido!

  1. Se, porém, quisesse conservá-los, proporcionando-lhes vida livre, autônoma e completamente independente de Minha Onipo- tência, teria de desprender o Meu Espírito, que age nessas criaturas fictícias através de um meio apropriado de separação, algemando-o nelas, numa prisão externa e útil. Deste modo, faria seres isolados em relação a Mim, dando-lhes oportunidade e tentações, por meio de circunstâncias onde seriam forçados a agir pela força do conheci- mento e vontade, dentro ou fora da lei. Essa lei teria de ser formu- lada de modo útil e sábio e sancionada, algemando o homem mais duramente, por tempo prolongado, em caso de desobediência, até que a aceitasse ativamente. Só então seria aconselhável tirar-lhe as algemas externas, fazendo-o passar, como acontece contigo, à plena liberdade, como ser evoluído, conseguindo destarte uma vida indi- vidualmente perfeita!

  2. Por aí vês que Eu Mesmo tenho que respeitar a ação inde- pendente das criaturas da Terra, que passam sua prova de liberda- de na matéria, seja ela boa ou má; pois se delas Me aproximasse pela Onipotência, morreriam instantaneamente, porquanto nada mais conseguiriam fazer por si mesmas. Querendo novamente li- bertá-las, teria de Me separar de modo completo, aprisionando-as na matéria, onde seriam de novo expostas à prova de libertação individual.

  3. Se esta se realizar dentro da Ordem estabelecida, poderão, como tu, ingressar neste mundo dos espíritos numa vida perfeita- mente livre. Não ocorrendo dentro das Minhas Determinações, a prisão perdurará aqui, até que aos poucos consigam um conheci-

mento prático que lhes faculte sua aproximação de Mim, seu Cria- dor. Tão logo Me amem como Senhor e Irmão, tal afeto os libertará em verdade, sendo iguais a Mim, porquanto serei Eu quem neles pensa, sente, julga e age, como se fora seu duplo!

  1. Em tal situação eternamente fixada poderiam, não obstante sua liberdade individual, assimilar sempre maiores conhecimentos e forças, e até mesmo se tornarem perfeitos como Eu, estado este a condicionar e positivar a mais perfeita bem-aventurança.

  2. É fácil dizer-se: Senhor, faze isto e aquilo! Condena os povos maus, os reis e o Papa dominador! Extermina todos os de corações orgulhosos e ambiciosos! Faze milagres! Aniquila por meio de uma peste generalizada a Humanidade perversa! Em tal hipótese, é neces- sário considerar, estaria Eu agindo inutilmente!

  3. Muito embora deva observar que caminhem na trilha pre- vista, e executem as leis na Ordem Eterna, pelas quais mais rápida e facilmente conseguirão a vida liberta, temos de agir com a maior paciência, aceitando os atos mais errados com a mesma calma, como se fossem bons e justos. A primeira condição na formação de criatu- ras livres consiste no fato de alcançarem, pelo afastamento de Minha Pessoa, a consciência própria e ação independente, seja boa ou má, dentro ou fora da lei; isto, no início, não vem ao caso. Temos de respeitar suas organizações e invenções, ocultando nossa influência que as conserva. Se nos manifestássemos diretamente, destruiríamos o viveiro humano jovem e delicado; o trabalho para reerguê-lo se- ria mais demorado do que se agíssemos assim, despercebidamente e com paciência. Após tal período de evolução ainda teremos inúme- ros caminhos e meios para levá-los ao destino final.

  4. Somente quando se manifestam irregularidades chocantes, fazendo periclitar a liberdade absoluta, têm de surgir pequenos jul- gamentos externos, como guerras, carestia, fome e peste. Esse casti- go jamais poderá atingir mais de um décimo da Humanidade, pois, do contrário, teria o efeito de um julgamento mortal. Eis minha Opinião e Compreensão! São do teu agrado? E ter-Me-ás compre- endido? Acaso aprecias outra modalidade?”

  1. Diz Helena: “Oh, Amor do amor, máxima Bondade e mais elevada Sabedoria! Senhor, Pai Jesus! Quem poderia algo objetar? Jamais foi ouvido por alguém a maneira pela qual expuseste o surgir da Humanidade e sua evolução até o grau mais alto e livre da Vida, dentro da Verdade Plena!

  2. Só agora percebo o que seja o homem, sua constituição, como deve agir e os meios a lhe serem facultados para alcançar a finalidade plena! De maneira alguma poderia fazer objeções, pois tudo que pronunciasse nada mais seria do que tolice incrível! Ago- ra, meu Jesus, não mais consegues levar-me a falar! Mesmo se fosse Pedro ou Paulo, obrigar-me-ia a voltar ao temperamento vienense e fazê-los calar! Meu Senhor e meu Deus, tão compenetrada estou da Santidade de Teu Pronunciamento que poderia afirmar: Nem Tu Mesmo serias capaz de contrapor algo, ao menos aparentemente! Eis meu parecer irrevogável, que manifestarei para todo o sempre, amando-Te com todas as forças de minha alma!”

CAPÍTULO 96

A Obra de Salvação se destina principalmente aos filhos do mundo. Parábola da árvore infrutífera

  1. Digo Eu: “Minha querida Helena, estou plenamente satisfei- to com tuas palavras, e teu louvor pela revelação da conduta acer- tada e a finalidade do homem apagou todo desejo futuro em Meu Próprio Coração; pois a verdade só pode ser elogiada pela verdade, assim como ninguém conseguirá reconhecer-Me e amar-Me como Deus caso não tenha sua origem em Mim.

  2. Existem criaturas que surgiram diretamente de Minha Pes- soa; outras foram criadas por Mim de modo indireto. As primeiras são propriamente filhas de Deus, em cujos corações habita o puro amor de Deus, portanto igualmente o Conhecimento Divino! As indiretamente criadas são filhas do mundo, geradas por Satanás. Também se destinam ao verdadeiro conhecimento e ao puro amor, pois deram motivo à Grande Obra de Salvação. Precisamente por

elas acontecem os fatos atuais na Terra, levando-nos a formar um julgamento. Por isto, opino que em teu louvor deveria constar um ponto, de certo modo uma exceção, ocasionando algumas modi- ficações importantes nos meios de criação e conduta dos homens, por Mim delineados. Apresentar-te-ei alguns casos e tu mesma darás um parecer.

  1. O proprietário de um horto plantou árvores frutíferas, gran- des e pequenas, simples e de boa qualidade. Todas receberam o mes- mo solo, e as silvestres ainda tiveram melhor trato do que as de boa espécie. Sendo cuidadas com muito zelo, as inferiores logo demons- traram maior viço. Tal árvore agreste chamou a atenção em virtude de sua exuberância, de sorte que o jardineiro passou a lhe dedicar maior zelo e muito amor. Passou-se um ano após outro; enquanto todas as árvores davam frutos, essa continuava estéril, apresentando apenas folhas. Aborrecido com isto, o jardineiro, como proprietário do pomar, disse aos empregados: ‘Estais lembrados como tratei desse vegetal anos afora sem que me desse frutos; exterminai-o pelas raí- zes, cortai-o em pedaços, atirando-o ao fogo. Em seu lugar plantai um salgueiro como prova de que nesse local uma árvore infrutífera abusou durante anos de meu amor e paciência!’ Os empregados, porém, pediram: ‘Senhor, deixa-o por mais um ano! Cortaremos seu galho principal e lhe daremos outra terra. Se, mesmo assim, nada produzir, faremos o que disseste!’ Elogiando esse conselho, o dono do pomar deixou que agissem à vontade. A árvore, porém, nada produziu decorridos outros três anos; ela dava flores na primavera, dando a impressão de ter sido o esforço do jardineiro coroado de êxito. Mas nada disto aconteceu.

  2. Que merece tal árvore, Minha Helena? Devo executar Minha ameaça? Pois ela de há muito Me irrita e aborrece! Na expressão ‘árvore’ entendo aquelas criaturas, filhos do mundo, recebendo de Minha Parte todo trato e cuidado, entretanto não produzem frutos de amor, humildade e obediência, porque seu coração e sentidos se acham enterrados na matéria, no sensualismo e conforto. Que deve acontecer com tais árvores humanas, não produzindo frutos,

nem bons, nem maus, formando entre esses extremos uma espécie desprezível de parasitas, visando seu gozo, sem jamais produzirem algo benéfico? Todas as suas ações são mistificadoras, porquanto sua tendência e amor apenas se dirigem à volúpia.”

  1. Diz Helena: “Meu Senhor e meu Deus, Jesus! Eis uma ques- tão difícil para resolver. Tais criaturas se diferenciam das demais, porquanto não pecam em virtude da ignorância de Tuas Leis, mas devido à desobediência e má vontade. Se, portanto, jamais dão ouvi- dos às Tuas Advertências, vilipendiando Teu Santo Verbo por atitu- des condenáveis para com o sexo oposto, preferindo o convívio com qualquer moça provocadora, penso que merecem um machado para finalizar, pelas raízes, tal vida imunda.

  2. Sujeitos desta marca, semelhantes ao libidinoso, conheci na Terra em quantidade! Pais de família, aparentando honra e respeito, que se entretinham com mulheres de classe inferior, muito embora tivessem uma esposa carinhosa e cheia de virtudes, e não raro meia dúzia de filhos crescidos. Deveriam, pois, levar uma vida exemplar; geralmente, a prole se inteirava das leviandades paternas, trilhando as mesmas pegadas. Tais homens não conseguem melhorar, pois o detrito não se transforma em ouro. Convém, por isto, atirá-los ao fogo, para torná-los aproveitáveis!”

  3. Digo Eu: “Tens razão, pois se Eu Mesmo facultei a alguém todos os meios educativos com paciência, indulgência e meiguice, carregando-o quase que na palma da mão, entretanto é capaz de esquecer-Me à vista de uma criatura voluptuosa, enterrando seus sentidos no lodo mais imundo e mal cheiroso, qual pólipo que sub- merge seus tentáculos na cloaca, não obstante todas as advertências sutis e severas, não merece realmente outro destino. Temos aqui vá- rios exemplos: o tal libidinoso é um deles. E, no recinto à nossa fren- te, se encontram algumas dúzias, entre elas indivíduos incestuosos; um até mesmo violentou duas menores e as próprias filhas gêmeas, o que lhes custou a vida, perdendo deste modo a oportunidade da evolução espiritual na Terra. Tais perversos ainda não foram julga- dos. Por isto, indago de ti o que deve acontecer com eles?”

  1. Diz Helena: “Já que se encontram aqui, poderíamos fazer mais uma tentativa para sua regeneração. Se houver tal possibilida- de, nada deve ser poupado para isso. Caso todos os meios fracassem, em vista de seu orgulho obtuso, age como fizeste à figueira infrutífe- ra, que negou o que dela aguardavas quando, certa noite, procuraste conforto debaixo de seus galhos.”

CAPÍTULO 97

Volúpia e orgulho. Difícil incumbência de Roberto Blum junto ao libidinoso. Filosofia materialista

  1. Digo Eu: “Aconselhaste-Me muito bem, Helena querida! Agiremos deste modo e, caso tenhamos bom êxito, eles viverão; do contrário, serão amaldiçoados! Mãos à obra! Enquanto essa perver- são não for transformada ou destruída, não poderemos aguardar bons resultados da Terra.

  2. É muito mais fácil vencer-se o orgulho do que tal flagelo. Quando os homens se tornarem arrogantes, orgulhosos e domina- dores, basta proporcionar-lhes guerra, miséria, pobreza e enfermi- dades, que eles, em breve, se submeterão, aceitando as lições hu- milhantes. A um sensual, porém, nada perturba! Mesmo que tenha contraído todas as moléstias de Vênus, ficando quase sem poder an- dar ou permanecer de pé, com a morte o perseguindo de todos os lados, nada o altera, contanto que possa ao menos apalpar a carne de uma criatura tentadora. Quando se deita, seu último pensamento gira em torno do sexo; ao acordar, cai na mesma rotina, entregando-

-se o dia todo a essa tendência. Sua conversa, sentido, amor, amiza- de, tudo se prende à carne!

  1. E quão potente é o orgulho preso à voluptuosidade, manifes- tando-se tão logo alguém o perturbe em sua vida imunda, através de conselhos amistosos! Mal suporta o seu sexo, e quando está apaixo- nado não tolera companhia, para poder se entregar mais à vontade à inclinação pecaminosa! Somente quando está cansado e farto da impudicícia recebe visitas, de tempos em tempos, para sua distra-

ção. Mal os sentidos registram novo estímulo, os amigos podem se afastar! Deste modo vivem na Terra e assim ingressam aqui. Por isto, faremos uma tentativa rigorosa com o libidinoso para vermos o re- sultado.” Em seguida, digo a Roberto que o procure em Meu Nome.

  1. Roberto se curva, respeitoso, e diz: “Oh Senhor, onde Tu Mesmo ages, o êxito será certo! Se ao menos conseguir trazê-lo — o que pressinto será difícil — que Te parece, Senhor, se pedir às dan- çarinas que se afastem dele, instalando-se do lado oposto ao palco? Tanto eu como os demais hóspedes observamos que ele e seu grupo se aproximaram demasiadamente das moças. Está ansioso por um colóquio, sem contudo saber como iniciá-lo.”

  2. Digo Eu: “Caro irmão, tudo que julgares bom justifica-se diante de Mim. Se alguém reconhece algo de bom, mas deixa de aplicá-lo, comete pecado contra o seu coração. Faze, portanto, o que te parecer justo e útil.”

  3. Incontinenti, Roberto pede às moças que se dirijam para o lado oposto e elas obedecem imediatamente. Com isto, o libidino- so e seus amigos se revoltam. Ele enfrenta Roberto, dizendo: “Não, senhor! Não vos lembrastes que elas existiam durante vossa fútil con- versa! Precisamente agora, que pretendia entrar em contato com elas, o diabo mandou-te intervir! Cá entre nós, podias satisfazer-te com os que se encontram à mesa de Abraão! Lá também estão Mariana, Ema e a bela Aurora das barricadas! Pelo que me parece, não irás colher trigo naquele campo, pois o pseudo-Jesus tem mais cartaz que tu! To- davia, poderás fitá-las e, como apaixonado, começares a te desesperar!

  4. Oh, tolo que és, Roberto Blum! Na Terra foste um asno; aqui és um boi! Quer dizer, personificas a assembleia animal que presen- ciou o Nascimento do Cristo! Ah, Ah! Agrada-te belo futuro no Céu! Julgas, reles livreiro do reinado saxão, não ter eu ouvido tudo o que resolveste acerca do Reino de Deus? Realmente, honra seja feita a quem lhe compete! A Aurora das barricadas, por certo uma recente praga apocalíptica desse Céu de papelão, mereceu privilégio relevan- te! E vós, burros e bois de Deus, tivestes o prazer de vos banhar em sua sabedoria, quais insetos a receberem emanações do estrume! Isto

é, em verdade, celestialmente belo, elevado e digno do Grande Deus

  1. E agora pretendes levar-me à dita mesa conselheira, onde as- suntos elevados foram resolvidos por uma prostituta pintada, de fos- forescência etérea; inclusive um julgamento sobre nós, homens, que na Terra fomos tão estúpidos por nos deixarmos tentar por criatura tão repelente! Amigo, podes esperar sentado! Dá meia-volta à direi- ta, junta-te à tua assembleia luminosa e transmite-lhe um abraço meu com a recomendação de não ser eu idiota para cair nas cantigas de teu grupo!”

  2. Admirado com tal recepção, Roberto fita o outro dos pés à cabeça, com ímpeto de responder na mesma altura. Controla-se, porém, e diz: “Amigo, ignoras o motivo que aqui me traz e me con- denas sem razão! Deixa-me falar, para que saibas se exijo algo in- conveniente!”

  3. Interrompe o libidinoso: “Apesar de não ser burro como tu, minhas orelhas alcançaram vossa mesa e tiveram o prazer duvidoso de ouvir tudo que falastes. Assim, também sei de vossa determinação sobre pessoas que, infelizmente, se atreveram a gozar daquilo que a lei da Natureza lhes proporcionava!

  4. Oh, ignorantes sábios celestes! Quem criou a Natureza, nela depositando leis férreas? A Divindade eternamente Verdadeira! Como pode pecar o verme quando faz o que os instintos lhe insti- gam? Para mim, é inteligente aquele que sabe aproveitar as leis natu- rais. Burros e bois são aqueles que a elas se sobrepõem, almejando, em seu cérebro ignorante, alegrias transcendentais! Se vivi dentro de tais leis, que Deus poderia me condenar por isto?”

  5. Responde Roberto, calmo: “Amigo, estás irritado em vir- tude do necessário afastamento das vinte e quatro dançarinas, que muito perturbaram teus sentidos ainda impuros. Contém-te e aceita um raciocínio justo, para poderes compreender o valor que encerra a minha mensagem.

  6. Tens por base as leis da Natureza e queres fazer-me compre- ender ser burro quem não souber aproveitá-las para fins voluptuo-

sos, ou não se atrever a tanto em virtude de um entusiasmo beato. Por que defendes esse assunto, sabendo que muitos adeptos de Vê- nus acabam numa miséria física e espiritualmente decadente? Ele usa de todos os meios para ver satisfeita sua inclinação; mal satisfaz o desejo imposto pela lei da Natureza, se apresenta a consequência dolorosa que é a moléstia diabólica com seu numeroso séquito. É atacado por sofrimentos e dores atrozes que o martirizam de modo inclemente, insuportável ao pior demônio! Durante anos padece a consequência dolorosa da pronta satisfação da primeira lei natural. Seu físico é abalado, seu espírito pouco a pouco aniquilado e a pró- pria alma obscurecida e transformada em algoz.

  1. Não teria sido melhor, física e espiritualmente, se ele não tivesse obedecido à lei voluptuosa, porquanto desafiou uma ou- tra, infernal?

  2. Indagaste: Deus poderia me castigar pela obediência de uma lei natural? Eu anteponho: Quem instituiu a segunda como consequência da primeira, caso seja cumprida com zelo? Não estás disposto a cantar louvores a tal divindade?

  3. Cego! Se bem que Deus ditou as leis à Natureza, facultou ao homem inteligência e raciocínio livres para que cumprisse as leis físicas apenas moderadamente, e isto somente no matrimônio. Para cada passo além da lei moral Ele determinou efeitos dolorosos que se manifestam prontamente após tais excessos.

  4. Se isto nos ensina a experiência e sabendo existir a felici- dade apenas no meio termo moral, como podes chamar de burro quem vive na Ordem Divina, procurando caminhar entre os extre- mos? Dize-me, qual foi a tua felicidade terrena, e agora espiritual, na acepção da palavra? Na Terra viveste em constante conflito com tua esposa; tuas amantes te exploravam de tal forma que te levaram a fazer dívidas, das quais algumas ainda não foram saldadas. Poucos anos antes de tua morte te contaminaste com uma italiana fogosa, que te deixou doido. Cinco médicos, cheios de esperança por terem conseguido cliente tão rico, martirizaram a torto e direito teu cor- po venéreo. Entretanto, não te socorreram, mas aumentaram tua

miséria. Quanto mais sofrias, maiores importâncias exigiam e, se não fosse a revolução, ainda serias sua vítima! Como te agradou a segunda lei, e quais são os prazeres que ora desfrutas?”

CAPÍTULO 98

O libidinoso faz justiça à verdade. Faz- se a luz da consciência, demonstrando- lhe sua perversão diante de Deus

    1. O libidinoso, coçando a cabeça, expressa embaraço, dizendo finalmente: “Hum... sim... Ah, que diabo! Eis uma história tene- brosa! A primeira lei é aceitável; a outra — pois sim! Tens razão, estás muito certo! E a felicidade eterna? Nada vejo! Há fome, sede, aborrecimentos, vergonha, descoberta de todos os pecados terre- nos, e isto frente a pessoas das quais se deseja ocultar para sempre certas fraquezas! Além disto, topa-se aqui com a ralé que mais nos incomoda. Fui homem respeitado no mundo, pois ninguém sabia de minhas escapadas ocultas, com exceção de alguns confidentes. Precisamente aqui toda essa gente se reúne, tanto os que me consi- deravam, quanto os amigos de orgia! Com esses não é possível fazer amizade; além disto, tornam-se tão atrevidos a explorarem as fraque- zas alheias! Por que não se é soterrado pelas montanhas? Consta estar aberta a porta; mas não convém passar-se por ela, porque se ignora os acontecimentos lá fora!

    2. Já que mantenho palestra tão desagradável contigo, dize-

-me algo a respeito do suposto Salvador Jesus. Poder-se-ia falar-lhe razoavelmente? Seria possível ele me proporcionar um cantinho melhor, sem futuros vexames? Tem ele alguma ligação transcen- dental com a Divindade? Não posso supor que ele seja...? Bem, já sabes o que penso. Olavo se extasiou diante da Plenitude Divina contida em Jesus. Mas, qual seria o espírito equilibrado capaz de aceitar tal coisa?”

    1. Responde Roberto: “Caro amigo, só posso dizer-te: Vai e cer- tifica-te!”

    1. Diz o outro: “Está bem! E meu sentimento de honra nesta situação perante a assembleia fatal? Mormente a heroína das barri- cadas, que passou por metamorfose tão extraordinária; minha mu- lher, o servente Francisco, Olavo, Mira e outros tantos! Além disto, Adão e seus conterrâneos! Haveriam de ficar admirados com minha presença! Não me vexaria em falar com Ele; mas, o resto — Deus me livre!”

    2. Opõe Roberto: “Meu amigo, em todo caso tens de te sub- meter a uma humilhação radical; pois, sem ela, jamais melhorarás! Anima-te e confessa todas as tuas fraquezas a Jesus; enche-te de fé e amor para com Ele, e talvez muita coisa ser-te-á poupada! Quanto mais considerares tua honra, tanto maior será o vexame diante de teus amigos! À medida que Deus, Jesus-Jehovah-Zebaoth, perdoa aos que Dele se aproximam de corações contritos, horrivelmente severo Se apresenta contra os que abusaram de Sua Bondade, Paci- ência e Amor!

    3. Por enquanto te espera com paciência; mas não demores muito! Tão logo resolva, aplica-se o ditado bíblico: Terrível é cair-se nas mãos do Deus Vivo! — Por isto, amigo, digo-te sem rodeios: não percas tempo! Impudicos e adúlteros jamais entrarão no Rei- no de Deus! Imensas são Sua Magnitude, Graça e Misericórdia; no julgamento, Ele a ninguém poupa! Considera tua posição perante Ele, o Onipotente, e o que te cabe fazer! Após mim, não virá outro mensageiro!”

    4. Diz o libidinoso: “Ora, ora! Não será assim tão ruim se en- contrar aqui algo de humanidade! Se teu Deus Jesus, seus apóstolos e tu mesmo sois piores que os deuses da mitologia, a coisa será bem séria e, finalmente, teria de fazer o que quisésseis! Julgas mesmo que eu deva falar com Ele?” Responde Roberto: “Claro! Do contrário, estarás irremediavelmente perdido!”

    5. Diz o libidinoso: “Que coisa pavorosa! Que diacho! Imagina Ema, Mira, Olavo e Francisco informados de minhas libertinagens! Meus sogros, por certo, me darão um desprezo bem merecido. Agi condenavelmente com minha querida Ema, pois todo o dinheiro

era seu, o que me tornou um rico cavalheiro. E paguei-lhe com a mais torpe infidelidade! Amava-me apaixonadamente e procurava agradar-me de todas as maneiras. Eu, por gratidão, divertia-me com prostitutas, gastando rios de dinheiro em orgias!

    1. Não, meu amigo, não posso dirigir-me a Ele! Só agora com- preendo que fui pecador condenável. Encaminhar-me àquela assem- bleia respeitável será o cúmulo da torpeza! Não sei como consigo reconhecê-lo! A questão é, porém, esta!

    2. Pobre Ema, o que foste para mim? Até mesmo em tua revol- ta justa foste um anjo! E eu, imundo, sem amor, sem gratidão e sem respeito! Ao lado de uma criatura tão boa, fui procurar as da sarjeta! Esta noção de culpa me aniquila!

    3. Oh, criaturas de minha índole! Renunciai ao tremendo de- mônio carnal, senão estareis em breve abrindo vossos corações dian- te de juízes, que vos condenarão! Não será Deus vosso juiz, mas a própria consciência vos sentenciará! Desisti de vossa cegueira, pois, do contrário, estareis perdidas para sempre! Irmão, deixa-me só! Sou demasiado perverso!”

CAPÍTULO 99

Roberto encoraja o pecador, que hesita. Seus amigos o ameaçam. Finalmente, acompanha o mensageiro de Deus

  1. Cheio de alegria, diz Roberto: “Irmão Dismas, regozijo-me com o teu arrependimento, pois deste o primeiro passo na conquista da vida perfeita no Espírito do Senhor! Convém, no entanto, não ficares parado, ouvindo tua própria condenação, mas dirige-te rápi- do ao Senhor!

  2. Eu tampouco O aceitei logo como Deus Único, pois cus- tou-Lhe grande Paciência arrancar-me as ideias obtusas de Hegel e Strauss, como também os deuses do domínio e da impudicícia. Quando, através de Sua Graça, recebi esclarecimento maior, reco- nheci minha injustiça perante o Salvador Jesus, Deus Único de céus e mundos. Faze, portanto, o mesmo!

  1. Tens mais facilidade, porquanto fui teu predecessor. A mim ninguém mostrou o caminho e o testemunho de Jesus, o Crucifi- cado! Tive que descobri-Lo através de Suas Palavras muito Sábias! Além disto, não fui menos atordoado pelo sensualismo que tu, ainda mesmo no Reino dos Espíritos. Compenetrado, porém, do profun- do Saber e Verdade do Cristo, impus maior domínio aos sentidos e, com a Ajuda do Senhor, tornei-me vitorioso sobre as inclinações carnais, trazidas pela minha alma na recordação do passado.

  2. Meu coração também me condenava e não sentia calma, nem esperança em sua torpeza, aguardando apenas a morte eterna. Eis que o Senhor me ajudou a sair de tal aflição. Meu coração se purificou pelo grande amor para com Ele, dando oportunidade para merecer Sua Graça! Assim, tornei-me mais feliz! Tudo isto ocorrerá contigo e, caso te saias bem nessa prova, em breve estarás como eu. Agora, acompanha-me para junto Dele, o Único que te salvará!”

  3. Responde Dismas, o libidinoso: “Se ao menos tivesse cora- gem! Começo a crer ser Jesus a Divindade Suprema; mas, à propor- ção que cresce esta fé maravilhosa, aumenta o temor a Ele, o Santo! Quem me livrará disto?”

  4. Diz Roberto: “Amigo, agradece ao Senhor por tal sentimento de receio provocado por Sua Mão Abençoada, que procura reunir em teu coração a vida espiritual completamente dispersada. Esta Santa Atividade do Senhor desperta o teu espírito, provocando em tua alma o sentimento do medo. Anima-te e segue-me, que te verás livre disto. O Próprio Senhor, que provocou tal temor abençoado, tirá-lo-á de ti!”

  5. Diz Dismas: “Muito bem, arriscarei por tua causa e supor- tarei o que mereço! Se já não possuía honra quando me divertia com prostitutas, por que exigi-la diante dos Olhos de Deus, de cuja consideração jamais farei jus? Só me caberia desonra e vergonha! Se na Terra não ligava ao espírito de Deus dentro de mim, que me deu e conservou a vida, como aguardar deferência da parte Dele?

  6. Ele agraciou-me com uma partícula de Seu Espírito Santo; em troca, não quis reconhecer a elevada santidade desta vida e glori-

ficá-la através de uma ordem e conduta justas; mas fugi do verdadei- ro conhecimento, convertendo o que era santo em animalesco e vi- lania em virtude da impudicícia! Agora vejo-me, diante de Deus e de Seus Santos, como depravado! Cabe-me apenas a maior vergonha!”

  1. A tal exclamação desesperada de Dismas, seus amigos o abor- dam, dizendo: “Que é isto, Dismas? O que se passa contigo? Por que te condenas ao vexame? Não somos todos iguais a ti? Ao te expores a tal vergonha, aplicas a mesma medida a todos nós, e isto de modo algum nos é indiferente! Se não nos excluíres da mesma, passarás mal!”

  2. Responde Dismas: “Que esperais de mim? Acaso exigis con- sideração por causa de vossa vida devassa? Que fizestes na Terra ca- paz de merecer honra diante de Deus e Seus filhos? Julgais que aqui se consegue proteger do vexame público uma alma com máscara de prata e ouro? Enganai-vos! O bafo venenoso do dinheiro empregado pelos homens para ocultarem sua vergonha nada mais adianta! Aqui, a verdade nua e crua vem à luz do Eterno Dia de Deus; impossível ser encoberta por quaisquer meios! Por isto, deve cada um de vós seguir o meu exemplo para, ao menos, salvar a honra do seu espí- rito, exigência justificada que poderá fazer de sua alma! Se isto não fizermos, teremos de aguardar a perda completa do Espírito Divino em nossa alma, ou seja, a morte eterna! Por tal razão, cabe às nossas almas aceitarem o pior vexame, a fim de que se salve a honra do Espírito vivo de Deus, dentro da verdade e da ordem eternas!” A estas palavras, os outros se retiram aborrecidos, enquanto Roberto se dirige a Dismas: “Caríssimo irmão! Teu progresso é gigantesco! Comigo não se deu o mesmo! Alegras-me sobremaneira, pois tua situação perante o Senhor não será tão difícil! Vamos!”

CAPÍTULO 100

Dismas confessa sua grande culpa, mas não pede misericórdia e, sim, punição justa.

Consequência de pedido tão errado

  1. Incontinenti, Dismas acompanha Roberto e vem para junto de Mim, o Senhor da Vida. Prostra-se contrito e diz em alta voz: “Oh, Senhor, eternamente indigno de fitar Teu Semblante Santifica- do, humilho-me no pó de minha nulidade, qual verme abjeto, cheio de perversão e adultério, e Te peço aplicares o justo castigo pelas minhas ações vergonhosas, de acordo com Tua Justiça! Tua Vonta- de Se faça!”

  2. Digo Eu: “Dismas! Quem és? E o que pedes? Queres re- almente que satisfaça o teu pedido?! Ai de ti, se tal fizesse! Acaso queres te tornar pior do que já és? Então procura o chefe dos dia- bos, que condena pelo fogo! Eu a ninguém julgo e castigo, nem mesmo a ti! Se quiseres viver — e assim suponho, porquanto Me procuras — pede pela vida e não pela morte! Julgas que Eu Me ale- gro com a morte de Meus filhos? Tolo! Sou Deus da morte ou da Vida? Toda a Eternidade e o Universo Infinito dão o testemunho eterno de ser Eu o Deus da Vida! E tu pretendes fazer de Mim o Deus da morte?

  3. Dize-Me quem és, para que veja os erros dentro de ti. Não foram tuas ações na Terra suficientemente perversas? Por que queres, ainda, pecar diante de Mim? Bem vejo quem és e o que procuras! Por isto, livrar-te-ei de uma resposta difícil! Ergue-te e modifica o teu íntimo! Com esse pedido jamais terás progresso, mormente que- rendo experimentar Minha Paciência e Misericórdia! Pediste, qual escravo oriental, punição justa; teu coração, no entanto, almeja Gra- ça plena! Dize-Me: a qual dos dois pedidos devo satisfazer?”

  4. Responde Dismas: “Senhor Jesus, Deus único! Tem paciên- cia com este pobre diabo! Sei que sou pecador e incapaz de balbu- ciar um pedido razoável. Não me julgues pelo que digo e, sim, em virtude de meu coração doentio e cura-o pela Tua Graça, que minha

língua jamais se cansará de louvar-Te! Senhor, se Tu me repudiares, quem me aceitará e me livrará da miséria?”

  1. Digo Eu: “Teus inúmeros amigos acaso não te poderiam so- correr? Os afins se atraem e se desculpam reciprocamente! Por que não será este o teu caso? Considera teres vivido na Terra além de sessenta anos, sem Minha Ajuda, rodeado e aconselhado por teus amigos. Jamais foste infeliz, com exceção da presença de tua com- panheira, quando te surpreendia em colóquio amoroso. Quando alguém te dizia algo de Mim, demonstrando não Me agradar teu modo de viver, davas boas gargalhadas; e aquele que te elogiava era abraçado como amigo. Agora te prosternas diante de Mim, pedindo vida e morte! Que devo dar-te? Não te posso dar a morte; não queres inteiramente a vida, porquanto tuas palavras não concordam com teu sentir, e tuas ações terrenas nada têm de semelhante ao gérmen de vida! Faze um exame de consciência e dize o que queres!”

  2. Responde Dismas: “Senhor, onde estaria o justo capaz de en- frentar-Te numa discussão? Tua Sabedoria e Onipotência o reduzi- riam ao nada! Muito menos eu poderia contestar-Te, porquanto sou cheio de pecados diante de Ti e dos homens! Bem sei ser possível ao pecador dirigir-se a Ti, que és Misericordioso, tão logo o desejes! Entretanto, penso poderes interpretar as palavras mais humildes de um pecador dentro de Tua Vontade, perdoando-o para a vida eterna ou condenando-o para a morte sem fim — tudo isto pela Justi- ça rigorosa.

  3. Pois ela é a Ordem do poder! Quem possui o pleno poder também é dono da justiça indiscutível. Quanto mais sábio e podero- so, tanto mais invencível e firme sua ordem, porque seu saber recebe maior consistência através da força. Se poder e justiça são idênticos, como poderia um pobre pecador sonhar com qualquer justificativa? Tudo que é feito pelo poder justifica-se; aquilo que o fraco fizer contra o poder é injusto. Mesmo se as ações do fraco fossem justas, dentro do princípio da razão, de que lhe adiantaria? O poder o reco- nhecerá como injusto e condenável, porque as ações do impotente são contrárias aos princípios da ordem do poderoso.

  1. Tal é a minha situação diante de Ti, Senhor — Tu, a Onipo- tência; eu, o mais ínfimo ser! Poderia alegar o que quisesse — farias o que Te agradasse, por seres o Poderoso. Diante disso, só posso di- zer: Senhor, Tua Vontade Se faça! Poderei desejar mil coisas, sempre acontecerá aquilo que quiseres! Por isto, nada mais desejo e me sub- meto à Tua Onipotência, seja qual for Tua Resolução! Se pretenderes fazer-me feliz, será para o meu bem; condenando-me para o inferno, serei obrigado a obedecer, pois terei que aceitar tudo que determina- res! Penso ter feito jus à minha impotência contra Tua Onipotência justa, e sei que agirás dentro Dela!”

  2. Digo Eu: “Pois bem, como consideras toda a Justiça dentro do Poder, queroque te dirijas por toda Eternidade ao canto desta sala em direção à meia-noite. Lá serás constantemente martirizado por um mosquito! Meu Poder assim o quer; portanto, obedece!”

  3. Levando grande susto, Dismas diz, acanhado: “Oh Senhor, não obstante eu ter de me sujeitar à Tua Onipotência, peço-Te que sustes ao menos o mosquito, pois seria algo terrível alguém sentir tal constante martírio!”

  4. Respondo Eu: “Isto sei Eu! Todavia, Meu Poder o justifica para tanto! Por que não obedeces à Minha Vontade Poderosa?”

  5. Acrescenta ele: “Senhor, és Onipotente, mas também in- finitamente Bom! Apelo, pois, para Tua Bondade e peço-Te Miseri- córdia! Poupa-me do suplício do mosquito!”

  6. Digo Eu: “Recorres agora à Minha Bondade e Misericórdia porque a água da morte te entra pela boca! Como é isto possível, se anteriormente depositavas tudo em Meu Poder e pronunciaste: Senhor, Tua Vontade Se faça! — Minha Vontade não parece agra- dar-te e agora teu coração deseja que Ela não se cumpra! Como devo entender isto? Falas contrariamente ao teu coração! Pensas ser Eu alguém que aceite uma comédia? Enganas-te muito!

  7. Não ajo como Meus Filhos em relação aos seus, queren- do assustá-los com rigor aparente; pois eles o percebem e se riem quando os velhos armam uma trovoada fictícia, e não consideram os conselhos paternos. Tal não é meu hábito, pois Comigo se aplica,

em tudo, o rigor mais intransigente e férreo; a vida de um verme tem de ser conservada e dirigida na mesma ordem que a de um anjo. Sou qual pedra de máxima dureza e peso; quem nela esbarrar será dizimado e quem por ela for atingido será esmagado!

  1. Afirmo-te: Enquanto tua palavra não surgir de teu coração enfrentarás uma situação difícil, pois não posso dar ouvidos a duas vozes. Tão logo teu coração se expresse pela tua boca, ouvir-te-ei e considerar-te-ei! Tens de obedecer àquilo que em Mim te parece Santo! O Poder de Minha Vontade Divina te é o mais Santo, con- forme afirmaste; portanto, tens que te submeter, caso não pretendas rebelar-te contra a Minha Justiça e Onipotência!

  2. Deves, porém, saber não ser Eu o Único provido de livre vontade, podendo fazer o que quiser; todo espírito criado por Mim tem livre arbítrio e pode agir à vontade. Não te obrigarei, pela Mi- nha Onipotência, a fazeres o que mandei como Juiz rigoroso. Podes te opor e fazer o que te agradar. O futuro demonstrará o resultado de tua ação!”

CAPÍTULO 101

Teimosia de Dismas. Críticas acerbas de seus amigos bem intencionados

  1. Nesta altura, Dismas volta-se para Roberto Blum e diz: “Caro amigo, é tal qual eu imaginava: nada se consegue com este Jesus! Quanto mais alguém se humilha diante Dele, tanto mais áspero e intransigente Se torna! A consequência disto é ser preciso afastar-se Dele, procurando ficar livre dessa vida miserável, jamais almejada. Desprezo tal existência amaldiçoada que serve apenas para distração dos mosquitos divinos! Reconheço nada poder fazer contra a Onipotência de Deus; todavia, jamais Lhe agradecerei por tal tirania!

  2. Apresentei-me ao Senhor numa submissão única e pensava ser alvo da mesma Benignidade dispensada à heroína. Mas, que di- ferença existe entre nós! Ela é tratada como anjo e eu, qual demô-

nio! Ela foi prostituta e eu adúltero. Quem não descobrir em tal tratamento um capricho arbitrário da Divindade deve ter seus olhos noutra parte, jamais na cabeça! Na Terra maldita se é escravo dos instintos, e aqui, um monstro miserável; e, por tanto, ainda deveria ser grato? Quando teria eu pedido a Deus para dar-me vida? Onde estariam as eternas condições do contrato pelas quais a Divindade me tornou um ser individual?

  1. Ela me fez como sou e só depois me impôs leis impossíveis de serem cumpridas, uma vez que minha natureza não era constituída para tal fim! Agora Deus e diabo me são idênticos, pois deveria ser martirizado para distração da arbitrariedade divina só porque não podia agir de acordo com a lei de Deus! É o jogo do gato com o rato! Se for de seu gosto, ele deixa correr o bichinho; do contrário, o po- bre ratinho é devorado. Bonita sorte a do homem! Agora, tudo me é indiferente! Que buraco me é destinado onde o mosquito me mar- tirizará por toda a Eternidade? Imediatamente para lá irei e o ‘justo’ Senhor Jesus poderá soltar um ou mil mosquitos! Minha gratidão será ilimitada! Bem conhecida é a justiça dos magnatas da Terra, mas a de Deus é única em sua arbitrariedade tirânica. Enquanto for capaz de um pensamento livre, serei um crítico a deixá-Lo pasmado, e quanto mais me martirizar, tanto mais altos serão meus brados contra Ele! Onde está o amaldiçoado canto, para poder mais depres- sa começar minhas imprecações?!”

  2. Diz Roberto: “Amigo, com tal linguajar não posso concor- dar! O Senhor, a Quem desafias, dar-te-á a resposta. Nós, espíritos de Sua Graça, temos o direito do amor, pelo qual conquistamos as almas perdidas, pelo Amor e Sabedoria Divinos, a fim de levá-las diante de Seu Semblante, cuja Luz puríssima as ilumina e as des- perta para a Vida Eterna e libérrima. Mas, se uma alma conquistada por nós, espíritos fracos, é um demônio perfeito, não nos cabe mais o direito de intromissão. Nada mais aguardes de mim, mas o Senhor te dará o que mereces!”

  3. Em seguida, Roberto se junta aos amigos, revoltados pelo atrevimento de Dismas. Os parentes fazem o sinal da cruz, mani-

festando seu pavor diante de tanta obstinação. Os apóstolos se en- chem de rigor amargo e os patriarcas estremecem diante desse filho depravado. Helena arde de revolta contra esse monstro, conforme classifica o libidinoso Dismas.

  1. O bom Olavo, de olhos marejados, ergue suas mãos, ex- clamando: “Meu Deus, meu Deus! Como é possível um homem, orientado na Escritura, transformar-se, pela volúpia, num demônio atrevido?! Não posso acreditar! Admite sua própria nulidade e, após conhecer Deus e tê-Lo diante de si, ainda assim se expressa de tal forma! Oh, Jesus, Pai Santíssimo e verdadeiramente amoroso! Meu coração se parte de dor por seres ofendido de modo tão revoltante por um miserável verme do pó, diante de nós, Teus filhos agracia- dos! Oh Senhor, Pai Jesus, vinga-Te neste verme, pois ele pisa Tua visível Graça com teimosia satânica!”

  2. Mariana, uma das amantes de Dismas, persigna-se sete vezes e diz a Francisco, cuja estupefação chegou ao auge: “Ouviste isto? Ao lembrar-me de suas atitudes obscenas e que esse demônio foi meu amante na Terra, nem sei o que fazer de ódio! Também sou grande pecadora e sei muito bem que só mereci o inferno, mas seria capaz de me desfazer por amor a Nosso Senhor, que é imensamente Bom. Se eu tivesse tido educação melhor em vida, não teria chegado ao estado atual; mas este camarada gozou de educação esmerada e lia constantemente a Bíblia e outros livros sacros, de sorte que seus amigos julgavam que ele marcharia direitinho para o Céu! Agora demonstra que espécie de fariseu foi! Diante dos outros, fazia-se de santo; mas os sábados eram reservados às orgias. Deus não existia para ele. E, caso alguém o lembrasse disto, ficava furioso, dizen- do: Imbecil, que entendes do Reino de Deus? Seis dias pertencem a Deus e um à Natureza!”

  3. Diz o Chico: “Realmente, se este não for para o inferno, o pior demônio será bendito! Sabes que sou inofensivo e nada de mal desejo a quem quer que seja; mas, a ele, poderia ver assando no fogo infernal, que não me apiedaria! Espero que Nosso Senhor aja de acordo!”

  1. Acrescenta outro amigo de Chico: “Que te parece se, por amor a Jesus, nós o pegássemos e lá fora lhe déssemos uma boa surra?” Diz o outro: “Se Nosso Senhor concordar, não esperarei outro convite! Agora, silêncio! Pelo que me parece, Ele pronunciará sua sentença!”

CAPÍTULO 102

Perplexidade de Dismas diante da condenação geral. Dirige-se com sinceridade ao Senhor, pedindo Graça e Misericórdia

  1. Percebendo a reação unânime, Dismas se levanta e Me diz: “Senhor! Agora vejo e acredito seres o Deus único e Verdadeiro, Criador de tudo que existe! Somente Tu és Perfeito, não havendo ninguém que a Ti se compare! Todo conhecimento, todo desejo e todas as ações em Tuas criaturas são, desde sua origem, Tua Obra, portanto boas. Pois um espírito perfeito de modo algum poderá criar algo imperfeito ou nocivo. Diante de Ti, portanto, não pode haver pecadores e pecados. Como, porém, organizaste o homem dentro de Tua Infinita Sabedoria, de tal forma que a vontade por Ti insu- flada no início — a fim de se tornar independente — teria de ser isolada de Ti, determinando-se pelos conhecimentos múltiplos a ela inerentes, é fácil ele cometer, neste período de isolamento completo dentro do mundo material, ações contrárias à Tua Ordem Divina, tornando-se pecador; muito embora tais desvios em Tua Organiza- ção sejam apenas ninharias.

  2. Por certo reconheces, Senhor e Criador de todos os seres, o motivo por que o homem faz precisamente aquilo que não deve e até mesmo não quer; um ímpeto estranho, porém, o influencia e não sossega até que o tenha satisfeito.

  3. Se tudo isto, Senhor, Te é compreensível em suas bases, não julgarás nem condenarás minhas atitudes com rigor intransigente, como se um outro deus diante de Ti tivesse pecado. Teu Coração Paternal deveria dizer o seguinte: o pecador, que neste momento se encontra fraco e desprotegido diante de Ti, foi, é e será para sem-

pre um fraco que somente poderá conseguir força plena através de Tua Graça! Por si mesmo é o homem o que é — uma sombra de Teu Hálito.

  1. Por isto, sê clemente e misericordioso para com esta som- bra fraquíssima, que confessa abertamente ser apenas miserável pe- cadora. Baseando-me em Tua Infinita Sabedoria, Bondade e Poder, espero que Tu, Senhor, Criador e Pai não me julgues como único responsável por todos os meus erros! Se existe o inferno, terá ele sua boa parte nisto!

  2. Confesso também ter anteriormente me dirigido a Ti de modo ultrajante, aborrecendo Teus bons amigos. Sinto profundo arrependimento e Te peço, se possível, que me perdoes!

  3. Bem disseste aos Teus irmãos, quando o mancebo não pôde renunciar à sua fortuna a fim de seguir-Te, ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino do Céu! Esta verdade eterna ficou infelizmente em mim provada e sinto o peso da maldição que se prende aos bens materiais. Todavia, também me recordo teres afirmado que para Deus todas as coisas são possíveis. E assim, Senhor, talvez fosses capaz de perdoar-me as faltas e permitires saciar-me parcamente das migalhas que sobram das mesas de Teus amigos!”

  4. Digo Eu: “Caro Dismas, esse discurso Me agrada mais que os anteriores, quando pretendias, em tua grande cegueira, discutir Comigo! Tua confissão em público fechou as portas do inferno, de sorte que não mais poderias lá ingressar, mesmo se o quisesses. De Minha Parte, estás perdoado! No entanto, vês aqui inúmeros cre- dores, aos quais deves somas vultosas. Como irás liquidá-las? Pois consta: Antes de terdes devolvido o último ceitil de vossas dívidas, não entrareis no Reino do Céu! Que pretendes fazer?”

  5. Responde Dismas: “Oh Senhor, sabes que eu sou tão pobre como talvez nenhum outro em todo o Infinito. Se depender de mi- nha fortuna satisfazê-los, eles são alvo de minha compaixão, pois não a possuo. Se Tu, Senhor, o quiseres, ser-Te-á fácil livrar-me de minhas dívidas através de Tua Misericórdia.

  1. Tudo que posso fazer é pedir-lhes perdão e clemência, con- fessando ter pecado contra eles e diante de Ti. Dá-me uma opor- tunidade, Senhor, e me movimentarei para restituir-lhes tudo que for possível!

  2. Minha maior dívida, certamente, será com minha querida esposa e meu amigo Olavo. Dirijo-me primeiro a eles, pedindo in- dulgência e perdão, com a promessa de que tudo farei para saldar minhas contas, em Teu Santo Nome! Tu, oh Senhor, fortifica nos- sos corações na execução de tudo que seja justo diante de Ti e de Teus anjos!”

  3. Digo Eu: “Está bem, direi algumas palavras de conciliação aos teus credores e veremos suas exigências. Entrementes, cala-te!”

CAPÍTULO 103

Ema e Olavo perdoam a Dismas. O Senhor dá testemunho do forte espírito “Paulino” em Dismas. Incumbência celeste ao convertido

  1. Em seguida, dirijo-Me a Ema e ao bom Olavo, de feições alegres: “Então, ouvistes as palavras de vosso devedor?” Respondem ambos: “Senhor, com a maior satisfação!”

  2. Prossigo: “Que pretendeis fazer: condená-lo ou perdoar-lhe tudo e recebê-lo em vossos corações?”

  3. Dizem eles: “Pai Santíssimo e Amoroso! De há muito está perdoado; estamos prontos para recebê-lo com amor e conservá-lo para sempre, caso isto não seja contrário à Tua Santa Vontade!”

  4. Respondo Eu: “O que for de vosso agrado em Meu Nome, sê-lo-á também para Mim, de tal forma que não podeis imaginar! Afirmo-vos ser grande a Minha Alegria com a conquista deste espí- rito. Existem poucos semelhantes a ele, pois tem um espírito pauli- no e faz parte de Meus Instrumentos contra os inimigos dos Meus Céus! Assim como agia contra Mim, usará toda sua persistência tra- balhando a Meu favor.

  1. Por enquanto não o devolvo ao vosso meio porque precisa realizar uma grande obra para Mim. Tão logo seja bem sucedido, ele será vosso prêmio e vice-versa.”

  2. Diz Olavo: “Oh Senhor, não haverá incumbência para mim? Dá-me ocasião para fazer qualquer coisa em Teu Santo Nome!”

  3. “Caro irmão”, acrescento Eu, “já me prestaste um grande ser- viço e, além disto, em breve terás tua oportunidade. Para o aperfei- çoamento de Dismas é necessário que ele realize uma tarefa de puro amor, de sorte que o enviarei sozinho a uma boa pesca.”

  4. Olavo se conforma, enquanto Me dirijo a Dismas: “Meu caro amigo, já que transformaste teu coração dentro de Minha Or- dem, humilhando-te completamente diante de Mim, frente àqueles que ainda há pouco representavam um espinho para o teu orgulho trazido da Terra, alcançarás honras elevadas e verdadeiras. Para Mim toda honra depende de uma ação boa e nobre, de sorte que terás de executar uma tarefa com eficiência. Do bom êxito resultará muita coisa; mas não te será levado em conta o sucesso ou o fracasso, pois, para Mim, só vale a boa vontade, a intenção honesta baseada no amor e, finalmente, uma ação iniciada dentro de uma séria reflexão!

  5. Não te preocupes se o resultado for bom ou não, porquanto está em Minhas Mãos. Muitas vezes até permito que aos espíritos mais heroicos muitas obras não deem resultados quando recebem de Mim uma incumbência, a fim de demonstrar-lhes não haver em todo o Infinito umespírito capaz de agir por si só; terá que operar sempre Comigo. Nesta ação conjunta o sucesso é garantido e credi- tado ao espírito.

  6. Se bem que o espírito perfeito tenha grande poder individu- al, que lhe faculta ações próprias, ele não tem mérito, porquanto tra- balha por sua conta. Recebendo, porém, Minha Força em sua ação, agindo com Meu Dedo, ele trabalha para Minha Casa, no que con- siste justo mérito. Por aí deduzirás comose deve agir no Reino Eter- no da Vida Verdadeira para conquistar algum mérito perante Mim.

  7. Ouve, pois, o que te cabe executar: lá no fundo da sala, em direção à meia-noite, deixaste um grupo de amigos de antanho. Dez

mulheres e vinte homens que, em vida, ainda foram piores que tu; sabes de suas atitudes condenáveis, bem como a causa. Entrego-os em tuas mãos e te dou pleno poder para agir à vontade. Assim orien- tado, vai conquistá-los e traze-os aqui para Eu Mesmo resolver seu futuro. Se fores bem sucedido, receberás traje de honra. Inicia com prudência, do contrário terás muito trabalho!”

  1. Responde Dismas: “Oh Senhor, a incumbência é tão hon- rosa que dispensa traje especial! Se esse trabalho nobre for bem su- cedido, será unicamente Tua Obra, cabendo-Te toda honra. Não correndo bem, será uma prova de não ter eu agido estreitamente Contigo e, em tal caso, não poderei aguardar nenhum mérito. Se- nhor, farei, com Tua Graça, o que me for possível e assim confio no bom resultado; mas peço-Te não me agraciares com vestimenta honrosa, mas que me seja permitido louvar-Te, acompanhado das almas conquistadas. A um pecador igual a mim não cabe nenhuma deferência!”

  2. Acrescento Eu: “Muito bem, Meu caro Dismas, estás ini- ciando bem! Quem Comigo quiser ser o primeiro, será o último. Quem desejar ser o último, amando, honrando e prestigiando todos os seus irmãos, será o primeiro em plena verdade! Quem tentar ga- nhar a vida por conta própria, perdê-la-á; quem odiá-la e fugir dela em virtude de Minha Vida Verdadeira, recebê-la-á em toda pleni- tude! Agora vai e desincumbe-te da tarefa abençoada!” Dismas se curva diante de Mim e de Meus amigos, dirigindo-se ao mencio- nado grupo.

CAPÍTULO 104

Dismas e seus amigos de antanho

  1. Ao aproximar-se de seus companheiros, Dismas é recebido com frieza. Percebendo-o, ele diz: “Meus caros, sois aqui como fos- tes na Terra; os verdadeiros amigos vos eram insuportáveis, enquan- to apreciáveis os outros, bastante espertos para vos atirarem areia nos

olhos; assim cegos, facilmente vos podiam iludir, vendendo cacos de vidro como diamantes, e metal polido como ouro. Quem vos abor- dava com a verdade, era expulso qual adversário; quem vos bajulava, qual raposa com as galinhas e a serpente com os pássaros, era acolhi- do de braços abertos. Enquanto acompanhei vossas cantigas, fui me- recedor de vossa simpatia; agora, graças ao Senhor, compreendendo a torpeza de nossa situação, afastei-me de vós para encaminhar-me em direção à verdade, abandonando treva e morte, palmilhando a trilha da Luz e da Vida. Aqui volto para levar-vos àquele caminho — e sou recebido por vós qual noite fria do Polo Norte!

  1. Tolos que sois! Que pretendeis fazer? Quais as vantagens ob- tidas com a vossa ignorância? Fazei uma comparação entre vós e aqueles amigos de Deus. Quão felizes são eles! E vós? Acaso é real- mente vossa intenção permanecer nessa miséria somente por teimo- sia? Qual o motivo que vos leva à condenação própria, quando Deus vos quer tornar felizes? Abri vossa visão e recebei minhas palavras em vossos corações para que Deus e eu possamos vos ajudar. Como me sinto feliz por Ele me ter livrado daquela miséria! Não deveria eu vos desejar o mesmo, na qualidade de antigo companheiro? Se este é meu propósito, por que me recebeis com revolta, tratando-me com desprezo? Olhai para mim! Encontrando algum subterfúgio, podeis amaldiçoar-me! Descobrindo em mim um amigo honesto, recebei-

-me e permiti que vos conduza à verdadeira felicidade!”

  1. Diz um deles: “Amigo, contigo dá-se o seguinte: ou foste ho- mem inteligente que agora se tornou idiota, ou eras tolo e te tornas- te dez vezes mais! Quem, na Terra, estudou e pesquisou mais que eu, e tu às vezes comigo, e quais foram finalmente nossas conclusões? Nada mais que o homem, não obstante todo o empenho nos estu- dos do Universo, consegue deduzir tanto quanto o piolho que se atrever a analisar a natureza humana; quando se atrever a galgar a cordilheira do homem — designada nariz — com o fito de analisá-

-lo, é amassado sem piedade!

  1. Comparadas ao piolho, as criaturas representam muito me- nos em relação ao Universo de Deus, e mesmo assim querem com-

preendê-Lo e até humanizá-Lo! Não seria o mesmo que o piolho dotado de grande poder e força?

  1. Vê a que extremo chegaste? Como podes ter a ideia de nos querer apresentar a Divindade em Jesus, embora espírito muito ele- vado? Convém voltares à antiga razão; do contrário, poderás com- partilhar do mesmo destino do mencionado piolho!”

  2. Responde Dismas: “Amigo, enquanto o homem rasteja qual verme sobre a Terra, aceita tua pilhéria! Acontece, porém, estarmos despojados do físico material, porquanto este aqui é puramente eté- reo-espiritual, que nos capacita à percepção daquilo que o Grande Mestre Jesus nos revelou na Terra. Se tudo isto vemos confirmado pela vida após a morte, através da recordação da existência terráquea e o conhecimento de sermos idênticos ao que fomos na carne, não há motivo para duvidarmos ser aquele Doutrinador a Vida, que du- rante sua pregação abriu os olhos dos mortais, demonstrando-lhes sua pátria verdadeira e eterna, e ser seu Pai Real algo mais que todas as criaturas em conjunto. Foi Ele o Primeiro e único a conduzir os homens à sua verdadeira finalidade e nós, espíritos, temos agora a convicção viva de ser tal qual Ele ensinou pelo Verbo e Ação! Se não for Ele — quem poderia ser?

  3. Além disto, Ele tudo executa pela Sua Vontade! Num mo-

mento surge o que deseja e dispensa nosso conselho; caso isto admita, fá-lo apenas para demonstrar quão inútil é toda sapiência humana diante Dele, o Sábio, e como é bom dependermos de Sua Sabedoria!

  1. Se reunirdes estes pontos e O analisardes sob tal aspecto, de- veis confessar em vosso coração ser Ele o que disse de Si Mesmo! Não é admissível que um Doutrinador tão sábio tenha a tolice in- confessável de apresentar-Se aos discípulos como Deus de Eternida- de, exigindo de Satanás obediência, serviço e adoração, o que a meu ver tem o seguinte sentido: todo o mundo da Criação tem que se submeter à Sua Vontade Poderosa, de modo independente, caso não pretenda ser condenado pelo peso do Poder e Força do Seu Verbo!

  2. Se uma Entidade, plena de Máxima Sabedoria, isto exige, não só dos homens, mas da própria Natureza, poderia se alimentar

uma dúvida de ser Ela Deus, só pelo fato de Se apresentar na forma humana? Penso serem minhas palavras evidente verdade afirmando ser Jesus o Ser Supremo! Crede-me e levantai-vos nessa fé! Quero vos conduzir para junto Dele, para que possa vos provar ser Aquele Mesmo cujo Nome faz prosternar todas as forças celestes e terrenas.

  1. Sabeis que não aceito facilmente uma ideia e reagi o quanto pude. Mas, quando alcancei o conhecimento através de uma prova dura, aceitei toda a revelação referente a Jesus; se eu, que fui sempre o mais teimoso, assim procedi, reconhecendo-O como Deus — creio ser para vós, que fostes mais crentes do que eu, muito mais simples!”

  2. Opõe o primeiro orador: “Amigo, foste levado a crer pre- mido pela fome; quando chegar tal momento para nós, aceitaremos aquele charlatão como Divindade!”

  3. Reage Dismas: “Ignorantes! Quando a fome me teria forçado a aceitar Jesus como Deus? Desde que deixei o mundo, não me ali- mentei! Sois doidos! Senti fome, sim, no coração, por Aquele que me deu a vida que tanto apreciei, mas que sem Ele me era enigmática! Tal ânsia foi satisfeita; mas o meu estômago está vazio! Se afirmardes não sentir nem a santa fome do coração, compreendo vosso estado incu- rável! Esperai um pouco, que uma fome estranha vos atormentará!”

  4. Responde o outro: “Isto mesmo, proporciona-nos muita fome e aceitaremos como Deus quem a saciar! Sem necessidade sub- jetiva não existe inclinação para coisas elevadas. Se quiseres obter êxito com pessoa indolente, cura-a primeiro deste mal e projeta em sua alma desejo forte por aquilo que tens, que ela aceitará tua oferta. Sem este trabalho preparatório, nada alcançarás. Haveria interesse no mundo pela arte musical se os artistas não o despertassem através de suas produções maravilhosas? Porventura se daria a procriação do gênero humano caso o Criador não tivesse incutido na natureza do homem a avidez pelo contato carnal? Deves compreender ter que existir na criatura uma necessidade poderosa a fim de se interessar por qualquer assunto.

  5. O mesmo se dá conosco; não sentimos interesse por aquilo que nos expuseste. Somos quais semimortos, não sentindo prazer

nesta vida sonolenta; como, pois, manifestarmos interesse em teus ensinamentos e no tal Mestre Jesus? Desperta primeiro a vontade em nós, do contrário deixa-nos em paz com tuas tolices celestes! Para nós, Jesus pode ser dez vezes o Ser Supremo! Nossa atual manifesta- ção de vida é idêntica às pedras, sem a menor sensação. Projeta em nós maior estímulo e a vontade do convívio com Jesus e veremos qual nossa reação — talvez melhor que a tua!”

  1. Esse discurso deixa Dismas perplexo, sem saber como agir. Dou-lhe, pois, a intuição de despertar, em Meu Nome, fome pro- nunciada em seus estômagos, transferindo alguma vida aos semi- mortos. Após ter ele agido deste modo, o grupo vira-se para o seu orador, dizendo: “Amigo, vê se consegues alguma alimentação, do contrário nós te comeremos com pele e osso!” Responde ele: “Eu mesmo sinto fome tremenda, sem poder saciá-la! Dirigi-vos a Dis- mas, pois demonstra ser amigo íntimo de Jesus, que saciou cerca de cinco mil pessoas num deserto! Talvez sobrasse algo para nós!”

  2. Todos se dirigem àquele, pedindo alimento. Dismas lhes responde: “Amigos, exigis algo de mim que não possuo. Lá na mesa, provida do mais farto alimento, está Ele. Ide até lá, confessai vos- sas fraquezas, humilhai-vos diante Dele e enchei vossos corações de amor, que sereis saciados!”

  3. Reagem os outros, cada vez mais famintos e sedentos: “Oh inglês inconsciente! Se foste capaz de nos despertar fome e sede, como não tens os meios necessários para satisfazê-las? Trata de resol- ver isto, do contrário te verás mal conosco!”

  4. Responde Dismas: “Peço-vos, para vosso próprio benefício, não vos excederdes! O fato de ter eu proporcionado a sensação da fome se baseia no seguinte: ninguém é capaz de dar o que não tem. Eu também sinto fome devoradora, portanto posso dividi-la com outros. Se, porventura, tivesse alimentos, poderia também reparti-

-los. Mostrando-vos onde conseguireis plena satisfação de tal neces- sidade, segui o meu conselho, a fim de receberdes tudo Daquele que nutre e mantém o Universo. Caso isto não ocorra, podereis tomar outras medidas comigo; antes não! O direito de vingança só se justi-

fica quando tiverdes feito tudo que vos aconselhei. Desconsiderando apenas umponto, sereis culpados por não receberdes alimento!”

  1. Dizem eles: “Acaso te chamamos? Vieste por ordem de teu Deus Jesus; se te deu poder para nos importunar com fome e sede, por que não te conferiu os meios para satisfazê-las?”

  2. Obtempera Dismas: “Amigos, quem de nós teria poder de impor algo a Deus? Somente Ele é Poderoso e faz o que Lhe apraz! De modo geral, Ele envia aos homens pílulas amargas através de Seus apóstolos, para que a Ele se dirijam, recebendo em troca a paz interna. É preciso que os homens se convençam não ter valor o so- corro humano, idêntico àquele livro curioso do Apocalipse: um anjo o entrega a João para comê-lo; tinha gosto de mel, mas no estômago se tornara amargo! Por isto, nada de bom aguardeis de minha parte, porquanto não sou bom! Só Ele poderá fazê-lo, pois só Ele é Bom! Vamos para junto Dele!”

  3. Dizem eles: “Se tudo que emana Dele é bom, por que razão nós e tu não prestamos?”

  4. Responde Dismas: “Não éramos maus quando fomos por Ele projetados; assim nos tornamos pelo afastamento voluntário, cansando-nos com atitudes de falsos deuses, como se Dele não de- pendêssemos. Isto não podendo ser da Vontade de Deus, Ele nos deixa sofrer até que compreendamos sermos apenas criaturas tolas. Considerai isto e ide até lá, que sereis socorridos!”

  5. Reage o grupo esfaimado: “De que socorro falas? Acaso também foste junto a Ele quando Blum te convidou? De que forma foste socorrido? Tens o aspecto de quem está louco de fome; por- tanto, não sejas ridículo! Se pretenderes no futuro — se é que existe

  1. Defende-se Dismas: “Amigo, ainda mesmo não conseguin- do transmitir-vos convicção daquilo que há pouco me foi dado, te- reis ao menos de confessar ter tido boas intenções e jamais me por-

tei com indelicadeza; por isto, aguardo de vós o mesmo trato. Não sou culpado de vossa fome, pois a desejastes a fim de sentir maior sensação de vida; além disto, ela foi proporcionada por Ele através do excesso em mim. Demonstrei-vos onde poderíeis ser saciados; por que não o fazeis? Criticais-me porque segui Blum; afirmo-vos, no entanto, ter sido minha caminhada muito benéfica; embora de estômago vazio, meu coração está saturado de amor a Deus! Isto vale mais do que um estômago satisfeito! Quando o coração esti- ver alimentado, também estará saturada a necessidade física! Fazei, portanto, o que quiserdes! Não farei mais papel de tolo! Podereis continuar sendo os mesmos animais, ou então dirigir-vos ao Senhor, ao Caminho da Vida!”

  1. Tais palavras deixam o grupo perplexo e indeciso. Seu ora- dor se adianta e pede a palavra: “Amigos e irmãos, muito refleti acer- ca da missão de Dismas e confesso ter ele razão. Deveríamos fazer o que nos propõe, pois com todas as nossas conjecturas não chegaría- mos a melhor resultado.

  2. Que nos impede procurarmos aquele homem de quem Dis- mas afirma ser Deus? Se Jesus for realmente Deus, não obstante nossa descrença, a teimosia seria verdadeira loucura. Se não for, nada perderemos com sua amizade; pois se os outros passam bem ao seu lado, por que não se daria o mesmo conosco? Quem, como nós, nada possui, nada perderá, lucrando apenas alguma coisa que me- lhore a atual situação. Vamos, portanto, procurar o senhor desta casa e veremos o êxito após termos falado com o Cristo!”

  3. Dizem os outros: “Bem, poderíamos arriscá-lo, porque não nos custará a cabeça! Tuas palavras razoáveis são mais acessíveis do que o discurso idiota de Dismas! Sempre foi esse seu hábito!”

  4. Diz um outro: “Estaria tudo bem, caso fôssemos mais apre- sentáveis; nossas dez companheiras, principalmente, aparentam ver- dadeira miséria! Trapos imundos mal cobrem seus físicos desfavorá- veis! E nós outros, não menos! Julgo, por isto, ser melhor tratarmos primeiro de outra roupagem.”

  1. Diz o outro: “Amigo, o que fazer, sem poder? As moças po- dem ir na retaguarda e Dismas será nosso guia.” Concordam assim todos: “Pois bem, faremos a tentativa!”

CAPÍTULO 105

Obras do intelecto e obras do coração. Dismas conduz os renitentes ao Senhor

  1. Prossegue Dismas: “Resolvestes, finalmente, seguir o cami- nho da Vida! Ótimo! Sempre que fizermos a Vontade do Senhor andaremos certo; agindo pela própria razão, nos perderemos em atalhos. Seguindo a voz do coração, o homem sempre terá uma es- perança. O mesmo se deu convosco e comigo; expulsemos nossas razões pessoais, dando ouvidos à voz da consciência! Estou certo de que tudo melhorará.

  2. Refleti acerca do resultado que surgiu de nosso intelecto e a confusão de regras e leis que criou. Nosso estado atual dá-nos res- posta convincente! Confrontando isto com as obras realmente vul- tosas e úteis dos grandes mestres na poesia, música e pintura, todos eles foram inspirados pelo coração e pela alma; suas produções são inatingíveis aos olhos da posteridade racional, que só se dá ao tra- balho de querer analisá-las através de mil regras, das quais o Grande Mestre jamais sonhou ao projetar o Universo!

  3. Quando teria um matemático realizado obra genial e cheia de vida? Não foram ocas e estéreis, podendo ser comparadas aos fósseis de peixes, trilobitas etc., longe de apresentarem sinal de vida? Por isto, expulsemos tudo aquilo que deriva apenas do intelecto, em cujas obras repousa a maldição, enquanto os menores feitos do coração contêm valor inestimável para tudo que vive.

  4. O homem puramente intelectual é idêntico a um coveiro; sua razão, qual conglomerado de mil regras e leis, é a pá com que pretende cavar um túnel nas profundezas do coração, cheio de ouro vivo; seu esforço, porém, é infrutífero! Por isto repito convir desis-

tirmos de tudo que dele emana, inclinando-nos para as obras do coração, que em breve obteremos melhores resultados.

  1. Deste modo preparados, podemos nos dirigir, sem susto, ao Senhor, com Quem conseguiremos o necessário estímulo físico e espiritual em face da transformação da nossa índole. Vamos em fila, por vós organizada devido à vestimenta desfavorável!”

  2. Todos seguem a Dismas, um tanto amedrontados. Quando perto de Mim, ele se curva e diz: “Oh Senhor, através de Tua Graça e Ajuda, esta obra abençoada foi realizada pelo teu servo humilde. Seguiram-me em Teu Nome, agora se faça Tua Vontade! De modo algum aceito roupa especial, pois que não me cabe honra, mas so- mente a Ti, Senhor!”

  3. Digo Eu: “Meu caro Dismas, te desincumbiste muito bem da missão confiada, cabendo-te o mérito devido. Teus tutelados serão igualmente agraciados, de acordo com sua índole!” Dirigindo-Me a Roberto, prossigo: “Traze pão e vinho e uma vestimenta apropriada para Dismas. Entrementes, terei uma palestra com os outros. Que assim seja!”

CAPÍTULO 106

Controvérsia entre o Senhor e Bruno. Humildade e prudência deste atraem a Graça Divina

  1. O orador do grupo se adianta, faz uma profunda reverência diante de todos nós e diz: “Senhor, Criador, Conservador e Regente de todo o Infinito e de tudo que preenche o Espaço Eterno! Como nulidades completas, estamos diante de Ti, que és Tudo em tudo, aguardando Graça e Misericórdia; não em virtude de algum mérito, porquanto somos pecadores fracos e até mesmo incorrigíveis, mas pela simples razão de Tu seres Deus, o Puro e Perfeito Amor que Se deixou pregar na cruz em benefício dos pecadores empedernidos! Tu somente és a Força dos fracos, o Salvador dos miseráveis! Deste modo Te revelaste e disseste aos perdidos: ‘Vinde a Mim, que sois fracos e sobrecarregados, que Eu vos aliviarei!’

  1. Assim, também fomos atingidos pelas vicissitudes da vida que o inferno despejou sobre nós! Alivia-nos, de acordo com Tua Misericórdia! Em compensação, nada temos a ofertar senão trinta corações oprimidos pelo pecado, que muito almejam amar-Te, caso tenham coragem! Penso, porém, como fiz na Terra, após ter apro- veitado de uma criatura voluptuosa, em momentos de fraqueza: Se esta pessoa tivesse sentimento capaz de amar-me, seria obrigado à retribuição, apesar de suas atitudes depravadas! O verdadeiro amor só procura o coração, o resto não lhe interessa!

  2. Age assim conosco, Senhor! Não consideres nossos atos, todos maus! Considera nossos corações que, embora impuros, anseiam pelo Teu Coração Paternal, qual erva seca sedenta pela gota de orvalho!”

  3. Digo Eu: “Meu caro Bruno, tudo isto que falaste em nome de teus companheiros está bem. Na Escritura, porém, consta que adúlteros e impudicos não entrarão no Reino de Deus. Todos vós fizestes jus a tais títulos e, além disto, fostes por demais egoístas. Minha Graça, por vós almejada, é o próprio Reino de Deus! Res- ta, portanto, saber a maneira pela qual pretendeis dela usufruir, de acordo com a Bíblia!”

  4. Responde Bruno: “Ó Senhor, já que permites a um pecador se externar diante de Ti, não impedirás que sinta arrependimento de seus atos, implorando-Te perdão! Não obstante Teu Texto seve- ro, não fechaste as portas de Teu Reino ao assassino na cruz; não julgaste a adúltera no Templo; tampouco Madalena, e visitaste a casa de Zaqueu. Além disto, também já agraciaste muitos aqui, que tampouco foram melhores que nós! Não sejas, pois, mais rigoro- so conosco!”

  5. Digo Eu: “Sim; entretanto, não foram tão pervertidos!”

  6. Defende-se Bruno: “Senhor, o que diante de Ti poderia ser grande: pecado ou virtude? Somente Tu és Grande e Bom!

  7. Ó Senhor, que cuidas de cães, panteras, leões, hienas e tigres, animais maus e ferozes; cuida também de nós na mesma proporção!” Nessa altura, aceno a Roberto para trazer pão e vinho. Admirado, Bruno encara Roberto, pois ignora o que significa isto.

CAPÍTULO 107

Ceia celeste. Concorrência amorosa entre os convertidos. Bruno é convocado à prova máxima do amor ao inimigo

  1. Solícito, Roberto coloca pão e vinho sobre a mesa, curva-se e volta ao seu lugar. Tomando do pão, indago a Bruno se sabe o que é isto. Ele responde: “Senhor, eis o Pão do Céu, o verdadeiro alimento para a Vida Eterna e o perdão das faltas! Feliz quem dele se pode saciar!”

  2. Digo Eu: “Pois bem, sendo esta tua convicção, sacia-te à vontade!”

  3. Opõe Bruno: “Senhor, além de mim, aqui se encontram vin- te e nove pessoas, talvez mais famintas do que eu! Permite possa eu provê-las primeiro e depois satisfazer-me com as sobras.” Concordo: “Age de acordo com teu coração!”

  4. Agradecendo comovido, Bruno divide o pão até a última mi- galha entre os outros, que prontamente se fartam. Um deles perce- be que Bruno esquecera de si mesmo na partilha, por isto lhe diz: “Caro amigo, não consideraste a tua pessoa, dando-nos tudo; meu pedaço ainda está completo; toma-o, pois tua necessidade não é me- nor do que a minha!”

  5. Protesta Bruno: “Serve-te daquilo que me foi dado pela Gra- ça do Senhor e não te preocupes comigo, pois fico mais feliz ao ver-vos satisfeitos, do que me saciar cem vezes! Além disto jamais precisamos recear nosso provimento ao lado do Santo Doador!”

  6. A essa atitude magnífica de Bruno e de seu amigo, os olhos de todos, inclusive os Meus, se enchem de lágrimas de alegria, pois não existe em todos os Céus coisa mais sublime e comovedora do que um pobre e faminto esquecer-se de si, tendo em vista a necessi- dade dos seus irmãos, dando-lhes aquilo que lhe cabe. Tal homem dá um passo gigantesco ao Centro de Meu Amor! Guardaibem isto

emvossoscorações,ócriaturasda Terra!

  1. Em seguida, tomo do vinho e faço a mesma pergunta a Bru- no, como fizera com a partilha do pão. Responde ele, com gratidão:

“Senhor, eis o Vinho precioso de Teu Próprio Coração Paternal! Cheio de respeito e com gratidão eterna me atrevo a recebê-lo de Tuas Mãos Abençoadas e, caso permitires, passá-lo-ei aos pobres ir- mãos sedentos!”

  1. Digo Eu: “Anteriormente já te afirmei concordar com tudo que fizeres movido pelo coração! O vinho é teu e poderás fazer o que te agradar!”

  2. Bruno agradece e oferece o vinho aos amigos, que, entre- tanto, lhe afirmam nada tomarem até que ele se tenha servido. Tal renúncia, porém, não lhes adianta, sendo obrigados, pelo carinho do amigo, a saciarem sua sede. Nada resta para ele que, embora faminto e sedento, se alegra de ter provido os outros, já de aspecto melhorado.

  3. Digo Eu: “Então, Meu caro Bruno, agradaram-te Meu Pão e Meu Vinho? Já te sentes mais forte?”

  4. Diz ele, animado: “Senhor, só tenho umaboca, um estô- mago e umcoração! Estes têm vinte e nove bocas e outros tantos estômagos e corações. Se eu me tivesse saciado sozinho, não teria

tido muito lucro. Isto ocorrendo a vinte e nove almas, que abrigo em meu coração, fui realmente saciado vinte e nove vezes pela ale- gria de meus irmãos! Assim sendo, só posso responder à Tua Santa Pergunta, que tanto o Teu Vinho quanto o Teu Pão Celeste foram de paladar sublime! Gratidão eterna por essa imensa Graça!”

  1. Digo Eu: “Caro amigo Bruno, teus pecados na Terra foram múltiplos e pesados! Teu coração, porém, comportando tanto amor desinteressado para teus irmãos, muito te será perdoado! À medida que fores misericordioso, ser-te-á aplicada a misericórdia; e assim, recebê-la-ás em virtude deles, e eles por tua causa, pois um equivale a todos, e todos a um!

  2. Existem no mundo benfeitores muito bondosos para com uma pobre rapariga, procurando socorrê-la por certos motivos; quando abordados por uma velha viúva, fazem um sermão e lhe dão alguns níqueis, e a mesma medida é aplicada a um velho pobre. A tais benfeitores concederei pouca misericórdia. Quem pretende

usufruir prazer pela caridade que faz, endurece seu coração qual pe- dra quando isto não é possível, e pertence à família dos diabos, que também fazem favores àqueles que lhes garantem vantagem.

  1. Tua caridade não era movida por egoísmo, por isto apli- car-te-ei a máxima Misericórdia! Antes, porém, de proporcioná-la em plenitude, terás de dar uma prova de teu sentimento. Saindo-te bem, serás feliz!

  2. Em direção ao Norte existe uma porta semiaberta. Naque- le recinto encontrarás teus piores inimigos da Terra. Procura con- quistá-los e trazê-los junto a Mim, que terás alcançado a perfeição! Quem apenas fizer o bem aos amigos, longe estará de ter feito tudo a fim de que possa afirmar diante de Mim: Senhor, contudo, fui um servo imprestável! Quem isto não puder dizer, longe estará de mere- cer-Me! Vai, pois, e age como te falei!”

  3. Exclama Bruno: “Senhor, Tua Santa Vontade Se faça, seja qual for, pois Ela é minha vida, salvação e alegria! Quão feliz é aque- le que age de acordo com a Vontade do Pai Eterno, em Seu Lar Abençoado! Oh todos vós, meus inimigos, que me condenastes e ignorastes como irmão que vos amava! Em Nome de Deus, nosso Senhor e Pai, procurar-vos-ei a fim de abençoar-vos e fazer-vos o bem, para que possa apagar para sempre o mal que me fizestes!

  4. Meu Deus, meu Deus! Que felicidade inunda o meu cora- ção, que se sente bastante forte para se humilhar diante de seus ini- migos orgulhosos e egoístas! Tenho um leve pressentimento daquilo que Teu Santo Coração de Pai deveria ter sentido frente aos Teus adversários, quando exclamaste: Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem! — Que Grandiosidade Infinita e Santa, digna somente de um Coração Divino!

  5. Realmente, é sumamente elevado um irmão socorrer a ou- trem, e muito mais quando não aguarda recompensa! Coisa mais sublime, porém, é abençoar a quem nos maldiz, fazer o bem aos que nos odeiam, desprezam e perseguem! Por isto, avante! Meus inimi- gos serão destinados ao aperfeiçoamento de meu coração!” Com tais palavras, Bruno se dirige rápido à mencionada porta.

CAPÍTULO 108

O herói do amor rodeado por inimigos no Além. O Amor do Cristo a tudo suplanta. Grande pesca de almas

    1. Nem bem Bruno faz menção de penetrar no recinto de seus adversários, prontamente alguns se postam no limiar, exclamando, enraivecidos: “Alto lá, miserável! O que temos a ver aqui contigo? Foste sempre mais repelente do que a morte e alvo de nosso ódio e maior desprezo! Por que nos procuras aqui no inferno? Junta-te aos demônios, fera humana!”

    2. Responde Bruno, com coragem: “Meus amigos, que teria eu feito para merecer de vós ódio tamanho? Estou pronto para fazer aquilo que exigirdes com justiça, a fim de conquistar vossa amizade!”

    3. Gritam eles, desesperados: “Nada poderás fazer para melho- rar nossa opinião a teu respeito! Não precisamos de ti, com exceção do teu afastamento! Tua pessoa nos repugna mais do que o inferno, pois um diabo é um deus perfeito perto de ti! Vai-te daqui, do con- trário te estraçalharemos!”

    4. Diz Bruno: “Se com isto conseguir vosso perdão, com prazer me deixarei crucificar. Tereis, porém, de prometer não mais alimen- tardes raiva contra mim.”

    5. Dizem os revoltosos: “Acaso julgas constituir honra para nós se aplicarmos nossas mãos honestas num miserável? Podemos abater-te qual cão — e isto por mera consideração humana e jamais para nos cansarmos! Por isto, afasta-te e não nos aborreças com tua presença!”

    6. Diz Bruno: “Prezados amigos, sei perfeitamente de vosso ódio constante contra minha pessoa, que redundava numa persegui- ção atroz. Nunca cheguei a saber do motivo, por mais que me esfor- çasse em descobri-lo! Agistes assim apenas porque minha fisionomia não vos agradava. Mas aqui, neste mundo, mudamos de aspecto, pois atualmente penso de modo diverso que na Terra. Certamente dá-se o mesmo convosco!

    7. Dizei-me o que fiz para vos ofender. Estou em situação tal que me possibilita devolver tudo que porventura vos deva, e peço-

-vos apenas perdoar-me. Não vos exijo amizade, pois seria pedir de- mais! Desisti, porém, de vossa animosidade declarada, coisa muito fácil, porquanto me achastes por demais repelente para merecer a crucificação honrosa!”

    1. Dizem os outros: “De que adianta tua atitude pretensiosa, se és um patife? À vista dos outros te apresentas como homem honesto, para em seguida traí-los! Estás lembrado de tua ação na Bolsa? Ale- gavas uma queda constante dos valores e nos convenceste de vender- mos as ações para comprá-las tu mesmo. Não te faças de ignorante, pois te conhecemos a fundo!”

    2. Responde Bruno: “Ah, é este o motivo? Se vosso rancor se baseia nisto, espero em breve tornar-me vosso amigo! Garanto-vos, com sinceridade, que vosso ódio é infundado, porquanto não podia prever se o câmbio sofreria alteração; tampouco podeis provar ter eu comprado as ações por vós revendidas ao banco, com prejuízo. Comprei simplesmente porque tinha dinheiro, e vós vendestes em virtude da dificuldade monetária. Nunca vos perguntei da situação cambial, enquanto me sitiastes quase diariamente, importunando-

-me com as mesmas indagações. Qual teria sido minha vantagem? Vede quão fútil é vosso rancor? Nunca vos aconselhei a venda ou compra de valores. O fato de vos ter dito a verdade, na medida do possível, em ambiente tão vacilante como o da bolsa, mormente em época de guerra, experimentastes pessoalmente. Quem vos obri- gou o vender os papéis quando desvalorizados e comprá-los quan- do subiam? Nem eu, nem algum outro! Nem bem sofrestes uma perda, atribuístes a culpa ao mais próximo, que era mais pondera- do na especulação cambial. Portanto, não vejo razão no vosso ódio contra mim!”

    1. “Bem, confirma o grupo, agiste realmente conforme fa- laste agora. Isto, porém, não ameniza o nosso rancor e ódio, por- que pensaste em vida de modo diverso do que falavas, coisa que só agora compreendemos. Se não tivesses tido orientação prévia nos negócios da bolsa, não podias prognosticar qualquer alteração. Não fazíamos indagações para ouvirmos de ti a realidade, mas jus-

tamente o contrário; pois o resultado era sempre diverso das tuas afirmações. Tua astúcia, porém, não percebeu que aproveitávamos tuas informações contrariamente, conseguindo, deste modo, uma boa soma. Se isto às vezes falhava, representava apenas o capricho da sorte; mas, se tivéssemos aproveitado teus conselhos, em breve teríamos perdido tudo! Eis a razão de nosso ódio justo contra tua pessoa! Prova-nos o contrário, que pediremos até perdão, como teus melhores amigos!”

    1. Diz Bruno: “Muito bem, aceito vossa proposta. Antes, po- rém, respondei algumas perguntas: Acaso fui na bolsa algo mais do que vós? Digamos: diretor, contador, caixa, secretário ou consultor jurídico?” Respondem eles: “Não, apenas interessado.”

    2. Prossegue Bruno: “Quem está a par de todos os segredos financeiros?” Resposta: “O pessoal do banco e da bolsa.” Continua Bruno: “São os interessados nas especulações informados da verdade por parte dos chefes?” — “Não, nunca se sabe a realidade, caso algo periclite.” — Bruno: “Nesse caso, como poderia eu saber dos fatos reais?” — “Muito fácil: por meio do suborno tudo é possível a um patife!” — “Então, trazei-me todos os funcionários do banco e da bolsa para atestarem se pratiquei tal fraude! Ao passo que vossa gente afirmava terdes pago mil ducados a um funcionário numa situação crítica a fim de que vos desse um prognóstico, o que vos tentou no dia seguinte a vender todos os valores com grande prejuízo, procu- rando em seguida relações comerciais no estrangeiro. Teria eu vos aconselhado nesta transação duvidosa?”

    3. Nessa altura, os outros quedam perplexos. Bruno então prossegue: “Amigos, teria eu talvez vos insinuado a enterrardes trinta mil florins num porão? Quando, em Viena, foi publicado o estado de sítio, ordenando pesquisas judiciais em todas as casas, os soldados abriram o local que lhes parecia oco a fim de encontrarem armas ocultas e deram com a soma mencionada! Sempre fostes culpados de vossos prejuízos. Ainda vos considerais especuladores perspicazes, pensando ter sido eu traidor? Deus é Testemunha de não me caber a menor culpa de vossa desgraça!”

    1. Após certa pausa, um deles toma da palavra: “O caso é real- mente tal e qual o expuseste. Mas, se de modo algum tomaste parte nele, não compreendo como terias podido chegar à evidência dos fatos. Devem ter ocorrido em Viena numerosos casos semelhantes ao nosso. Acaso estarás informado a respeito?”

    2. Responde Bruno: “De muitos, por certo, sem que tivesse participado deles. Também fostes informados dos condenados pela justiça, sem todavia terdes sido os denunciadores; por que não me deveria ter inteirado da vossa desgraça financeira, quando vos co- nhecia através de relações comerciais? Provai-me a culpa de alguém que é apenas informado sobre a desdita alheia!”

    3. Perplexos, os outros não sabem responder; também não conseguem prosseguir em seu ódio, o que ainda os revolta contra Bruno. Após certo tempo, um se adianta e diz: “É deveras revoltante não podermos contestar-te e até mesmo sermos obrigados a desistir de nossa raiva, pois com prazer te teríamos aplicado uma boa surra! Deste modo, ainda nos obrigas a sermos amigos! — Que mais pre- tendes conosco? Que esperas de nós?”

    4. Diz Bruno: “Amigos, acaso não vedes nesta sala a grande mesa do Conselho e os que nela se reúnem, formulando julgamento sobre todo o Universo?”

    5. Responde o orador: “Felizmente, nada vemos, com exceção desse miserável recinto escuro que não tem saída. Que insinuas com tua indagação tola?”

    6. Diz Bruno: “Nada mais do que levar-vos junto ao Senhor e Salvador Jesus, a fim de que vos purifique e faça a vossa eterna felici- dade, razão por que Ele aqui me enviou. Não importa o fato de não poderdes percebê-Lo, pois junto Dele se abrirá vossa visão!”

    7. Opõe o orador: “Será difícil, pois ainda não mereces con- fiança de nossa parte a ponto de podermos seguir-te qual leal amigo. Além disto, somos neocatólicos, que bem sabem o que pensar do judeu Jesus, portanto não tão ignorantes como outros que o decla- raram Deus. Por tal razão, tens de inventar coisa melhor em nosso benefício, caso pretendas ser nosso ‘pastor’.”

    1. Diz Bruno: “Nem mesmo refletindo durante uma eternida- de conseguiria ter ideia mais aproveitável. A religião católica é um tanto ridícula e fútil em vários pontos; a crença neocatólica, porém, mil vezes mais! Não nega ela a sobrevivência da alma? Entretanto, continuamos vivos após a morte! Além do mais, rejeita não só a Divindade do Cristo, mas a própria ideia de Deus, de acordo com os filósofos Strauss e Hegel. Quem poderia permanecer nesse absur- do, mormente aqui, no mundo espiritual, prova de seu erro nesse assunto? Por isto já não merece consideração da parte de pessoas inteligentes, porquanto só pode conter conceitos falsos! Desisti deles e segui-me, pois vos garanto rápidas melhoras!”

    2. Diz o orador: “Amigo, és realmente esperto e te expressas como entendido no assunto. Para falar com sinceridade, lastimo nossa anterior atitude brusca e ofensiva. Espero que nos perdoes, porquanto sabes de nossa ignorância. Reconhece que todos em Viena, sacerdotes e funcionários, enterravam a pobre humanidade na pior treva espiritual, enleando-a com comédias picantes, bailes, prostituição e coisas idênticas. Nessas circunstâncias, era impossível alguém obter maiores conhecimentos. Tendo tido uma educação tão falha, nosso estado atual está de acordo, quer dizer, somos cegos, surdos e mudos, de alma e espírito, mal podendo diferençar o preto do branco. Tem, pois, paciência, e leva-nos, em Nome de Deus, a qualquer canto onde possamos conseguir algum ensino!”

    3. Diz Bruno: “Muito bem, já vos provei ter vindo de coração pacífico e meigo. Perdoo-vos tudo e sou vosso amigo verdadeiro; deste modo, creio não mais haver obstáculo entre nós capaz de im- pedir encetarmos o caminho único pelo qual se consegue satisfazer as necessidades de alma e espírito. Tende coragem, vontade firme e segui-me! O resto aguardai Daquele que já socorreu a muitos!”

    4. Dizem eles: “Nós, velhos conhecidos de negócios, somos uns vinte; mas lá atrás se encontram numerosos participantes da mais ínfima ralé. Duvidamos que nos sigam, pois são por demais ignorantes. Procura fazer uma tentativa! Para nós não interessa o fato de virem ou não!” Exclamam os outros: “Não somos tão tolos

como pensam os senhores! Por isto, tomaremos a liberdade de vos acompanhar. Aquele que vos socorrerá por certo não nos rejeitará, compreendestes? Avante, em Honra de Deus!”

CAPÍTULO 109

Espírito cordato entre as almas desordenadas. Inúmeros ignorantes vão junto do Senhor.

Bruno relata sua vida terrena

  1. Diz o primeiro grupo: “Por nossa causa não precisais ficar perturbados, pois neste mundo se apagam todas as divergências de classe. Além disto, não falta espaço; portanto, podeis acompanhar-

-nos para onde Bruno nos quiser levar”.

  1. Concorda um outro: “É isto mesmo; diante de Deus todos são iguais, rei e mendigo, lobo e cordeiro. Tão logo estejamos quites entre nós, não haverá objeções por parte de Deus, que deu as leis unicamente por nossa causa. Se nosso registro de débito e crédito não apresentar observações, por certo nada encontraremos anota- do no grande Livro da Vida. Se tiverdes que apresentar qualquer débito contra nós, apagai-o para sempre, aplicando a mesma medi- da que nós!”

  2. Aduz o primeiro: “Muito bem, deste modo somos todos ir- mãos e amigos! Bruno, porém, nos chama. Vamos segui-lo!” Todos se erguem e em poucos minutos a grande caravana está diante de Mim, e Bruno diz: “Senhor, eis todos os que se achavam presos den- tro daquele recinto abafado. São, na totalidade, cegos. Dá-lhes, pois, a Luz para que Te vejam, como eu, em toda a Tua Meiguice e Amor Paternal!”

  3. Diz um do grupo: “Bruno, acaso já chegamos ao fim de nos- sa peregrinação? Com quem estás falando?” — Responde ele: “Já alcançamos nossa meta final e eu acabo de me dirigir ao Senhor Jesus-Jehovah! Pedi-Lhe Luz e vê-Lo-eis como O vejo!”

  4. Diz um outro: “Estamos, porventura, no mesmo grande salão do qual fomos enxotados para aquele recinto escuro, pelo

saxão Blum, de maneira não muito gentil, em virtude de nosso atrevimento?”

  1. Responde Bruno: “Exatamente, e Roberto não está longe de vós.” Prossegue o outro: “Se não me engano, também estava presen- te o Senhor Jesus, mas não Lhe demos crédito. Estava em conversa com a tal moça das barricadas. Por que não os vemos agora?” Explica Bruno: “Pelo simples motivo de serdes excessivamente sensuais; isto impede qualquer noção e compreensão, o que bem sei de própria experiência da vida passada e de vários fatos do estado atual.

  2. Quando menino, delicado e devoto, em casa de meus pais muito beatos, tive muitas visões. Tinha a impressão de que durante as preces feitas pela manhã e à noite figuras de anjos me rodeavam, despertando em meu peito sentimento tão divino que me julgava num Éden de Deus. Do mesmo modo também tive, não raro, so- nhos maravilhosos e até importantes; meu pai os anotava, tirando deduções de futuros acontecimentos na parentela. Quando moço, saí de casa; encontrei prazer no mundo — e de pronto as visões desapareceram. Meus amigos conseguiram ridicularizar minha ado- lescência feliz, de sorte que comecei a me envergonhar dela. A pas- sos largos ingressei no mundo dos sentidos, tornei-me um sensual e de todas as visões espirituais mal restava uma recordação. Somente no último período de vida recebi certas advertências, que deixei de respeitar, dando conta de mim demasiado tarde. Só agora compre- endo a maneira como se realizaram os meus sonhos. De que adianta? Depende verificar a que ponto o coração da alma consegue apro- veitar as oportunidades aqui facultadas. Se o sentimento for capaz de aceitar um conhecimento mais elevado e uma vontade para boas tendências, o lucro será nosso. Do contrário, nem sei imaginar o que nos aguardará. Desta descrição de minha vida mal aproveitada, podereis deduzir o motivo de vossa própria cegueira. Dirigi-vos com sinceridade a Jesus, pedindo iluminação para vossas almas!” Todo o grupo começa a refletir e muitos caem em contrição.

CAPÍTULO 110

O Senhor fala acerca da pescaria de almas. Pão, vinho e vestimentas celestes, como dádivas fortalecedoras

  1. Eu, porém, digo: “Caro Bruno, és realmente bom pescador. De um só arrastão trouxeste-Me uma rede cheia, obra de mestre, que merece prêmio integral! Ainda precisamos verificar, ao tirarmos os peixes da rede, se não existem vários que devem ser isolados e ati- rados ao mar, em virtude de sua grande magreza. Isto não diminui teu mérito perante Mim; pois a seleção é Minha Tarefa, enquanto te cabe apenas pescar, como pescador. Todos terão cumprido sua mis- são ao preencherem sua rede, sem considerar a qualidade dos peixes. Somente Eu, o Senhor, determinarei quais os que Me servem! Ago- ra, dirige-te a Roberto; dar-te-á um justo conforto, em pão e vinho; e, além disto, uma vestimenta de honra.”

  2. Opõe Bruno: “Senhor, não mereço a menor Graça Tua; como poderia aceitar a mais elevada? Senhor, aquilo que preten- dias dar-me, passa-o aos pobres peixinhos que forem excessivamente magros. A mim, deixa como estou, pois em Tua Presença não sinto fome nem sede, e Tua Palavra é para mim a veste mais rica!”

  3. Digo Eu: “Muito Me agrada tua grande humildade e modés- tia; mas justamente por isto tens de fazer o que ordeno. Pedro também não concordou que Eu lhe lavasse os pés. Quando lhe mostrei o mo- tivo, ele quis que lhe lavasse o corpo todo, o que teria sido demasiado. O mesmo se dá contigo. É preciso te fortaleceres com pão e vinho e seres purificado pela veste de honra celestial, a fim de que, através de tua esfera, teus peixinhos possam realmente ser iluminados, animados e fortalecidos. Se não tivesses esse preparo, não haveria melhoria para os teus tutelados. Compreenderás mais tarde o motivo. Vai e faze o que te aconselhei para iniciarmos a libertação dessas almas.”

  4. Radiante de alegria, Bruno diz: “Ó Senhor, assim sendo, de- sejo comer, beber e vestir a roupagem do Sol!”

  5. Digo Eu: “Come, bebe e veste o que te for dado, e teus peixinhos em breve receberão a Luz dos olhos, vendo a Mim e a todos os presentes!”

  1. Bruno se curva com respeito e se dirige a Roberto que, ama- velmente, lhe dá um pedaço regular de pão e um pouco de vinho num cálice pequeno. Ingerindo-os rapidamente, Bruno sente maior apetite. Roberto, porém, não se perturba, apanha a referida veste, que Bruno aceita, crente com isto saciar-se. Tal, porém, não se dá. Seu apetite aumenta, por isto pede a Roberto outra porção. Este lhe diz: “Receberás do Senhor o que te falta. Cumpro apenas Sua Von- tade. Volta, pois, para junto Dele!”

CAPÍTULO 111

Bruno é feliz, porém faminto e sedento. O juiz dentro da criatura. A ordem celeste

  1. Adornado de uma toga branca de barra vermelha, Bruno se aproxima e Me diz: “Senhor, agradeço-Te, como pobre pecador, por esta Graça incalculável e imerecida. Sou muito feliz, mas não me sinto inteiramente saciado. A bem-aventurança, porém, que partin- do de Ti me inunda, ameniza fome e sede. Pela primeira vez meu co- ração sente um amor puramente celeste para Contigo e para com to- dos esses meus irmãos! Este sentimento jamais poderá ser imaginado pelos fracos mortais, pois as melhores criaturas do mundo amam mil vezes mais a si mesmas do que a seus amigos mais íntimos! Quanto menos amarão seus inimigos?! Assim, os homens amam as mulheres por sua própria causa e gozo; se seu amor fosse puro, não haveriam de querer fazer-lhes coisas prejudiciais. Consideram os homens a sua honra acima de tudo; mas atirar vergonha e escárnio em moças pobres não os perturba, se conseguem fugir à noite com sua hon- ra intacta. Quantas vezes vi em Viena tais obscenos perambularem à noite pelas ruas para atraírem ao seu gozo momentâneo moças pobres e perdidas! Tão logo conseguiam saciar-se, entregavam-lhes algumas moedas miseráveis. Caso elas pedissem mais, eram tratadas com escárnio e, às vezes, até mesmo fisicamente maltratadas. Isto se chama na Terra — amor!

  1. Senhor, tem piedade delas, que pela animalidade dos homens se tornaram prostitutas! E a eles dá o castigo merecido no Inferno! Muito embora meu coração esteja pleno de amor puro e celeste, e desejando aos pecadores o perdão integral, prontificando-me a so- corrê-los, não sinto a menor compaixão com os sensuais inescrupu- losos, e me alegraria caso os visse arder no Inferno até que tivessem expelido a última gota de sua perversidade! Nada de mal desejo aos maus; mas, também, nada de bom, até que tenham feito penitência plena. Entre esses peixinhos certamente haverá algumas serpentes e víboras que no mundo se entretiveram com refinada perversão; peço-Te perdão por eles, pois na maioria não se davam conta de suas atitudes. Haverá, porém, os conscientes de seus atos; para tais patifes espero todo o rigor de Teu Julgamento!”

  2. Digo Eu: “Meu caro Bruno, ainda sentes fome e sede! Sa- bes por quê? Precisamente por conservares um pequeno juiz em teu coração! É de certo modo justo e aceitável, mas não se enquadra na Minha Ordem! Se quiseres viver dentro Dela, terás de expulsar tal juiz de teu íntimo, e jamais virás a sentir fome e sede. Eu, uni- camente, sou Juiz, Bom e Justo em toda plenitude de Meu Poder e Força! Mesmo assim, não condeno quem quer que seja! Cada qual se condena dentro de sua inclinação; sendo impura e maldosa, o julgamento será correspondente. Se Eu a ninguém condeno, não obstante Minha Onipotência, muito menos te cabe fazê-lo.

  3. Sei melhor que todos vós da inclinação do mundo e dos vie- nenses, e qual o espírito que os anima. Acomodaram-se sem Minha Cooperação, por isto ficarão assim no tempo e na eternidade. Prati- caram toda sorte de incestos; eis por que repousam em leitos de san- gue. Esse sangue grita por vingança, mas Eu não o vingarei. Permito apenas que eles se estraçalhem quais tigres, pagando reciprocamente o prêmio que merecem. Eis o inferno completo! Não existe outro, senão aquele criado pelo amor-próprio no coração do homem.

  4. Quem não se condena a si mesmo, não é por Mim condena- do; mas quem o fizer em virtude de sua maldade no coração, sê-lo-á também por Mim! Em suma, cada qual recebe o que deseja! Nisto

se baseia o direito mais elevado e perfeito que o ser humano pode al- cançar. Jamais deixarei de mostrar o justo caminho, de acordo com a capacidade assimiladora, proporcionando-lhe o ensino para o bem. Será em seu próprio benefício se quiser trilhá-lo; não o querendo, não será castigado, mas recebe apenas o que lhe é afim. Eis a con- denação e o castigo plenos! Tão logo pretenda voltar ao caminho do bem, levado pelo sofrimento, jamais será impedido nesse propósito.

  1. Eis a Ordem verdadeiramente celeste do puríssimo Amor de Meu Coração! Tal Ordem tem que se tornar posse de teu coração, e assim serás perfeito como Eu, sem jamais te sentires vazio em teu íntimo. Deste modo saciado e completamente iluminado, ser-te-á fácil socorrer a todas essas almas no que for preciso. Matarás sua fome e sede; vestirás os desnudos; consolarás os tristes e curarás os doentes; aos cegos, abrirás os olhos, transmitindo aos mudos a Pa- lavra da Vida! Assim munido de tudo, vai abrir olhos e ouvidos de teus peixinhos!”

CAPÍTULO 112

Bruno orienta seus tutelados. Objeções de um oponente quanto ao renascimento e livre arbítrio

  1. Tal ensinamento transforma Bruno de modo radical, a pon- to de dirigir-se aos tutelados, começando a doutrinar com firmeza. Quando termina, diz um neocatólico dentre os inúmeros crentes: “Amigo, tuas palavras foram selecionadas e a didática sem par! Mas, para que esse desperdício de frases teosóficas? Na Gênesis, Moisés re- lata o seguinte: Por ocasião da Criação do Universo tudo era noite tre- vosa, e Deus falou: Que se faça luz — e ela se fez no Espaço Infinito! Só então o Espírito Onipotente de Deus, que pairava sobre as águas e o caos, começou a organizar tudo. Tal atitude foi deveras digna de Deus! Tu começas pelo caminho inverso! De que adianta ao cego a dissertação sobre as cores celestes? De que serve ouvir-se a aproxima- ção do inimigo quando não se enxerga? Para onde fugir? Não cairá na cilada, crente de ter fugido em direção oposta? Da mesma forma fa-

laste explicitamente acerca do Cristo, Sua Divindade, Amor, Bondade e Misericórdia e também de Sua Presença. De que nos serve isto, se nossa visão não permite vê-Lo para julgarmos Sua Realidade?

  1. Por isto, expressa-te como Deus o fez — que se faça Luz em nós e todo o resto se fará por si só! Discorrendo sobre aquilo que vês, enquanto que nós nada vemos além de ti e esse mísero local onde es- tamos quais sardinhas enlatadas (muito embora afirmes ser isto uma grande sala) — como dar crédito às tuas palavras? Reflete primeiro quanto às nossas necessidades, que não agirás contra a ordem celeste!

  2. Não compreendemos por que agora enxergamos menos do que anteriormente; no começo vimos bem a sala espaçosa, o Salva- dor Jesus, Roberto Blum, Messenhauser, Jellinek, Becher, Helena, Dismas, seu amigo Olavo e algumas dúzias de dançarinas. Agora, todos eles desapareceram! Por quê?

  3. Há pouco te perguntamos e tua resposta não foi satisfató- ria, aconselhando-nos paciência, pois que Deus Mesmo nos abri- ria a visão. Até agora, nada aconteceu. Faze-nos, portanto, o que te pedimos!”

  4. Diz Bruno: “Mais um pouco de paciência, amigos, e recebe- reis tudo que vos falta. Falaste da Ordem Divina durante a Criação, como oposição ao meu ensinamento; todavia, não posso agir como fez Deus com as águas originárias de Suas Ideias Eternas, mas sim qual mãe com o recém-nascido que, de pronto, também não abre os olhos. Nascei primeiro do ventre de vossa sensualidade para de- monstrar o grau de luz celeste que sois capazes de suportar. Que assim seja, em Nome do Senhor!”

  5. Diz um outro, de olhos satíricos e boca sarcástica: “Ora veja, já te tornaste parteira celeste?! Pena que os padres ligurianos na Terra nada disto saibam! Talvez te tivessem pintado no Altar como sua pa- droeira, sob o nome de ‘Parturiente coelestis’, conseguindo em tua honra a licença de missas bem pagas na obtenção de partos felizes! És realmente muito sabido!

  6. Dize-me, como entendido em obstetrícia, quantas vezes é preciso uma alma reencarnar para que possa afirmar: Salve, surgi do

último corpo materno à luz constante! A julgar pela tua ordem celes- te, jamais isto será conseguido! Não foi por menos que Nicodemus perguntou ao Cristo, que lhe falara do renascimento no espírito, se realmente seria preciso entrar novamente no ventre materno! Vossa sapiência celeste se restringe apenas a nascimento e morte, reencar- nação e novamente morte! Luz, luz, meu amigo! Proporciona-nos isto, e tudo melhorará!”

  1. Diz Bruno: “Meu caro, fica sabendo que no Reino dos espí- ritos nenhuma alma progride pela brutalidade. Jamais te condenarei por isto; mas tu mesmo te afastarás da meta de tua vida, ao invés de aproximar-te dela! Sabes quantas vezes encarnarás para chegares à plena luz da verdade? No mínimo umas centenas de vezes caso continues em tua teimosia e rudeza!

  2. Será tão difícil renunciar à própria vontade e submetê-la à Vontade Divina? Se tivesses feito isto em vida, terias nascido pela última vez, encontrando-te na luz da verdade! Nunca te agradou a menor redução do teu livre arbítrio; portanto, tens que te submeter à cegueira como muitos de tua índole, não obstante tuas experiên- cias amargas. Procura querer o que Deus quer, que alcançarás a luz! Persistindo em tua própria vontade, por muito tempo continuarás o mesmo! Compreendeste?”

  3. Diz o vilão: “És muito tolo, falando sem pé nem cabeça! Quem seria capaz de banir sua própria vontade, substituindo-a por uma nova em sua alma? Afirmas teres visão, enquanto nós somos cegos! Não compreendes eu não poder aceitar a vontade de um es- tranho, quando possuo meu livre arbítrio? Se não tivesse vontade própria, desejaria saber como posso querer aquilo que um outro me sugere? Sempre te considerei algo tolo, mas que tua ignorância chegasse a tal ponto, não poderia sonhar! Não ter vontade e assim mesmo aceitar a de outrem, eis o cúmulo da estupidez!

  4. Deixemos de brincar e dize-me com sinceridade: és real- mente tão ignorante, ou te divertes à nossa custa? Pois um homem sem vontade seria o mesmo que um relógio sem mola! Creio poder ele colocar sua vontade à disposição de um outro, querendo e fazen-

do o que lhe é exigido, seja razoável ou não, pois não existe com- preensão capaz de modificar em definitivo uma vontade firmada. Mas livrar-se dela completamente e deixar-se inocular por outra, conforme se faz às plantas, isto ultrapassa o horizonte da última estrela fixa! Deixa que se corte tuas mãos e pés, substituindo-os por outros, e quero ver os saltos de bode que darás! Por isto, amigo, se tiveres tal poder, faze algo em nosso benefício, mas poupa-nos o teu inútil palavrório!”

  1. Bruno faz tudo para acalmar o seu íntimo; mas o vilão não lhe sai do coração. Após certo tempo ele lhe diz: “Meu caro, a jul- gar pela tua observação, premeditadamente agressiva, nem de longe compreendeste o sentido de minhas palavras. Adverti-vos anterior- mente usardes uma justa paciência; além disto, demonstrei a manei- ra pela qual alguém consegue progredir e alcançar certa finalidade, isto é, reprimindo sua vontade para com ela aceitar a de um sábio, deixando que venha agir para teu bem.

  2. Acaso isto não é claro? Nesta verdade tu apenas encontras tolice, porque achas ser preciso alguém se tornar isento de vontade, para em seguida assimilar uma outra, estranha. Quem te disse isso? Sei, talvez melhor do que tu, não ser possível querer-se o que o outro quer; pois um homem sem vontade seria qual autômato ou estátua. É, portanto, lógico executar-se a vontade alheia através do próprio livre arbítrio.

  3. É a vontade o braço das necessidades humanas; quem qui- ser alterar sua vontade tem de modificar primeiro suas necessidades. Se a preguiça for uma necessidade enraizada, ela obrigará a alma a nada fazer. Se a necessidade for a satisfação sexual, a alma terá que fazer tudo nesse sentido. Acontece que o homem possui uma capacidade de conhecimento mais elevada, pela qual reconhece o prejuízo das necessidades inferiores; por meio dela poderá combater tais tendências impuras, bani-las e suplantá-las por melhores, isto é, divinas. Isto se chama trocar sua vontade material pela divina! Eis o que exijo de vós, em Nome do Senhor! Sendo esta a verdade, por que te apresentaste tão rude e mal-educado?”

  1. Responde o outro: “Se anteriormente tivesses falado des- te modo, minha atitude teria sido outra. Retiro, por isto, meus adje- tivos e reconheço não seres tão ignorante como julgava!”

CAPÍTULO 113

Crítica acerca da deturpação da Religião pelo sacerdócio

  1. Prossegue o rude orador: “O fato de sermos tão incrivelmen- te tolos, mormente em assuntos referentes à crença no Cristo, não nos cabe culpa. O governo de Metternich, apoiado por um poli- ciamento especial — como braço direito da camarilha da corte e de todo o sacerdócio — deturpou de tal modo a doutrina cristã, a ponto de um ignorante criador de suínos dos confins da Hungria notar que os servos de Deus nada mais procuravam senão incutir nos fiéis e em outros crentes da Igreja Católica Apostólica Roma- na pobreza, amor, paciência e obediência incondicional; primeiro, à própria Igreja e seus divinos servos, e em seguida ao Estado, desde que interessasse ao clero.

  2. Quantas vezes palestrei a respeito com pessoas simples, que julgavam tal atitude tão bem quanto nós, deduzindo o seguinte: a religião nada mais é do que um meio, há muito engendrado, para ofuscar as pobres criaturas e levá-las, através de aparências infernais e celestes — onde empregam mentiras e fraudes — a trabalharem em benefício da preguiçosa casta sacerdotal, com medo do inferno e desejo do Céu. Assim, vivem pior que os cães! Pelo que se con- clui jamais ter existido um Jesus, ou Ele não poderia ter sido Filho de Deus! Comparando a infinitamente sábia criação do Universo com os princípios ‘louváveis’ da religião católica, que se confessa puramente cristã, pelos quais se é obrigado a acreditar em tudo qual asno — desde que seja transmitido pelo Papa — vê-se, até de olhos vendados, que o Criador de Céus e Terra não podia ter dado uma doutrina para a salvação humana que não fizesse honra nem a um tratador de suínos.

  1. Vê, Bruno, eis a filosofia de gente simples! Quais seriam as conclusões de pessoas cultas, e que conceito desfrutaria o inventor de tal religião que se deixa modelar qual cera?

  2. Alega-se que o papado se assemelha à Doutrina do Cristo como uma bota suja à Vênus de Milo. Isto, no entanto, não altera meu conceito do Cristianismo e de seu fundador, pois aquilo que emana de Deus não pode ser alterado pelo egoísmo humano. Ele pode melhorar ou prejudicar o crescimento de uma árvore; nunca, porém, alterar-lhe a forma! Porventura pretende a Divindade acres- centar à Doutrina da liberdade plena a permissão para deturpá-la? Então, adeus, Divindade! Até mesmo um cego verá que tal religião tem menos utilidade do que nenhuma!

  3. Penso que todo homem deveria ter o máximo respeito e consideração por uma doutrina divinamente pura; mas, se justa- mente os padres são os que menos respeito têm pela religião cristã, transformando-a como se fora obra humana para fins egoísticos e dominadores (sim, por que não dizê-lo: são o polo oposto daquilo que ela manda) — qualquer pessoa de pouca inteligência chegará à conclusão de que uma doutrina que não merece respeito dos padres, sendo apenas aplicada por cerimônias fúteis para iludir os incautos, não pode ser divina!

  4. Quem não observa a aurora com respeito, diante de Deus? Quem não é tocado pela majestade das montanhas? Quem não se apavora com a fúria das ondas? Qual seria o peito que não se sen- tisse abalado pelo fragor da trovoada? Tudo isto são coisas divinas, respeitadas pelos padres mais egoístas, como pelo pastor de gado! E a palavra de Deus? Se ela nada mais representa para o clero do que um artigo de venda, que importância poderá ter para os leigos?

  5. Se o homem sente repugnância dessa religião, acaso é de se admirar que cada um crie princípios baseados na Natureza, pelos quais vive e goza, com temperança, de tudo que Deus lhe oferece?

  6. Nada tenho a opor às máximas da Doutrina do Cristo, ade- quadas às necessidades humanas. Mas de que adiantam se, como bom católico, não posso compreendê-las, muito menos aplicá-las?

Se Deus dirige, ordena e conserva tudo que criou, acaso não Lhe seria possível proteger Sua própria Doutrina contra as investidas da religião católica?

  1. Se as coisas andam nesse pé, pedimos-te demonstrar-nos o defeito da doutrina, porquanto os que deveriam sentir sua origem divina consideram-na nula, provocando o desprezo das pessoas mais inteligentes. Prova-nos a origem divina da Doutrina do Cristo; de- pois acreditaremos fielmente nos deveres que Deus exige dos ho- mens. E, se pecamos, faremos penitência se for preciso, como Inácio de Loyola o fez! Naturalmente, terás de nos provar que o homem pode ficar sem leis. Como pessoas esclarecidas não as possuíamos, a não ser as da Natureza!”

CAPÍTULO 114

Bruno responde, inspirado pelo Senhor. Confronto entre a Doutrina do Cristo e os sistemas humanos

  1. Após tal discurso do violento orador, Bruno se dirige a Mim, pedindo inspiração para poder responder à altura. Eu, porém, lhe digo: “Fala sem te preocupares; encontrarás as palavras precisas!”

  2. Voltando-se ao oponente, Bruno começa: “Amigo, se fores dotado de paciência e atenção, dar-te-ei resposta adequada.” Diz o outro: “Não percas tempo, todos nós teremos a devida paciência; mas não convém abusares dela!”

  3. Prossegue Bruno: “Muito bem, vamos ao que interessa! To- das as dádivas terrenas facultadas por Deus ao homem são de tal forma constituídas que a criatura imperfeita sempre há de criticá-las dentro do seu raciocínio. Uma acha o Sol demasiado quente e pre- fere a primavera. Outro se aborrece com a monotonia do inverno. Um terceiro chega a insultar a Lua porque não permanece cheia. E assim por diante. Nunca vi duas criaturas com as mesmas aspirações e vontades!

  4. Partindo dessa insatisfação, elas não aceitam as dádivas ce- lestes como são dadas, transformando-as de acordo com seu gosto e

necessidade. Matam-se os animais para saborear sua carne, de acor- do com os hábitos do país. As plantas frutíferas são especialmente tratadas em locais determinados. Pelo Criador, tudo deveria crescer numa miscelânea harmoniosa. O homem, porém, altera tal ordem. Seria, por exemplo, demonstrado pela Natureza que as criaturas de- veriam viver nuas e somente no inverno procurar cavernas e grutas. Se isto não é do agrado do homem, ele constrói casas confortáveis e confecciona vestimentas úteis e até mesmo luxuosas.

  1. Por que se imiscui na criação sublime de Deus, demonstran- do não estar satisfeito com Sua Ordem primitiva? Sorte das estrelas, que a mão humana não as alcança, do contrário já teriam mudado de rota. O que escapa ao homem? Nada! Nem o próprio Céu! Cada qual o pinta a seu modo. Acaso não seriam as coisas da Terra obra divina só porque a mão humana as tocou e até mesmo alterou? Ami- go, responde-me primeiro, para podermos prosseguir a controvérsia sobre a Doutrina de Deus!”

  2. Diz o orador: “Bem, não está nada mal! Talvez consigas fa- zer-me compreender a Divindade do Cristo! Continua, é assaz inte- ressante ouvir-te falar!”

  3. Prossegue Bruno: “Existe a mesma relação entre a Criação e a Doutrina transmitida por Deus. Aos olhos do intelecto mundano parece tolice, sem qualquer lógica. A Bíblia contém uma profusão de fatos milagrosos e ensinos morais em quadros místicos. Ora se lê uma fábula maravilhosa; ora uma advertência; noutra página um ensino moral excelente sem relação com os demais. Isto em nada contradiz a Doutrina, mas a confirma. Pois justamente deste modo a Divindade força a natureza ociosa do homem a pensar constante- mente e a pesquisar o que à primeira vista lhe parece desordenado e ilógico.

  4. Qual seria vosso conceito de Deus caso tivesse organizado a Terra de modo que determinados terrenos só produzissem certas es- pécies frutíferas? Caso o lavrador cismasse em plantar outra espécie mais abundante, nada colhendo, que aspecto teria sua organização doméstica?

  1. Eis por que o Criador do Universo, infinitamente Sábio, fi- xou uma ordem imutável, necessária e útil. Outras coisas, destinadas à ocupação do homem, são por Deus projetadas em miscelânea, a fim de que o espírito encontre a melhor oportunidade para exerci- tar-se na conquista de vantagens ordenadas, adquirindo aquela des- treza e força constantes, que no mundo espiritual condicionam a existência livre, amorosa e eterna.

  2. Assim, a Doutrina do Cristo é dada de tal forma que todo espírito poderá dela sugar, qual planta, o alimento adequado, de- senvolvendo-se até a perfeição. Do mesmo modo que dois vegetais diferentes alcançam sua finalidade no mesmo solo, os mais variados espíritos poderão chegar à perfeição espiritual através da mesma reli- gião, desde que sigam fiel e conscienciosamente as suas leis.

  3. O fato de não haver no mundo inteiro uma doutrina que permita quantidade tão grande de cultos externos quanto a do Cris- to, prova sua Origem Divina! Se ela fosse obra do homem, não te- ria base progressiva; sendo, portanto, uma árvore criada por Deus, cheia de pujança, permite que todas as religiões dela derivadas pos- sam progredir e dar frutos abençoados quando são tratadas com o zelo necessário.

  4. Observa os sistemas humanos, como a filosofia e a matemá- tica; são quais máquinas a produzirem os mesmos efeitos dentro de determinada forma e construção. Todos os matemáticos e filósofos admitiam apenas seu próprio sistema, oriundo de seu cérebro.

  5. Tal não acontece com a doutrina cristã: cada religião cria raízes, cresce, torna-se uma árvore frondosa e dá bons frutos. Eis a importante diferença entre uma obra divina e humana, e ao mesmo tempo a prova irrefutável da origem divina de uma religião, que em todas as zonas terrestres e sob as formas mais diversas de culto apre- senta sempre fruto de vida. Tens liberdade de contestação; em Nome do Senhor não ficarei devendo resposta.”

CAPÍTULO 115

Crítica a Roma. Elucidação de Bruno quanto à utilidade da noite

  1. Diz o orador: “Amigo, expuseste a questão do Verbo Divino numa sequência admirável e vejo-me obrigado a te agradecer em nome de todos! Há, porém, uma pergunta capital. Se fores capaz de respondê-la de modo idêntico, serás vencedor e nosso guia. Ei-la! Se, de acordo com tua sábia explanação, Cristo é o Senhor e Deus de Céus e Terra, qual das seitas está mais próxima da verdade, e qual a posição da Igreja Católica? Quem desconhece suas maqui- nações mundanas, egoísticas e dominadoras? O Verbo de Deus lhe é apenas ofuscante cartaz, roído pelas traças, ocultando um lobo sedento de ouro. As tempestades experimentaram sua força contra essa instituição, tentando arrancar-lhe a pele de cordeiro, mas em vão! Essa hidra vive e progride de modo invulnerável, prosseguindo em suas traficâncias, algumas conscientes, outras inconscientes, do clero e de adeptos subjugados, sem se perturbar com a reação celeste ou infernal!

  2. Se Cristo — o maior condenador das ações criminosas do sacerdócio judaico — for Deus, e vive como nós após a morte, como pode permitir o império de tais crueldades além de quinze séculos, deixando que esses servos de batina ajam de modo pior com Ele do que fizeram os carrascos romanos que O pregaram na cruz? Quase toda a Cristandade reconhece tal situação e diz: Entre todas as seitas cristãs é a religião católica a mais antiga, portanto deve saber melhor o que deduzir do Cristo e de Sua Doutrina. Pelas atitudes contrárias ao Evangelho demonstra jamais ter nele acreditado e muito menos no Cristo. Através das hóstias, ela O atira no forno e O condena caso Se atreva a concordar com outra seita. Deste modo, todos os confessores fiéis de Sua Doutrina ficam abalados em sua crença e até mesmo obrigados a desprezá-la!

  3. Acaso Cristo não vê o que Suas criaturas já sabem de há mui- to? Porventura é de Sua Vontade que a Igreja católica prossiga como

até então? Entende Ele apenas o latim e aprecia as cerimônias vãs e inúteis? Ele, que sempre condenou as cerimônias externas? Resolve essa charada, amigo, e nos converteremos!”

  1. Diz Bruno: “Meu caro, tuas objeções são justas, têm boa base e será difícil alegar-se algo em favor da Igreja; contudo, deve o Se- nhor ter motivos para deixá-la existir. É plena verdade que a Palavra do Cristo merece maior conceito entre os judeus e maometanos do que nos sensuais servos de Roma, que fazem Dele o que lhes agrada, deturpando Sua Palavra de acordo com suas tendências egoísticas.

  2. Penso o seguinte: Essa árvore envelhecida sofreu espiritual- mente a mesma degeneração da antiga castanheira na Sicília, perto do Etna, cujo cerne apodreceu há mil anos. Tendo, porém, lançado, na época de sua pujança, raízes fortes em todas as direções, galhos e ramos, que naturalmente estão em constante intercâmbio com as raízes, criou-se com o tempo um novo tronco independente e sem ligação com sua origem. Essa árvore, estranha devido à sua idade avançada, ainda produz frutos esparsos, duros e sem paladar; o mo- tivo disto deve se basear no fato de ter ela perdido a semente primiti- va. Se bem que se tenham formado sementes individuais pelos tron- cos independentes e novos, de nada adiantam ao tronco original, do qual depende o fruto sadio e saboroso. Tal árvore será pelo povo ve- nerada futuramente, como raridade histórica, e adorada pelos tolos como santuário. Sua principal utilidade consistirá em proporcionar abrigo ao viajor por ocasião do desencadear de tempestades.

  3. Ao que me parece, dá-se o mesmo com a Igreja Católica, de construção muito abalada. Não possui propriamente tronco e cerne; existe pelas aparências externas; não é mais uma árvore de vida, tampouco a castanheira da Sicília. Ainda vegeta e apresenta em seus membros uma vida de exteriorização, dá flores e frutos; mas não podem ser saboreados, constituindo apenas raridade para os turistas que os adquirem. O único benefício que proporciona é o abrigo a regentes assolados pela política. Igual à árvore siciliana, a Igreja de Roma não possui vida e futuramente existirá apenas em livros de História!

  1. É bem verdade que em seu lugar poderiam nascer outros ve- getais, frescos e sadios. Mas se Deus, o Senhor, acha por bem permi- tir a existência de tais raridades — no que terá Seus motivos — por que deveríamos nos incomodar, se nunca as aproveitamos e jamais pretendemos fazê-lo?

  2. Aliás, a Igreja católica se assemelha a uma crença obscureci- da, porquanto costuma acender velas durante seus ofícios religiosos. A noite, porém, tem algo de bom, pois faculta paz aos cansados. E onde teriam os espiritualmente cansados mais sossego do que na Igreja obscura de Roma? Não precisam pensar, pesquisar, nem caminhar; apenas compartilhar dos benefícios noturnos, podendo dormir com calma! Tão logo despertem por um chamado moral ou político, são os primeiros a procurar a luz.

  3. E, assim, presumo que o Senhor admite o sacerdócio católico para estimular nas criaturas maior sede pelo conhecimento. Se ten- des ainda alguma dúvida, falai abertamente.”

CAPÍTULO 116

Deturpação da Doutrina pura em virtude do livre arbítrio. O Senhor ama as ovelhas de Roma. O fim de Sua Paciência

  1. Diz o orador: “Prezado amigo, reconhecemos o que é a Igreja católica e que a Doutrina de Cristo é realmente divina, não obstante deturpada pela seita de Roma. O que não assimilamos é ter o Senhor permitido que essa Igreja, no início puramente apostólica, decaísse de tal modo a não ser mais igreja na acepção do Evangelho. As la- mentações em latim, a confissão, a missa, os santinhos, o repicar dos sinos, o celibato contrário às leis da Natureza, sem mencionar outros dogmas ou rituais, são coisas que atualmente despertam o riso das pessoas menos educadas. Se alguém vivesse rigorosamente dentro das leis eclesiásticas, faria jus ao pior manicômio. E tal instituição de lunáticos é permitida pelo Senhor, cuja Doutrina deveria ser, para todas as criaturas, a luz de um Sol central.”

  1. Diz Bruno: “Meus caros, comoe por que o Senhor admite isto, terei de explicar-vos pela compreensão do livre arbítrio, pois sem ele o homem seria animal ou autômato. Por isto, foi possível degenerar-se a Doutrina cristã num papado, de função escabrosa.

  2. Na época dos apóstolos já havia comerciantes da Doutrina, e o Próprio Senhor permitiu a companhia de um, que O traiu; como estranhar-se o aparecimento de numerosos desses negociantes cuja experiência histórica considerava a Doutrina qual vaca paciente que dava bastante leite sem necessitar muita forragem? Quando isto per- ceberam, as pessoas gananciosas fizeram da religião artigo comer- ciável, conseguindo os melhores negócios em todos os países. Foi a primeira ação inescrupulosa. Não tendo o artigo muita saída na sua primitiva forma espiritual — mormente entre os povos asiáticos apreciadores de pompa e riqueza — os padres católicos transforma- ram-na ao agrado dos orientais.

  3. Naquela época surgiu a deturpação atrevida da Doutrina pura do Cristo, a invenção do purgatório, das indulgências, de ir- mandades e as posteriores cruzadas. Quando, mais tarde, os crentes compreenderam qual a finalidade das cruzadas, tão recomendadas para fazerem jus a enormes indulgências, foi preciso impedir tais embustes a fim de não se exporem em demasia perante o mundo. Descobriu-se que os ‘negociantes’ de Roma tiveram relações comer- ciais com os sarracenos, indicando-lhes de pronto a vinda de uma cruzada rica, que então era devidamente recebida,

  4. Cientificando-se os padres desse fato através de confissões, lançaram mão da mística, inventando lugares santos com figurinhas miraculosas; ocultaram a doutrina sob o latim, instituíram relíquias; construíram templos enormes com inúmeros altares, fundiram sinos colossais. Isto, até hoje. Como, entretanto, os homens não conside- ram mais os padres, eles não sabem quais os meios a serem emprega- dos para que o negócio de Roma volte a florir.

  5. Dessa vez terão maior dificuldade: as Bíblias já se tornaram posse do povo e os comerciantes da Igreja demonstraram de maneira evidente que tudo fazem por dinheiro. Assim, até a própria Maria,

que por muito tempo foi seu apoio principal, e o pequenino Cristo de madeira, deixaram de ter função de destaque. Por isto, o Senhor terá de purificar a tempo Sua Doutrina de forma tal a ter o efeito de um raio para a Humanidade! Em geral não prejudica alguém ser adepto da Igreja católica, pois vos asseguro que o Senhor muito estima as ovelhas católicas, razão por que ainda não entornou as ‘lojas’ dos agiotas e daqueles vendedores de pombas, enxotando-os do Templo com açoite! Eis por que compete honra apenas a Ele, que conduz Suas ovelhas de modo tão paternal! Com esta explicação, julgo estardes a par da Igreja católica. Por isto, dirigi-vos somente a Jesus Cristo para receberdes a iluminação plena!”

CAPÍTULO 117

Os convertidos temem, em parte, a aproximação do Senhor. Humorismo no Além

  1. Diz um outro do grupo: “Estamos satisfeitos com a clare- za da tua dissertação, pois contém a plena verdade. Porém, quanto mais nos convencemos da Divindade de Jesus, tanto mais difícil se torna nos dirigirmos a Ele. Somos todos pecadores empedernidos e nunca levamos em conta a Sua Doutrina. Acaso não nos dirá: Afas- tai-vos de Mim, malfeitores?”

  2. Diz o outro: “Mas, que ideia! Acreditas realmente em inferno e purgatório? O Cristo é mais bondoso e inteligente do que nós! Poderias condenar alguém ao inferno, ainda mesmo que fosse de coração endurecido? Que compreensão tens do Cristo, julgando-

-O capaz de tal atitude?” Concorda o primeiro: “Tens razão, mas lembro-me de ter Ele dito que adúlteros, impudicos, ladrões, assas- sinos, traidores, mentirosos, avarentos etc. não entrariam no Reino de Deus. Consta: Quem acreditar e for batizado, será feliz! — Se bem que nos batizassem, em nada acreditamos. Por isto, nada temos que nos favoreça perante o Cristo. É Ele infinitamente Bom, mas também Santo e Justo! Como nos enquadramos em Sua Justiça?”

  1. Responde o outro: “Peço-te não te expressares de modo tão circunspecto! Não ouviste o que disse nosso amigo e guia Bruno? Foi mandado por Jesus à nossa conquista, no que teve pleno êxito. Para que essas cerimônias? Todos sabemos de nosso pouco valor mo- ral, mas se Ele deseja ser Bom e Misericordioso para conosco, por que nos mostrarmos envergonhados qual virgem na noite nupcial? Convém agarrarmos com ambas as mãos o que nos oferece o Senhor dos Céus, ao invés de alimentarmos considerações jesuíticas que não merecem ser dependuradas na cauda de um cão!”

  2. Diz o primeiro: “Se ao menos te expressasses um pouco mais distintamente! Continuas rude como na Terra! Acaso pretendes falar deste modo diante do Senhor e Seus amigos?! Certamente hás de tremer qual vara ao vento!”

  3. Insiste o outro: “Bem, pelo que vejo, manténs um verda- deiro colégio jesuíta em teu íntimo! Não consideraste as palavras cla- ras de Bruno? Desvendou as fraudes católicas de modo insofismável, e continuas a fantasiar qual padre moribundo! Nosso amigo Bruno passa mal só de olhar-te por fazeres uma cara tão tola, falando qual cocheiro vienense numa sexta-feira da Paixão, quando os padres ma- ristas começam a benzer seus cavalos e, se for preciso, até lhes dão um laxante! Envergonha-te por fazeres considerações tão ridículas no Reino dos espíritos! O Próprio Senhor teria de rir caso te visse com essa expressão!”

  4. Retruca o outro: “Pelo amor de Deus, amigo! Contém tua língua, do contrário te expões ao inferno!” Vira-se o primeiro para Bruno: “Amigo, vê se consegues conter este herói, senão assistiremos aqui, no Além, a um ridículo acidente fisiológico!”

  5. Toda a assembleia desata a rir, enquanto aquele que deu mo- tivo para tanto diz: “Meu caro Bruno, imploro-te tapares a boca do vilipendiador de meu nome. Não é de sua conta eu ter sido amigo dos padres!”

  6. Diz Bruno: “Sê mais inteligente, que ninguém se rirá de ti, e aceita o que falei! Apresentando essas considerações, minha obra em vós é nula e o amigo Nicolau tem razão quando te contradiz! Quem,

perante Deus, seria bom e justo, ou teria mérito diante do Onipo- tente? Ele afirmou textualmente: ‘Mesmo tendo feito tudo, deveis afirmar serdes preguiçosos e inúteis!’ Todos nós somos maus e não temos mérito! Se Ele deseja ser Bom e Misericordioso, por que re- sistirmos, como se houvesse outro que merecesse tal graça? Convém fazermos o mesmo que Zaqueu, a quem o Senhor mandou descer da árvore para tomar a refeição em sua casa. Vamos, pois, atender ao chamado do Senhor!”

CAPÍTULO 118

Suscetibilidade de Bardo. Réplica de Nicolau

  1. Diz Bardo, o primeiro orador: “Em Nome de Deus, render-

-me-ei! Nicolau, entretanto, deve convir não ser homem fino, pois na Terra também era rude e mal-educado. Além disto, não tem mo- tivo para vangloriar-se como neocatólico, seita que sempre ridicula- rizou os católicos, pois estamos todos na mesma situação.”

  1. Responde Nicolau, sorrindo: “Prezado amigo, perdoa se me deixei levar pelo temperamento; ninguém contestará ter tido boa intenção. Além do mais, confesso preferir dez verdades rudes a uma tolice; quer dizer, dou preferência a uma bofetada neocatólica a um beijo de Judas partindo da Igreja romana. A bofetada me despertará à razão e a uma atitude determinada, enquanto uma amabilidade católica só visa o dinheiro do próximo. Dize-me se o católico não faz prece a Deus somente para Lhe pedir alguma coisa! O mendigo pede um óbolo, o lavrador uma boa colheita, o funcionário públi- co um abono, a moça um bom casamento etc.; mas, lembrar-se de Deus para honrá-Lo, isto, meu amigo — aposto minha salvação — jamais passou pela cabeça de um católico! Aliás, julgo estar na hora de acompanharmos Bruno; basta de coisas fúteis!”

  2. Reage Bardo: “Pois sim! Porventura é futilidade declarar-se alguém burro, ainda que veladamente?”

  3. Diz Nicolau: “Mas, será possível? Desejas um sorvete ou um frango assado à moda húngara? Se te irritas por eu ter te falado algu-

mas verdades, por que não respondes na mesma altura? Ainda não concebes que Jesus Cristo deve ter mais valor para nós do que nossa honra ofendida? Que nos adianta honra, sem Deus? Que te parece se eu te cobrisse de ouro por algumas ofensas não premeditadas e tu continuasses afastado do Cristo? Por isto, amigo Bardo, deixemos tais tolices terrenas, unamo-nos a conselho de Bruno, e peçamos a Jesus Conhecimento, Graça e Misericórdia! Farei o pedido e vós me acompanhareis em voz alta — isto, se o quiserdes!” Diz Bardo: “Para quê? Ainda sou capaz de formular pessoalmente um pedido!” Diz Nicolau: “Pois não! Nada tenho a contrapor, pois cada um sabe onde lhe aperta o sapato! Ainda assim, formularei o meu pedido e quem quiser, tomará parte!”

  1. Diz Bardo: “Por mim, podes fazê-lo. Farei, entretanto, o meu!” Concorda o outro: “Faze o que quiseres; apenas não nos atra- palhes. Silêncio!”

  2. Após tais palavras, é como se caísse a venda dos olhos de to- dos, exceto de Bardo, e Eu Mesmo Me acho diante de Nicolau, jun- to da mesa do conselho, ainda rodeada pela assembleia. Ninguém se atreve a levantar os olhos diante do deslumbramento celeste.

  3. Adianta-se Bruno com grande respeito e diz: “Ó Senhor! Só Tu mereces amor, honra e veneração! Como servo mais inútil, Te entrego essa multidão que, não duvido, Te pertence!”

  4. Digo Eu: “Trabalhaste bem! Tua grande paciência e humil- dade te ajudaram nessa obra sem par, por isto terás uma grande incumbência em Meu Reino feliz. Nicolau te auxiliará, pois muito contribuiu, no fim, para a salvação de todos — exceto um renitente

  1. Em verdade, não há conquista de espíritos mais abençoa- da do que aquela feita pela palavra justa e doutrinação sábia! Esse rebanho foi conquistado pelo Verbo, dentro de Minha Vontade e Ordem; eis por que já é livre, sem que um milagre prendesse seu coração. Está, portanto, apto a receber graças mais sublimes, o que muito alegra o Meu Coração! Vosso mérito será grande!

  1. O primeiro grupo ainda sentia fome e sede, porquanto só podia aproximar-se de Mim por meio de aparições milagrosas; entre vós ninguém sente essas necessidades, exceto Bardo. É que Me se- guistes apenas pela palavra, e isto se enquadra em Minha Vontade. Bruno e Nicolau, aproximai-vos de Roberto, que vos dará outra ves- timenta. Eu Mesmo Me acercarei de Bardo para dar-lhe o que quiser

CAPÍTULO 119

A alma de Bardo é curada. Os Desígnios de Deus. Confraternização celeste

  1. Ambos se encaminham para Roberto, que os recebe com pra- zer. Entrementes, digo a Bardo, ainda incapaz de Me ver: “Abre-te, tenebroso, responde e mostra-Me o motivo de teu orgulho!” Ele leva um grande susto quando Me vê e procura falar. Como a língua não lhe obedece, começa a gaguejar qual pessoa sonolenta, enquanto seu coração apavorado julga Eu condená-lo ao inferno.

  2. Eis que lhe digo: “Cego! Quão fútil é teu medo! Quando teria Eu Me aproximado dos que se condenaram a si mesmos para aumentar seus julgamentos? Venho apenas para socorrer! Vejo em ti uma grave enfermidade, chamada orgulho. Deves dar-Me explicação a respeito, para te livrares desse peso.

  3. Quando Nicolau, teu amigo, tencionava fazer a prece por vós, não aceitaste, pretendendo pedir para ti somente. E qual foi teu pedido? Uma grande humilhação para todos os que te ofenderam, especialmente para Nicolau, que se adiantou como representante dos outros, porquanto foste o primeiro a trocar palavras com Bruno e, além de tudo, te disse algumas verdades com certa dureza!

  1. Reflete se é justo desejares seja teu amigo humilhado só por- que foi sincero! Não seria mais oportuno desejar-lhe tudo que é bom? Pensas prevalecer, aqui no Reino do Espírito, o mesmo trato que na Terra, onde os ignorantes consideram amigos apenas os que lisonjeiam e bajulam, enquanto detestam e perseguem como inimi- gos quem lhes diz a verdade — tal qual fizeram os judeus Comigo, que ousei falar-lhes de suas traficâncias?

  2. Caro Bardo, aqui a situação é bem diversa: têm somente va- lor a verdade absoluta e o amor puro! Todo o resto é um horror para Mim e não pode existir neste Meu Reino! Sabes agora, de Minha Própria Boca Divina, as condições reais da amizade; por isto, con- fessa que foste injusto com Nicolau e pede-lhe perdão. Em seguida, volta para junto de Mim, que te proporcionarei o que te cabe!”

  3. Com estas palavras, Bardo cai em si, pensando no ín- timo: “Realmente, foi o Senhor Onipotente Quem falou! Quem poderia reagir contra Sua Sabedoria e Força? O homem é inimigo da verdade, mormente quando ela atinge seu ponto nevrálgico; co- mete ele grande injustiça quando considera chegar sua vida somente até a beira do túmulo; no entanto, ela prossegue sempre, dentro da verdade e do amor. Fui ensinado pelo Próprio Senhor, por isto farei o que deseja, ainda que me custe muito! É preciso coragem e decisão para as grandes realizações! Vou, portanto, para junto de Nicolau, com ânimo e firmeza, confessar-lhe tudo e pedir-lhe perdão!” O outro lhe vem ao encontro, de vestes novas, abraça-o e diz: “Amigo, na Terra os ignorantes necessitam agir, por não se aperceberem da força da vontade. Aqui, onde se vê nitidamente o rigor da vontade, dispensa-se a ação. Apenas a vontade é nossa; a ação, do Senhor! A vontade estando dentro da ordem, tudo estará organizado.

  4. Deste modo seremos, para sempre, os melhores amigos, ter- minando aqui as nossas diferenças terrenas. A mesma dedicação será por nós dispensada a Bruno, pois devemos a nossa salvação à sua co- ragem e paciência. Subentende-se que antes de tudo rendamos eter- na gratidão ao Senhor, motivo principal de todo Bem! Igualmente

nos cabe considerar vários amigos que nos precederam, como forte ímã que já nos atraiu na Terra, e em cujo lar encontramos a paz.

  1. A Jesus, nosso Pai, toda honra, gratidão, adoração e amor por nos ter conduzido de forma tal que atingimos aquilo que prescreve Sua Ordem, não obstante nossa incredulidade e cegueira. Seus Ca- minhos são aparentemente misteriosos e insondáveis. Ele age com as criaturas como se elas fossem uma embarcação sem vela e remos, impelida pelos ventos para o alto-mar. Quem poderia dizer que tal navio pudesse chegar a um porto seguro? Eis a Obra do Senhor, único merecedor de todo louvor e honra!

  2. Ele nos guiou de tal forma a encontrarmos o Seu Caminho, não obstante nossas grandes falhas. Sejamos, pois, alegres e plenos de amor sincero para com Ele, nosso Salvador!” Após tais palavras os dois se abraçam, em seguida a Bruno, Dismas, Olavo e finalmente Roberto, completando a corrente salvacionista de todos. Nicolau e Bardo se aproximam de Mim e o último diz: “Senhor, somos um só coração. Perdoa-nos, assim como nós nos perdoamos reciprocamen- te, para podermos amar-Te acima de tudo!”

  3. Digo Eu: “Se há paz entre vós, vosso débito está apagado! Ide, todos, em companhia de Roberto, ao grande armário de ouro. Encontrareis o suficiente para vestirdes essa multidão. Isto feito, vinde a Mim, para abençoar-vos e prosseguirdes na caminhada no Reino da Luz! Assim seja!”

CAPÍTULO 120

Vestimenta no Além. O Senhor abençoa os recém-vindos. Bruno e seus amigos incumbidos da organização do refeitório

  1. Roberto conduz a grande multidão ao referido armário e distribui vestimentas que proporcionam melhor aspecto e alegria geral. No Reino dos espíritos existe grande diferença entre os que se dirigem a Mim de livre e espontânea vontade, através do conhe-

cimento interno despertado pelo amor a Mim, e aqueles trazidos por ensinamento externo. Os primeiros recebem, automaticamente, vestimentas novas, de acordo com sua índole. Os outros têm que despir a veste rota do mundo para se cobrirem com novas, celestiais. Esta pequena explicação é dada para evitar que alguém se admire das duas espécies.

  1. Todos se encontram, portanto, com novas vestes e Me lou- vam em silêncio; alguns se extasiam com Minha Benignidade. Ou- tros fitam os patriarcas e os apóstolos com certo receio beato. Alguns se arriscam, acanhadamente, a encetar palestra com os apóstolos. Pedro sugere aproximarem-se de Mim para receber a Bênção pro- metida, que lhes facultaria Saber completo. A tal advertência todos se dirigem a Mim, agradecem pelas roupas, pedindo Minha Bênção.

  2. Levanto ambas as Mãos e digo: “Recebei a Bênção como ver- dadeiro estímulo ao vosso amor e sabedoria ainda fracos, pois sem eles seria impossível ingressardes em Meu Reino. Agora sois capazes de dar outro passo na evolução! Muitas vezes indagastes na Terra, ao fitar o Céu, qual seria a origem das estrelas, da Terra, Lua etc. As opiniões variavam e havia alguns sem opinião alguma. Mas, não importa; vencestes a matéria e vos encontrais como filhos perfeitos, alegres e contritos diante de Mim, vosso Deus, Pai e Salvador, e ten- des o direito de serdes levados às grandes e inúmeras Moradas do Pai Celeste. Preparai-vos! Terá início a introdução gigantesca de todas as Obras, que durante a vida se vos apresentavam como enigmas!

  3. Esse lar, onde ressurgistes, vos servirá de morada comum, reencontrando-Me sempre que necessitardes de repouso após lon- ga caminhada. Tão logo tiverdes alcançado um certo acréscimo de amor para Comigo, através de grandes experiências, cada qual encontrará dentro de si o próprio lar, onde habitará feliz por toda a Eternidade.

  4. A fim de que possais iniciar vossa trajetória experimental, que vos aguarda além desta porta, tomaremos em conjunto uma verdadeira ceia de vida. Roberto, vai abrir, com os amigos, a porta central que dá para o Sul, onde descobrireis nova sala com mesas e

cadeiras. Arrumai tudo, sem esquecerdes pão e vinho. Levarei então esses hóspedes à grande sala da paz e da calma, onde todos serão saciados. Ide, pois!”

  1. Roberto e os amigos se dirigem ao dito recinto, muito es- paçoso e repleto de mesas grandes e pequenas. Está em desordem, correspondente ao estado interior de um espírito já de posse plena de vários princípios de amor ativo, ainda desorganizados, porquanto desconhece a ordem numérica; por isto, não podem ser postos em prática. Cabe a Roberto e a seus amigos esta tarefa; uma vez reali- zada, virei em Pessoa com os outros para receberem, no salão da caridade e do amor, as graças e dádivas mais sublimes, numa ordem elevada e mais pura.

  2. Quando Roberto, Messenhauser, Becher, Jellinek, Olavo, Dismas, Nicolau, Bardo e mais alguns, que para tanto se haviam prontificado espontaneamente, deparam com a desordem pronun- ciada, o primeiro arregala os olhos e diz: “Amigos, teremos muito serviço para estabelecer harmonia neste recinto. Difícil será combi- nar o tamanho diverso das mesas, algumas mais altas, outras mais baixas e ainda outras mais estreitas! Cadeiras e bancos também não são iguais. Bonito anfitrião sou eu, que ignora seu mobiliário! A única solução é pôr mãos à obra!”

  3. Diz Messenhauser: “É realmente estranho! Na sala anterior já éramos sábios perfeitos, e nesta aqui somos tão tolos como se nun- ca tivéssemos frequentado escola! Trata-se apenas de arrumação de móveis — e nem sabemos como iniciar! Qual é a mesa número um, e as subsequentes...? Como juntaremos as mais baixas às outras? As estreitas às mais largas?”

  4. Intervém Becher: “Amigos, ajudo onde for preciso; mas não exijais plano de mim, pois tenho a impressão de ser tão tolo quanto uma criança recém-nascida!” Diz Jellinek: “Esta situação tem im- portância muito maior do que imaginamos! Talvez nosso Senhor nos tenha pregado uma pequena peça? No final, só nos restará pe- dir-Lhe um plano justo; pois jamais resolveremos este problema, por mais que nos esforcemos!”

  1. Diz Roberto: “Irei pessoalmente, enquanto podereis fitar os restantes enigmas desta sala.” Dito e feito, Roberto volta ao recinto anterior e fica perplexo, pois está vazio. Nada se mexe, nada se ouve. Ele olha pela janela, sem ver alguém. Abre as outras portas, a grande área interna — nada! Desanimado e triste, volta ao grupo de amigos.

  2. Então ele diz: “Graças ao Senhor eu vos encontrar aqui! Lá fora não há vivalma! Que fazer agora?”

  3. Diz Jellinek, admirado: “Será possível...?! Em Nome de Deus, seja como for, comecemos a arrumar as mesas, acrescentan- do-lhes pão e vinho, e veremos quem foi burlado!”

  4. Roberto chama Olavo e lhe diz: “Irmão, foste na Terra en- tendido em náutica, engenharia e geometria; estás, portanto, indi- cado a pôr ordem nesta confusão. Temos que executar as Ordens do Senhor!”

  5. Diz Olavo: “Nem Deus poderá exigir além de nossa capa- cidade! Comecemos! As mesas de altura e largura idênticas encos- taremos lá em cima; em seguida as menores e mais estreitas; nestas serão encostadas as pequenas, até terminarmos. No todo, faremos a figura de uma cruz, correspondente a esta tarefa. Do mesmo modo agiremos com bancos e cadeiras, e uma vez terminado o trabalho, veremos se o Senhor cumpre a Promessa de Sua Vinda. Caso não venha, procuraremos o grupo lá fora e por todos os cantos desse mundo encantado!”

  6. Todos concordam com o plano de Olavo e, após certo tem- po, mesas, bancos e cadeiras estão organizados em forma de cruz. Roberto abre alguns armários cheios de pão e vinho e, com a ajuda dos outros, tudo é distribuído.

  7. Terminada a tarefa, Roberto diz: “Senhor, que tudo vês e sa- bes, por certo tomaste conhecimento de termos concluído fielmente Tua Ordem. Prometeste aqui chegar com os restantes hóspedes e iniciar-nos em missões nos Céus. Por isto, não demores, pois Tua Ausência se torna insuportável!” O grupo repete tais palavras. O si- lêncio, porém, é total. Não se perturbando com isto, todos esperam com paciência. Nada se ouve e ninguém aparece. Eis que Roberto

diz: “É realmente estranho! Será que o Senhor nos quer experimen- tar, ou fizemos algo errado? Porventura toda essa história, após nossa chegada aqui, é apenas sonho? Que faremos? Juntemo-nos para re- solver a situação, que poderá tomar aspecto desesperador!”

CAPÍTULO 121

Conselhos de amigos. Dismas acha a solução acertada. A bênção do amor ao próximo

  1. Nisto, Bardo se aproxima de Roberto e diz: “Não resta dú- vida causar estranheza o desaparecimento do Senhor e da multidão mais ou menos espiritualizada. Se tudo isto por que passamos foi apenas aparição vã, qual sonho — no que não acredito — esta- mos livres e futuramente seremos nossos próprios legisladores, não havendo poder capaz de nos impedir. Se, ao invés disto, tudo for verdade pura e espiritual, e nosso Jesus, o Senhor amado acima de tudo, o embaraço atual constitui apenas uma prova permitida pelo Seu Amor, Graça e Misericórdia a fim de nos tornarmos mais in- dependentes e positivos. Aumentemos nosso amor para com Ele, conforme nos ensinou, atraindo-O e aos outros ao nosso meio. Se alguém tiver melhor proposta, que fale!”

  2. Manifesta-se Nicolau: “Confesso, irmão, me alegrares muito, pois sempre atinges o ponto nevrálgico! Embora tivesse sido eu a compreender Bruno antes de ti, poderias ser nosso chefe! Incontes- tavelmente é nosso amor a Jesus bastante fraco, razão por que nos deixou sozinhos. A bela heroína das barricadas estará, na certa, com Ele. Por quê? Pelo simples motivo de ter atingido o ponto sensível do Senhor, isto é, Seu Coração! Nós, julgando-nos sábios, fazemos agora papel de tolos!

  3. Por isto, repito: Temos de dar-Lhe muito mais amor que intelecto; só assim O atrairemos. Executando Suas Ordens como se fôramos funcionários de negócios celestes mais importantes que outros agraciados com Suas Dádivas, certamente acontecerão coisas

estranhas. Chego à conclusão de sermos mais esquisitos que os acon- tecimentos. Que dizeis?”

  1. Respondem todos: “Tens plena razão; somos os próprios cul- pados. Mas o Senhor sabe de nossa tolice e nos perdoará!”

  2. Aproxima-se Dismas: “Caros amigos, permiti que me expres- se. Não concordo com a indulgência do Senhor a respeito de nossa tolice; pois se o espírito tem de alcançar a perfeição através do pró- prio esforço, elevando-se e regenerando-se pelo poder vital dado por Deus desde o início, assim ingressando na Ordem Divina, onde se movimenta como se fora seu próprio elemento, impossível aguar- dar-se certa indulgência do Senhor.

  3. Um relojoeiro empenhado em construir um bom relógio por certo tudo fará para que fique rigorosamente montado, pondo-lhe, no final, uma mola provida de determinada elasticidade que o fará funcionar livremente. Qual seria nossa opinião sobre este homem se, movido pela piedade, não deixasse que a mola viesse a funcionar para não cansar o delicado maquinismo do relógio; ao invés disso, ele mesmo se daria ao trabalho de movimentar os ponteiros! Ami- gos, garanto estar tal relojoeiro maduro para o manicômio!

  4. Então, como admitir que o Senhor, Eterno e Sábio Constru- tor de todas as coisas no Espaço Infinito, nos viesse guiar precisa- mente num período destinado à nossa perfeição individual?

  5. Somos dotados de força espiritual e da Doutrina de Deus. Temos, portanto, de agir de modo próprio, conforme exige a Or- dem Divina. A necessidade maior é o amor, não obrigatório, mas livre e abundante em nossos corações. Amor a Deus além da nossa capacidade seria tolice; amá-Lo menos do que exige nosso coração seria desleixo vergonhoso que nos levaria ao estado de semimortos, de onde dificilmente nos salvaríamos. Se tivermos o justo grau de amor, teremos idêntico de sabedoria, o que nos facultará poder cor- respondente, capacitando-nos a agir livremente, como espíritos per- feitos. Deus é a máxima Ordem. Se quisermos assimilar esta ordem, teremos, antes de mais nada, que estabelecer a verdadeira ordem

dentro de nós, de modo próprio, senão seremos ineptos na exigência da liberdade perfeita e verdadeira.

  1. A ordem estabelecida por nós nesses móveis anteriormente desarrumados é uma prova segura daquilo que nos cabe fazer indi- vidualmente para podermos subsistir diante de Deus. Por isto, con- vém aceitarmos tal ocorrência como necessária e aproveitá-la como Vontade Dele.

  2. Devemos meditar quanto à nossa índole e nos certificar se estamos realmente isentos de todas as paixões; se não alimentamos um vislumbre de orgulho; se fazemos o bem pelo próprio bem. Ainda assim teremos muita dificuldade para ingressar na perfeição espiritual e aguardar o Senhor e Seus hóspedes. Se, ao invés disto, considerarmos o que ocorre como simples divertimento do Senhor, admirando-nos sem cessar, estaremos longe da meta final.

  3. Não basta executarmos maquinalmente o que nos exige o Se- nhor; temos que descobrir em nosso íntimo a razão da exigência; só então estabeleceremos a ordem vital em nossa alma, podendo aguar- dar com segurança o que nos foi prometido. A arrumação da mobí- lia não tem valor especial, pois bastaria o mais sutil Pensamento do Coração Divino, e a Ordem insuperável se apresentaria. Tratando-se, porém, de uma advertência de Deus para estabelecermos certa ordem no recinto contíguo, em nosso coração — local da sabedoria livre e di- vina — tal ordem é de grande importância. Havendo alguém dotado de inspiração mais acertada, que se apresente em Nome do Senhor!”

  4. Diz Roberto: “Amigo, estou encantado com o teu saber. Foste adversário intransigente na aceitação da Divindade do Senhor e nos deste muito trabalho para te equilibrarmos. Tua inclinação sentimental para a honra e a forte atração pelo sexo oposto encobri- ram teus olhos, causando-nos grande preocupação! Agora avançaste a passos largos, revelando-nos uma verdade que, sem ti, talvez só conseguíssemos daqui a milênios! Tua contribuição é enorme e nem sei como agradecer-te!

  5. Essa casa me foi dada pelo Senhor, para sempre. Pessoal- mente conheço apenas parte de seus tesouros internos. Se for de teu

agrado, passarás a ser o dono! Não nos proporcionaste bens materiais de valor limitado; transmitiste-nos palavras abençoadas, tirando-nos deste isolamento e reconduzindo-nos à Presença do Senhor! Aceita esta mansão que, além do Pai e de ti, é minha maior posse! Como te tornaste querido e estimado! Não faz muito, te considerávamos com piedade, e agora te elevaste acima de todos! Não poderias alegrar-nos com mais algumas palavras?”

  1. Responde Dismas: “Meus irmãos, não sabeis que uma mão lava a outra? O mesmo se dá aqui: vosso sentimento fraternal purifi- cou-me e salvou-me de minha própria perversão, pois era habitante do inferno. Através dessa prova de ordem individual caístes em certo embaraço, permitido pelo Senhor, nesta segunda sala. Por isto, fui buscar no meu íntimo algumas palavras de conforto, cujo efeito — Graças a Deus — muito me alegra.

  2. Contudo, não mereço que venhas me presentear com a tua casa, construída por Jesus através de teu coração. Este lar, com todas as suas maravilhas, corresponde ao teu próprio coração, cujos sentimen- tos de amor a Deus e ao próximo lhe serviram de base. Se eu a acei- tasse, tirar-te-ia coração e vida, por ser a manifestação de tua caridade.

  3. Naturalmente, é fácil morar-se contigo sob este teto; assim como na Terra um homem bom e justo admite no coração vários irmãos e amigos, pondo-os à vontade, tanto mais fácil aqui, onde o Senhor deixa surgir visivelmente tudo aquilo que em vida permane- cia no desejo. No mundo não passavam de castelos no ar, enquanto aqui eles se realizam, isto é, apresentam-se como obra do coração e de sua organização caridosa.

  4. Há filhos de Deus que até desejam arrancar seu coração e dá-lo aos irmãos, assim como tu pretendias fazê-lo. Tal intento é muito nobre, mas completamente impossível e inútil, mesmo aqui. Onde o amor fraterno estabelece normas sobre o ‘meu’ e o ‘teu’, não pode haver contendas; pois não existe lei que assegure a posse indivi- dual tão poderosamente como o Mandamento do amor ao próximo, onde cada um põe à disposição de todos aquilo que possui. Não há, assim, possibilidade de alguém ser prejudicado.

  1. Todos nós habitamos em teu íntimo, assim como tu em nós. Quem poderia alegar ter sido lesado? Cada qual tem o que é seu, e quanto mais der tanto mais lhe será dado. À medida que nos saciarmos com teu coração, serás recompensado. Os corações são semelhantes aos mares: um desemboca no outro sem perder seu precioso líquido. Mas..., o que é isto? Ouço vozes na outra sala! Vamos ver o que há!” Diz Roberto: “Agradeço-te, irmão, por este ensinamento maravilhoso! Acompanha-me, pois já te tornaste in- dispensável para mim.”

CAPÍTULO 122

Novas surpresas. Penetração de inúmeros guerreiros excitados. O chefe pede uma prece

  1. Imediatamente todos se dirigem à porta, pela qual olham furtivamente a enorme antessala, na esperança de verem o Senhor encabeçando os hóspedes já conhecidos. Mas tal não se dá. Uma multidão constituída de pessoas de diversas classes penetra na sala e exige imperiosamente falar ao dono deste palácio.

  2. Dirige-se Roberto a Dismas: “Que situação embaraçosa! Em lugar dos amigos e do Senhor tão ansiosamente esperados, esta gen- talha reclama, com atrevimento, a presença do anfitrião, que tenho a honra duvidosa de ser! Qual será sua intenção? Acaso aqui também existem salteadores e assassinos? Seria realmente um ‘belo’ acrésci- mo para o Reino Celeste! Vê que olhares enraivecidos apresentam, sem o menor vestígio de humildade e meiguice! Que faremos? Esses camaradas são até capazes de nos enxotar do Reino de Deus! Como esbravejam! A sala já está repleta e, pela porta, percebo que o pátio está cheio! Se isto continuar, seremos sufocados! Além disso, o odor pestilento não é agradável! Que faremos?”

  3. Responde Dismas: “Por enquanto, nada! Não nos podem ver, tampouco a esta porta, razão pela qual não conseguirão entrar aqui. Aliás, parecem ter vindo da Terra e, se não me engano, provêm dos campos de batalha da Hungria e Itália, pois ouço imprecações

naqueles idiomas. Deixemos que se acalmem um pouco, para de- pois nos manifestarmos. Vamos auscultá-los a fim de conhecermos suas índoles!

  1. Os três à nossa frente parecem os chefes, porquanto os outros imitam-lhes as atitudes. O do meio ordena silêncio e por certo fará um discurso de grande importância também para nós. Vamos pres- tar atenção ao que dirá!”

  2. Manifesta-se o chefe dos recém-vindos: “Camaradas de luta! Sucumbimos no dito ‘campo de honra’ em prol da pátria, como os animais no matadouro! Qual foi o resultado? Aspirávamos a al- tura e chegamos aos baixios! Como heróis, lutamos com desprezo da morte, seguros de não haver vida no Além; nossa filosofia nos demonstrava a nulidade da fábula do Cristo e ríamos do Evangelho. Agora nos encontramos no inferno verdadeiro, nada apresentando de fantasia, tanto mais que um demônio qualquer nos fez encon- trar este palácio infernal, para onde nos impeliu como se fôssemos animais! Não há saída e a escuridão é deveras tenebrosa! O dono da casa não se apresenta — por certo não existe! Eis a paga de nossos esforços no mundo!

  3. Se fosse possível transmitir aos pobres companheiros na Terra qual a recompensa que aqui os espera! Realmente, nenhum procuraria pisar o maldito ‘campo de honra’! Tudo estaria bem se ao menos deixássemos de existir, pois nada mais sentiríamos. Dá-se precisamente o contrário: sentimos mais pronunciadamente nossa miserável e infeliz existência após a morte! Carecemos de tudo que é bom; em compensação, passamos fome, sede e frio ao mesmo tem- po. Dores várias roem como vermes as nossas vísceras. Luz alguma beneficia nossos olhos e a voz amiga parece ter sumido para sempre!

  4. Eis a sorte dos senhores orgulhosos e altaneiros: no final são devorados conscientemente, para depois padecerem e se desespera- rem nas trevas da Eternidade! O que se poderá fazer? Praguejamos muito, sem que algo adiantasse! Que tal se orássemos? Quem sabe uma oração nos beneficiaria? Acaso algum de vós saberá de cor uma miserável prece?”

  1. Diz um do grupo: “Sr. Comandante! Sei a oração de Kossut!” (trata-se de um político húngaro). Responde o chefe: “Idiota! Kossut não é mais nada! Que benefício nos traria sua prece?” Diz um italia- no: “General! Sei umas preces maravilhosas de Santa Maria e de São José! São uma beleza!”

  2. Interrompe o comandante: “Cala-te, italiano ignorante! É o que nos faltava! Não haverá quem saiba o ‘Pai Nosso’?” Adian- ta-se um outro, dizendo: “Sr. General! Quando moleque aprendi o ‘Pai Nosso’. Mas não me lembro de tudo; o que ainda sei, posso rezar!” Diz o chefe: “Muito bem, ora o que souberes!”

  3. Começa ele: “Repeti, então, o que direi: Pai Nosso, estás no Céu! Como é mesmo? Ah, já sei! Pai Nosso, estás no Céu, Teu Nome é santificado! Tua Vontade Se faça no Céu e na Terra! Espera um pouco... Agora não me lembro. Peço perdão, seu General, por esta confusão! Um pouco de paciência, que vou até o fim! Ah, é! Dá-nos o pão de hoje e... e... não nos leves à tentação!”

  4. Interrompe um outro: “Opa, esqueceste: Perdoa os nossos pecados, como os perdoamos aos nossos devedores!” Pede o primei- ro: “Fala o resto, que não me lembro!” Prossegue o colega: “Pois bem. É assim: Não nos induzas à tentação, mas nos libertes dos estúpidos, em si o maior mal! Amém!” Protesta o outro: “Qual nada, não é isto! É o seguinte: Livra-nos de todo mal, amém! — Mas, já compreendi me teres classificado de estúpido! Não és melhor do que eu só porque o presumes! Fica sabendo!”

  5. Diz o general: “Nada de briga! Já basta nossa desdita pela força do destino! Para que essas ofensas que aumentam nossa infe- licidade?! Que utilidade teria uma prece da qual o orador esqueceu a metade, sendo por isto ridicularizado pelo companheiro? Que se apresente quem o saiba, do contrário é melhor não orarmos!”

  6. Adianta-se uma senhora e diz: “Seu general, conheço o ‘Pai Nosso’ do começo ao fim, mas no idioma alemão — parece-me tão ridículo e de certo modo ordinário! Em francês e inglês poderia sa- tisfazer as maiores exigências!”

  1. Diz o general: “Digníssima, peço-lhe voltar ao seu lugar, onde poderá rezar em inglês ou chinês! Aqui todos entendem ale- mão, não obstante haver muitos húngaros e eslavos! Creio não haver idiomas mais repugnantes e sem gosto para Deus do que o francês e inglês, por serem a expressão do orgulho! Como, pois, fazê-lo da- quele modo? Por isto, repito mais uma vez: Quem de vós sabe orar o ‘Pai Nosso’ em alemão? Que se apresente e cumpra sua tarefa!”

  2. Adianta-se um pastor e diz: “Seu general, não sendo impe- dimento eu ser luterano, poderei fazê-lo!” Diz o chefe: “A mim não importa se és luterano, católico ou maometano. Mas, como em nos- sa multidão existe maior número de padres católicos, que facilmente poderiam se escandalizar, agradeço por enquanto essa oferta, da qual farei uso caso não haja na comunidade algum romano que o saiba. Enquanto isto, o senhor poderá ficar ao meu lado!”

CAPÍTULO 123

Um padre quer oficiar missa por dinheiro. O general repele e critica Roma. Roberto quer socorrer, quando o Senhor Se apresenta

  1. Prossegue o militar: “Acaso não haverá nesta assembleia enor- me e realmente infeliz alguém que, pela confissão católica, reze o ‘Pai Nosso’ de modo compreensível e em alemão?”

  2. A este convite se apresenta um padre de batina e diz: “Seu general, eu poderia fazê-lo; no entanto, de nada adiantaria, porque todos nós morremos sem extrema-unção e tampouco fizemos a con- fissão, motivo por que estamos destituídos de Graça! Em tal estado podemos orar à vontade, sem alcançarmos um benefício, mormente por estarmos condenados por Deus para toda a Eternidade! No Dia do Juízo Final a trombeta pavorosa nos fará voltar ao corpo, para então enfrentarmos a inclemência divina e receber a condenação eterna, que nos atirará ao fogo infernal!

  1. Conheço apenas um meio de salvação: a celebração da missa, o único agrado a Deus. Infelizmente, não tenho meios para tanto; mas, se o sr. general me ajudar para que eu receba de todos esses infelizes uma pequena recompensa, fá-lo-ei de cor, proporcionando assim a salvação de todos. Somente a missa nos ajudará, pois todas as orações de nada valem!”

  2. Diz o general: “Vê se somes, do contrário te atiro a umas dez milhas daqui! Miserável! Se consideras a missa como único recurso de socorro, entretanto não tens suficiente amor ao próximo para ce- lebrá-la gratuitamente — pois que nada temos — és pior que todos os gatunos, assassinos, salteadores, impudicos e adúlteros do mundo inteiro! És aqui o que foste na Terra: um servo de Deus por dinheiro! Sem este, não te afliges que todas as criaturas sejam condenadas! De- saparece de nossas vistas e lê tua sensaboria latina onde quiseres, mas preserva-nos disto! Somos, na maioria, alemães e eslavos e queremos orar em nossa língua! Meia-volta, volver!”

  3. A essa ordem militar o monge se afasta, enquanto o general incita os eslavos para que um dentre eles reze o “Pai Nosso”. Pronta- mente se manifesta um polonês e diz: “General, conheço-o em cinco línguas!” Diz o militar: “Bem, faze-o primeiro em alemão e depois em eslavo! Mas, bem pronunciado e com respeito!”

  4. O polonês obedece e todos os presentes o seguem, palavra por palavra. Apenas o monge e alguns colegas não tomam parte, cheios de raiva, por não ter o general aceito a cerimônia em latim. Os outros percebem que eles não só deixam de orar, mas até mes- mo fazem caretas, sendo que o referido sacerdote, ao invés de dizer: “venha a nós o vosso reino”, exclama: “venha a nós o inferno”. Por isto, agarram os padres, levam-nos à presença do general, relatando a atitude infame dos servos da Igreja.

  5. O militar, embora alterado pelo fato, diz aos outros: “Acal- mai-vos! Deveis saber que esta casta repugnante foi tudo na Ter- ra, menos aquilo que deveria ter sido — com poucas exceções! Por isto, não vos deveis admirar que aqui um pagão seja mais cristão do que um padre! Quem crucificou o Cristo? Os sacerdotes! A fim de

não perderem a prática dessa obra brutal, inventaram a missa onde podem diariamente executar o desempenho de carrascos! A missa nada mais é do que a repetição da cerimônia estúpida da verdadeira crucificação do Cristo. É fácil deduzir-se as ações de tais ‘verdu- gos de Deus’, pois quem condena deve ser mais poderoso do que o condenado e eleva-se a senhor, outorgando-se tal direito, ao menos mentalmente. O padre julga, condena e sacrifica Cristo, o Senhor, diariamente, fazendo-O ressuscitar para de novo matá-Lo, porque não lhe interessa Um, constantemente vivo! Acaso não é o padre, como juiz de Deus, maior do que a Divindade? Quem poderá negar ser esta a situação da Igreja Católica? Se os de batina preta se outor- gam a condenação e a própria crucifixão do Senhor — como nos admirarmos se nos condenam ao inferno tão logo o queiram?

  1. Estudei em vida a História da Humanidade e sempre veri- fiquei serem os padres causadores dos grandes dilemas; não é de se admirar porque nada de bom se pode esperar dos privilegiados car- rascos de Deus! Observai a atual revolução! Quem a começou? Os padres! Começaram na Suíça, de onde tiveram de fugir. Enraiveci- dos por isto, instigaram o Papa a fim de vingar esse sacrilégio, prova- velmente em toda a Terra! Pois seria a Suíça muito pequena para tal ato, em virtude de ter o povo — assim como Adão — pecado contra a santidade dos sacerdotes de Deus, não só por si, mas pelo mundo inteiro! Imaginai a ousadia que os alpinos tiveram — quando fa- mintos — de se regalarem com os melhores vinhos e despensas dos servos de Deus! Tal sacrilégio os revoltou de tal modo que começa- ram a imprecar contra o orbe inteiro, instigando os homens a levar a efeito a maldição tenebrosa. Resolveram sua tarefa eficazmente, mas ao mesmo tempo se feriram de maneira irremediável! — Presumo ter-me explicado; portanto, sabeis a quantas andais, e sossegai quan- do essas asas negras vos condenam ao inferno!

  2. Quem quiser conhecer alguém, basta observar suas ações. O coração do açougueiro e caçador é geralmente bruto e insensível; o do verdugo será mais ainda! Assim sendo, qual será o sentimen- to que rege o coração daqueles que julgam ser louvável sacrificar e

matar diariamente o Próprio Senhor! Já sendo perigoso firmar-se amizade com açougueiros e verdugos, quanto mais com os outros?

  1. A História da Espanha demonstra claramente a crueldade satânica dos padres para com suas ovelhas. Deixai-os ir para onde quiserem! Vamos juntar-nos como irmãos, ajudando-nos no que for possível!

  2. Se Deus existe — o que não duvido por causa de nossa vida após a morte — deve ser mais sábio e melhor que Seus supos- tos servos.”

  3. Toda a assembleia se rejubila com esse discurso contra os padres. Esses, porém, fazem cara feia. O mencionado monge, in- capaz de conter sua ira, começa a pisar o solo e instigar o inferno para que se abra e trague os vilipendiadores. Os outros se cansam dessa tolice, agarram-no e o atiram porta a fora, onde fica algum tempo inerte.

  4. Neste instante, diz Roberto a Dismas: “Irmão, discurso e índole do general me agradam bastante, com exceção do exagero quanto à atitude dos padres. Se fosse possível, teria vontade de mi- norar sua situação aflitiva.”

  5. Responde Dismas: “Um pouco de paciência e a situação se modificará! Precisamos da Presença do Senhor e sinto que está para chegar! Sim, espia pela janela — ei-Lo com os nossos hóspedes! Va- mos depressa ao Seu encontro! É Ele!”

CAPÍTULO 124

Alegria de Roberto pelo reencontro com o Senhor, que Se ocupa com o monge. Consórcio celeste

  1. Nem bem os amigos se dirigem à frente da casa, encontram-

-Me ocupado com o monge expulso, que naturalmente não Me re- conhece. De pronto, Roberto se dirige a Mim, com lágrimas nos olhos: “Pai! Querido e Santo Pai! Por onde andaste tanto tempo? Muito embora Te procurássemos por toda parte, não conseguimos

encontrar-Te! Como foi triste e desoladora nossa situação durante Tua Ausência! Mas, agora tudo está bem! Bem acertadas são Tuas Palavras: ‘Sem Mim, nada podeis fazer!’ e eu acrescento: Sem Tua Pessoa tudo se torna deserto e triste! De agora em diante não mais nos deixarás?”

  1. Digo Eu: “Não vos abandonei; apenas levei teus hóspedes a passear pelo grande jardim desta casa, mostrando-lhes as novas organizações, com as quais se alegraram, assim como Adão, Noé, Abraão, Isaac e Jacob. Nesse ínterim tiveste tempo de sobra para ar- rumar o grande refeitório, o que conseguiste, para Minha Satisfação. O fato de não Me terdes visto por alguns momentos não prova que Eu não estivesse Presente com o mesmo Amor. Pois inspirei Dismas no sentido de transmitir-vos ensinamento profundo e grande con- forto. Voltei, porém, à vossa presença e retornarei a casa a fim de curar inúmeros enfermos para a vida!

  2. Aqui, no monge, apresenta-se um paciente inteiramente surdo, cego, mudo e coxo. Será o primeiro a ser socorrido, para em seguida ajudar os outros. O general o atacou muito bruscamen- te, culpando-o de crimes que esse coitado jamais imaginou, muito menos os praticou! Tal atitude não foi justa por parte do general, sedento de luz e verdade! O monge é, como seus colegas, apenas surdo, mudo, cego e aleijado, situação de todos os católicos reniten- tes! Portanto, não podem ser chamados à responsabilidade. Aquele tratamento, porém, embora rude, teve seu benefício para o orgulho sacerdotal. Agora ele parece ter falhado, porque quis fazer crer aos outros o que ele mesmo jamais acreditou. Fez uso do inferno como meio de terror, e o céu como atração; ele mesmo, porém, em nada disto acreditava. A religião era-lhe apenas um meio mitológico para manter os povos em obediência. Praticava o ritual somente como ilusão necessária para a multidão ignorante, afirmando, não raro, até mesmo entre colegas, como fez certo papa: A fábula do Cristo não é má, pois pode-se usá-la à vontade. Além disto, rende muito dinheiro e conceito aos seus servos; aliás, é este o único benefício. Com exceção do lucro, a religião grega é mais sublime!

  1. Eu, entretanto, vos afirmo: Tudo isto não vem ao caso. O padre foi induzido à ignorância pela força da Igreja, tornando-se escravo de Roma. Acaso poderia se castigar um cativo pelo fato de ter permitido que seu senhor, mais forte do que ele, mandasse furar seus olhos e queimar seus ouvidos? Nesse caso, só se poderá dizer: Socorro para quem necessita! Por isto, Roberto, vai a casa apanhar pão e vinho. Antes de tudo, é preciso que se fortifique para capaci- tar-se ao futuro ensino e organização.”

  2. Em poucos instantes Roberto está de volta, com uma boa garrafa de vinho e um pão inteiro, e diz: “Senhor, aqui está! Mas, como iremos saciá-lo, se está estendido ao solo qual morto?”

  3. Respondo: “Caro Roberto, um pouco de paciência; nossa presença o levantará dentro em breve! Tais enfermos costumam ser perigosos, por isto necessitam de maior precaução. Pelo que vejo, vinho e pão estão um tanto pesados. Que tal se Helena te ajudasse, pois te olha com tanta simpatia! Não achas que tua organização do- méstica se tornaria mais fácil a seu lado?”

  4. Roberto sorri encabulado e diz em seguida: “Seria indizivel- mente bom, se não fosse tão linda! Se Tu ma desses, Senhor, meu lar seria um verdadeiro Céu! Mas, ela é por demais maravilhosa e atraente!”

  5. Obtempero: “Sempre foste amigo do belo e útil, pois dizias: ‘Sem utilidade, o belo perde metade do seu valor — e vice-versa.’ Teu lema foi desde sempre o Meu Princípio de Ação, motivo pelo qual todas as Minhas Obras são não somente úteis, porém belas na mesma proporção. A utilidade corresponde ao Amor Eterno e Bondade; a beleza interpreta Minha Verdade e Sabedoria. Deste modo, não poderás possuir aqui, no Reino dos Céus, uma coisa sem outra. Quanto mais belo algo se apresenta, tanto maior sua utilidade!

  6. Helena é realmente linda; mas, ao mesmo tempo, um ser muito útil. Por isto, não receies sua beleza, pois não a teria se não possuísse grau idêntico de gentileza. Somente através dela tornar-

-te-ás um ser e anjo perfeito, e ela por ti, ainda mais bela, perfeita e

útil. Aceita-a como esposa verdadeira e celeste, que te proporcionará maior saber e felicidade. Estende-lhe tua destra e dá-lhe um abraço! O cumprimento desta Minha Vontade é vossa bênção eterna!”

  1. Atordoado de alegria, diz Roberto: “Ó Senhor, perdoa minha grande fraqueza; pois confesso jamais ter expressado ‘Tua Vontade Se faça’ com tanta satisfação! Deixa-me abraçar-te, Hele- na do meu coração! Aquilo que Jesus, nosso Pai, Jehovah, Zebaoth me proporcionou por mera Graça, também a ti foi concedido para sempre! Sejamos, pois, unos em tudo: no amor, na verdade e na ca- ridade, assim como o Próprio Pai, Santo e Querido!”

  2. Radiante de beleza celeste, Helena responde: “O Nome do Senhor seja louvado para sempre e Sua Vontade Se faça! De modo idêntico tuavontade será por mim respeitada, porque vejo não ali- mentares em teu coração outra senão a do Pai Celeste de todas as criaturas e anjos! Se teu coração fraquejar após grandes obras de amor, terá no meu conforto de sobejo! Assim também me auxiliarás quando manifestar qualquer desânimo! Serei, em Nome do Senhor, tua esposa celeste, vivendo e agindo contigo como se fôramos um só ser! Graça, Amor, Sabedoria, Ordem e Vontade do Pai sejam nossa Bênção eterna!”

  3. Excessivamente comovido, Roberto comprime Helena con- tra seu peito, dando-lhe três beijos na testa. Ela os retribui, em sua boca. Toma do pão e do vinho e diz: “Como esposa eterna, deixa-me ajudar-te. Basta organizares tudo em Nome do Pai; as ações ficam por minha conta, como teu braço direito!” Digo Eu: “Muito bem, Meus caros filhos! Sois abençoados e unidos, aumentando ao Infini- to vossa bem-aventurança!

  4. Nossa obra, porém, não está terminada; convém, pois, rei- niciá-la! De agora em diante, toda ação será levada a efeito mais fácil e rapidamente, por seres tu, caro Roberto, cidadão perfeito do Céu, assistindo-te não só poder orientador, pela verdade do Verbo, como força julgadora pela Vontade do Meu Amor, que aplicarás apenas quando a primeira não for suficiente. Ajoelha-te, pois, junto do en- fermo e sopra-lhe teu hálito para que se cure!”

CAPÍTULO 125

Despertar espiritual do monge. Monólogo como ato introspectivo. Cristo é a Aurora vital do náufrago

  1. Roberto curva-se e emite seu hálito sobre o padre, que pron- tamente começa a se mexer como quem desperta de sono profun- do. Quando, após algum tempo, consegue levantar-se, pergunta: “Quem soprou vida em minhas vísceras? Pois estava morto pelos inimigos!”

  2. (No mundo espiritual, todos os que são expulsos de uma casa permanecem como que mortos, pois a expulsão é idêntica à conde- nação ou morte violenta). “Onde estou? É noite e treva para onde dirijo o olhar; meus ouvidos também nada ouvem. Nem sei se sou aleijado, porque não sinto solo debaixo de mim. Oh, se ao menos percebesse um vislumbre de claridade!

  3. Fui padre na Terra e desempenhei meu serviço com todo o fervor. Naturalmente prendia-se, em geral, a interesses mundanos, e de fé não havia sombra. Entretanto, trabalhei disposto e conscien- temente. Mas, que prêmio horrível colho no Reino da morte! Ó Deus — se é que existes — por que era preciso eu me tornar um ser pensante, sendo levado por condições de vida incomuns sobrecar- regadas pela maldição? Quem quis que assim fosse? Que culpa tem uma criança por ter nascido cega? Onde está o ‘fatum’ inclemente que me fez viver, pois quero amaldiçoá-lo? Toda a minha vida foi uma maldição; eu mesmo sou a maldição personificada! Mas, não quero mais imprecar!”

  4. Digo a Roberto: “Sopra-lhe os ouvidos!” Ele assim faz e o monge diz, após alguns instantes: “Onde estarei eu? Ouço como que o murmúrio de grande rio, entrecortado de pios de pássaros! Hum, é realmente estranho! O sussurro se torna mais forte, bem como o chilrear das aves! Acaso me afogarei, para em seguida ser devorado pelos abutres? Por que abriste o ouvido do surdo? Para que ouça a voz da destruição? Mas, por que discuto? De que me adianta? Os homens na Terra fazem a leitura da condenação aos malfeitores antes

de matá-los! Que se faça também a minha a fim de ser morto pelo desespero!”

  1. Eis que digo a Roberto: “Sopra-lhe os olhos!” Ele obedece, enquanto o padre começa a esfregar os olhos, dizendo: “O que foi isto? Senti um sopro passar por cima de mim e percebo, através da penumbra, um solo firme sob meus pés! Eis a mesma casa de onde fui expulso pelos inimigos! Ao invés de água, ouço vozes de pessoas bem próximas de mim e o chilrear dos pássaros! Entretanto, não vejo ninguém! Agora volto a acreditar em Deus! O general, com razão, desprezou minha missa e falou certo quando classificou Deus melhor do que eu. Tal trabalho, tal prêmio! Se trabalhei mal, não posso aguardar outra recompensa! Fizeram bem ao me enxotar!”

  2. Digo a Roberto: “Sopra-lhe a boca e o peito!” Roberto o faz incontinenti e o padre diz: “Que brisa delicada bafejou a minha boca! Acaso foi o beijo de um anjo? Pois assim somente os anjos beijam! Percebi também uma vibração agradável transpassar meu peito no momento do beijo. É deveras estranho que essa luz me inunde, minhas mãos se tornem mais cheias e experimente uma sen- sação benéfica nos pés, como se uma nova força vital inundasse todo o meu ser!

  3. Até mesmo a região se torna mais clara; a casa em sua ma- ravilhosa arquitetura surge com maior nitidez! Como é imponen- te! Os três andares, munidos de arcadas, e os balcões debaixo das janelas! Que majestade! Tudo isto me parece um sonho! Já estive aqui anteriormente, guiado pelo general; mas não me recordo desse aspecto deslumbrante! Tinha vontade de entrar; mas certamente me expulsariam de novo! Prefiro permanecer aqui fora, admirando esta construção fenomenal que, pelo aumento de luz surgida do Leste, parece crescer e ficar mais possante!

  4. Somente não compreendo a sensação de conforto que sinto, como se aqui habitasse de há muito; no entanto, o local me é tão estranho como se nunca o tivesse visto! É semelhante à sensação que experimentava na Terra quando passeava pelas montanhas. Toda a paisagem transpira harmonia: os extensos jardins com seus prados,

a cordilheira que circunda a vila elevando-se em direção ao Leste e caindo em declive para Oeste e Norte!

  1. Bem próximo vejo agora um pavilhão imponente, de onde a vista deve ser mais deslumbrante! Sinto forças suficientes; por isto, avante! Mas, não! Ficarei aqui, pois o anfitrião poderia não apreci- á-lo! Renunciarei à curiosidade! À medida que tudo se torna mais claro, meu estômago começa a reclamar. Nunca poderia imaginar alguém sentir fome e sede no Reino dos espíritos! Não seria nada mal se tivesse um pedaço de pão e algo para beber!”

  2. Nessa altura, viro-Me para Roberto, dizendo: “Satisfaze-

-lhe o desejo!” Rápido, ele apanha pão e vinho das mãos de Hele- na, colocando-os nos joelhos do monge. Este se alegra sumamente, sem todavia perceber o doador. Pensativo, diz de si para si: “Graças a Deus! Deste modo o Além é suportável! Uma paisagem encan- tadora e algo para o estômago; em tal situação poderia viver uma eternidade!

  1. Tinha vontade de saber quem foi tão prestativo! Na certa, foram espíritos bons! Mas... por que não os vejo, se também sou espírito? Serei, certamente, muito ínfimo! Em todo caso, já tenho o que comer; o resto talvez ainda se fará! Deus abençoe este pão, pois só Ele merece Honra, Louvor e Prêmio!”

  2. Em seguida, parte um pedaço de pão, cujo sabor lhe parece extraordinário; por isto, ingere tudo, dizendo: “Que coisa fantástica! Agora, o vinho! O garrafão é de bom tamanho! Não importa, pois na Terra muitas vezes tomei ainda mais! Que cor maravilhosa, pa- rece ouro!”

  3. Leva o gargalo à boca e não descansa até que tenha tomado a última gota. Sua admiração quanto à boa qualidade é imensa e seu ânimo é de grande alegria e devoção. No final, só repete: “Graças a Deus!” Após certo tempo de êxtase, ele se levanta e diz: “Como me sinto fortalecido! Pão e vinho foram realmente celestes! Agora sinto-me vivo de novo e a morte parece me ter deixado para sempre! Quem sabe se a fábula do Cristo, que proporcionou a Ceia de pão e

vinho aos apóstolos, recomendando-a na conquista da Vida Eterna, não é de todo infundada, como presume o clero, em segredo?

  1. A Doutrina cristã, conservada pelos quatro Evangelhos até a nossa época, contém certos contrassensos não tão facilmente di- geridos como este pão e este vinho. Não obstante, apresenta fatos concludentes, que provam ser seu fundador — na hipótese de que tenha vivido — não homem comum, mas evidentemente um Deus. Esta vivificação que sinto prova ter o Cristo realmente vivido, bem como ser Filho de Deus.

  2. Talvez possa encontrar o Espírito do Cristo nesta zona espiritual tão maravilhosa! Meu Deus! Se tal fosse possível, pedir-

-Lhe-ia permissão para fazer uma visita indesejável ao Papa e a todos os cardeais, a fim de lhes demonstrar Quem é o Cristo e quem são eles! Talvez não tivesse grande efeito, pois já se encontram presos ao mundo! Meu prazer seria imenso se pudesse demonstrar a esses evidentes anticristos não ser Ele um mito como pensam, mas em verdade Aquele que disse de Si! Neste momento, percebo um cochi- cho a meu lado e a luz se torna mais intensa! Calar-me-ei para poder ouvir melhor!”

CAPÍTULO 126

O monge ouve a Doutrina de Jesus, o Crucificado.

O espiritualmente cego adquire a visão e reconhece o Senhor e Sua Graça Infinita

  1. Prestando atenção ao murmúrio, o monge ouve nitidamente as palavras: “Jesus, o Crucificado, é Deus Único sobre todos os Céus e sobre tudo que preenche o Infinito. É Criador de todas as coisas, anjos, criaturas, animais, flora e matéria. Pelo Seu Amor Eterno é o Pai; através de Sua Sabedoria, o Filho; e dentro de Sua Força, Poder e Ação, o Espírito Santo.

  2. Dirige teu coração a Jesus, em verdade e fielmente, ama-O

ti e por todas as criaturas a natureza humana, suportando a morte mais atroz para proporcionar-vos a Vida Eterna.

  1. A existência eterna e mais feliz foi somente possibilitada por Ele e dada a todas as criaturas como tesouro infinito. Nada mais é preciso do que pedir esta dádiva abençoada e imensa, e aceitá-la com gratidão — e o homem será feliz para sempre na companhia de Deus, qual outro deus.

  2. Deus, nosso Pai Jesus, é o Puro Amor que a ninguém julga, pois deseja fazer a todos felizes. Apenas é preciso ao homem querer o que é da Vontade do Amor Puro de Deus, do contrário não poderá ser feliz. O Pai não impõe obrigação, mormente aqui, no mundo dos espíritos, razão por que cada um recebe aquilo que deseja. Rece- berás, portanto, o que quiseres!

  3. Não existe, porém, vida e felicidade a não ser no puro Amor Divino. Quem tiver assimilado esse Santo Amor viverá eterna- mente feliz!”

  4. O monge, sobremaneira admirado, diz consigo mesmo: “Es- tranho esse ensinamento novo a respeito de Deus, por não se tratar de três personagens isolados! Na Terra isto representaria a máxima here- sia, divergindo da crença católica; acho-a, no entanto, muito natural e mais verdadeira do que a romana! O que muito me admira é não ter o espírito que me falou tão sabiamente vindo do éter, feito menção a Maria Santíssima e outros santos, recomendando que lhes pedisse auxílio. O desconhecido que me proporcionou pão e vinho deve tam- bém ser o autor de tal ensinamento; seja como for, aceitá-lo-ei!

  5. Se o próprio diabo se compenetrasse daquela explicação, che- garia à felicidade. Assim sendo, regozijai-vos cardeais, e tu, Papa! Implorarei a Jesus permissão para poder vos influenciar, pois o es- pírito afirmou que se consegue tudo dentro da própria vontade! E eu quero perseguir a cúria romana e acender-lhe uma luz que a fará estremecer! Agora, basta! Urge dirigir-me a Jesus, o Senhor! Todo o resto terá seu prosseguimento neste aconchego!”

  6. Eis que digo a Roberto: “Toca-lhe os olhos!” — e pronta- mente o padre percebe, admirado, a falange de espíritos felizes junto

a Mim, mas sem reconhecer alguém. Fita ora um, ora outro, e se comporta qual bêbado. Após certo tempo, chega à consciência ple- na e pergunta, acanhado, a Roberto: “Amigo celeste, dize-me onde estou; e se não for ousadia, peço-te esclareceres com quem tenho a honra e a graça de falar!”

  1. Diz Roberto: “Encontras-te em minha esfera e base celestes, e esta casa, que se apresenta tão imponente e maravilhosa, é minha residência. Sou o espírito feliz de Roberto Blum, que bem conhecias na Terra, e esta bela criatura a meu lado é minha esposa eterna, dada por Deus! Fala, que impressão tens disto tudo e qual é teu desejo?”

  2. O monge, meneando a cabeça, diz: “Tu — Roberto Blum? No Céu? O maior herege, no Céu? Isto não é possível! E este palá- cio, tua morada? Acaso há dessas coisas no Céu? Ele consiste apenas de nuvens, onde os habitantes celestes flutuam quais anjos, vendo Deus face a face, exclamando constantemente: ‘Santo, Santo, Santo é o Senhor, Deus, Zebaoth! Céus e Terra são plenos de Sua Glória! A Honra seja de Deus, do Pai e do Filho, para todos os tempos, amém!’ Aqui, não há sombra disto — como pode ser o Céu? Será talvez um céu neocatólico, permitido pela Graça Divina, por certo, até o Dia Final, a fim de vos recompensar pelo bem praticado em vida. Após tal dia, este céu se desvanecerá, transformando-se em inferno! Permita Deus que eu me engane! Pois esta casa, que dizes ser tua, certamente foi construída sobre areia movediça e não em cima de rocha; e quando as tempestades do Dia do Juízo se atirarem contra suas paredes, ruirá como simples poeira! Tudo isto me parece falso! Dize-me onde está Deus, o Senhor, com todos os Seus anjos e os demais santos?”

  3. Diz Roberto: “Vira-te à direita que verás a teu lado, Deus, o Senhor Jesus; atrás Dele os apóstolos e em seguida os patriarcas, desde Adão!”

  4. O monge se vira com timidez e reconhece em Mim Jesus, o Crucificado, e os apóstolos com seus distintivos na roupagem. Ime- diatamente ele cai de joelhos e diz: “Senhor, Deus, se fores Aquele que aparentas, sê Misericordioso comigo, pobre pecador!”

  1. Digo Eu: “Tomás, levanta-te, vê e vive! Sou o Alfa e o Ôme- ga, o Primeiro e o Último! Por que duvidas de Mim e da realidade deste Meu Céu?”

  2. Responde Tomás: “Ó Senhor, perguntas como se fosse pos- sível eu Te dizer algo que ignorasses! Perscruta o meu coração, onde encontrarás os traços originais que Tua Destra Onipotente nele gra- vou. Traduzem eles Tua Grandiosidade, Majestade e Sublimidade Eternas, únicos meios que me possibilitaram sentir-Te, razão por que não conseguia imaginar-Te de outra forma. Toda e qualquer interpretação mesquinha, tão comum na Igreja Católica, nunca teve eco em meu coração. Foi o motivo pelo qual jamais consegui aceitar a fé na Divindade de Jesus, o Ungido, conquanto não duvidasse de sua possibilidade. Naturalmente seria preciso que Ela Se manifes- tasse mais patente, mais ou menos como na época dos apóstolos. Mas isto nunca se deu, por motivos provindos da Sabedoria Divina. Cristo, ou seja, o Seu Espírito, sempre permitiu que a Igreja Roma- na fizesse Dele o que lhe agradasse: especulações que até mesmo o paganismo mais remoto jamais sonhou!

  3. Qual seria o espírito de inspiração reduzida, porém conhe- cedor da teologia católica, que admitisse como divino tal ensina- mento? Eu mesmo fiz de hóstias milhares de Cristos, que matei em seguida, comendo-os na maior parte! Que pensar de uma crença inculcada sob tais fundamentos? Quantas vezes pensei, após ter cele- brado a missa e em seguida me dirigindo à Natureza: Quer dizer que Aquele que hoje cedo preparaste pela consagração numa hóstia de amido, elevando-a a Deus para depois comê-Lo quase vivo, teria fei- to tudo isto? — Ó Senhor, tal era demais para um homem honesto! Se bem que desempenhasse o ofício religioso diante dos incautos de modo correto, jamais acreditei naqueles símbolos, porque os traços em meu coração e no Universo inteiro me ensinavam coisa diversa.

  4. Por tal motivo, permitindo certas tolices e aberrações — sem jamais transmitires revelação contrária — o Cristo Verdadeiro caiu em descrédito! Agora creio em Tua Divindade Irrefutável, por seres tal qual caminhaste e agiste na Terra entre os mortais! Eis o

que vejo nitidamente escrito em meu coração; é minha vida, porque o considero algo puramente divino dentro de mim! Assim expus, como pecador, em palavras simples, apenas aquilo que já deve ser de Teu Conhecimento. Que se faça Tua Vontade Santa!”

  1. Digo Eu: “Meu caro Tomás, o que falaste está certo; entre- tanto, Me fazes injustiça com a acusação de jamais ter transmitido à Igreja Católica uma revelação contrária! Observa os que se afastaram da Igreja Romana: são poderosas revelações contra ela! Além disto, basta considerares a enorme disseminação do Verbo Puro através da Imprensa em todos os idiomas! Pouco efeito teve até hoje, porque ainda não quis condenar o dragão, por causa de Meu Amor! Além do mais, vê os profetas recentes, por Mim inspirados em todas as épocas, causando igualmente forte impressão, sem contudo produ- zirem frutos; mais uma vez não julguei o dragão, por Amor! Não só isto! Lembra-te das inúmeras humilhações que fiz aplicar, de todos os lados, à Igreja Católica; mas nada conseguiram, porque não quis condenar o dragão, também por causa de Meu Amor!

  2. A partir de agora, as condições da Igreja terão outro aspec- to! Seu poderio mundano será fortemente abalado e permitida livre manifestação contra ela, por todos os lados. Se tal fato não for por ela considerado, o ‘dragão’ será levado à condenação, em virtude de Minha Paciência por demais vilipendiada. Assim sendo, penso estares orientado quanto à Igreja Católica e à suposta indiferença de Minha parte. Junta-te a Mim e nos acompanha a casa, onde nos aguarda uma ceia!”

  3. Responde Tomás: “Ó Senhor, Eterno Salvador de todas as almas e espíritos enfermos, jamais terei mérito para compartilhar de uma ceia que preparaste Pessoalmente para os Teus servos mais dig- nos! Seria uma Graça imerecida para mim, que sou grande pecador diante de Ti, pelos atos condenáveis praticados na Terra contra Ti e Teus irmãos! Irei até lá, sem contudo tomar parte, pois facilmente poderia ter a mesma sorte de Judas Iscariotes!”

CAPÍTULO 127

Gratidão excessiva por parte do monge.

A simplicidade do amor

  1. Digo Eu: “Meu caro Tomás, és ainda um tolo! Nunca mandei Judas usar da mesma louça que Eu, pois sabia que isso serviria para sua condenação, por ser indigno de compartilhar Comigo do Pão da Vida! Se és por Mim convidado, é porque não encontrei indignida- de em teu íntimo; portanto, podes fazer sem receio o que exijo aqui. Além disto, termina para sempre qualquer consideração jurídica no Reino espiritual, posto que toda ação traz sua consequência inevi- tável. Desnecessário torna-se, pois, o julgamento, por ser cada espí- rito seu próprio juiz. Futuramente não precisarás temer influências estranhas, pois tudo será apenas emanação de tua própria vontade, único móvel para tanto.

  2. Vem e deixa os escrúpulos de lado, pois é de se esperar não teres praticado ações que te levassem ao sofrimento. Se, por acaso, sentires fome e sede, terás vontade de saciá-las. Se não queres satisfa- zer tais desejos, terás de suportar os seus efeitos. Acaso terias vontade de entrar numa fornalha? Certo que não, pois tal ação produziria dor tremenda. Tampouco tomarias de um açoite para vergastar teu corpo, ciente de que tal atitude te faria sofrer.

  3. Aquilo que deixares de fazer a ti mesmo também não aplica- rás a teu próximo por causa do amor em teu coração, sabedor de que todo o teu sofrimento também o é dos irmãos; isto porque a ordem no Reino dos espíritos é desde eternidades de tal forma constituída, que todas as ações, boas ou más, praticadas a outrem, retornam ao autor com a mesma violência, fato comum até mesmo na matéria.

  4. Por esses exemplos, saberás das condições daqui; assim, não verás crime ao fazeres aquilo que será em teu maior benefício! Sou Onipotente e poderia obrigar-te a caminhar para onde Eu quisesse! Não te impondo o Bem através de Minha Onipotência e sim pelo ensino compreensivo — pelo qual teu coração, intelecto e vonta- de apenas se fortificam, nunca podendo enfraquecer-se — muito

menos seria capaz de levar-te a algo nocivo através de Meu Poder! Compreenderás, portanto, não haver fator mais respeitado por Mim do que a vontade inteiramente livre do homem. Podes arriscar-te a fazer espontaneamente o que exijo como Deus, Criador e Pai, pleno de Amor, sem tolher tua vontade no que quer que seja!”

  1. Diz Tomás: “Pai Santíssimo e Amoroso! Não há mais em- pecilho em meu coração, que Te ama acima de tudo! Tua Vontade será para mim a Lei mais sagrada! Quão maravilhosa, meiga e sábia é Ela! Qual seria o coração capaz de se Lhe opor? Como sou feliz em poder Te acompanhar! Ó lar abençoado, onde Deus penetra! Quem estaria apto para louvar a grande Ceia no Lar Celeste, preparada pelo Próprio Senhor para todos aqueles que Seu Coração Paternal esco- lheu para Seus filhos, e Sua Sabedoria para Seus servos? Meus caros irmãos, aqui reunidos em tão grande número, dizei-o em alta voz, para que o Infinito estremeça de veneração! Senti-o em sua profun- deza, que Este nosso Guia e Doutrinador é Deus Mesmo! Estamos com Ele, o Grande Criador da Eternidade e do Infinito, como o Pai! Sentis realmente Quem nos conduz a Sua Casa?”

  2. Digo Eu, enquanto caminhamos para lá: “Muito bem, Meu filho Tomás! Alegra-Me por permitires desabrocharem em teu co- ração sentimentos dignos de Meu Amor, semelhantes aos pensa- mentos flamejantes dos querubins e serafins, portadores de Minha Vontade. Muito embora sejam muito sublimes e sua grandiosidade escapando a muitos espíritos, prefiro que Meus Filhos Me chamem de ‘Pai’, e Meus amigos de ‘Caro Irmão’, do que os anjos em louvor Me cantem hinos de sabedoria profunda até caírem exaustos, quan- do chegarem à conclusão de que seus pensamentos mais sublimes e flamejantes não os tornaram capazes de tocar a orla de Minha Veste; enquanto Meus filhinhos podem brincar com Meu Coração e Meus Pensamentos, morar Comigo e saborear à Minha Mesa o Pão da Verdadeira Vida!

  3. Os que cantam Minha Imensidade, Poder e Força e louvam o Deus eternamente Infinito acham-se fora de Mim e Me contem- plam da maneira como na Terra fitavas o Céu estrelado, elogiando-o

com todo respeito sem saber o que realmente é! Aqueles que dizem: Querido Pai! Divino Irmão! — encontram-se junto e até mesmo dentro de Mim! Cantam e louvam como verdadeiros filhos o seu Pai Real e consideram Minha Grandeza, Poder e Força não de uma certa distância, da qual nos separa um grande abismo — mas estão mesmo nas estrelas junto do Pai, em pleno gozo da realidade sagrada e jamais sonhada pelos salmistas!

  1. Percebes a grande diferença? Assim sendo, também já és mais feliz do que anteriormente. Dentro em breve verás e gozarás a Meu lado as Obras colossais cheias de milagres. Se então perguntasses: Quem realmente chegou a sentir o que seja Deus? — Meus filhi- nhos zombariam de ti, dizendo: Como és fraco e infantil, irmão Tomás! Que tolice estás proferindo? Quem seria capaz de sentir até o âmago a Entidade Divina? Como poderia o finito captar o Infinito? Isto tudo é fantasia! Deus é nosso Pai; amamo-Lo acima de tudo, Ele está conosco, guiando-nos e percebemos como é infinitamente Bom e Amoroso! Isto vale mais do que pretender analisá-Lo tola- mente! O que teria mais mérito: aprofundarmo-nos em conjecturas elevadas, sem perceber a necessidade do próximo, ou entregar os pensamentos sublimes ao Pai Santo, tornando-nos úteis aos pobres irmãos? Deixemos a grandiosidade entregue aos grandes; como pe- queninos continuaremos no amor, sem nos elevarmos às esferas que não nos cabem!

  2. Deste modo, caro Tomás, todos esses irmãos falariam conti- go e serias obrigado a lhes dar razão! Fiquemos juntos, pois para se ver o Céu, não é preciso ter-se olhos do mesmo tamanho! Compre- endes? Agora vamos à ceia, pois já nos encontramos no grande salão onde se acham as mesas.”

CAPÍTULO 128

Tomás no Salão Celeste. Seu pedido a favor de seus oponentes. Sua primeira tarefa, em companhia de Dismas

    1. O monge se admira por se achar com todos os demais hóspe- des no grande refeitório e diante de mesa bem posta, em forma de cruz. Contendo sua estupefação, ele diz: “Senhor, querido Pai! Que grandiosidade e deslumbramento enfeitam o refeitório! Nele caberia a população de todo o orbe! Essas fileiras de colunas, cujo fim não se percebe, são realmente celestes! A ornamentação com brilho de um Sol que enfeita a cúpula majestosa e as galerias! As janelas formando iluminação multicolorida e o solo de ouro maciço fazem estremecer de veneração todas as minhas fibras! Quem seria o construtor? Inda- go qual tolo, pois Tu és o Mestre Eterno de todas as obras, Constru- tor único de edificações maravilhosas! Nem em eternidades o mais fulgente querubim, criado por Tua Sabedoria, poderia louvar-Te e amar-Te condignamente; muito menos eu, verme do pó! Este aspec- to extasiante ultrapassa a fantasia do mais sublime arcanjo!

    2. Em épocas remotas, houve um sábio que exclamou, como- vido, diante de Tua Bondade sem fim: Pai, para de transmitir Tua Bênção! Ao castigares um filho, empregas a medida certa; nem bem melhora, Tua Bênção não termina! — Tinha vontade de dizer o mesmo, pois tanta Grandiosidade, Misericórdia, Amor, Meiguice e Dedicação são demais para um espírito fraco!”

    3. Digo Eu: “Está bem, está bem, Meu caro Tomás! Não fa- ças tanto alarde! Acaso é algo de grandioso Eu mandar fazer uma habitação na medida do coração daquele a quem foi dada? Tudo isto corresponde ao coração de nosso amigo Roberto, tão infeliz na Terra, e não representa nem de longe a suntuosidade de seu interior! No futuro verás coisas ainda mais extraordinárias, quando poderás dar vazão à tua fantasia. Agora sentemo-nos todos à mesa!”

    4. Tomás, lançando um olhar furtivo à primeira sala, cuja porta está aberta, diz: “Ó Senhor, Pai Amoroso e Santo! Vê só que miséria! Quantas almas infelizes! Não seria possível socorrê-las igualmente?

São quase todas melhores do que eu, motivo pelo qual me expul- saram como elemento pernicioso, mas já lhes perdoei de coração. Perdoa-lhes também Tu e permite compartilharem desta ceia farta!”

    1. Digo Eu: “Meu caríssimo Tomás, se começares a abordar-

-Me com tais assuntos de teu coração, em breve terás de pedir: Pai, para de espargir Tuas Bênçãos! — pois, com este teu desejo íntimo, apagaste de um só golpe as tuas dívidas diante de Mim. Receberás, por isto, uma vestimenta fulgurante e o chapéu da sabedoria, lumi- noso qual Sol!

    1. Roberto, em direção ao zênite vês um novo e grande armá- rio de ouro puro! Apanha uma veste e um chapéu; representam a indumentária genuína daqueles que equilibram sabedoria e amor dentro de si!”

    2. Solícito, Roberto traz uma veste ainda mais fulgurante do que a de Helena, e um chapéu redondo, de formato cardinalício, emitindo forte luz, para admiração de todos. Avistando sua nova indumentária, Tomás exclama, trêmulo de alegria: “Pai, querido Pai! Isto deve cobrir um ser pecaminoso? Meu Deus, Jesus querido! Não, não, isto é demais!”

    3. Digo Eu: “Claro que deves vestir-te assim, em virtude de teu coração que muito Me agrada! Anda depressa, pois temos outras tarefas a resolver!” Ele apanha veste e chapéu, que lhe caem tão bem como se tivessem sido feitos sob medida, causando grande pasmo.

    4. Eis que lhe digo: “Meu irmão, estás perfeito e saciado com Minha Graça, Amor e Sabedoria! A ceia está preparada e não care- cemos de hóspedes dignos. Mas, como observaste há pouco, encon- tram-se na antessala cerca de três mil espíritos, ainda muito pobres, sob a proteção de um militar, teu conhecido. Tem coração bom e compreensivo, e sua palavra é de grande efeito entre seus protegi- dos. Vai em companhia de Dismas, amigo do General em Viena, e procura conquistá-lo para Mim, dentro de sua livre vontade, e atra- vés dele, todos os outros. Tão logo tiveres concluído esta primeira missão no Reino da Vida Real, receberás maior incumbência; pois te digo que no Meu Reino existem ofícios e empregos importantes

e variados. Vai ligeiro, que Dismas te será um auxiliar muito útil!” Responde Tomás: “Ó Pai, Bondoso e Santo! Como Te preocupas com a ovelha e o talento perdidos, qual não será Tua Dedicação para com o filho extraviado? Honra, Amor e Adoração Eternos serão para sempre Teus!”

CAPÍTULO 129

Tomás e Dismas em missão. Esclarecimento quanto à Pessoa de Jesus e o caminho da salvação. O Senhor no limiar da Sala da Vida

      1. Após tais palavras, Tomás pega Dismas pela mão, dirigin- do-se ambos à antessala onde se encontra o general. Este fica bo- quiaberto quando depara com o monge em sua veste luminosa e com expressão tão simpática. Imediatamente estende-lhe as mãos e diz: “Sede bem-vindos, caros amigos! Que sucedeu contigo, Tomás? Quando a multidão te expulsou de nosso meio, em virtude do fra- cassado ‘Pai Nosso’, a planejada missa e outras coisas não merece- doras de menção, eras negro qual africano, e agora, luminoso qual sol! Como se deu isto? Acaso foi o efeito da missa em latim? Por acaso encontraste a Divindade? Dize-me qual foi o caminho que te proporcionou tamanha glória!”

      2. Responde Tomás: “Prezado amigo! Se prometeres crer naqui- lo que te disser, como também toda esta multidão, encontrareis o mesmo solo que eu e nosso amigo Dismas ora pisamos!”

      3. Diz o general: “Percebo, pela vossa irradiação, estardes no solo da verdade; pois a mentira não irradia luz, por ser oca e fútil. Por isto, acreditarei em tudo que me relatares; apressai-vos, porém, que anseio por vos ouvir!”

      4. Prossegue Tomás: “Ouve, pois! Jesus, o Crucificado, é não somente o Filho de Deus Onipotente e Vivo, mas sim Ele Mesmo, em toda Plenitude da Força e do Poder Originais! Só Nele e por Ele se encontra a salvação e a Vida Eterna! Dirige-te a Ele com todos aqueles que te acompanham, e sereis socorridos no mesmo instan-

te! Ajudou-me e a este irmão, sem considerar nossas ações, por ser infinitamente Bom e Misericordioso. Dá a cada um o que deseja seu coração. Quem estiver de boa vontade receberá certamente o Bem. Com isto, já sabes de tudo e farás o que quiseres! Tua própria vontade será teu juiz!”

      1. Diz o general: “Que dizes a isto, Dismas?” — Responde este: “Concordo com Tomás, é a plena verdade!” Aduz o general: “Duas testemunhas como vós me bastam! Deixai-me, porém, dirigir algu- mas palavras à multidão!” Virando-se para os outros, ele prossegue: “Prestai atenção ao que vos transmito! Desde nossa vinda sentistes, tanto quanto eu, o desespero que se apossou de nós. Chamamos por socorro, mas ninguém se apresentou. Lastimamo-nos e choramos, e não houve consolador que nos abordasse. Procuramos, e nada en- contramos. Até mesmo praguejamos, sem que um abismo nos tra- gasse. Finalmente, começamos a orar da melhor maneira possível, pois nunca o aprendemos. Mas nem isto foi levado em conta. Em suma, restou apenas o desespero! Procurei consolar-vos dentro de minhas possibilidades; mas de nada adiantou, pois o consolador era mais infeliz do que vós!

      2. Na iminência de perder toda a coragem e esperança, eis que a Divindade — por nós de há muito banida — nos enviou dois salvadores, bem conhecidos! Transmitiram-nos a salvação próxima pela simples aceitação da Divindade de Jesus, o Crucificado! O que nos impede de aceitar o que nos revelam tais amigos, se com Deus nada perdemos? Sofrimento maior do que o nosso não é possível! Na aceitação plena temos uma esperança segura da melhoria de nosso destino! Refleti no que vos digo e agi de acordo! Não levaremos prejuízo! O monge por nós expulso efetua tal ato de amizade. Será o menos indicado a mentir, tendo por longo tempo compartilhado de nossa má sorte, sentindo, em sua felicidade atual, compaixão para conosco. Por isto, Jesus Cristo é o prêmio para nossos corações! Se não nos ajudar, estaremos perdidos!”

      3. Toda a multidão exclama em uníssono: “Compartilhamos de tua opinião, general! Que seja Jesus Cristo nosso Salvador!”

      1. Diz o general a Tomás: “Amigo, perdoa se passo a te tratar como irmão e não qual militar, pois aqui terminam todas as hon- rarias do mundo. Viste quão rapidamente esta multidão aderiu a Jesus, de modo completo? Que mais nos falta para nos tornarmos dignos de Jesus, o Senhor?”

      2. Responde Tomás: “Consta que quem crê no Filho de Deus, sem duvidar ser Ele Próprio Deus que transmite a Vida Eterna, será feliz! Todos vós acreditais, por isto sereis bem-aventurados através de Sua Graça! O que vos falta é precisamente o amor a Ele! Abri-Lhe vosso coração! Deixai que arda por amor a Ele, e eu vos afirmo, se for preciso, mil vezes: Ele virá ao vosso encontro para vos receber e vos guiar! Sua Bondade, Amor e Misericórdia são Infinitos!”

      3. Diz o general: “Amigo, nossas palavras soam rudes e secas; no entanto, emanam de corações verdadeiramente honestos. Asse- guro-te possuírem eles mais fervor para com a Pessoa do Cristo que muitos cristãos, maneirosos nas expressões, sem todavia a mesma sinceridade. Nossa educação não é aprimorada, falamos apenas o que sentimos. Isto, penso, não será do desagrado do Senhor. Por isto, afirmo: nosso amor para com Jesus não será menos forte do que nossa fé na Sua Pessoa! Que mais necessitamos?”

      4. Responde Dismas: “Nada! Transmite à grande massa que abra os olhos para a porta que dá para a Sala da Vida. Lá Ele Se encontra, de Braços abertos para receber-vos no grande Reino da Graça e Misericórdia!”

      5. O general se vira rápido para aquela porta, onde Me vê e prontamente Me reconhece. Comovido até as lágrimas, exclama, qual soldado: “Venerabilíssimo Senhor sobre Céus e Terra! Com que simplicidade Te aproximas dos miseráveis! — Irmãos, erguei vossos olhos e vede o Senhor, Jesus, que morreu por nós na Cruz! O maior herói, que ressurgiu no terceiro dia após a morte, em Pleno Poder, como Vencedor de todos! Ajoelhai-vos e adorai-O! Em segui- da, dizei: Santo Pai, que vens do Céu para junto de nós, pecadores, louvado e santificado seja o Teu Nome! Perdoa os nossos pecados e não nos castigues pelas más ações, mas proporciona-nos Tua Graça à

medida de Tua Misericórdia, ao invés da condenação! A Ti, Senhor, todo o nosso amor, honra e glória!”

CAPÍTULO 130

A grande multidão diante do Senhor. O General Teobaldo dirige-se a Deus. O segredo da vida terrena é explicado

  1. A essas palavras do general, todos dirigem o olhar à grande porta da sala e, ao ver-Me, caem de joelhos, orando e louvando-Me à medida de sua completa ausência de educação psíquica, pois suas almas servem de morada a espíritos incorruptos, denunciando neste estado maior manifestação de sentimentos do que intelectuais. Dei- xo-os por algum tempo em tal elevação espiritual, a fim de recobra- rem seu equilíbrio.

  2. Entrementes chamo o general, que procura desculpar-se de sua indignidade para poder se aproximar de Mim. Indico-lhe, en- tão, o caso de Zaqueu, no Evangelho, grande pecador, mas cujo lar visitei para compartilhar de sua mesa. Encorajado, o general se dirige a Mim, dizendo: “Senhor, perdoa-me e aos outros o grande atrevimento de fitarmos a Santidade de Teu Semblante; mas, que culpa nos cabe por ser nossa posição diante de Ti, o Criador, tão ín- fima? Consiste em felicidade inacreditável que uma criatura surgida na Terra, aparentemente apenas para a instabilidade, possa, após a morte, alcançar a ventura de Te fitar — fato que jamais admiti. Que mais poderia desejar? Que êxtase sublime inunda o meu ser por con- seguir ver-Te e ouvir a Voz Poderosa de Deus!

  3. Quantas vezes indaguei em vida: Será que Deus existe? E, se assim for, onde está e qual Seu Aspecto? Será Jesus, o doutrinador dos judeus, aquilo que a lenda afirma? Um homem como nós, pode- ria ser Deus? O Ser Supremo que preencheu o Infinito com miríades de seres de toda espécie, que fornece luz ao Sol, contém os mares em seus leitos, ordena aos elementos e determina a órbita longínqua das estrelas? — Jamais minha alma recebeu resposta satisfatória a perguntas tão importantes, cujo eco se desvaneceu no éter. O Céu

continuava fechado e o mortal em vão perguntava pelo Pai Eterno. Somente os próprios mortais procuravam facultar-me outra com- preensão da Divindade, contando-me Teus Milagres, que soavam quais contos de fada. Eram fracos para dar ao meu espírito pesqui- sador aquilo que almejava! Em suma — procurei, sem nada achar! Perguntei e não recebi resposta. Bati em muitas portas; mas não havia quem dissesse: Entra, amigo, aqui encontrarás o que almejas!

  1. Deste modo, perdi toda a fé em Deus! Tudo se tornou apenas obra do acaso pelas forças mudas da Natureza. Tal conceito atirou-

-me no turbilhão dos acontecimentos do mundo, onde encontrei a morte, que me abriu inesperadamente a porta para esta vida. Aqui estou e percebo outra existência, e também Te vejo, Doador de mi- nha vida! Que imensa felicidade! Terminaram as perguntas sem fim, pois Tu és a Resposta! Gratidão eterna, Senhor, por teres Te lembra- do do verme no pó!”

  1. Digo Eu: “Meu caro Teobaldo! As relações da vida terrena são diferentes das deste mundo espiritual e eternamente imutável. Entretanto, têm de ser assim, para fazerem surgir esta existência verdadeira e perfeita! Se bem que toda pessoa encarnada esteja des- tinada a abrir caminho já na Terra, pela fiel observação do Meu Verbo contido nos quatro Evangelhos, a fim de assegurar-se desta vida perfeita, acontece não raro, em virtude do livre arbítrio que lhe dá o direito de se tornar espírito livre, deixarem as criaturas abafar seus ouvidos pela voz tentadora do mundo e ofuscar seus olhos pelo brilho traiçoeiro do ouro.

  2. Assim sendo, tais criaturas dificilmente, ou mesmo nunca, conseguem no mundo aquilo que lhes foi prescrito; mas integram-se precisamente no que não deveriam, isto é: amor-próprio, egoísmo, domínio, avareza, cobiça, inveja, intemperança, volúpia, impudicí- cia e adultério! Tais tendências destroem a vida ao invés de aumen- tá-la, de sorte a acontecer, após o desprendimento, o que te suce- deu e a teu grupo. Por tal motivo, devem ficar em completa miséria para que sua existência, neste isolamento estéril, se possa concatenar novamente. Isto alcançado — como se deu convosco — o socorro

necessário se apresenta, porém não coagido, mas à medida do desejo individual.

  1. Por isto Meu mensageiro Tomás te disse ser unicamente a tua vontade o juiz e doador daquilo que desejas, de bom ou de nocivo. Teu pedido dirigiu-se ao Bem, isto é, a Mim — e eis diante de ti o que teu coração queria verdadeira e sinceramente! A partir de agora ser-te-á transmitida Minha Vontade. Tão logo a adotares como sen- do a tua própria, viverás uma existência plenamente feliz! Transmite isto à multidão!”

  2. O general o faz, incontinenti, e todos o aceitam e se subme- tem às suas exigências. Em seguida ele volta para junto de Mim, dizendo: “Senhor, Pai, Jesus, Deus Eterno! Fez-se o que exigiste de todos e pedimos que expresses Tua Vontade; pois Te asseguramos que cumpriremos tudo, sem omitir uma vírgula!”

  3. Digo Eu: “Muito bem, alegra-Me ouvir isto de modo positi- vo por parte de todos! Entretanto, convém analisardes se sois capazes de receber tudo que quero em vossos corações, para mais tarde con- cordardes em sua execução!”

  4. Obtempera o general: “Senhor, quem, melhor do que Tu, poderia saber das inclinações de cada um? Por isto, entregamos-Te tudo, pois certamente não nos darás a carregar além de nossas for- ças. Nada mais cogitaremos do que o merecimento de podermos receber Tua Santa Vontade em nossos corações ainda impuros. De modo algum desejamos pôr nossas mãos pecaminosas, qual Judas, no Santuário Imenso de Tua Vontade Viva, buscando com facilidade a morte eterna. Presumo necessitarmos primeiro de uma purificação completa, antes de ouvirmos a Tua Determinação!”

  5. Aduzo: “Meus caros filhos! Confesso serdes bem mais pru- dentes do que os filhos da luz, muito embora sejais, quase todos, filhos do mundo! Conseguistes atingir o alvo, poupando-vos assim muita coisa, que de outra forma seria imprescindível. Possuidores de corações tão prudentes e deixando germinar em vossa alma tanto amor e confiança em Mim, ser-vos-ão remidas muitas faltas! Ale- grai-vos, contudo, por não terdes sido ditadores na Terra, pois estes

Me avistarão de modo diverso! Levantai-vos e ouvi o que tenho a vos dizer.

  1. O mais importante dentre vós deve ser vosso servo, e o amor recíproco e verdadeiro, vossa lei comum! Tomás e Dismas serão vos- sos professores, cujas palavras deveis considerar como sendo Minhas, e pela aplicação vos capacitareis a ingressar no Meu Reino! Amai-os como vossos amigos e irmãos mais íntimos; pois foi-lhes conferido, por Mim, conduzir-vos ao Caminho Verdadeiro do Reino da Vida Eterna! Além disto, vos suprirão de tudo que ora necessitais!”

CAPÍTULO 131

A grande Ceia. O general e seu amigo discutem acerca dos milagres Divinos. Tomás agradece pela cura. O inferno terráqueo

  1. Após tais palavras, chego à porta, ordenando a Roberto en- tregar, com o auxílio das antigas dançarinas, quantidade suficiente de pão e vinho aos dois doutrinadores, Tomás e Dismas, competin- do-lhes a distribuição entre os novos hóspedes. Ao receberem estes tal conforto, ouve-se de todos os lados apenas exclamações de grati- dão e louvor. A um aceno Meu, os dois amigos retornam à segunda sala, onde já nos encontramos ceando.

  2. Entrementes, os outros não cessam de admirar a presteza com que todos foram servidos, e um amigo do general se expressa da seguinte maneira: “Meu caro, que impressão tem o senhor — quero dizer, tens tu, porque aqui somos todos iguais — do fato de que nós, por certo ultrapassando o número de três mil, podíamos ser supridos tão rapidamente? Quando vi o afamado Roberto Blum com algumas dúzias de formidáveis garotas, trazendo umas poucas garrafas de vinho e alguns pães, pensei (mormente pelo fato de os dois amigos efetuarem sozinhos a partilha): Bem, quando tiverem concluído a distribuição (matemática), os primeiros já sentirão no- vamente fome e sede! — Mas, qual nada! Como por um toque má- gico, cada um da multidão tinha seu cálice cheio de vinho e um

considerável pedaço de pão em mãos! E da provisão nada sobrou! Como seria possível tal fato?”

  1. Responde o militar: “Caro amigo Johann von Kernbeiss — para usar o teu nome terreno — indagas demais! Basta imaginares Sabedoria e Onipotência Divinas para compreenderes tudo! Acaso compreendias tudo que viste e passaste na Terra? Quem te propor- cionava a respiração? Quem fazia com que o teu coração batesse? Quem fermentava os alimentos em teu estômago? Quem te fazia crescer? Qual foi o Mestre que construiu teus olhos e ouvidos, e quais foram os meios que usou para tanto? Tais aparições milagrosas se nos depararam em vida aos milhares; mas, habituados a elas desde a infância, não nos causavam impressão.

  2. Aqui, isentos da matéria incômoda, e nossa capacidade pen- sante podendo exercer livremente sua função, tudo isto nos extasia à medida que formos capazes de perceber o realmente milagroso de modo rápido. Quebrarmos a cabeça para assimilar matematicamen- te a possibilidade de tais coisas seria tolice! Se for necessário para nossa salvação, nossos professores nos esclarecerão; do contrário, será o bastante sabermos que para Deus tudo é possível! Pessoal- mente, considero tudo milagre insondável!

  3. Vê este meu dedo como se movimenta em todas as direções; não é milagre? Quem se daria ao trabalho de querer analisá-lo? Bas- ta que Deus assim o tenha feito! O resto é somente curiosidade. Melhor será agradecermos ao Doador Onipotente e Bondoso, tor- nando-nos assim mais agradáveis aos Seus Olhos, do que querermos analisá-Lo com a Sabedoria de todos os anjos!”

  4. Retruca Johann von Kernbeiss: “Tens plena razão; entre- tanto, o caso é surpreendente!” Diz o general: “Nenhum anjo po- derá contestá-lo; não nos compete pesquisá-lo, mas simplesmente apreciá-lo com gratidão!”

  5. Indaga o outro: “Não pareces ser apologista do progresso espiritual!” Contesta o militar: “Enganas-te muito, pois nada me entusiasma tanto quanto a perfeição espiritual. Sou contrário a tais aspirações do espírito que, no momento, não se prestam à sua esfe-

ra. Aguarda a volta de nossos professores, capazes de te orientarem melhor do que eu. Se te falasse além do meu conhecimento, seria um vaidoso e mentiroso, pretendendo ser o mais inteligente. Eis que vêm eles! Dismas, modesto e sem brilho; Tomás, na verdadeira irradiação de um Sol! Se concordares, apresentar-te-ei como pesqui- sador apaixonado da Sabedoria Divina.”

  1. Protesta o amigo: “Por favor, não faças isto! Este assunto deve ficar entre nós e dispensa divulgação entre toda a assembleia celeste! Concordo contigo e nada mais desejo!”

  2. Nisto, Tomás e Dismas se aproximam e são amavelmente re- cebidos por Teobaldo e seu amigo Johann, que expressa, em nome de todos, gratidão comovedora ao Senhor da Glória pelo suprimen- to tão confortador. Johann observa especialmente a maneira rápida com que tal fato se dera.

  3. O monge Tomás retribui seu agradecimento, porquanto deve seu atual aperfeiçoamento não só ao Senhor, como à admo- estação enérgica por parte do general, e ao serviço prestado pela multidão ao expulsá-lo diante de sua grande tolice. Obtempera Johann: “Meu caro, não mais menciones isto; pois fui um dos que te puseram porta a fora. Infelizmente, não é possível se anular o que foi feito, mas já me arrependi por mil vezes. A criatura, material ou espiritual, é às vezes levada pelo temperamento a quase esquecer o seu semelhante. Não deveria ser assim, mas sucede até mesmo entre pessoas bondosas. Opino que se procurarem remediar suas faltas, re- ciprocamente, pedindo desculpas e estendendo as mãos amigas para uma união eterna, nosso Pai no Céu por certo concordará!”

  4. Aduz Tomás: “Naturalmente! Tão logo estiverem em ordem entre si, sê-lo-ão também diante de Deus! Ele nada mais quer do que as criaturas se amem como verdadeiros irmãos, sem que um se eleve acima do outro, fazendo-se juiz de seus atos. Nós dois nunca tive- mos contendas, portanto nada temos a nos perdoar. O fato de teres ajudado na minha expulsão neste mundo espiritual não altera nossa antiga amizade, e isto porque me proporcionaste um grande serviço. Sem tal acontecimento, talvez ainda estivesse enterrado em minha

tolice religiosa, podendo aborrecer-vos; ao passo que, assim, serei capaz de corrigir os meus erros pela Graça do Senhor, atendendo ao desejo do meu coração.

  1. Quanta bobagem proferi na Terra, de sorte que talvez al- guns dentre vós se achem ainda recalcados por tal razão. Tudo isto procurarei corrigir com sábios ensinamentos, de acordo com minhas possibilidades. Peço Àquele que me conferiu ofício tão celeste auxí- lio para mim e para vós.

  2. Através de Sua Graça me foi dada a capacidade de ver os acontecimentos na Terra, principalmente em nossa pátria. Em breve também sereis informados pelos espíritos que aqui chegarem. Trans- mito-vos o que vejo, revelado pelo Senhor: Os grandes se saciaram com o sangue dos irmãos, tornando-se fortes e gordos. Ao invés de agradecerem ao Pai pela vitória sobre os supostos inimigos, nem sa- bem o que fazer de tanto orgulho, altivez, arrogância e vingança. Sa- tanás, percebendo tais inclinações, lhes faculta o inferno completo, no palco da política mundial, e eles o aplicam e comerciam dentro de seus princípios!

  3. Não julgueis, a fim de que não sejais julgados; e não con- deneis, para não serdes condenados! Sede misericordiosos, para en- contrardes misericórdia! — Eis as advertências e leis de Deus dadas aos homens desta Terra; entretanto, os poderosos fazem aos irmãos o que bem entendem. Criticam, julgam, condenam e matam à von- tade, possuindo poderes externos. Dentro em pouco aqui virão al- guns cruelmente assassinados, cabendo-vos recebê-los, confortá-los e acalmá-los, realizando deste modo vossa primeira obra celeste.”

CAPÍTULO 132

Aproximação de uma falange de almas desesperadas.

Filosofia acerca de carência de fé e amor

  1. Nem bem Tomás termina seu ensinamento, ouvem-se lá fora gritos de desespero e dor. Ele chama a atenção dos assistentes, dizen- do: “Eis a falange que mencionei; parece achar-se na maior aflição!

Não convém perdermos o sentido de suas palavras; por isto, silêncio, porquanto já invadem o jardim! Um homem de aspecto sombrio, usando blusa de veludo preto e na cabeça um barrete azul, bordado a ouro, caminha à frente, tropeçando qual bêbedo. É acompanhado por cerca de trinta pessoas; atrás delas percebe-se algo como chamas. Que quadro horrendo!”

  1. Nisto o chefe do grupo para, fita-o e diz: “Eis-nos aqui, no maior desespero e miséria! Minha pobre esposa! Tua sombra, em forma de chamas vingadoras, em vão acompanha o companheiro assassinado! O inferno completo conspirou contra mim e sua pata mortífera me atingiu para nunca mais me soltar. Meus caros amigos, clamais inutilmente neste mundo tenebroso! Ignoro desde quando fugimos, gritamos e choramos, sem que nos viesse socorro ou con- forto. Não existe Deus, nem vingança contra nossos assassinos! Pois, se Deus existisse, não permitiria tais crueldades na Terra diabólica!

  2. Que fizemos nós para merecermos a morte? Queríamos apenas o que nos fora prometido pelo Imperador; como não con- cordamos em desistir dos privilégios, segundo ordem imperial, per- guntando pelo motivo da mesma, tornamo-nos rebeldes e traidores. Reagimos moral e fisicamente, e não teríamos sido vencidos se não fosse o poderio de dois regentes, usando todos os meios ao seu al- cance. Entregamo-nos contra a garantia de anistia da Rússia — e eis que nos assassinaram quais criminosos!

  3. Maldita Terra com suas criaturas e maravilhas! Quem naque- le solo consegue suficiente dinheiro, poder e crueldade, tem pleno direito de mandar fuzilar, como criminosos, aqueles que seu despo- tismo não considera necessários para a Humanidade! Fizeram bem em matar-nos, sabendo da maneira pela qual se deve preparar o solo satânico a fim de conseguir a felicidade à custa de milhões. Se ti- véssemos agido desta forma, estaríamos no mesmo direito; assim se anteciparam na conquista de privilégios.

  4. Se Deus existisse, poderia justiçá-los! Não havendo Divin- dade, são livres e podem agir a bel-prazer. Só o rico e poderoso tem direito de vida e posse, enquanto o pobre é pecador sob todos os

pontos de vista, levando castigo por ser impotente, e não consegue pôr em evidência aquilo que acha justo para si. Acaso ainda acredi- tais em Deus e vingança?”

  1. Todos negam, exaltados, com exceção de um, que diz: “Se- nhor conde, concordo com o senhor, excluindo seu parecer sobre Deus; temos que concluir que Ele, ou seja, o Princípio Criador, não Se preocupa com a poeira terráquea. Revolução ou guerra entre os homens representa para Deus muito menos que uma luta de vermes para o Imperador da China!

  2. Realmente, ladrões, assaltantes e assassinos são as pessoas mais inteligentes da Terra, pois sabem taxar o valor das coisas, cria- turas e suas existências, porquanto sentem que milhões de homens nada representam para Deus. Por isto, deixaremos de ser tão tolos como fomos até agora. Façamos uma liga, combinando assassinar todos que se nos apresentem!”

  3. Opõe um outro: “Acho que deveríamos ter certa conside- ração com pessoas que possivelmente nos abordem, por exemplo: nossos pais, irmãos, mulher e filhos, e alguns bons amigos.”

  4. Diz o primeiro: “O quê? Tal consideração nada mais seria que certa covardia contra outros que deixaríamos viver por causa da honra ou por um lucro qualquer! Os pais? Escárnio do inferno, pois são os primeiros tiranos dos filhos! A mulher? Se for moça e seduto- ra pode ser poupada; uma vez velha e feia, não merece piedade por não mais ser fonte de prazer. Filhos, como bonecos educados, são suportáveis, não obstante eu considerar sábios os povos que matam e comem os rebentos mais bonitos e gordos, por ser sua carne me- lhor do que a dos magros e feios. Uma vez crescidos, porém, não se deve ter consideração com tais sanguessugas dos progenitores! Aqui, onde não existe possibilidade para a procriação, tendo apenas conta- to com os filhos já gerados, não se deve usar de consideração. Irmãos e amigos já na Terra são incômodos, e aqui o serão ainda mais. Não tenhamos com eles a menor piedade! Se as criaturas no mundo tives- sem a compreensão que tenho, o primogênito saberia livrar-se deles tão logo tivesse alcançado consciência e força necessárias. Assim não

sendo, todos os homens são tão estúpidos como animais, excluindo alguns facínoras refinados. Nada de consideração com quem quer que seja!”

CAPÍTULO 133

O conde e o inescrupuloso. História de ambos

    1. Diz o conde: “Tua falta de respeito é excessiva, porquanto condenas a ti mesmo. Acaso ficarias satisfeito se alguém procurasse livrar-se de ti, dentro de teus princípios?” Diz o outro: “Isto vale para todos, e se levasse vantagens com minha morte, chamá-lo-ia de asno, caso não agisse em tal sentido!”

    2. Pergunta o conde: “Quer dizer que não usarias de conside- ração para comigo?” Diz o grosseiro: “Por certo! O sr. conde deu razão aos próprios assassinos por se terem livrado de nós; por acaso é injusto se penso e sinto como o sr.?”

    3. Reage o nobre: “Ah, pretendes pegar-me? Não o conseguirás, pois sei o que fazer!”

    4. Provoca o outro: “Francamente, admiro-me de sua igno- rância! O sr. será capaz de fazer tanto quanto eu quando segui os verdugos! Praguejamos a valer, sem resultado; porventura o sr. pre- tende orar?”

    5. Responde o nobre: “Exatamente, a fim de aborrecer-te até o extremo!” Diz o bruto: “Estou pronto para acompanhá-lo com boas gargalhadas! Apenas queria saber a quem pretende dirigir sua prece: ao Sagrado Coração de Jesus, a Maria e São José?”

    6. Enraivecido, o conde reage: “Cala-te, senão te obrigarei a tan- to! Atreves-te a ridicularizar o primeiro cavalheiro de toda a Hungria? Vê se desapareces, do contrário sentirás a força de meus músculos!”

    7. Diz o outro: “O sr. é realmente esquisito, tal qual foi na Ter- ra! Apenas repeti o que ouvi do sr. e isto o aborrece desta forma! Quando teria o sr. acreditado em Deus? Não se sentia enojado quan- do avistava um crucifixo ou a imagem de Maria? Não se tornou inimigo declarado do nobre Kossut, porque o considerava religioso

fanático que implorava o socorro de Cristo? Acaso o sr. alguma vez rezou um Pai Nosso? E agora quer orar! Pergunto: como e a quem?”

    1. Diz o conde, cheio de ódio: “Não é da tua conta! Pois podia bem ser diferente do que aparentava!”

    2. Retruca o outro: “Será difícil! Vou lhe dizer sua verdadeira índole: no íntimo, amigo do sexo oposto, o sr. foi um cavalheiro non plus ultra, com pretensões ao trono da Hungria. Cristo era-lhe apenas uma fábula; e agora o sr. alega ter sido diferente do que apa- rentava? Deixe de mentiras, conde!”

    3. Diz o fidalgo: “Quem te dá o direito de falar-me como se tivéssemos sido colegas no tratamento de porcos? Julgas que o Con- de Bathianyi suportará tal vexame por muito tempo? Pensas que sou de tua classe em virtude de minha desdita, ou porque lutei no final nas fileiras dos hussardos? Se não calares tua boca imunda, saberás em breve a diferença entre nós!”

    4. Obtempera o grosseiro: “Sr. conde, neste mundo nebuloso nossas armas consistem apenas na língua e, vez por outra, em mãos e pés, e os últimos são importantes no momento da fuga. No que diz respeito à língua, o sr. levará desvantagem, assim como nas mãos, pois aprendi a lutar boxe na Inglaterra e sou mestre. Com os pés o sr. levará a melhor, pois nunca fiz uso deles para fugir!”

    5. Afastando-se dele, o Conde diz a um outro: “Amigo, que me dizes desta afronta? Não conheces sua identidade? Sei que o vi algumas vezes entre os soldados rasos!”

    6. Responde o inquirido: “Consta ter sido franciscano de má fama entre os demais. Muitas vezes proferiu coisas revoltantes acerca daquela Ordem religiosa e jamais aceitou correção. E se pretendiam prendê-lo por isto, ele, fisicamente forte, surrava o Convento todo! Cansado dessas constantes rusgas, um dia juntou sua indumentária de franciscano e jogou-a no lixo, abandonando o Convento com algum dinheiro tirado às escondidas e alistando-se, em seguida, no batalhão mais próximo. Lutou como leão, motivo por que morreu como comandante. Eis tudo o que sei!”

    1. Diz o Conde: “Ora, arrependo-me do mau trato aplicado a esse bom homem! Se foi monge e mais inteligente que os cole- gas, tão ignorantes que mereceram pancadas, deve ser considerado! Procurarei imediatamente fazer amizade com ele!” Virando-se para aquele, o Conde prossegue: “Caríssimo amigo, perdoe-me a atitude descortês, pois não sabia com quem lidava. Quer dizer que o sr. lutou qual gigante contra o Claustro, por convicção íntima, para depois pegar da espada com o intuito de salvar a pátria?”

    2. Diz o outro: “Exatamente; sacrifiquei-me em prol da huma- nidade, cujas correntes de escravos se me tornavam insuportáveis. Entretanto, sr. Conde, semeamos e outros colherão; esta foi sempre a paga do mundo! Quase todos os grandes inventores morreram à míngua, enquanto os inimigos se fartaram com suas obras. Que lhe parece a organização divinamente sábia da existência terrena?” Retruca o conde: “É melhor calar-me; pois a Divindade parece não cogitar de suas obras. A criação pode ser considerada como sim- ples distração divina; uma vez existindo, Deus trata de seu rápido aniquilamento. A fim de facilitá-lo, faz com que os homens sejam instigados pelo egoísmo e orgulho, tornando-os ávidos pela morte do próximo! Que recompensa Deus daria a um homem que, como eu, sofreu morte tão infame?

    3. Imagina o que sucedeu ao mais nobre de toda a Hungria: condenado por um pelotão de soldados rasos, foi levado à praça pú- blica, sem qualquer consideração. Percebendo não haver saída, tenta o suicídio, mas sem êxito. O povo que assiste à cena é levado pela piedade e exige imediata revogação. O nobre é conduzido ao hospi- tal, em virtude do ferimento, onde recebe socorro médico. Aliviado da dor, espera conseguir o perdão por parte do Imperador. À noite, porém, é despertado de um sono profundo para ouvir um outro ve- redito que deveria ser efetivado imediatamente. Assim, conduzem-

-no com brutalidade para fora da cela e, a caminho do suplício, é fuzilado e enterrado como cão. Sou o mencionado fidalgo; podes, portanto, assegurar-te da Justiça divina.

    1. Ainda assim não consigo me aborrecer com a crueldade bes- tial dos homens; são instrumentos de um poder invisível, razão por que o sábio doutrinador de Nazaré pediu, no momento da execução, perdão para seus algozes, junto ao seu Pai Divino, porque não con- siderava a natureza humana tão perversa.

    2. Satanás, ou o ‘Ser Supremo’, emite seu hálito venenoso para todo o Universo, deleitando-se com os inúmeros assassínios cometi- dos! Desejava conhecer tal entidade e que me fosse facultado poder para destruí-la!”

    3. Diz o outro: “Tem plena razão, agora concordo contigo! Mas, ouve, percebo vozes humanas. Silêncio, talvez ouçamos algo para nosso consolo!”

CAPÍTULO 134

Surge a vingança como consolo. O sofrimento ensina a orar

  1. Exclama o conde: “Que consolo, qual nada! Quem poderia fazê-lo? Prefiro uma vingança justa para todos aqueles que nos fize- ram fuzilar sem motivo justo! Julgas que Deus, com mil céus, pode- ria reparar a perda de esposa, honra e fortuna? Se bem que um dia tivesse de perdê-los, tal fato sucederia com as devidas honras e meu nome brilharia qual Sol. Por isto, vingança tenebrosa! Eis o lema para recompensar-nos do ultraje!”

  2. Diz o outro: “Mas, conde! O sr. está irritado e não consegue ver o caso com objetividade! Eu, que sou severo no julgamento, penso diferente acerca da reparação de minha honra perdida na Ter- ra. Seria honra aquilo que no mundo é tido como tal? Jamais meu coração pediria tal homenagem!

  3. Onde estaria o nome de Blum, caso o Príncipe Windisch- grätz não o tivesse enviado para a Eternidade através de pólvora e chumbo? O mesmo se dará conosco! Não é isto?”

  4. Concorda o fidalgo: “Ótimo! Realmente, tal honra seria uma vergonha!” Neste instante, ele também percebe vozes e diz ao outro:

“Teríamos sido encurralados por espíritos inimigos para nos manda- rem para o inferno? Talvez fosse preferível fugirmos!”

  1. Contesta o inescrupuloso: “Mesmo que o quiséssemos, para onde iríamos? Poderíamos até cair num abismo eterno! Ou nos bra- ços dos inimigos! É melhor ficarmos quietos! E se vier algum intro- metido, saberemos como fazer para que se cale!”

  2. Obtempera um outro do grupo: “Estaria certo se fosse possível matar espíritos! Por isto, opino juntarmo-nos aos pretensos adversários! Como poderíamos ter feito inimigos se ainda não en- contramos outra alma?”

  3. Diz o conde: “Amigo, isto o sr. não entende! Acaso não exis- te nesse mundo diabólico grande quantidade de almas ocre-negras (cores do Império Austríaco), que na Terra foram nossos inimigos, como Latour, Lamperg etc.?”

  4. Responde o outro: “Não o creio, pois foram ricos. Tão logo o Estado os atira à miséria e tudo perdendo pela morte, quando lhes sobrarão apenas as almas desnudas, suas índoles imperialistas se anularão.”

  5. Conclui um terceiro: “Basta considerar-se por que os súdi- tos da Áustria são ocre-negros; primeiro, de medo das armas e do patíbulo; segundo, por egoísmo, partindo dos ricos, militares e fun- cionários; pois não cogitam do bem dos povos e do Imperador, mas simplesmente do seu próprio bem-estar; terceiro, existem muitos ocre-negros por tolice religiosa, porque houve um Imperador São Leopoldo e um São Ferdinando, este perseguidor e aniquilador de todos os protestantes. Estes talvez se encontrem aqui; dos outros, duvido que haja algum vestígio!”

  6. Obtempera o conde: “Falaste bem, é a pura verdade! A ex- pressão ocre-negrotem, para mim, outro significado, porquanto a interpreto como maldade dominadora que pretende vingança, coisa que aqui facilmente se encontrará! Que me dizem os senhores?”

  7. Conjectura o último manifestante: “Onde nada existe, não pode haver reação; portanto, é inócuo falar-se de direitos reais ou fictícios!” Contesta o fidalgo: “Meu amigo, a maldade satânica é

um verme que não morre e cujo fogo jamais se apaga, tampouco poderá ser satisfeito! Temos uma existência miserável e não procu- remos nos infelicitar ainda mais. Tratemos de nos movimentar com mãos e pés; caso encontremos alguém inofensivo, será aceito. Me- lhor se começássemos a orar. Se bem que na Terra considerasse a prece como tolice, mormente o rosário e as orações latinas, tenho a impressão de haver chegado o momento de nos dirigirmos ao Ser Supremo. O sr., que foi franciscano, por certo saberá o ‘Pai Nosso’, em latim ou alemão. Tenha, pois, a bondade de fazê-lo, ao menos como passatempo.”

  1. Retruca o monge: “É o que faltava! Se pretendemos orar, é preciso que saibamos a quem; pois fazê-lo apenas por distração é, a meu ver, a maior tolice e pecado! Se existir, alhures, uma Entidade Divina, terá a maior repugnância diante de tal atitude; não existin- do, não haverá palavras para classificar nossa tolice. Julgo, por isto, aconselhável nada fazermos por enquanto, a fim de nos prepararmos para o que der e vier. Neste momento ouço vozes bem próximas e até mesmo percebo palavras! Ah, ouvistes? Ouvi o seguinte: Dirigi vosso íntimo a Jesus, o Crucificado, que sereis socorridos!”

  2. Interrompe o conde, que também ouvira o mesmo: “Ami- go, com exclamação tão genuinamente católica e na hipótese de nós a aceitarmos, não vejo solução para o nosso caso! Por que não nos recomendaram a consideração de todos os santos? Talvez fosse uma advertência luterana ou calvinista!”

  3. Impaciente, o franciscano retruca: “Não vem ao caso! In- teressa sermos ajudados! Se Jesus nos oferece socorro, por que não o aceitarmos?”

  4. Pondera o fidalgo: “Acaso o sr. está certo de que o ofereci- mento foi feito a nós? É bem possível encontrarem-se aqui outros grupos em situação idêntica à nossa!”

CAPÍTULO 135

Advertências espirituais feitas aos infelizes.

Situação política de tal época

    1. Após tais palavras, todos ouvem nitidamente o seguinte: “A exclamação foi dirigida a vós, descrentes desde o primeiro nascimen- to!” O conde se assusta, enquanto o franciscano prossegue: “Então, o sr. ainda terá receio de dirigir-se a Jesus?”

    2. Responde o outro: “Não depende somente de mim! Pergunta aos outros o que pretendem fazer. Acho que não devemos trocar tão facilmente nossa pura razão pela humildade cristã. Havendo no re- gímen do Cristo condes e príncipes, então ‘Viva Ele’! Do contrário, nada feito!”

    3. Novamente se ouve: “Aqui não há condes, nem príncipes! Somente Um é Senhor; os outros são todos irmãos!”

    4. Manifesta-se o franciscano: “Então, sr. conde, que me diz à resposta tão clara dirigida ao sr., que pretende ser nobre no mun- do dos espíritos? Não percebe como sua ‘pura razão’ lhe prega uma peça? Como é possível ter-se preferência por um título, causador do aniquilamento infame? Não seria melhor viver-se bem como homem simples, do que morrer no patíbulo como conde? Qual o benefício em ter sido um dos maiores magnatas da Hungria? Como reles tratador de suínos talvez ainda se encontrasse à frente de uma travessa de ensopado! Acaso nunca ouviu falar que o raio tem a fa- culdade de atingir primeiro os objetos elevados, e aos demais so- mente quando se acham muito próximos dos primeiros, como bois debaixo de uma árvore?”

    5. Reage o magnata: “Sabe o sr. que posso impedir tais indire- tas? E que um Bathianyi continua o mesmo, também no mundo dos espíritos?”

    6. Concorda o franciscano: “Realmente, nada se consegue con- tra a pura razão de um fidalgo húngaro! Meus melhores votos para o futuro, sr. conde! Quem sabe se sua compreensão lhe trará conde- corações de chifre!”

    1. Reage o conde: “Cale-se! Se tiver algo a me dizer, faça-o como homem de honra; senão saberá que o Conde Bathianyi não deixou de sê-lo! Compreendeu?”

    2. Ri-se o franciscano: “Por que não experimenta pôr as mãos sobre mim para certificar-se de sua fraqueza? Que força teria um espírito igual ao nosso e quando a tolice teria sido forte e poderosa? Jamais! E o sr. é muito tolo, portanto também fraco! Provou-me isto sua atitude ofendida, quando só falei para o seu bem! De modo idêntico o sr. demonstrou sua tolice no mundo; pois, se fosse mais inteligente, em boa hora teria fugido como fizeram Kossut e seus companheiros!

    3. Vê-se que a Hungria agiu tolamente, porquanto deixou a espada enferrujada da aristocracia dentro da bainha, suportando a esperteza dos inimigos. Se certos magnatas não tivessem querido colocar a coroa da Hungria em suas cabeças tolas, a Áustria não teria tido aquela reação. Com um pouco de astúcia, nem teria sido necessário um golpe de espada para nos tornarmos soberanos de todo o país. Mas, levados pelo orgulho, pretendemos lutar como anões contra gigantes. O resultado é mais que evidente! Caso o sr. tencione prosseguir em sua tolice aristocrática, terá a mesma vitória que na Terra!”

    4. Obtempera o fidalgo: “Sendo tão inteligente como afirma, por que então deixou-se matar, ao invés de fugir como outros? A julgar pela sua definição de que força e inteligência são idênticas, não foi o sr. um dos mais fortes!”

    5. Confessa o franciscano: “Não me ofendo com a observação, pois não me faltou certo grau de tolice húngara. Inteirei-me tarde demais do verdadeiro fracasso do país, pois os patíbulos terminam com as conjecturas. Seu caso foi diferente: achando-se no centro da politicagem, podia ter calculado pelos dedos o resultado do caso, impossível de ser resolvido. Mas não, a compreensão aristocrática o colocava num dilema: a vitória ou a morte! E agora que benefício lhe trouxe isto? Talvez alguns amigos na América do Norte venham

a lhe erigir um monumento e o sr. seja mencionado na História nos anos de 1848 a 1849. Eis tudo!”

    1. Diz o conde: “Acaso não tem valor despertar-se a compai- xão de milhões pela injustiça praticada pelo país à minha pessoa?” Diz o monge: “Isto soa muito bonito e talvez alguém faça um drama com o seu nome! Mas nós, os heróis, continuaremos aqui, em situ- ação precária! Por isto, convém não persistirmos na tolice terrena, aceitando com gratidão o que nos é ofertado, esquecendo mais facil- mente nossas querelas mundanas!”

    2. Obtempera o conde: “Sim, não nos induzas à tentação! — consta numa prece! Como é que se chama? Bem, não me lembro! Por isto, apenas repito: Não nos induzas à tentação!” Interrompe o franciscano: “O quê? Que negócio é este? Nada tem a ver com aqui- lo que eu disse! Explique-se melhor!”

    3. Prossegue o conde: “Por que não me deixa falar? Não gosto de ser interrompido! Trata-se do seguinte: o sr., com sua verbosida- de, pretende açambarcar-me o título de conde! Eis por que não quer ser tentado!”

    4. Conjectura o monge: “Não se recorda do provérbio: Lem- bra-te, homem, seres pó e ao pó voltarás?” — Contesta o outro: “O sr. só entende de ofender o próximo! Caso fosse também magnata, poderia dizer-lhe algo de valor!” Diz o outro: “Como pretende dar-

-me o que não possui? Falo com um raciocínio equilibrado; pois, se o sr. tivesse sido mais inteligente, não teria morrido no patíbulo, tampouco deixaria de reconhecer que o mundo, com todas as suas prerrogativas, está para sempre perdido para nós todos, inclusive o sr. O que ainda espera dele, opondo-se a aceitar o socorro de Jesus, uma vez que toda a assembleia se aborrece com sua atitude? Medite um pouco, não como magnata, mas como homem simplesmente necessitado!”

CAPÍTULO 136

Palestras a respeito de Jesus. Parábola do homem sem vestes nupciais e das dez virgens

  1. Diz o conde: “Acaso se refere ao Jesus dos judeus, do qual se afirma ter sido filho de Deus, e o sr. mesmo alegou não acredi- tar em suas considerações católicas? Porventura houve ainda ou- tro Jesus?”

  2. Responde o franciscano: “Falo daquele de quem a tradição evangélica diz ser Filho do Altíssimo, Senhor Eterno de Céus e Ter- ra! Em vida não acreditava nesta tradição, por ter sido vilipendiada por parte de Roma, levando-me à seguinte conclusão: Se não fosse apenas obra dos eclesiásticos dominadores, impossível seria fazer-se tamanho absurdo com a Doutrina provinda de Deus. No decorrer de mil e duzentos anos aconteceram fatos, na hierarquia romana, que impunham respeito ao próprio inferno. E o autor, oculto nos bastidores trevosos de uma doutrina cujos servos deveriam se mani- festar como grão-mestres das piores cenas diabólicas, devia ser Filho do Altíssimo? Realmente, conde, tal crença não pude aceitar.

  3. Quando, mais tarde, consegui a Bíblia completa de um padre protestante, mudei de opinião. Fiz tudo para fugir do antro da mor- te espiritual, preferindo ser soldado raso do que franciscano, pois pensei: é melhor ser assassino da carne do que do espírito.

  4. Por isto, Jesus bem pode ser Filho do Altíssimo, tendo o po- der de nos ajudar, mesmo se foi negado pela Igreja Romana, por- quanto ressuscitou da morte após três dias, não obstante a traição de Judas. Foi Jesus que nos ofereceu socorro; todos nós ouvimos as palavras confortadoras. E nós ainda questionamos se devemos ou não aceitá-Lo! Principalmente o sr. é o mais renitente! Por isto, aconselho-o pela última vez a definir-se e não perturbar os outros em suas determinações!”

  5. Diz o conde: “Também aceitarei o socorro; no entanto, pode- ríamos propor certas condições para evitarmos que suceda o mesmo que na Terra, onde nos entregamos à mercê da justiça. Assim seria,

a meu ver, exigência justificável uma vingança em regra em nossos inimigos terrenos e plena indenização por tudo que perdemos!”

  1. Diz o monge: “Não seria mal! Entretanto, é uma ideia absur- da. Se o sr., na Terra, caísse em mãos de salteadores e um homem forte procurasse socorrê-lo, teria coragem de lhe impor condições para aceitar sua ajuda? Sr. conde, suas conjecturas são demasiado tolas, pois em vida ninguém nos ofertou ajuda; como, pois, compa- rarmos nossa situação atual com a de antanho?”

  2. Confirma o nobre: “Sim, tem razão; confesso ser algo incoe- rente, mas ‘gato escaldado teme água fria’! As experiências negativas da vida se agarram à alma de um infeliz de modo tal que se torna difícil extirpá-las da noite para o dia. Por isto, devo ser perdoado se hesitei em aceitar aquilo que todos esperam.

  3. O General Paskiewitsch, pessoalmente, nos prometeu anis- tia. Quando fomos entregues nas mãos dos austríacos, sob garantia russa, tudo mudou de aspecto. Tais experiências tristes constituindo as últimas recordações da vida, produzem um choque na criatura, levando-a à precaução.

  4. Reconheço a existência de uma Divindade, do contrário não teríamos vida alguma. É Ela, no entanto, Poderosa, e Seu Julgamen- to não tem recurso. Eis motivo de sobejo para precauções na acei- tação de um socorro antes de se considerar todas as circunstâncias. Na minha mocidade, li certa vez no Evangelho sobre uma grande ceia, para a qual foram convidados todos os que fossem encontrados em ruas e ruelas, porquanto os que tinham sido convidados pri- meiro não quiseram ou puderam comparecer. Quando o refeitório estava repleto, chegou o anfitrião, analisou os hóspedes e encontrou um sem vestes nupciais! Imediatamente mandou prendê-lo e ati- rá-lo ao cárcere! Que culpa teve o pobre coitado? Os servos o apa- nharam à força, junto com outros casualmente bem vestidos, sem atentarem no seu aspecto precário. O anfitrião, porém, prontamente o condenou!

  5. Considerando o caso subjetivamente, observando a atitude voluntariosa da Divindade, ninguém poderá criticar uma certa pre-

venção a um socorro do Alto. A Judas também se ofertou o pão, que o tornou diabólico! Qual seu parecer após esta minha exposição?”

  1. Aplaude o franciscano: “Ótimo, o sr. conde está bem orien- tado na Bíblia; isto me alegra, porque escolheu precisamente um texto que também considerei muito injusto. Existem ainda outros, onde o bom Jesus manifestou atitude inclemente dentro da com- preensão mundana; em compensação, ofereceu grande consolo em certas ocasiões. Neste ponto, sua precaução é perdoável. O poder, seja de quem for, domina sempre o mais fraco; entretanto, não se pode imaginar a Onipotência Divina sem Sabedoria Perfeita. Assim, é mais fácil se tratar com uma entidade de saber elevado, podendo nos deixar conduzir por Jesus, o Crucificado, aguardando com paci- ência o resultado de tal proceder. Se for bom, teremos agido acerta- damente; caso contrário, voltaremos ao estado atual.”

  2. Obtempera o fidalgo: “Estaria tudo bem, caso a Sabedoria Suprema não fosse idêntica a uma prova matemática, que jamais aceitaria condições. Isto exemplificou Jesus quando disse: Céus e Terra desaparecerão, Minhas Palavras, jamais! — Que farias caso Ele nos dissesse: Afastai-vos, praticantes do mal! — Enquanto nada Lhe pedirmos, não haverá motivo para nos dar qualquer coisa, boa ou má!

  3. Lembro-me de um texto adequado, no qual se fala de dez virgens, cinco inteligentes e cinco tolas. Todas elas aguardavam o noivo, certamente um hábito oriental daquela época. As precavidas encheram as lamparinas de óleo; as outras, casualmente, não. Quan- do à noite veio a notícia da chegada do esperado, as tolas pediram às outras um pouco de óleo para lamparinas. Não sei por que elas não cederam ao pedido, obrigando as companheiras a procurarem óleo num comerciante. Quando voltaram à casa, a porta estava trancada! Bateram timidamente, pedindo entrada, mas o noivo lhes gritou: Afastai-vos! Em verdade vos digo que não vos conheço!

  4. Considerando o fato pelo simples raciocínio, é ele brutal, injusto e fora da verdade, se é que se deve tomar o noivo pela Divin- dade. Como poderia Ela dizer a alguém: Não te conheço! — quan-

do em outra ocasião afirmou contar todos os cabelos de cada um! Quem, no entanto, seria capaz de Lhe apresentar tamanha injusti- ça? Ela permite frio e gelo, mesmo se milhares com isto pereçam, e as mais abundantes semeaduras são destruídas pela geada e saraiva. Afirmo-te, quem se coloca na dependência de Deus tem a miséria dentro de si. Que poderia ter sucedido às cinco virgens tolas caso não tivessem voltado ao lar? Nada pior do que aquilo que lhes acon- teceu quando chegaram com as lamparinas vazias. Em todo caso, teriam escapado da grosseria! Pessoalmente, presumo devermos dar ouvidos à Voz de Deus quando nos tivermos assegurado de Sua Be- nevolência Plena; do contrário, continuaremos como estamos! De modo algum confio na Divindade Onipotente! Qual seu parecer às minhas conjecturas?”

  1. Responde o franciscano: “Sua interpretação da Escritura é muito meticulosa; entretanto, penso não ser possível interpretá-

-la literalmente, por ser uma explicação simbólica da moral mais elevada que o homem deveria empregar. No ‘óleo de lamparina’ se entende o amor verdadeiro a Deus, e na ‘luz’ da mesma, a sabedoria que deriva do amor. As virgens tolas, destituídas de amor, queriam tirá-lo das outras; estas, mais prudentes, não se deixaram seduzir: indicaram-lhes que procurassem o amor no mundo. E as egoístas apanharam suas lamparinas, ou seja, seus corações cheios de amor mundano, voltando com eles à Casa do Noivo — onde a meu ver nos encontramos de há muito — ou melhor ainda: quando se apro- ximaram de Deus, exigindo entrada no Reino do Céu, isentas de amor, Ele só lhes podia ter dito: Não vos conheço em tal inclinação, que por Mim jamais foi determinada! Voltai para onde se origina vosso amor! — Eis como interpreto este texto, e acho que o conde atribui muita dureza a Deus. Vamos nos sobrepor a tudo isto e acei- tar o auxílio prometido, pois meu coração me diz não agirmos mal deste modo!”

  1. Acrescenta um outro: “Também concordo, pois o Evange- lho é completamente simbólico e só pode ser compreendido des- ta forma!” — Contesta o conde: “Não fale asneiras! Acaso nosso

fuzilamento foi simbólico, e Jesus foi pregado no madeiro apenas simbolicamente?” — Responde o advertido: “Não, aquilo foi real, do contrário não teríamos sido salvos!” — Diz o conde: “Bonita salvação, nesta escuridão de breu e de estômago vazio! Na Terra, a morte no patíbulo; aqui a treva eterna! Eis as provas palpáveis da grande salvação! É ela de vosso agrado, amigos?”

  1. Diz um outro: “Por enquanto, seu aspecto é tenebroso; devo, porém, confessar que até agora nada fizemos para merecer a salvação! Se, finalmente, a forca não apagou boa porção de nossos pecados mortais, as condições salvacionistas são precárias, caso se proceda aqui de acordo com os Dez Mandamentos. De modo al- gum podemos falar de virtudes cristãs; por isto, opino pela aceitação imediata do socorro, do contrário ainda passaremos mal. Para nossa defesa, contamos apenas com nossa tolice desmedida e, na melhor hipótese, com a Graça e Misericórdia de Jesus Cristo!”

  2. Radiante, o franciscano exclama: “Ótimo, expressou o que sinto na alma! Graça e Misericórdia Divinas, ou a perdição eterna! Pois ultimamente mandamos alguns pobres diabos para este mun- do, sem nos compadecermos das crianças no ventre materno, mani- festando pouca piedade com a dor alheia. Os inimigos eslavos pas- savam mal quando aprisionados por nós. Em suma, se ainda somos levados à vingança contra aqueles que nos mataram — que esperar dos milhares fuzilados por nossas mãos, tendo sido bons ou ainda melhores que nós? Perdoemos de todo coração àqueles que nos mal- trataram moral e fisicamente, matando-nos no final, pois agimos do mesmo modo com muitos outros. Tenho razão, sr. conde?”

  3. Concorda este: “Infelizmente; mas é por isto que temo o mesmo desfecho das cinco virgens tolas! Assim que batermos à por- ta, ouviremos a sentença condenadora! Que me diz?”

CAPÍTULO 137

O orgulho magiar rebela-se novamente, mas é abafado pelo inescrupuloso. O general e Roberto discutem acerca da contenda desses espíritos. Grande Paciência do Senhor

    1. Diz o franciscano: “Senhor conde, neste ponto não posso argumentar; a injustiça está de nosso lado e tudo depende da Gra- ça Divina! Caso nos aceite, seremos salvos; do contrário — adeus, felicidade!”

    2. Diz o conde, irritado: “Como podes dizer estar a injustiça do nosso lado? Não descendemos diretamente de Átila? Nossos ances- trais não conquistaram a maravilhosa Hungria sob o sábio comando daquele grande guerreiro? Quando teria esse país sido subjugado por outro poder? Sempre elegemos nossos soberanos e nunca andamos na dependência da Casa de Habsburgo! O fato de termos aceito sua orientação dependeu unicamente de nossa generosa vontade magiar. Como, pois, poderíamos errar quando destituímos o usurpador de nossa coroa, que jamais tinha sido por nós aceito, porquanto arro- gou-se tal direito? Seu tio, o verdadeiro Rei da Hungria, não teve o direito, de acordo com a sanção pragmática, de ser substituído no trono por outro. Ora, o sr. não entende de política!”

    3. Diz o franciscano: “Pelo amor de Deus! Falas tão tolamente como só um magiar pode fazê-lo! Porventura Deus presenteou a Hungria a Átila, como fez aos israelitas com a Terra Prometida de Caná? Não teria o rei dos Hunos conquistado aquelas terras pelo poder das armas, aniquilando os primitivos habitantes? Seria isto justificável perante Deus? Além disto, alega o sr. não termos tido ou- tro domínio estrangeiro no país. Não foram precisamente os turcos que tiranizaram todos os magiares em Budapeste? Quem libertou a Hungria daquele jugo? Não foi ela quem dominou as margens do Mar Negro e do Adriático? Belgrado e Bucareste eram húngaras — de quem são hoje? A Áustria teve direitos amplos e antigos em nosso país, mais do que queríamos confessar; reconquistou-o dos Turcos e no-lo devolveu, sob a única condição de que os Habsburgos teriam

sempre a primazia da coroa da Hungria — o que também lhes foi confirmado solenemente. Por que, então, queríamos algo diferente? Apenas para satisfazer nosso orgulho! Tornamo-nos ricos e podero- sos sob o regime da Áustria, razão pela qual queríamos reger o país com independência para sermos aceitos entre os primeiros regentes da Europa, fazendo-nos sobressair.

    1. Mas tal não foi do agrado de Nosso Senhor, colocando um ponto final em nossos cálculos. Ao senhor conde assiste o direito, como descendente legítimo de Átila, de recorrer junto aos demais, contra a Onipotência Divina! Seu efeito seria deveras curioso!

    2. Ignora o sr. que na Escritura Sagrada se lê que toda grandeza do mundo é um horror para Deus? E nós pretendíamos ser os ‘tais’ e a recompensa é a situação calamitosa que desfrutamos no Além! Tenho dito!”

    3. Diz o conde: “Ainda bem! É de lastimar que o sr. não tenha apresentado seus argumentos há doze meses atrás, pois lhe teriam facilitado uma colocação rendosa no Ministério de Viena, fazendo honra ao próprio Metternich!

    4. Se, dentro em breve, tiver oportunidade de um contato amis- toso com Jesus, nosso Senhor, procura convencê-Lo a enviar algumas condecorações de mérito à Terra, fazendo-as distribuir, como prova de Sua Benevolência, entre aqueles que tomaram parte em nossa con- denação. Tal empresa deve constituir grande valor para Ele, porque morreu de modo semelhante, o que também ficou provado pelo en- forcamento de Judas! Pelo que vejo, sua condenação foi muito be- néfica, porquanto é tão agradecido ao Governo austríaco! É deveras interessante observar-se seus conhecimentos da História da Hungria!”

    5. Responde o monge: “O sr. está me achincalhando qual mo- leque; isto, porém, não me impressiona, pois sei por que falei desse modo, enquanto o sr. nem entendeu! Acaso o Governo da Áustria foi por mim elogiado? Conheço suas falhas como qualquer outro! O Imperador da Áustria representa um vulcão para todo o país; e isto é do conhecimento de Jesus. Nosso apoio ao Governo foi, por- tanto, um erro, e cabe-nos confessá-lo a Deus; do contrário, nossa

situação jamais melhorará! Disse Ele outrora: ‘Em minha Ira vos concedo um rei!’ Se um regente personifica a obra da ira — por que nos empenhamos em tal direção? Se ao invés de termos lutado pela Ira de Deus, tivéssemos nos empenhado pelo Seu Amor, nossa atual situação seria mais favorável! Percebo que o Senhor Jesus quer reduzir o número de regentes por motivos muito sérios. Porventura deveríamos persistir aqui na realização de nosso erro? Já não chega termos errado em vida?”

    1. Na primeira sala, o general acompanhado da esposa diz a Roberto: “Que história mais maçante! Um idiota contestando outro para resolver se devem ou não aceitar o socorro de Jesus! Quanto tempo ainda deveremos ter paciência com eles?”

    2. Responde Roberto: “Meu amigo e irmão, o Senhor é aqui nossa medida viva para tudo. Observa Sua Atitude Benevolente ao palestrar com Seus amigos sobre o tratamento a ser aplicado àqueles trinta. Acaso se nota a menor impaciência?” Responde o general: “Re- almente, não! Manifesta serenidade divina e amabilidade constante!”

    3. Prossegue Roberto “Eis nossa medida de paciência e amor! Para Ele não existem inimigos; tanto os conservadores quanto os ra- dicais são Seus filhos, pois cuida de todos! Se um pai na Terra possui grande prole em constante rusga, ele castiga os mais impertinentes; entretanto, não pode negar o seu amor e zelo aos demais. Que efeito teria a atitude conservadora ou radical das criaturas, Seus filhos? Se bem que castigue os atrevidos, demonstra Seu cuidado para com eles. Ainda é o Mesmo que abandona noventa e nove ovelhas à pro- cura da centésima, a qual carrega com grande alegria ao aprisco, através de Sua Graça, Amor e Misericórdia.

    4. Assim sendo, também nos compete usar da maior paciência para com nossos irmãos, embora fraquíssimos. Aqui não se cogita mais de partidos oponentes, pois somos filhos de um só Pai e de- vemos dizer: Pai, dirige Teu Olhar Misericordioso à pobre Terra e ilumina nossos irmãos ainda fracos, sejam de que ideologia forem!

nos fará emudecer diante do Imenso Amor de Deus. Todos os que quiserem aproximar-se Dele terão livre acesso e ninguém será exclu- ído. Sua Graça, Amor e Misericórdia são idênticos ao Sol, que deixa irradiar indistintamente sobre os bons e os maus; e também faz cair a chuva sobre ervas boas e daninhas; não raro se projeta uma tor- rente de Graça sobre os mais fracos. Tende um pouco de paciência e vereis o que consegue o Amor do Pai, precisamente com esses trinta ignorantes!”

CAPÍTULO 138

O conde continua hesitando em dirigir-se ao Senhor. Um homem do povo toma a dianteira

  1. Os que se encontram do lado de fora ouvem tal palestra, in- clusive o conde que, admirado, vira-se para o franciscano: “Amigo, ouviu essas palavras confortadoras? Segundo me parece, nenhum de nós tem razão e a situação está tomando outro aspecto. No começo a voz foi um tanto ríspida e impaciente, quase me ofendendo. Em seguida, porém, excessivamente meiga qual voz angelical, penetran- do em meu peito oprimido qual bálsamo! Um Jesus nestes moldes seria muito do meu agrado; mas da maneira que O descreveu, jamais me conformaria!”

  2. Diz o franciscano: “Caro sr. conde, nunca ouviu dizer tra- tar-se de um malandro aquele que pretende dar o que não possui? Minha opinião foi sincera, muito embora algo rude. É evidente en- contrarmo-nos ainda em trevas, portanto não é de se estranhar se- rem as nossas controvérsias não muito inspiradas. Na realidade, eu tinha razão quando procurei convencê-lo do auxílio do Senhor Jesus Cristo. Sua teimosia estabelecendo condições para tanto é mais que ridícula. Agora ouviu pessoalmente a quantas andamos e não há, por certo, outras objeções.

  3. Não é preciso ser matemático para compreender que eu não conheça Cristo, o Filho Eterno do Altíssimo, como Seus Anjos; sa- bia, entretanto — muito embora fosse franciscano — que o Bom

Jesus não é intransigente como escreveu Inácio de Loiola. Sempre me lembrei de Suas Palavras: Vinde todos a Mim que estais cansados e oprimidos, que Eu vos aliviarei! — Infelizmente, os sacerdotes ro- manos localizam tal conforto somente no confessionário, em cujos degraus apenas Jesus aceita e consola os sofredores. Mas este confor- to da contrição levou muitos fracos ao desespero e outros à perda de bens, sossego e vida! Nunca o aceitei desta forma e pensei que um homem muito bondoso haveria de agir com os sofredores de modo diverso do preconizado pelos sacerdotes da Igreja Católica, que após terem condenado o pobre herege ao Inferno infinito, ainda podiam sentar-se à mesa bem provida, como se nada tivesse ocorrido!

  1. Assim sendo, afirmo estarmos muito oprimidos e isto é moti- vo de sobejo para nos dirigirmos ao Amoroso Senhor Jesus a fim de Lhe pedir o prometido conforto. Com prazer serei o primeiro; quem quiser seguir-me, que se concentre e faça o que eu fizer!”

  2. Interrompe o nobre: “Ora, espera um pouco; talvez possa- mos receber mais alguns esclarecimentos de um personagem invi- sível para sabermos como agir. Não é possível tomarmos atitudes apressadas. O sr. é homem de bem e inteligente, não obstante a treva que nos circunda. Seu erro consiste em considerar as condições mís- ticas deste mundo como fatos naturais, pretendendo agir como se se encontrasse na casa paterna. Reflete onde estamos! Acaso sabe o que se acha debaixo e acima de nós? Portanto, convém colher informa- ções precisas antes de dar o primeiro passo!

  3. De modo algum sou contra a aceitação do socorro; sinto até mesmo uma alegria infantil com esta expectativa. Acrescento mais, ser meu desejo mais ardente ver Cristo, o Senhor de Eternidades, prostrar-me aos Seus Pés e, se for possível, morrer por amor a Ele! A boa educação como índice de um coração bondoso, grato e humilde foi sempre bem aceita na Terra, enquanto o atrevimento desperta crítica. Acaso deveríamos supor ser preciso que a criatura se tor- ne mal-educada no Reino dos Espíritos, a fim de conseguir algo junto ao Senhor do Infinito? Por isto muita calma, meu amigo, e tudo se fará!”

  1. Concorda o franciscano: “Bem, o sr. não está de todo erra- do. Perante Deus devemos nos apresentar com o máximo respeito. Esperemos, pois, mais um pouco; talvez ouçamos algo de conforta- dor.” Toda a assembleia se cala, desejando ouvir algumas palavras. Mas tal não se dá. Após certo tempo de espera infrutífera, um do grupo se posta diante do conde e diz: “Amigo, fui na Terra um ma- giar de corpo e alma e não temia a morte e o diabo. Toda a minha vida foi dedicada ao serviço da Hungria, e o sr. mesmo o confirmará. O meu e o seu conhecimento, porém, eram fantasia; tudo o que fazíamos com a ideia fixa de beneficiar a pátria foi realizado sem considerarmos a Deus. Se bem que orássemos diante do povo, para entusiasmá-lo, nosso coração, fé e amor verdadeiro para com Deus e o povo não participavam.

  2. Embora conhecêssemos nossa fraqueza bélica, que não po- dia nos encorajar na luta contra o inimigo, nós o ludibriamos com um poder existente apenas nos jornais e aguardamos ajuda de fora. Esta não se apresentou, e o adversário, supondo ter de enfrentar um exército húngaro de meio milhão, pediu ajuda à Rússia. Assim, fomos obrigados a nos portar qual asno embriagado numa jaula de tigres, para demonstrar perante todos os povos da Europa sermos possuidores de reservas ocultas. Deste modo não trouxemos vanta- gens para o povo e o colocamos em situação desesperadora.

  3. Por este motivo, sou de opinião não devermos aguardar so- corro estranho e tampouco simularmos poder e paciência maiores do que realmente temos. Na Terra a ajuda nos foi garantida condi- cionalmente por parte do Ministro vienense; entretanto, estabele- cemos outras condições que, por sua vez, não foram aceitas. Assim, ficamos entre a cruz e a caldeirinha. O mesmo nos poderá suceder aqui, caso procuremos adiar a aceitação de socorro baseando-nos em pretensões aparentemente justificáveis. Naquele apelo maravilhoso se dizia: Dirigi-vos ao Senhor Jesus, que sereis socorridos!

  4. Os prós e os contras apresentados pelo sr. e o franciscano se tornaram insuportáveis! Acaso modificaram nossa situação? Por isto, chega de hesitações; convém agirmos dentro das condições estabe-

lecidas! Muito embora nos encontremos numa treva impenetrável, percebo não ter sido o homem criado para a Terra — onde apenas temos de passar uma vida que, a bem dizer, dura só de hoje para amanhã — mas devemos nos preparar para um mundo puro e eter- no, facilmente comportando a máxima bem-aventurança.

  1. Se tivéssemos ficado fiéis, obedientes e submissos ao regi- me imperialista, suportando certa opressão imposta em benefício de todos, nossa situação seria outra. Rebelando-nos contra o Governo permitido por Deus, para nos tornarmos os próprios regentes, rece- bemos a paga que, a meu ver, foi bem merecida; no entanto, o sr. procura melhorá-la através de sua tendência radicalista! Penso ser isto mais difícil do que apossar-se da coroa da Hungria! Onde estão os aplausos dirigidos ao sr. e ao seu rival Kossut? Tudo continua si- lencioso, não se notando o zunir de uma mosca! Peço-lhe, por isto, deixar de tolice; basta termos produzido na Terra as piores peças da tolice humana. Acaso deveríamos continuar deste modo? Não me prendo mais a partido de espécie alguma, a não ser à obediência e humildade plenas. Assim, exclamo: Senhor Jesus, Deus de Justiça e Amor, que nos libertaste na cruz com o Teu sangue santificado, socorre a todos nós nesta aflição trevosa! Não ouve o palavreado tolo e orgulhoso de um democrata da orgulhosa nobreza húngara, para a qual o povo não passa de escória! Atende-nos, pobres diabos, e ajuda-nos dentro de Tua Graça e Misericórdia, livrando-nos de um sofrimento que, por certo, já dura alguns milênios!”

CAPÍTULO 139

Faz-se a luz na alma do conde. Surgem uma cordilheira e um palácio maravilhosos. Aproximação de um mensageiro celeste

  1. Com tal exclamação do orador, o conde, aborrecido, vira as costas para a assembleia e faz menção de querer fugir. O franciscano o impede, dizendo: “Sr. conde, pare! Em nossa pátria o sr. agiu como

Ministro e nós obedecemos dentro das leis! Agora aproxima-se o Juiz Eterno e o sr. terá de responder por nós! Compreendeu?”

  1. O fidalgo, perturbado com o rigor incomum do padre, e ain- da sob a reação anterior, diz: “Está bem, está bem! Peço-vos apenas não me assassinardes qual salteador! Farei tudo que quiserdes!” Diz o franciscano: “Mas, qual será nosso destino diante do Juiz Supremo?”

  2. Responde o magiar: “Caro amigo, não ouviu que Jesus deseja ser Misericordioso com todos nós? Como, então, poderia julgar-

-nos? Para que fim deveria o Onipotente e Onisciente estabelecer um confronto com suas ínfimas criaturas? Para levá-las à confissão plena e à condenação própria? Eis o ponto fraco de um sacerdote católico, incutindo à Divindade fraquezas humanas. Deus é Bom e Misericordioso para quem o deseja ser. Quem for por Ele desconsi- derado não terá recurso, e muito menos partindo de um pedido do conde Bathianyi. Entendeu isto?”

  1. Assegura o franciscano: “Como não? Veremos quem, no fi- nal, terá razão. Segundo me parece, está-se fazendo uma claridade a Leste! Por certo nossa situação mudará! Aliás, deveríamos perceber qualquer coisa, caso haja algo para se ver.”

  2. Diz o orador, Miklosch: “Caros amigos e irmãos, ouvi-me; pois minha alma recebeu uma intuição que desejo transmitir-vos. To- dos nós somos igualmente infelizes e nenhum leva vantagens. Que tal se permanecêssemos unidos com amor e amizade fraternos, sem nos acusarmos reciprocamente, aguardando a resolução da Onipotên- cia Divina para conosco? Já é sofrimento inaudito temermos a Deus, como a pomba diante do condor. Por que deveríamos aumentar nos- sa aflição? Julgais com isto amenizar o Julgamento de Deus? Ele age dentro de Sua Vontade e nada O fará desistir de um julgamento; pois na Escritura consta: ‘Céus e Terra desaparecerão; Minhas Palavras, porém, jamais!’ Estranho, está clareando cada vez mais e o céu já está azul; só não vejo estrelas. Certamente não existem aqui!”

  3. Aplaude o conde: “Bravo, amigo Miklosch, teu discurso me agrada mais do que o do padre Cipriano! Realmente, um sacerdo- te católico continua para sempre uma criatura insensível! Ser-lhe-á,

porém, perdoado! De agora em diante não mais me elevarei, ainda que tratando-se de um inimigo intransigente! Que Deus nos dê a justa compreensão e a paciência verdadeira e firme! A Sua Vontade seja conosco!” A esta exclamação do conde, a neblina se torna mais transparente e todos têm a impressão de conhecer esta região.

  1. Após certo tempo, Miklosch descobre em direção ao Norte uma enorme cordilheira e diz: “Oh, amigos, caros amigos! Vede es- tas montanhas! Pela primeira vez deparamos com terra firme neste mundo encantado! Sempre foram as montanhas meu ponto fraco. Não há o que se compare com o majestoso panorama de uma cordi- lheira! Ela satisfaz e estimula o coração faminto do homem, desper- tando-lhe a fé e o amor a Deus. Como me empolga este quadro! O cume é colossal e na Terra não haverá algo idêntico! Acaso também vedes a cordilheira?”

  2. Exclamam todos: “Sim, sim! Que maravilha! Mas deve estar muito distante, a julgar pela coloração azulada; entretanto, quase que se destronca o pescoço ao olhar para o ponto culminante! Gra- ças a Deus, que ora estamos vendo algo! Entretanto, é estranho que o lado Sul ainda se ache coberto de neblina, exceto uma ligeira clari- dade! Caso aqui exista um Sol, deve estar muito abaixo do horizon- te, porquanto não percebemos seus raios nos picos elevados.”

  3. Obtempera o conde: “Pelo que me parece, já há um colorido avermelhado. Seu aspecto é deveras encantador! Se tivéssemos um guia, seria eu o primeiro a galgar a cordilheira. Pelo centro talvez não fosse difícil e, além disto, nada perderíamos aqui. Que acha, padre Cipriano?”

  4. Responde ele: “Que direi? Já falei bastante e ninguém me deu atenção. Ficarei calado e farei aquilo que me agradar! Se fordes galgar a montanha, naturalmente não ficarei aqui sozinho! Presumo ser melhor ficarmos do que nos submetermos à vertigem das alturas!”

  5. Aduz Miklosch: “Também concordo! Embora fôssemos es- píritos e mais leves do que na Terra, não me arriscaria a dar um salto mortal de tais alturas! Sinto que em breve teremos visitas estranhas e, se não me engano, alguém vem em nossa direção!”

  1. Diz o conde: “Também vejo uma pessoa de veste preguea- da. Talvez se trate de um justiçado recém-vindo da Terra?”

  2. Obtempera o franciscano: “Neste caso, estaria como nós em trajes terrenos. Desde a época dos gregos e romanos ninguém mais usou roupa pregueada. Deve ser cidadão antigo deste mundo. Em breve saberemos quem é; vou chamá-lo!” Interrompe Miklos- ch: “Não é preciso, porquanto vem em nossa direção. Sua aproxi- mação produz efeito muito benéfico sobre mim! Deve ser muito bom! Quanto mais perto chega, tanto mais clareia! Oh, vede, em direção ao Sul: atrás desta entidade percebo os contornos de um palácio enorme!”

  3. Todos se viram para lá e se admiram com a descoberta feita por Miklosch. O conde, então, diz: “Tive razão quando disse para não nos afastarmos, pois, com mais alguns passos, teríamos batido com o nariz naquele prédio!” Diz o franciscano: “Não importa; na Eternidade pouca diferença fazem uns minutos a mais ou a me- nos. Silêncio! Aquele homem, por certo morador do palácio, já está bem próximo e a educação manda que o recebamos, porque certa- mente virá por nossa causa.” Todos concordam e se encaminham para ele. Uma vez a seu lado, o conde toma da palavra e diz: “Com licença, para onde vai com tanta pressa? Seu caminho talvez seja muito longo!”

  4. Diz o estranho: “Sede bem-vindos, caros amigos e irmãos! Vim aqui simplesmente por vossa causa; pois ouvi vossas vozes e saí às pressas para vos prestar auxílio. Moro naquela casa que vedes, ainda um tanto nublada.” Indaga o conde: “Ela te pertence?”

  5. Diz o estranho: “Sim, mais ou menos. Aqui não existe pro- priedade na acepção da palavra; tudo é posse comum, existindo nes- te Reino a verdadeira democracia. Os bens individuais pertencem a todos de índole unificada. Assim, também, podem usufruir de tudo, sem perguntar quem seja o dono. Prevalece a liberdade plena, na qual cada espírito livre poderá ordenar, sem interferência alheia. Cada um recebe o que lhe é afim.”

  1. Diz o conde: “É realmente uma ordem formidável! Sempre foi o nosso ideal na Terra, sem o alcançarmos, pois lá impera o di- reito do mais forte. Aqui parece valer o do primeiro proprietário ou talvez a antiga autocracia?”

  2. Responde o estranho: “É quase isto; entretanto, ainda é di- ferente. Aqui só rege um direito, o do amor liberto e puro. O direito será de acordo com o amor! O princípio básico da vida é: Fazei o que quiserdes que se vos faça! Como cada um adota este axioma, outor- ga a todos o direito pleno de usufruir de tudo que possui, porque, em caso inverso, poderá fazer o mesmo. Já vedes com mais nitidez aquela casa. Eu vos afirmo possuirdes o pleno direito de sua posse, porquanto seu dono fará o mesmo uso daquilo que porventura vos for concedido. Concordais com este princípio jurídico?”

  3. Diz o conde: “Amigo, eis o Comunismo perfeito, ou seja, o antigo Cristianismo puro! Na Terra estamos longe de tal jurisprudên- cia; entretanto, é a melhor e mais natural Constituição de um povo. O único mal consiste em encontrar-se a preguiça na vanguarda.”

  4. Diz o estranho: “Amigo, enganas-te! O ocioso e o diligen- te aqui não têm relação, porque o primeiro de modo algum há de querer o que seja da vontade do segundo! Prevalece a afinidade, en- quanto se exclui o heterogêneo. Pois, se o máximo princípio jurídico reza que cada um deverá fazer ao próximo o que deseja que se lhe faça, não é viável que o preguiçoso deseje tudo do irmão diligente, sem lhe retribuir na mesma medida. Aqui cada espírito procura ser útil a todos. Quem for preguiçoso e não compartilhar deste ideal se revoltará diante de tal regime cosmopolita e em breve procurará a companhia de afins. O futuro de um grupo preguiçoso, inteiramen- te isolado, todos vós podereis calcular!

  5. Reconhecendo a única jurisprudência deste mundo capaz de excluir a morte, portai-vos como é exigido, em vosso próprio in- teresse, que sereis cidadãos perfeitos no Reino dos espíritos; podereis fazer uso de tudo se quiserdes vos confortar naquela casa. Depende somente de vossa firme vontade em querer ser úteis a ela.”

  1. Responde o fidalgo: “Mui nobre amigo, isto se subentende; pois preferiria não existir do que aceitar algo de uma pessoa que não pudesse retribuir de alguma forma. Esta minha opinião é a de todos, pelo que presto fiança conscientemente. Presumindo seres habitante desta região há mais tempo, queira dizer-nos como podemos nos dirigir a Jesus, o Crucificado, Senhor único de Céus e Terra? Onde está Ele? Nossos olhos pecaminosos poderiam ver, por alguns instan- tes, o Seu Semblante Santificado?

  2. Quando aqui ainda havia treva completa, fomos por diver- sas vezes convidados a nos dirigir a Ele, caso quiséssemos ser socor- ridos. No começo interpretei isto como engano acústico. Pouco a pouco a situação se tornou mais compreensível; mas como agir, eis outra questão! Ninguém melhor do que tu será capaz de responder.”

  3. Concorda o estranho: “Realmente, pois neste mundo estou, como se diz, em casa, em toda parte. Quanto ao vosso pedido, já vos dirigistes a Jesus, razão por que tudo se esclareceu e nada mais tenho a dizer. Conservai o Senhor em vosso coração, que o melhor auxílio vos será facultado. É preciso banirdes de vosso íntimo or- gulho, altivez, presunção, vingança e a sensualidade em relação ao sexo feminino, entregando tudo a Jesus. Assim, não só O vereis por alguns instantes, mas permanecereis eternamente com Ele, pois Sua Bondade é Imensurável!”

CAPÍTULO 140

Prosseguem as indagações acerca de Jesus e de Seu Paradeiro

  1. Diz Miklosch, extasiado com as palavras agradáveis do es- tranho: “Caro amigo, dás impressão de conheceres de perto a Jesus, Senhor e Deus. Fornece-nos uma pequena explicação quanto à Sua Pessoa e mostra-nos onde Ele costuma Se encontrar com Seus Ami- gos felizes.”

  2. Diz o estranho: “Meus caros, referindo-Me à primeira per- gunta, tenho que vos dizer que tenho grande Semelhança com Ele.

Tanto o Seu Físico quanto a Sua Voz são idênticos aos Meus. Quem Me vir, verá a Perfeita Semelhança de Jesus, o Senhor!

  1. No que diz respeito ao local de Sua Permanência, a resposta é mais difícil, embora tudo dê no mesmo. De modo geral, Ele habita no Eterno Leste e, partindo do ponto de vista natural, a imensa re- gião da constelação do Leão, isto é, no correspondente Sol Central, que abarca o natural sob o nome de Régulo, irradiando luz para todo o Universo. Compreendestes?”

  2. Confirma o conde: “Sim, à medida do possível. Não resta dúvida ter sido tua orientação do local um tanto obscura. Quanto a ser uma só coisa tua semelhança com Jesus e Seu local permanen- te — vais me desculpar, mas isto é enigmático. Que relação poderá existir entre ambos? Certamente não te expressaste bem. Tem, pois, a bondade de esclarecer este ponto.”

  3. Diz o estranho: “Meu caro Bathianyi, aqui as coisas andam assim. Não é preciso que tudo se torne claro de uma só vez. Não per- cebes como esta região também não se desfaz da neblina de modo abrupto? O mesmo acontece com certas indagações. Uma resposta completa faz com que o espírito se torne preguiçoso, por não mais haver outro assunto a pesquisar. Ela sendo velada, o espírito tudo fará para orientar-se acerca de uma pequena dúvida. Vê, quanto à Fi- gura de Jesus, o Senhor, não fizeste objeções e teu espírito entregou-

-se ao ócio, nada mais perguntando. A incerteza da segunda resposta despertou-o novamente, forçando-te a prosseguir nas indagações. Isto é muito benéfico! Não sejas escrupuloso quando surgirem futu- ros enigmas, pois em tempo oportuno tudo te será claro!”

  1. Diz o conde: “Tudo isto é certo e verdadeiro, contudo é bem místico!”

  2. Interrompe o franciscano: “E daí? Não convém estarmos feli- zes por receber tanta orientação deste amigo, ao invés de criticarmos suas palavras maravilhosas? Pessoalmente, não me preocupo com a segunda resposta; enquanto o sr. pretende ficar com a mão toda quando se lhe dá o dedo mindinho. Nisto não vejo educação, virtu- de tão cultivada pelo sr.!”

  1. Diz o nobre: “Meu caro, isto não é de sua conta! Querendo ser espiritualmente preguiçoso, isto é de sua responsabilidade; não espere tal atitude de minha parte.”

  2. Interrompe o estranho: “Calma, calma, amigos! Com irrita- ção nada se consegue de importante e verdadeiro! O amor deverá ser vosso guia!”

CAPÍTULO 141

O franciscano discursa sobre o amor e critica o conde em virtude de seu título. Miklosch interfere

  1. Exclama o franciscano: “Ouviu, sr. conde, o que acaba de falar nosso amigo nobre e bondoso? O amor deve ser nosso guia. Es- sas poucas palavras expressam muita coisa. O amor, o grande amor santificado! Eis onde se ocultam todos os segredos da vida! Também conhecemos amor, isto é, amor-próprio e amor carnal. Com tais inclinações enfrentamos muitas aventuras amorosas na vida. Mas o Amor Divino, que ainda na cruz pediu perdão ao Pai Eterno pelas dores indizíveis praticadas pelos assassinos — com este Amor nós dois jamais sonhamos! Todavia, ele encerra tudo que seja indispen- sável à vida!

  2. Aniquilar os inimigos, desejar-lhes toda sorte de misérias, dizimar o trono austríaco e entregar seus donos ao inferno — eis do que seríamos capazes! Abençoar os que nos maldizem, fazer o bem aos que nos prejudicam e acolher quem nos perseguiu — disto não há vestígios em nosso coração. Até hoje só pensamos em vin- gança. Não constitui honra em se condenar o próximo através do poder legal e, fácil, odiar-se o semelhante por causa de divergências, declarando-o não merecedor da Graça Divina. Tornar-se, porém, mestre das próprias paixões, aplicando o puro amor diante das fra- quezas dos ignorantes, desejar-lhes Misericórdia e Perdão do Alto, não obstante suas ações descabidas, e suportar a todos com a mesma paciência e meiguice — eis uma arte diversa do que pretende fazer o mundo à moda magiar, polonesa ou russa!

  1. Se não me engano, este nosso amigo, ainda desconhecido, mencionou o Amor Divino que deveria se tornar nosso guia! Como poderá isto se realizar, quando não nos entendemos mais do que cão e gato, conjecturando a pior vingança sobre os nossos inimigos? Para falar com sinceridade, o que mais me aborrece no sr. é que nem pre- tende desistir de seu título. Já fiz várias tentativas, mas o sr. não quer me compreender. De há muito renunciei ao ‘Padre franciscano’! Por que não faz o mesmo? Creia-me, jamais teria sido possível ofendê-lo com uma sílaba sequer se não fosse sua tendência aristocrata, que de modo algum se presta para o mundo espiritual. Peço-lhe, para sua própria salvação, desistir de uma vez para sempre do ‘conde’ Bathianyi, e jamais o sr. ouvirá uma palavra que o possa melindrar; do mesmo modo, peço-lhe perdão por todas as ofensas praticadas. Não querendo renunciar por minha causa, faça-o em virtude deste amigo nobre e bondoso que tantas palavras confortadoras proferiu.”

  2. Reage o conde: “Caro Cipriano, tão facilmente não vendo meu título, pois minha família é antiquíssima. Além disto, nosso amigo, que parece muito sábio, nada disto exigiu! Compreendeu?” Responde o monge: “Oh, sim!” Prossegue o magiar: “Continua o sr. o que é, e eu o que sou! Não é de sua conta eu ser conde! Acaso não houve príncipes, condes e duques muito beatos? Porventura não me é possível amar a Deus tanto quanto um camponês? Presumo ser a fina educação de um cavalheiro mais prestável para um puro amor do que a de um tratador de cavalos! Por que se classificam no Céu os anjos perfeitos de ‘arcanjos’, ‘príncipes da luz’ e ‘mensageiros do Poder Divino’? A Própria Divindade instituiu determinada classifi- cação entre os primeiros anjos criados e tal ordem se percebe entre os corpos cósmicos, montanhas, rios, lagos, mares, plantas e animais, de tal forma a um servir a outro; ainda assim, o Sol continua Sol e não pode ser reduzido a simples planeta; e entre o rio Amazonas e um riacho, por certo, haverá grande diferença.

  3. Por que teria Jehovah naquela época eleito Saul, David e Sa- lomão para reis do povo judaico? A julgar pelo sr., deveria Ele ungir o povo todo para tal finalidade? Pelo que sei, Deus predisse somente

a David que iria fazer surgir de sua estirpe, cuja duração seria eterna, o futuro Messias do mundo. Pela sua lógica, Deus cometeu grande erro por ter dado preferência a umaentre milhões de criaturas. Nun- ca leu na Crônica como ficou provada a primogenitura de Jesus, partindo desde Adão? Como pretende o sr. sustar uma classificação instituída pela Própria Divindade? Acaso eu mesmo me fiz conde, ou não foi da Vontade de Deus que minha família fosse elevada à categoria da alta nobreza? Sou conde pela Determinação Divina e não posso ser destituído deste privilégio por parte de um franciscano bilioso, entendeu?”

  1. Responde o monge: “E como...! Talvez melhor do que o sr. pensa! Através de seu discurso, salpicado de provas duvidosas, con- cluí nitidamente ser a coisa mais difícil ao homem humilhar-se e de- sistir dos privilégios de nobreza adquiridos no mundo. Além disto, deduzi que será dificílimo aos grandes se tornarem como as crianças, que ainda nada sentem das prerrogativas mundanas, possuindo jus- tamente por tal diminuição terrena a capacidade de entrarem no Reino de Deus. De mais a mais, encontrei positivado o que Jesus dissera ao rico mancebo, isto é, ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico ou nobre ingressar no Rei- no Celeste.

  2. Amigo, porventura é a semente de mostarda, com que Deus Mesmo comparou o Seu Reino, semelhante ao rio Amazonas? É entre todas a menor! Se Ele usou tal comparação, no que por certo deseja apontar a máxima humildade humana, não é possível admi- tir-se que aquele rio caiba em cima da semente de mostarda. Jesus ainda exemplificou que as aves haveriam de morar nos galhos da mostardeira. Não teria sido mais justo se tivesse considerado a no- breza terrena, dizendo que nela habitariam condores, águias, abutres e avestruzes, a fim de demonstrar ser preciso o homem ser ao menos barão para conseguir ingresso no Reino do Céu?

  3. Meu caro conde, o sr. poderá apontar mil argumentos, que eu repetirei sempre o ditame do Cristo: Tudo que de qualquer ma- neira for grande, elevado e maravilhoso diante do mundo é para

Deus um horror! Aposto tudo que quiser que nós, caso tenhamos algum dia tamanha Graça de entrar no Reino de Deus, não encon- traremos David e Salomão como reis, tampouco o santo rei Estefâ- nio da Hungria, nem príncipes e condes Bathianyi; caso estejam no Céu, serão irmãos queridos e atenciosos, que apenas terão um Pai, Deus e Senhor! No inferno, porém, será bem possível que aristocra- tas arraigados se homenageiem! Se disse uma inverdade, este nosso bom amigo poderá me castigar; pois ele saberá melhor como fazer justiça entre nós!”

  1. Replica o conde: “A meu ver, não necessitamos de juiz, por- que cada um de nós tem razão. Não criarei impedimentos para sua futura bem-aventurança e espero o mesmo do sr. Deste modo, dis- pensamo-nos do julgamento.” Diz o franciscano: “Tudo se poderá conquistar, até mesmo um Judas Iscariotes; mas, perante um nobre da Hungria, todas as tentativas serão baldadas!”

  2. Intervém Miklosch, que entrementes havia palestrado com o estranho: “Amigos, que discussão! Tudo isto não adianta; não conseguiremos melhorar-nos, porque cada um de nós é mau. Que utilidade teria a doutrinação recíproca se nada de bom temos para apresentar, podendo dizer um do outro: Como podes querer me ensinar a boa ordem, enquanto te encontras em desordem? Equi- libra-te primeiro e, caso me agrade teu exemplo, espera que eu te peça para me ensinares teus princípios, demonstrando os privilégios de tua organização. Por ora nos faltam quaisquer experiências neste mundo novo e nada sabemos de seus caminhos e condições. Como, portanto, pretendermos ensinar alguém?

  3. Tua dissertação, caro Cipriano, foi boa e evangélica, e falada do púlpito terreno teria produzido grande sensação e bom efeito; mas qual foi a reação de nosso amigo Bathianyi? Precisamente o contrário do que esperavas! Qual o motivo disto? O mesmo que aquilo dito pelo Cristo aos fariseus quando os apresentou como guias cegos, jamais podendo conduzir outro cego.

  4. Aqui em nosso meio se acha um guia experimentado e bem orientado neste mundo. A ele convém pedir que nos indique o justo

caminho. Estou convicto de que uma palavra sua tenha mais efeito do que nós nos criticando durante uma eternidade.”

  1. Diz o conde: “Concordo e farei tudo o que for exigido. Não nego que o último discurso de Cipriano foi evangélico e acei- tável; mas quem lhe deu o direito de me querer conduzir? Em nada é melhor do que eu. Um ensinamento verdadeiro tem que surgir de um coração meigo, puro e iluminado, e não pode ser salpicado de retórica insinuante. Pois quem pretende melhorar-me não me pode querer melindrar. Tua proposta, Miklosch, é diferente e será por mim aceita!”

  2. Aduz o franciscano: “Se todos concordarem — o que há muito é meu desejo — estaremos na melhor ordem! Peçamos a este bom amigo que nos oriente, pois tudo faremos para segui-lo!”

CAPÍTULO 142

Prédica rigorosa do estranho contra a tendência da crítica

  1. Diz o estranho: “Meus queridos amigos, não vos exijo qual- quer pedido, mas simplesmente um coração obediente e meigo. Todo o resto virá por si só, nada mais vos faltando para todo o sem- pre. É preciso não vos incompatibilizardes em virtude de opiniões diversas, tampouco acusar-vos de múltiplos pecados como se vos coubesse direito de julgamento e condenação.

  2. Estando todos mais ou menos orientados na Escritura, deveis saber cair em julgamento quem disser ao irmão ‘patife’; e classifican- do o próximo de ‘tolo’, ter-se-á feito réu do eterno fogo do inferno. Como, pois, podeis discutir? Digo-vos: cada um de vós está cheio de erros e males, tendo motivo de sobejo para varrer a soleira de sua porta! Por isto nenhum deve se estender acerca dos pecados do irmão, pois isto constitui um horror para Deus.

  3. Bem sei como na Terra irmãos se guerreiam por mero orgu- lho e cobiça, cada qual querendo ser mais inteligente do que o ou- tro, julgando-se isento de falhas, pintando o semelhante com todas as cores do inferno. Principalmente os mais abastados são malquis-

tos e criticados pelos menos favorecidos, no que realmente o espírito de usura dos primeiros dá motivo. Sendo o rico mais poderoso, e o pobre obrigado a procurar emprego e pão com ele — conferindo-lhe deste modo a supremacia — ele não o faz por amor, mas por necessi- dade, e não raro se mortifica por ser subordinado ao outro, enquan- to preferiria dominá-lo de toda maneira. Tais situações na Terra são deveras acabrunhadoras em relação ao Verbo puro de Deus.

  1. Mas aqui, no Reino dos espíritos, onde não existem deficiên- cia, pobreza e vantagem, tais expressões de ódio jamais devem surgir! Digo-vos francamente: Quem odiar seu irmão, seja qual for o mo- tivo, estará isento da Graça Divina e sua alma é um demônio cheio de orgulho, não querendo reconciliar-se; pois seu constante desejo é ver os demais assolados por toda sorte de desgraças e atribulações, porque julga ter sido vítima de sua suposta injustiça.

  2. Vossos ensinamentos recíprocos podem ter sido muito bons e justos, mas de que adiantam quando ocultam certa tendência de ambição, domínio, amor-próprio e ganância? Quem quiser efetiva- mente ensinar ao próximo terá antes de tudo que afastar a trave do próprio olho e só então dirigir-se ao irmão, compenetrado de amor, dizendo: ‘Meu caro, vejo um argueiro perturbar tua visão; permite que eu o tire com todo cuidado!’ Deste modo, qualquer ensinamen- to recíproco será pleno do efeito mais maravilhoso.

  3. Vede, Eu sou um justo Doutrinador, pois nada exijo de vós a não ser que aceiteis aquilo que vos sirva de benefício. Tereis que agir deste modo e vossas palavras serão abençoadas.

  4. Anteriormente o irmão Miklosch vos tratou desta forma e suas explicações imediatamente encontraram eco em vossos cora- ções. Se Cipriano e Bathianyi tivessem feito o mesmo, toda a assem- bleia estaria bem mais adiantada. Esses dois, porém, queriam provar dentro do Evangelho ser cada qual mais privilegiado, de sorte que suas palavras não tiveram êxito.

  5. Desisti, portanto, de tudo que manifeste aparência de supe- rioridade, do contrário não podereis vos tornar filhos do Pai Celeste. Qual seria o proveito caso conseguísseis, pelas explicações mútuas,

sobrepor-vos ao próximo, levando o maior dano à alma? Qual seria o recurso para libertá-la do lamaçal da perdição?

  1. Não conheceis a Prece do Senhor onde consta: Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores? — Se, porém, exigis condições de perdão dificilmente cumpridas, em que se baseia vosso pedido a Deus?

  2. Na Escritura se lê: Abençoai aos que vos maldizem e fazei caridade a quem vos odeia e deseja o mal! — Se, como amigos e companheiros de infortúnio, já vos estraçalhais, o que fareis aos vos- sos inimigos? Afirmo-vos que nenhum entrará no Reino do Céu an- tes que exclame, qual Cristo na cruz, do fundo do coração: Senhor, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem!

  3. Se todos estiverdes de acordo, acompanhai-Me àquela casa. Do contrário, ficai e procurai um albergue por conta própria. Pois vossa vontade é eternamente livre!”

  4. Diz Bathianyi: “Amigo, tuas palavras são quais setas aguça- das atingindo o alvo, entretanto não ferem o coração. Estão equili- bradas dentro da melhor ordem pela qual uma organização poderia viver feliz. Eu, e por certo nós todos, aceitamo-las com gratidão. Até mesmo me levam a perdoar sinceramente a todos os meus inimigos; pois tudo que fizeram foi praticado na fúria cega da vitória. Que Deus lhes perdoe! De minha parte nada me devem! Desejo apenas pedir ao Senhor de Céus e Terra que zele por minha mulher e filhos, conduzindo-os de tal forma a lhes tornar os caminhos de Deus mais fáceis do que o foram para mim!”

  5. Diz o estranho: “Caro irmão, não te preocupes com aquilo que ocorre na Terra. Disto Se incumbe o Senhor, que Se acha muito mais perto de vós do que supondes. Tua família necessita de uma boa humilhação, pois sem isso jamais chegará onde ora te encontras. Através de tal humilhação conhecerá a completa nulidade dos bens terrenos e até mesmo há de desprezá-los, a ponto de lhes ser mais fácil, após a morte, chegar ao Reino da Luz. Tu mesmo não te deves preocupar senão com o amor a Deus e a todos os irmãos; todo o resto te será dado por acréscimo.”

  1. Diz o franciscano: “Amigo, estou plenamente elucidado no que diz respeito a estes irmãos de infortúnio. Referindo-me aos demô- nios inclementes na Terra, não me conformarei tão facilmente como o amigo Bathianyi; pois o Próprio Pai no Céu convirá não ser brinca- deira o homem ser enforcado qual reles salteador. Por tamanho ultraje exijo de Deus uma justa vingança através de um castigo correspon- dente em nossos juízes; do contrário, meu coração não achará paz.”

  2. Diz o estranho: “Amigo, os que te justiçaram são tanto do Senhor quanto tu. Suponhamos que tivesses, por descuido, aplicado de modo próprio um ferimento nos pés, de sorte que, pela dor, co- meçasses a maldizer tuas mãos; alguém, então, diria: Isto foi obra de tuas mãos; vinga-te nelas e deixa que as cortem, pois não merecem compartilhar de teu corpo! Acaso darias ouvido a tal conselho?”

  3. Responde o monge: “Oh, Deus saberá preservar-me de ta- manha tolice! Que absurdo acrescentar uma dor tremenda a um grande sofrimento!”

  4. Diz o estranho: “Já consegui o que queria! Se não te agra- da o aumento de uma dor em virtude da mutilação criminosa de tuas mãos que, evidentemente, pecaram contra ti — como admitir que Deus Se conforme com a mutilação de Seus Membros, quando se tenham portado descuidadamente contra outrem? Como podes exi- gir de Deus aquilo que jamais farias contigo mesmo? Vê, assim como representas, com todos os teus membros, um indivíduo perfeito, a Divindade, com todos os Seus seres criados, perfaz uma Entidade Concreta, procurando curar da melhor maneira Suas Partículas en- fermas, capacitando-as para a finalidade eterna. Se Deus, o Senhor, entende curar tuas mágoas de modo diverso e mais eficientemente, ainda pensarás em vingança contra teus inimigos terrenos?”

  5. Diz o monge, um tanto encabulado: “Assim, claro que não! Aliás, digo em Nome de Deus: Concordarei com tudo que for da Vontade do Senhor! Espero, todavia, Ele não considerar pecado uma opinião trazida pela consequência aflitiva da Terra!”

  6. Aduz o estranho: “Se em teu coração te encontras equilibra- do, também estarás em ordem com Deus. Tão logo tiveres perdoa-

do, do fundo do coração, a todos os inimigos, teu livro de culpas estará apagado diante de Deus, podendo orar de coração e consciên- cia puros: Pai, perdoa-me todos os pecados, como também perdoei a todos os que contra mim erraram! — E Ele te perdoará e já o fez, antes que Lhe tivesses rogado!”

CAPÍTULO 143

Últimas dúvidas do monge. Os pecados mortais

  1. Diz o franciscano: “Agradeço-te, caro amigo, por explicação tão maravilhosa! É verdadeira e digna de Deus, e qualquer alma nela encontrará sua paz. Existem, porém, coisas e fatos considerados erros capitais da natureza humana e não é possível aplicar-se as mesmas medidas infligidas aos inimigos; como certos embustes praticados, que de modo algum poderão ser desfeitos. Além disto, impudicícia, violação, masturbação (até mesmo em locais santificados), são peca- dos sujeitos à eterna condenação por parte de Deus, e jamais pode- rão ser anulados, ainda que confessados antes do fuzilamento, pois deixam na alma certa mácula indestrutível. Por isto convém saber se a Divindade apagará tais máculas, caso Lhe peçamos perdão!”

  2. Responde o estranho: “Amigo, se porventura supuseres a Di- vindade mais Sábia do que as criaturas mais inteligentes e bondosas, saberás que Ela considera as fraquezas dos homens com maior com- preensão do que eles mesmos. Muito pecaste em vida porque muito foste tentado pela carne. Poderias ter vencido tais tentações, caso ti- vesses empregado verdadeiro rigor. Considerando tal controle mui- to cansativo e as distrações da vida natural demasiado agradáveis, continuaste o mesmo. Sem que o soubesses, a Divindade entrou em ação, fazendo-te sair da tua pacífica cela sensual para suportares o campo de batalha. Assim obtiveste uma oportunidade de estudar o fim da matéria e sua sensualidade, em quadros horrendos, deixan- do-te mais equilibrado. No final, teu próprio corpo chegou a sentir o valor de suas fraquezas carnais. Deste modo Deus castigou tua carne, libertando e purificando tua alma, e não precisas indagar de

tais pecados, pois eles acharam seu julgamento e fim junto à carne. Tudo que pertence a ela é com ela condenado e enterrado.

  1. Outra coisa acontece quando a alma se integrou na matéria; neste caso só pode ser atingida pelo mesmo destino do corpo. Con- tigo tal não acontece, o que poderias deduzir pelo fato de viveres aqui e não na tumba, embora sem o corpo; entretanto, tens noção de sua sorte.”

  2. Diz o franciscano: “Amigo, qual o destino das almas que compartilham da morte tenebrosa de seu corpo? Certamente irão para o inferno após a completa decomposição de seu ídolo?”

  3. Explica o estranho: “Nenhuma alma será privada de sua li- berdade, consciência e recordação. Receberá o que quiser. Querendo ressuscitar, tal se dará. Sendo de sua vontade descer aos infernos além do túmulo, o caminho não será impedido. Se bem que o infer- no seja permitido por Deus, a alma não é eternamente condenada e separada de todos os Céus — a não ser pela própria inclinação e livre arbítrio. Sendo o seu desejo dirigido para o Céu, todos nós a rece- beremos com carinho e amor, conduzindo-a pelo melhor caminho. Eis a Ordem de Deus.”

  4. Diz o franciscano: “Amigo, não nos poderias esclarecer acerca do inferno?”

  5. Diz o estranho: “Na Escritura consta: Tratai antes de mais nada da conquista do Reino de Deus, pois todo o resto vos será dado. — Vamos, portanto, fazer o mesmo! Encaminhai-vos Comi- go àquela casa, agora livre de toda neblina, onde recebereis maiores esclarecimentos. Que assim seja!”

CAPÍTULO 144

Estupefação diante da maravilha e grandiosidade da mencionada casa. As almas anseiam por Jesus

  1. Bathianyi caminha à direita e o franciscano à esquerda do estranho, enquanto Miklosch faz-se guia da assembleia, na vanguar- da Daquele. Quanto mais se aproximam do edifício, tanto mais se

extasiam com sua riqueza e majestade. Encontrando-se defronte, Bathianyi não mais se contém, exclamando: “Amigo! Não é possível ser obra de anjos ou espíritos das estrelas, pois somente a Mão de Deus consegue isto! Esta imensidade e harmonia insuperáveis repre- sentam algo jamais por nós contemplado! Se externamente já é tão deslumbrante, qual não será seu aspecto interior!”

  1. Diz o monge: “Tem razão! — Desculpe — o sr. tem razão!” Protesta o conde: “Não faças isto, pois somos todos irmãos!”

  2. Prossegue Cipriano: “Muito bem, caro amigo; foi este o meu desejo de há muito! Voltemos ao assunto: Conheço a Igreja de S. Pedro, em Roma, o Vaticano, com seus milhares de aposentos; en- tretanto, não é nem um caramujo comparado a este palácio! Cal- culando ligeiramente, nele caberiam cem vezes a população total do orbe! Observa a extensão de sua frente, que atinge o Infinito! Quanto à altura, presumo que o cimo atingiria a Lua, caso existisse aqui. Isto é de enlouquecer!”

  3. Dirige-se o conde ao estranho: “Dize-nos, caro amigo, acaso Jesus Cristo, Senhor e Deus, mora neste edifício colossal? Pois é de- masiado grande e maravilhoso, mesmo para os anjos mais graduados!”

  4. Responde o estranho, ainda desconhecido da assembleia: “Sim, costuma tomar morada em tais casas, portanto também nesta, com Seus amigos e filhos. Neste momento não está em casa, mas certamente chegará quando entrardes. É preciso ter cuidado para reconhecê-Lo!”

  5. Diz o conde: “Oh, amigo! Se me fosse possível ver a Jesus uma só vez — eu nada mais exigiria para minha felicidade! Falo do Cristo verdadeiro e não de uma fantasia católica!” Aduz o monge: “Eu também nada mais desejaria!”

  6. Adianta-se ainda um outro da assembleia e diz: “Oh, por favor! Só queria ver a Jesus e, se fosse possível, também São José, por ser meu padrinho! Acima de tudo, porém, o Cristo!” Diz o estranho: “Mas, por que desejas isto tão ardentemente?” Responde José: “Ora, por quê? Porque O amo intensamente!” Diz o estranho: “Está bem; mas qual o motivo de Lhe dedicares tão grande amor?” Responde

José: “Ora! Por ser o Cristo, Deus, que me salvou do inferno, e por ser também o Bom Salvador!” Prossegue o estranho: “Que fa- rias caso chegasses a vê-Lo?” Responde ele: “Exclamaria: Salve, Jesus Cristo! — E, se pudesse, atirar-me-ia em Seus Braços!”

  1. Insiste o estranho: “Já vejo que O amas realmente! Mas, que farias se Ele não te amasse tanto como tu?” Diz José: “Oh, não importa, porquanto certamente não O mereço!” Aduz o estranho: “Meu caro, podes voltar para junto de teus companheiros com a certeza de que o Senhor Jesus te ama muito mais do que tu a Ele!”

  2. José assim faz e o estranho diz ao conde: “Ele falou com o coração e não com o intelecto! É o mais inocente entre vós e de modo algum merece o castigo da morte! Tenho que considerá-lo es- pecialmente! Agora chegamos ao portal; vamos visitar os aposentos deste edifício!”

  3. Interrompe o nobre: “Caro amigo, com licença! Dize-nos, por favor, como reconheceremos a Jesus quando chegar com os in- contáveis anjos?” Diz o estranho: “Deixai isto por Minha conta! Já vos disse ser Ele parecido Comigo. Basta Me olhardes e comparardes com alguém que se pareça Comigo — e O tereis encontrado!” Diz o conde: “Agradeço-te por ficares conosco, assim o Cristo não nos poderá fugir! Isto é ótimo!”

  4. Diz Miklosch, na retaguarda: “Amigos, pelo que vejo somos ainda um pouco cegos. Afirmo-vos ter um pressentimento estra- nho!” Interrompe o monge: “Que pressentimento?” Responde Mi- klosch: “Nada mais vos digo! Dentro em breve também o sentireis, dizendo: Como podíamos andar tão cegos? — Entendestes?”

  5. Responde o fidalgo: “Caros amigos, já nos encontramos no limiar de um palácio inconcebível até no Sol, na Terra e na Lua. Seu ingresso nos trará, por certo, condição de vida jamais sonhada. Precisamente antes desta entrada, de consequências imprevistas, Mi- klosch nos chamou a atenção para um pressentimento importante, e que muito se admira por nós nada disto sentirmos. Por isto, opino que nos esclareça antes de entrarmos. E nosso amigo terá mais um pouco de paciência!”

  1. Afirma Miklosch: “Meu pressentimento é deveras peculiar; no entanto, não posso descrevê-lo. Tenho a impressão de que acon- tece conosco o mesmo que aconteceu aos dois discípulos a caminho de Emaús, onde o Senhor Mesmo caminhou com eles sem que O reconhecessem! Poderia até mesmo fazer uma aposta neste sentido! Mas, no final tudo se explicará!”

  2. Protesta o conde: “Vê só que alma apaixonada! Acaso Cris- to, o Senhor, descerá de Seus Céus mais elevados simplesmente qual Filho do homem entre os judeus? Que pensas? Reflete: Quem é o Cristo, e quem somos nós? Teu pressentimento nada mais é do que um castelo no ar, também construído por mim, quando garoto. Mas, onde ficou a realidade? Confesso, contudo, agradar-me teu castelo no ar mais do que este edifício, e caso se tornasse realidade, eu seria o espírito mais feliz do Universo! Mas, deixemos isto! Pois, ainda que Ele seja Benigno e Condescendente, duvido ser tão Mise- ricordioso como esperamos! Tenho razão?”

  3. Responde Miklosch: “Sim, entretanto não consigo livrar-

-me do pressentimento e meu coração vibra fortemente!” Diz o conde: “Tolo, o meu também! Isto é ocasionado pela próxima pene- tração nesta Casa de Deus, e pela incerteza daquilo que nos espera!” Acrescenta o outro: “É isto mesmo! Tens razão!”

  1. Diz o estranho: “Então, terminastes vossas conjecturas?” Responde o fidalgo: “Estamos de acordo. Seria, aliás, interessante recebermos de tua parte uma pequena explicação neste ponto. Mas, já estás com a mão no trinco; talvez ainda encontremos oportunida- de para esclarecer nosso raciocínio.”

  2. Diz o estranho: “Claro que sim! Agora tratemos de entrar! Portanto — abre-te, porta para a Vida Eterna!”

CAPÍTULO 145

Encontro com velhos conhecidos. Surpresas!

    1. No mesmo instante abre-se a porta! Um deslumbramento in- descritível irradia do primeiro salão e uma enorme multidão recebe os visitantes, em vestes de linho finíssimo, também pregueadas. Na vanguarda se acha o general, rodeado pelo monge Tomás e Dismas.

    2. Reconhecendo seu velho amigo, o conde, bastante feliz com essa surpresa, abraça-o com efusão e diz: “Sê bem-vindo nesta esfera mais abençoada, meu caro amigo e irmão! Como sou feliz por te encontrar, pois suponho que sejas bem-aventurado e nosso Deus e Senhor por certo me proporcionará o mesmo! Como tens passado aqui? E o que fazes?”

    3. Retribuindo o cumprimento, o general responde: “Caro ami- go, não há o que fazer aqui; apenas se goza de tudo aquilo que Jesus, o Senhor, nos proporciona tão fartamente através de Seu Amor e Bondade. Se tal gozo não estivesse ligado à maior variabilidade, se- ria preciso exclamar-se como fez Job: ‘Querido Pai, para um pouco de nos abençoar!’ Aqui se chega realmente a conhecer Jesus! Nada preciso contar-te, pois o futuro te esclarecerá. Pretendendo ter um vislumbre da Sabedoria, Onipotência e Amor Divinos, observa a maravilha desta sala!”

    4. Diz o conde: “Em boa hora me lembras de Jesus! Quem sabe Dele? Acaso já tiveste a imensa Graça de ver o Santíssimo? Já esteve aqui, e talvez volte? Como poderei reconhecê-Lo? Amo-O de tal forma que, sem Ele, todas essas maravilhas me parecem mortas! Tem a bondade de chamar-me a atenção quando Ele Se aproximar!”

    5. O general esboça um leve sorriso e diz, após certo tempo: “Amigo, dás impressão de alguém que não enxerga um palmo diante do nariz! Dize-me como imaginas Jesus, o Senhor. Em seguida, te direi algo surpreendente!”

    6. Diz o conde: “Teu pedido é estranho; todavia, obedecerei para saber do resto. Olha, imagino Jesus como Deus, na Glória indizível, rodeado de Seus apóstolos e falanges angelicais. Pois na

Escritura se lê que Ele voltará em nuvens luminosas, das quais se projetarão, a cada momento, trilhões de raios para o Infinito! Eis minha opinião; agora dize-me o que prometeste!”

    1. Responde o general: “Irmão, tens uma ideia completamente errônea do Cristo. Já disse: Não enxergas um palmo diante do nariz! Nós todos ouvimos como este nosso maior amigo, cujo braço direi- to seguras com a mão esquerda, te deu as provas de reconhecimento do Cristo e, além disto, afirmou que o Senhor chegaria convosco a esta casa. Portanto, faze uma busca para veres se não encontras al- guém que Se Lhe pareça. Isto acontecendo, saberás ser Jesus! Pois te digo ser Ele tão simples e modesto como o foi na Terra, não havendo nem sombra de Glória!”

    2. Diz o conde: “Realmente, ele assim falou a todos nós. Preci- sarei de tempo para analisar milhares de pessoas a fim de descobrir uma possível semelhança com o nosso amigo. Este trabalho valerá a pena. A sala é espaçosa e bem iluminada e todos poderão se postar em fila, facilitando o encontro. Nas primeiras filas nada vejo; por- tanto, vamos adiante! Lá para trás, idem! Interessante é ver os mais afastados tão bem quanto os mais próximos; mas nosso amigo não parece ter irmão gêmeo! Lá nos fundos vejo mais um grupo que desejo analisar, caso seja permitido aproximar-me.”

    3. Diz o general: “Não faças cerimônia, aqui cada qual faz o que quer!” Em seguida, o fidalgo se dirige até lá em companhia do estranho. Quando estão bem próximos, o grupo cai de joelhos, de veneração, exclamando: “Salve, salve, ó Altíssimo!”

    4. O conde se assusta e diz ao companheiro: “Viu? Queria compará-los contigo e agora estão com as faces no solo e gritam não sei a quem: ‘Salve!’ Acaso isto se refere a um de nós? Ou, talvez, Jesus Se tenha aproximado?” Diz o estranho: “Espera um pouco! O grupo se levantará e poderás recomeçar a busca!”

    5. A um despercebido aceno do Senhor, todos se erguem e o conde percebe tratar-se de um grupo feminino; por isto ele diz: “Caro amigo, pelo que sei, Jesus, o Senhor, foi homem perfeito e por certo não mudou de sexo no Seu Reino Eterno! Queria apenas saber

por que fizeram aquela exclamação!” Diz o acompanhante: “Vai e pergunta-lhes!”

    1. Nem bem o conde se aproxima, com humildade, o grupo grita: “Afasta-te, nada temos em comum contigo, por seres pecador no Reino de Deus!”

    2. Ele recua imediatamente e diz às pessoas que também aí se acham há pouco tempo: “Tende cuidado, que não se tire algu- mas gramas de vossa santidade papal! Tolas, presumo sermos eu e meu amigo tão santos quanto vós! Vamos embora, meu irmão; com essas criaturas nada se consegue! O orgulho jesuíta me é in- suportável!”

    3. Diz seu acompanhante: “Amigo, não faças isto! Aqui é pre- ciso suportar-se tudo com a máxima paciência! Elas ainda não se acham na ordem perfeita; todavia, não distam muito da meta!”

    4. Afirma o conde: “Está certo; estranho somente seu trata- mento. Seja lá o que Deus quiser! Se ao menos tivesse alcançado meu propósito! É inexplicável ser minha única preocupação dirigida apenas a Jesus. Todas essas maravilhas celestes, aquelas beldades an- gelicais, são para mim simples figuras, enquanto não O encontrar. Já na Terra se torna estafante ouvir-se sobre o Ser Supremo; de uma visão completa nunca se ouviu falar, ao menos nesta época. Aqui, porém, onde, como espírito, se poderia ver o Espírito Divino, a existência se torna insuportável quando não se consegue aquilo que mais se deseja. Se tu, amigo, souberes onde Ele Se encontra, apon- ta-O, mesmo de longe!”

    5. Acrescenta o acompanhante: “Será difícil mostrá-Lo à dis- tância, pois quem não O vir primeiro de perto, não O verá de longe. Deves almejar vê-Lo junto a ti, e teu desejo se cumprirá!”

    6. Obtempera o fidalgo: “Seria ótimo, caso suportasse Sua Presença, mas dizem não ser isto possível nem aos próprios anjos!” Diz o estranho: “Amigo, caso Cristo, o Senhor, estivesse diante de ti, falando como ora falo, porventura ainda terias o mesmo receio de Sua Santidade?” Responde ele: “Bem, penso ser isto mais fácil; entretanto, teria que considerar Quem é Ele e quem sou eu. Ele — o

Todo, eu — o nada! Ainda assim, seria mais fácil do que Ele vindo em toda a Sua Glória!”

    1. Diz o acompanhante: “Que farias se, por exemplo, Eu Mes- mo fosse o Cristo, dando-Me a conhecer somente agora, por certos motivos? Qual seria tua reação?”

    2. Diz o conde: “Amigo, isto seria impor uma dura prova ao pobre diabo que sou! Realmente, se tu no final O fores, perderei minha fala! Dize-mo com certeza, a fim de que me dissolva de tanta veneração, amor e temor!”

    3. Digo Eu: “Sim, amigo, sou Eu Mesmo! E se duvidas, per- gunta aos outros! Teu amor atraiu-Me fortemente!”

CAPÍTULO 146

Momento supremo para o conde. O Senhor fala acerca da relação entre Pai e filho

  1. O conde, completamente fora de si pelo grande receio de um possível engano e igualmente temeroso de Minha Pessoa, não consegue assimilar Minha Explicação. Só após certo tempo de luta interna, pela qual o seu espírito rompe todos os laços, conseguin- do desta forma estender-se sobre a alma que o envolve, balbucia: “É — és — Tu? Tu? — o Eterno Senhor de tudo que comportam Espaço e Tempo e daquilo que existe acima deles em liberdade eter- na, percebendo de visão perfeita as profundezas impenetráveis de Tuas Criações milagrosas? — Meu Deus, meu Deus! — Eu, verme miserável pisado por outros, uma ínfima poeira no pó do pó, estou diante de Ti, o Mestre Eterno e Santo das Obras de esplendor infi- nito, surgidas de Tuas Mãos Poderosas — diante de Deus, Criador, Pai e Salvador Jesus? — Vinde, vós, espíritos felizes, e ajudai-me a sentir as impenetráveis bem-aventuranças celestes — sentir o que representa uma criatura achar-se pela primeira vez frente ao Criador! Além disto, não é concebível Ele falar qual homem simples e modes- to, levado através de Seu Próprio Amor a dirigir-Se com meiguice e docilidade qual irmão tratando um seu igual!

  1. Ó criaturas, perambulando por múltiplos atalhos na super- fície terrestre e no final de vossa peregrinação acabrunhadora vos achando cabisbaixas no destino incompreendido, sem saber para onde vos dirigirdes! Vinde aqui e em vossos corações conhecei Deus em Jesus, o Salvador Amoroso — e todos os vossos problemas du- rante a curta vida de provação se resolverão com facilidade!

  2. O verdadeiro e justo conhecimento de Deus vos demonstrará quão pouco é preciso para a criatura se orientar em Sua Presença, tornando-se excessivamente feliz! Não disputeis, como fazem cão e gato, as coisas terrenas, perecíveis e sem valor diante de Deus! Tratai, antes de mais nada, da conquista do Conhecimento e do Amor de Deus, amando-O pela Causa Divina como filhos de Um só Pai, perenemente Santo, Bondoso e Meigo, conseguindo assim muito mais para os vossos corações do que aquilo que o mundo inteiro vos poderia proporcionar!

  3. O que representa o posto mais relevante na Terra comparado à minha atual situação frente a Deus, o Senhor Visível, em cujo Amor e Sabedoria todos os espíritos celestes jamais conseguirão sa- ciar-se! — Meu Deus, quanta felicidade por este convívio Contigo e quão facilmente são esquecidas todas as misérias sucedidas na Terra. Onde se acham os meus inimigos? Realmente, poderia exclamar: Vinde a mim, inimigos ou amigos, e deixai-vos abraçar!”

  4. Após pronunciar tais palavras no mais elevado êxtase de amor, ele cai de joelhos, junta as mãos e diz: “Meu queridíssimo Jesus, deixa-me adorar-Te eternamente! Agora compreendo ser ape- nas possível sentir as maiores bem-aventuranças através da profunda veneração e adoração de Tua Pessoa! Por isto, rendo-Te louvores de gratidão por tudo que me fizeste passar de provações dolorosas, pois sei que foste movido pelo Teu Imenso Amor!

  5. Meu querido Jesus, fui um filho perdido que somente por meio de grande miséria conseguiu volver a Ti! Mas, agora, estou ao Teu lado! Aceita-me em Teu Reino como um dos mais simples e sê também Misericordioso para com todos os demais irmãos! E, se for de Tua Vontade, faze com que minha família venha a perder toda

a sua fortuna, para evitar a queda psíquica, podendo até mesmo esquecer-Te!”

  1. Digo Eu: “Levanta-te, caro irmão, e não faças tanto alarde! Deves perceber não ter Eu Me modificado por Me reconheceres! Nossas relações serão as de irmãos modestos e simples!

  2. Sou Deus, o Ser Eterno, pleno da Sabedoria, Poder e Força

  1. Diz o conde, erguendo-se lentamente: “Ó Pai, quão infinita- mente Bom és Tu! Se ao menos fosse capaz de louvar-Te à altura de Tua Santidade!”

  2. Digo Eu: “Acalma-te, irmão, e deixa o exagero! Teu coração é o maior louvor e agrado para Mim. Todo o resto faz mais ou me- nos parte dos beatos que muito me importunam! Vamos!”

CAPÍTULO 147

Contrição do conde. A maturação para o Conhecimento de Deus. O ignorante franciscano recebe orientação

  1. Diz o conde, totalmente contrito de amor e veneração: “Ó Senhor, em Teu Santo e Poderoso Nome, por certo é mais fácil di- zeres: Levanta e caminha! — do que eu, pecador, erguer-me diante de Ti, o Senhor Eterno do Infinito! Tenho a impressão de suceder o mesmo que a um verme — caso tivesse inteligência, se porventura a Terra lhe dissesse: Vem, ínfimo ser, para o qual a folha de um ar-

busto é um mundo cheio de maravilhas, levanta-te e me acompanha em minha viagem ao redor do Sol! — Senhor, tal companhia seria algo estranho para o orbe e dificilmente poderia ser observada por naturalistas, ainda que partindo de Urano e munidos de telescópios possantes. Entretanto, um simples inseto se prestaria melhor como satélite da Terra do que eu, um nada, como acompanhante de Deus Eterno, para o Qual a Criação toda não merece ser considerada como um simples ponto. Eu, espírito tolo, deveria acompanhar-Te? Tal pensamento é grandioso demais para um ser criado, cujo tama- nho físico e moral mal atinge cinco palmos, enquanto Tua Medida não pode ser calculada por eternidades! Deixa-me equilibrar-me, pois me sinto atordoado diante de Tua Grandiosidade!”

  1. Digo Eu: “Meu caro irmão, tornas-te realmente cansativo com teus elogios à Minha Onipotência, Força e Sabedoria! Chega-te a Meu lado e analisa o quanto Meu Nariz supera o teu! Irmão infan- til: como Deus, sou como sou, a fim de que sejas e te tornes aquilo que és e ainda serás. Além disto, és Minha Obra e se te consideras um ‘nada’, estás Me reduzindo; e presumo não ser esta tua intenção!”

  2. Responde Bathianyi: “Não, não, Senhor! Partindo de Ti, sou enorme! De mim, porém, nada! Levanto-me, pois Tua Palavra me ergueu!” Assim fazendo, ele se dirige a Mim e diz: “Senhor, Pai, Deus, Jesus! Estou curado pelo Teu Amor e Misericórdia e o receio desapareceu. Em compensação, um afeto incontido, cuja chama tornou-se verdadeira paixão, inunda o meu íntimo. Talvez também venha a se equilibrar pouco a pouco essa manifestação da vida es- piritual. Contudo, desejo abraçar-Te com toda minha alma, para morrer neste êxtase sublime! Senhor, permite que o faça!”

  3. Digo Eu: “Meu irmão, por ora isto te seria prejudicial, por- quanto teu espírito ainda não se firmou em tua alma. Tão logo ti- ver alcançado a justa consolidação, nos abraçaremos sem receio de qualquer dano. Sabes ser Eu, o quanto possível, homem como tu; entretanto, em Mim habita a Plenitude de Minha Divindade, o que o teu espírito não suportaria, pois romperia todas as algemas para se unir a Deus, sua origem e elemento eterno. Quando teu espírito

se tiver equilibrado em tua alma, e esta tornando-se plena da força de Meu Amor, poderás suportar o Meu Abraço sem te prejudicares.

  1. Acompanha-Me, pois, junto aos outros, a fim de que sejam elevados ao teu grau de conhecimento. Sua curiosidade ultrapassa a medida, pois ignoram o resultado de tua busca pela Pessoa do Cristo. Somente Miklosch é levado pelo forte pressentimento, que o franciscano procura conter, pois o resultado seria a adesão dos outros à sua opinião. Vamos depressa, para fazermos calar o monge.”

  2. Exclama o conde: “Ó Senhor, Bondade e Meiguice Eternas, falaste o que vem de minha alma! O franciscano é criatura boa, se é que alguma pessoa possa ser boa além de Ti; no que diz respeito ao seu conceito acerca da relação de Deus para com Suas criaturas, é deveras insuportável. Peço-te que o ilumines!” Concordo: “Está bem, está bem! Não fales tão alto, porquanto já estão bem próximo!”

  3. Enquanto nos encaminhamos para a assembleia, o francis- cano, de longe, diz ao conde: “Então, meu caro, qual o resultado de tua busca? Achaste o Senhor da vida e da morte, sobre o Céu e o inferno? Pelo que me parece, o famoso gêmeo não se apresentou, pois não vejo outro além de vós dois!”

  4. Retruca o fidalgo: “Meu amigo, nada disto é preciso, pois nós dois nos contentamos sem interferência de um terceiro. Com- preendeu?” Nisto, Miklosch diz em surdina ao franciscano: “Perce- bes? Não conheces a pedra de escândalo enquanto não te ferires?” Responde o outro: “Que pedra?” Prossegue Miklosch: “Creio ter o conde falado de modo compreensível; entretanto, não enxergas um palmo diante do nariz!”

  5. Diz Cipriano: “Não sei a que te referes, pois o conde apenas afirmou que ele e nosso amigo desconhecido dispensam a companhia de um terceiro. Acaso é isto extraordinário? Entendo a situação da seguinte maneira: O terceiro, Altíssimo, por certo ainda demorará, porquanto nenhum de nós está moralmente à altura de merecer a Visão de Deus. Enquanto permanecermos nesse estado, e já possuindo um amigo divino a nos mostrar os justos Caminhos de Deus, fácil é dizer-se: Satisfazemo-nos reciprocamente, isto é,

por enquanto! Pois seria bem triste caso jamais víssemos o Semblan- te de Deus!”

  1. Diz Miklosch: “Amigo, és demasiado tolo! É só o que te pos- so afirmar, respeitando uma voz interna. Por certo haverá no mundo inúmeras pessoas ignorantes como tu; talvez fossem mais facilmente curadas, muito embora caminhem na matéria física, enquanto de há muito te achas, como espírito, nas plagas de Deus. A fim de abrir-te a visão, contar-te-ei uma parábola: Houve na Terra um poderoso senhor e soberano. Como fosse sua intenção conhecer pessoalmente seus súditos, pois não se satisfazia com as informações da guarda, ele costumava vestir-se como simples homem e até mesmo visitar, como mendigo, as casas dos ricos incumbidos da caridade pública. Felizes aqueles que eram encontrados dentro da ordem estabelecida por ele; mas ai dos que não cumprissem suas determinações! — Vê, o Senhor dos Céus e de miríades de mundos e sóis parece fazer o mesmo, se bem que não com a intenção de experimentar Suas criaturas, e sim, movido pelo Seu Amor e Sabedoria, para dar-lhes oportuni- dade de se examinarem e se purificarem. Ainda assim, tenho ensejo de afirmar: Ai daqueles que Lhe impõem uma prova de paciência e indulgência demasiado fortes, em virtude da teimosia e ignorância premeditadas! Compreendeste?”

  2. Responde o franciscano: “Em parte. Mas, que farei com tua parábola? Acaso devo considerar aquele amigo desconhecido como Deus e Senhor, disfarçado? Ou talvez seja algum outro? Quiçá aque- le de chapéu luminoso? Conheço-o e sei que exerceu minha profis- são, e o chapéu só pode ter sido conquistado aqui. Dize-me, pois, onde está Ele, para que me prosterne e O venere condignamente!”

  3. Diz Miklosch: “Amigo, já disse o suficiente e nada mais di- rei. Lá estão o conde e o grande Amigo; pergunta-lhes a respeito! Uma coisa fica estabelecida como eterna verdade: um padre é, no mundo, geralmente o homem mais teimoso e, no Reino espiritual, não reconhece o Senhor, mesmo esbarrando com Sua Pessoa! Sabes quais foram em Jerusalém os mais ignorantes e obtusos? Os sacerdo- tes! E sabes quais as criaturas despidas de qualquer crença e de me-

nor inclinação para aceitarem a fé verdadeira? Os padres, mormente os católicos, dos quais fazes parte. Agora te disse tudo! Procura pa- lestrar com aqueles dois; nada mais direi!”

CAPÍTULO 148

O franciscano recai em novas dúvidas. Seu pavor do inferno é curado pelo Senhor

  1. O franciscano dá alguns passos em direção a Mim, ao general e ao conde; no momento em que abre a boca para perguntar-Me quem sou — Roberto Blum, ouvindo a Minha Chamada no cora- ção, se adianta e diz: “Senhor! Pão, vinho e vestes se acham prontos!”

  2. Respondo: “Muito bem, Meu caro Roberto Blum! Nesta casa és dono junto ao Senhor, e o grande amor dedicado a Ele é legislador de teu lar e de todos os que nele se encontram!”

  3. Quando o franciscano, que por amor à liberdade — mas não levado pela atração à grande verdade do Evangelho — havia aban- donado a ordem eclesiástica, depara com Roberto, a quem conhecia da Terra, fica perplexo e diz, após certo tempo: “Meu Deus, Jesus, Maria e José, e todos os santos da Igreja! Encontro-me na casa do pior herege, ou no próprio inferno! E aqui deveria encontrar-Se Je- sus, o Senhor? Pensaste que eu aceitaria isto? A Virgem Santíssima desmascarou-te a tempo, podendo eu fugir de tuas garras! Sempre fui devoto de Maria, para que me preservasse das tentações do dia- bo — e eis que me prova sua fidelidade! Miklosch, diabinho! Não tens outro Cristo no meio dessa assembleia milagrosa? Experimenta repetir essa façanha, pois o diabo não dará cabo de um franciscano!”

  4. Digo Eu: “Meu amigo, esta casa não pertence a um herege e muito menos a uma falange de demônios! Isto te digo como Senhor único e Eterno de Céus e Terra! No inferno não existem seres livres; como poderiam estar na Luz Celeste? Se esta fraternidade verdadei- ramente divina te é suspeita e nociva, a porta está aberta para te levar à liberdade sem limites! Podes ir ou ficar; para nós não faz diferença! O Infinito é bastante grande! Tu, irmão Blum, vai ao salão contíguo,

chama a todos e faze servir nesta grande mesa redonda quantidade suficiente de pão e vinho, a fim de que este tolo se convença do as- pecto dos supostos demônios deste lar, e como são fritos e cozidos!”

  1. Rápido, Roberto se dirige ao outro salão, a fim de executar Minhas Ordens. Imediatamente se apresentam todos os patriarcas, profetas e apóstolos, munidos de seus distintivos, inclusive o ma- triarcado, começando por Eva até Maria, com José e todas as pesso- as que aparecem no Evangelho. A esta falange se juntam: Roberto, Messenhauser, Jellinek, Becher, Nicolau, Bardo etc., e no final as vinte e quatro dançarinas conduzidas pela esposa de Roberto trazem pão e vinho em quantidade, colocando tudo em cima da mesa. To- dos estão rodeados de um halo luminoso, para que se abram os olhos do franciscano.

  2. Em seguida, digo aos vinte e nove recentes comensais: “Vin- de, amigos e irmãos, e tu, Miklosch, classificado de demônio pelo franciscano, chega aqui e serve-te primeiro do pão da Vida e toma o vinho do Conhecimento e da Força! Depois dirás ao franciscano, que há muito está de estômago vazio, qual o sabor deste alimento ‘infernal’!”

  3. Miklosch, que já Me havia reconhecido, aproxima-se com respeito e humildade, dizendo: “Ó Senhor, eis que pela primeira vez posso exclamar: Senhor, não mereço aproximar-me de Ti! — Uma simples palavra, porém, e tudo em mim se purificará! Aqui está o Pão do Céu, Teu Corpo verdadeiramente Vivo, sem fraude, nem mistificação! Quem Dele comer viverá eternamente, pois contém a força da Vida Eterna! E este vinho, que jorrou do Teu Coração, é Teu Sangue Real, que nos tira todos os pecados praticados por igno- rância ou maldade! Ouso, pois, saboreá-los! Oh..., que sabor e que aroma! Isto jamais pode um mortal conceber! Meus irmãos, provai pessoalmente e dizei-me se falo a verdade!” Todos assim fazem, sem acharem expressão para a maravilha e doçura do sabor.

CAPÍTULO 149

O franciscano insiste no dogma católico. Finalmente derrete o gelo nesta alma estarrecida

  1. Após certo tempo de profunda admiração, o conde se vira para Cipriano: “Amigo, se este for o aspecto do inferno, aqui ficarei e, presumo, todos os demais! Na companhia de espíritos tão lumi- nosos, por certo passaremos bem! Que te parece?”

  2. Responde Cipriano, aborrecido: “Muitos se perderam na doçura ilusória do inferno, e tal sorte também será a vossa! Sinto igualmente fome e sede; enquanto não tiver provas palpáveis como Tomé, nada disto me convencerá! Deus não pode viver com hereges iguais ao Blum!”

  3. Diz Miklosch: “Vem comigo àquela janela, que te mostrarei algo!” Indaga o outro: “O que será?” Responde Miklosch: “Verás!” Responde Cipriano: “Bem, mas não me enganes, do contrário...!”

  4. Ambos se dirigem à janela e Miklosch aponta uma vasta pla- nície e, a longa distância, em direção ao Norte, uma cidade seme- lhante a Budapeste. Em seguida, ele diz: “Amigo, aquele Senhor, que tua imensa ignorância considera príncipe dos demônios, manda-te dizer por mim: ‘Liberta-te deste inferno! Vai a Budapeste e cria um céu mais favorável para ti!’ Podes sair pela janela, pois as daqui não têm vidraças!” Obtempera o franciscano: “Esperarei mais um pou- co.” Indaga Miklosch: “Mas, por quê? Sendo aqui o inferno, como podes querer ficar?”

  5. Diz Cipriano: “Desejava saber ao certo se o Blum, antes da execução, se converteu à Igreja unicamente verdadeira, prometedora da felicidade. Se assim for, tudo aqui poderá estar em ordem, com exceção da Santíssima Trindade, da qual não há vestígio, do con- trário será tudo embuste infernal. O inferno age com teimosia para preparar seus adeptos até que possam ser lá admitidos. Vejo todos reunidos: Cristo, Maria, S. José, os apóstolos, patriarcas e profetas e numerosos santos e santas; o local também é apropriado para servir de Paraíso. Mas, como já disse, se Blum e seus comparsas forem os

mesmos hereges, tudo é apenas embuste do inferno e tenho de me afastar. Pois se o Papa não for o único e verdadeiro representante de Deus na Terra, e a Igreja Católica a única verdadeira doadora da felicidade, possuidora das chaves de Céu e inferno para todas as criaturas do mundo — Cristo não é Cristo, e as religiões deixam de ser o que são, para serem apenas fantasias humanas, impossibilitan- do a continuação da existência espiritual. Por isto, estou alerta para não me deixar tentar pelo inferno. A Igreja verdadeira é uma rocha, jamais podendo ser dominada por ‘ele’.”

  1. Diz Miklosch: “Conheço essas tolices católicas tanto quanto tu, e poderia, com argumentos incisivos, fazer-te calar. Prefiro, po- rém, arguir-te e tens que me responder a todas as perguntas! Ei-las:

  2. Em que ocasião teria o Cristo instituído a missa, tão conside- rada pela Igreja, e ministrada somente em latim, com risco da Vida Eterna se assim não fosse? Responde com argumentos da Escritura!” O franciscano se cala.

  3. Miklosch prossegue: “Como nada podes dizer, vejo-me obri- gado a procurar assuntos mais fáceis. Em que ocasião teria Cristo inventado as cerimônias, vestes ricamente ornamentadas, a estola, meias vermelhas, o precioso báculo, a tiara, os chapéus cardinalícios?

  1. Dize-me, quando teria Ele organizado os templos? Pois só pretendia a construção da Igreja viva no coração do homem! E os apetrechos pagãos, os altares privilegiados e os não privilegiados, as estampas, a água benta, a crisma sagrada — enquanto os verdadei- ros apóstolos batizavam com água! Quando foram criados os sinos, órgãos e cânticos, os ricos requisitos da missa, exéquias pomposas, os capelães, padres, decanos, deões, bispos e cardeais, dotando-os de grandes proventos? Sei que proibiu aos apóstolos portarem sacolas para evitar que guardassem presentes. Peço resposta concisa! Ora, nada dizes? Sempre tiveste língua ágil, por que não falas? Quer dizer que nada sabes proferir em favor da Igreja Católica?!”

  2. Responde, finalmente, o franciscano, irritado: “Teria muita coisa a dizer, mas diante de um herege é melhor calar-me!” Diz Mi-

klosch: “Concordo, mormente não se tendo argumentos! Dize-me ao menos quando Cristo teria ordenado a fórmula profana da con- versão de uma seita de origem cristã em Igreja Católica? Quando a absolvição, as festas do Rosário e da Porciúncula? Quando a funda- ção da Inquisição romana e espanhola? Quando e por que as ordens religiosas? Responde! Silencias qual túmulo e sei muito bem a razão! Vamos a fatos mais simples!

  1. Aponta-me, na História dos apóstolos, ter Pedro fundado o papado em Roma! Sei que ele passou o fim da vida na Babilônia, de onde escreveu uma carta para Jerusalém. Roma e Pedro se viram tão pouco quanto eu e o Imperador da China! Talvez tenhas outras datas positivas? Continuas calado? Como és pobre em tua defesa papal!

  2. Por certo saberás me dizer quando Cristo, ou Pedro, deu o título de ‘Santo Padre’ ao papa e instituiu o beijo no chinelo papal, tão rico em indulgências? Pois Cristo proibiu severamente chamar-

-se alguém de bom e santo, além de Deus; igualmente não se deveria denominar alguém de pai, a não ser o Pai no Céu, e todas as pessoas seriam nossos irmãos! Quiçá teria Ele elaborado posteriormente ou- tras ordens desconhecidas dos leigos, embora tivesse afirmado dian- te do povo, em Jerusalém, que Céus e Terra desapareceriam, Suas Palavras, porém, jamais!

  1. Meu amigo, teu silêncio é total e o embaraço se estampa em tua fisionomia! Poderia fazer milhares de perguntas semelhantes

  1. Responde, finalmente, o franciscano: “Amigo, incutiste-me ideias novas através de tuas perguntas estranhas, pelo que te agrade- ço com sinceridade. Seguir-te-ei junto ao Verdadeiro Cristo!”

  2. Indaga Miklosch: “Então, não queres ir para aquela cida- de?” Responde o monge: “Não, não! Em tais metrópoles nada de bom existe para um espírito. Se os encarnados lá são prejudicados moral e fisicamente, que sucederia se eu me apresentasse?” Inter-

rompe Miklosch: “Não fales tanta bobagem! Quando se viu um mortal prejudicar algum espírito? Mas lá não terias melhorado; ao contrário, pois de tais abrolhos não se colhem uvas!”

  1. Indaga o franciscano: “Sendo tu deveras mais inteligente do que eu, dize-me, aquilo é a Budapeste verdadeira? Tenho a impres- são de ser ilusória!” Diz Miklosch: “Deixemos isto! Oportunamente saberás se aquilo que se nos apresenta é real ou não. Vamos procu- rar o Senhor e confessar-Lhe nossa grande tolice; o resto entregare- mos a Ele!”

  2. Obtempera o outro: “Não achas bom dirigirmo-nos pri- meiro à Virgem Santíssima, porque está presente?” Reage Miklosch: “Ora, acaso não o queres fazer antes a Adão e Eva, aos patriarcas e profetas? A quem se dirigiu o general? Ao Próprio Senhor! Vê, está bem juntinho Dele! Queres algo melhor? Observa Roberto Blum, a quem o Senhor declarou proprietário desta casa, cujo esplendor e grandiosidade admiramos de fora! Também se dirigiu unicamente a Ele, chegando à bem-aventurança! Desejas outra coisa?”

  3. Responde o franciscano: “Tens razão; estou ainda envol- vido em muitas tolices católicas, das quais só me poderei desfazer aos poucos. Paciência, tudo se fará com o tempo! Vamos ao Senhor e mostrar-Lhe-emos como somos! Penso não ser Ele tão rigoroso como os católicos!”

  4. Diz Miklosch: “Isto não me preocupa. Olha, sou por certo ignorante e mau, comparado ao Senhor; entretanto, algo melhor do que um cardeal. Ainda assim, não te trataria com brutalidade, mas qual irmão, como fiz até agora. O que, então, se pode esperar do Senhor, o Amor Personificado?! Terá certamente Seu lado rigoroso, mormente contra orgulho, avareza, inveja e com todos aqueles que desconsideram os pobres. Conosco, que sempre vimos um irmão no simples soldado, Ele certamente será mais condescendente. Vamos!”

  5. Ambos se dirigem a Mim, enquanto vou ao encontro deles, dizendo a Miklosch: “Então, o irmão Cipriano não conseguiu fugir? Isto Me alegra bastante! Vinde, pois ainda há pão e vinho! Servi-vos à vontade! Em seguida, conduzirei todos ao grande Museu desta

casa. Haverá muitas surpresas! Ide à mesa e, caso não haja o suficien- te, o anfitrião poderá dobrar a alimentação!”

  1. Miklosch e Cipriano se aproximam da mesa, muito acanha- dos, e o franciscano não se atreve a tocar em nada, porquanto ficou frente a Maria. Ela sorri e diz: “Caro amigo Cipriano, que recalques são esses? Serve-te! Julgas haver no Céu protocolo idêntico ao das cortes dos reis terrenos? Aqui somos todos semelhantes às crianças que amam o Pai e estão cheias de amor, bondade e meiguice para com todos! Por isto, nada de receios!”

  2. Cipriano quase desfalece diante de Maria. Miklosch, po- rém, lhe responde: “Não sejas tolo e faze o que o Senhor e a amorosa Maria disseram!” Responde o franciscano, com voz embargada: “Tu podes falar, pois não tinhas sentimento apurado. Mas eu, sentimen- tal desde a infância, podendo chorar por três dias a morte de uma simples mosca, aqui não passo bem!”

  3. Digo Eu: “Não te perturbes; isto se dá no começo. Com o tempo, terás mais coragem!” Diz ele: “Ó Senhor, seria mais fácil caso não fosses tão simples. Tua enorme Dedicação poderia fazer estourar o coração de tanto amor!” Digo Eu: “Está bem, come e bebe; pois Miklosch já se serviu! Roberto! Traze mais pão e vinho; pois vejo que Miklosch os aprecia!”

CAPÍTULO 150

O franciscano agradece ao Pai pelo alimento celeste. Abre-se o Reino de Deus. A assembleia de espíritos felizes, na sala principal

  1. Rápido, Roberto apanha mais pão e vinho. O franciscano faz três profundas reverências diante da mesa antes de comer o pão. Logo à primeira prova se extasia com o sabor sem par, a ponto de não saber o que dizer. Quando toma o primeiro gole de vinho, ou- ve-se um prolongado “Aah!” Nesta altura, Miklosch, mais corajoso e saciado, pergunta: “Então, o que me dizes deste alimento ‘ilusório’? Pelo que vejo, agrada-te bastante!”

  1. Responde o outro, amavelmente: “Caro irmão, existem qua- tro fatores na vida do homem sem os quais ele não viveria. Primeiro, é gerado; segundo, vem a tolice pela qual procura dar-se importân- cia; terceiro, vem a morte, tirando à alma o peso da matéria, às vezes de modo brusco, deixando-lhe a ignorância.

  2. Bem sabes quão tola era nossa crença e o dogma que lhe deu origem! Como poderíamos sorver a verdadeira sabedoria de tal doutrina? Agradeçamos ao Pai por nos ter salvo em tempo! Mas, eis Roberto, munido de grande taça de vinho e um pão inteiro!”

  3. Diz Miklosch: “Isto é demais! Já me servi e estou saciado para sempre!” Diz o franciscano: “Eu também! Que tal se levássemos este pão e vinho ao Senhor?”

  4. Diz Maria: “Isto muito O alegrará!” Diz o franciscano: “Se a Mãe Santíssima concorda, não existe dúvida. O Senhor está em palestra com o conde, mas não importa. Traze o vinho, que levarei o pão para surpreendê-Lo!”

  5. Quando ambos se acham perto de Mim, o franciscano diz com a máxima humildade: “Senhor, disseste na Terra: Não mais pro- varei deste alimento até que o possa saborear novamente convosco em Meu Reino! Aqui estamos no Teu Reino Verdadeiro! Saboreia, pois, este novo alimento do Teu Reino, para nosso consolo!”

  6. Digo Eu: “Realmente, alegro-Me por vos terdes lembrado de Mim, trazendo, como filhos, algo de comer e beber para o Pai! Poderia tê-lo feito por Mim Mesmo; mas não teria o mesmo valor do que o servido por vós! Dai-Mo, para vos certificardes ter Eu Me servido!” Após ter feito isto, passo o restante aos demais e todos sentem maior conforto.

  7. O franciscano, alegríssimo, diz: “Senhor, Pai e Deus! Se em vida algum anjo me tivesse feito a descrição do Teu Céu conforme o vejo e sinto, jamais teria acreditado! Onde está o nimbo glorio- so e divino, crença mística dos católicos? Onde a horrenda Face justiceira do Filho de Deus? E a do Pai? — Tudo aqui é natural, na maior simplicidade e amabilidade! E Tu, o Ser Supremo, ca- minhas, o mais Simples, entre todos. E nenhum percebe Quem

és! Tua Expressão no falar é despretensiosa, e tudo em Ti traduz a máxima simplicidade!

  1. Poder-se-ia duvidar, caso não fossem a majestade desta sala, a luz maravilhosa que se projeta pelas janelas enormes e todos os es- píritos felizes de vestes sublimes, afirmando: Eis o verdadeiro Reino do Céu e não poderá haver outro senão aquele por onde caminha o Senhor de Céu e Terra, em vestimenta modesta, entre Seus filhos e deles cuidando! Confesso não ter de início aceitado muita coisa por causa do Evangelho, onde consta sentar o Filho à Direita do Pai Onipotente, na Luz eternamente impenetrável! Mais adiante se lê: Voltarei nas nuvens dos Céus com grande Poder, Força e Glória para julgar os vivos e mortos! — Igualmente Estevão, antes de ser ape- drejado, viu o Céu aberto e o Filho à direita do Pai! E quão místicas são as visões de João! Nada disto se vê aqui, pois é tudo diferente! Por isto nos é perdoável o comportamento tão ignorante! Reconhe- ço, porém, poder somente este Céu oferecer a máxima liberdade e felicidade a qualquer espírito! Rendemos-Te todo louvor, amor e veneração, Pai e Deus Santíssimo!”

  2. Digo Eu: “Bem, Meu Cipriano, não resta dúvida não se apresentar aqui a menor Glória; não deves, todavia, julgar teres visto tudo que Meus Céus comportam. Um pouco de paciência, e verás coisas maravilhosas!

  3. Passaremos imediatamente à sala contígua e de lá ao gran- de Museu desta casa, onde presenciarás coisas e fatos que te farão ajoelhar. Mesmo assim não deves pensar ter chegado ao limite dos Meus Céus. Eis o prenúncio do começo! Não obstante, ficarei como Sou! E quando deparares com as coisas transformadas, enobrecidas e glorificadas até o Infinito, Eu estarei eternamente Imutável em meio às Minhas Obras, muito embora Sua Grandiosidade e Profun- deza não possam ser calculadas por eternidades! — Agora, vamos à outra sala!”

  4. Os milhares de hóspedes tomam a dianteira; seguem os pa- triarcas e apóstolos. A nossa frente vão Maria, José e o apóstolo João. Junto a Mim, o conde, o franciscano, Miklosch, o general, Tomás e

Dismas; na vanguarda, Roberto e Helena, Becher, Jellinek, Bruno, Bardo, Nicolau e as vinte e quatro dançarinas, carregando louças e utensílios.

  1. Assim organizados, chegamos à sala onde a multidão dá im- pressão de ser apenas umas trinta pessoas, diante da amplitude; o franciscano quase cambaleia de estupefação, dizendo: “Senhor, isto é demais para um espírito fraco! Que imensidade e deslumbramen- to! Será, acaso, o preâmbulo do início? Ou o Céu total? A cúpula é idêntica ao Céu estrelado, completo, com todas as constelações! As paredes, semelhantes às nuvens da aurora! E as galerias se parecem com os cimos montanhosos, banhados pelo raiar do Sol! Senhor, isto é demais! Como és Maravilhoso, Senhor!”

FinaldoPrimeiroVolume Amém

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